Javiera Manzi A. e Alondra Carrillo V.
Jacobin
Mulheres protestam no Dia Internacional da Mulher na Plaza Baquedano em 8 de março de 2020 em Santiago, Chile. (Gaston Brito Miserocchi / Getty Images). |
Tradução / Faz pouco mais de um mês que as feministas no Chile se levantaram em uma greve feminista geral, marcando o Dia Internacional da Mulher em 8 de março. Este ano, dois milhões de nós transbordamos pela grande avenida e pelas ruas adjacentes do centro de Santiago. Foi a maior manifestação da história recente do nosso país.
Éramos tantas que não puderam nos contar, tantas que tentaram minimizar e diante dessa resposta opaca tínhamos a certeza de que fomos mais e que a revolta seguia seu curso na luta feminista.
Tomamos a decisão de não pedir permissão às autoridades do governo para marchar. Fizemos isso para recuperar nosso direito constitucional de protestar e rejeitar a legitimidade do governo, que assumimos como diretamente responsável pela violação sistemática dos direitos humanos durante as revoltas do Chile em outubro.
Sabíamos que este dia seria histórico, que seu impacto seria fundamental para manter a dinâmica dos protestos maciços que eclodiram em outubro do ano passado. Sabíamos que em todo o país e de uma só vez elevaríamos nossas vozes contra o terrorismo de Estado, a precarização de nossas vidas e as múltiplas formas de violência que experimentamos diariamente.
Depois dos protestos
Três semanas depois, Piñera tira uma foto na Plaza de la Dignidad e com isso, aparece não só a irrupção do gozo quase perverso do sujeito mais odiado do Chile no lugar icônico da revolta, mas também a ratificação de uma transformação do cenário político: em meio à pandemia, o governo tenta governar de volta. Que para fazê-lo tenham precisado de uma crise sanitária mundial que reduziu radicalmente nossa recente cotidianidade de protestos, não modifica esta circunstância; mas revela a fragilidade constitutiva da sua restaurada “autoridade”.
Custa, diante desta mudança no tabuleiro, evocar a intensidade das proximidades que vivemos no 8 de março. O que aconteceu com aquele ato coletivo? Onde persiste esse impulso, essa confiança e esse desejo de transformação radical de nossas vidas em meio de uma pandemia global?
Da potência de nossos corpos nas ruas passamos a viver este momento de maneira fragmentada, em aparência, divididas. A negativa do governo em fazer uma política geral de quarentena com condições mínimas de dignidade tem levado a considerar esta medida como um privilégio de poucos. Mas não esquecemos que o que hoje está em jogo é a impugnação da administração neoliberal da crise sanitária que encarna este governo e os 30 anos em que tem se naturalizado a ausência de direitos.
O certo é que mesmo que as vezes pareça desse jeito, este não é um parêntese. As paredes do nosso lar ou os trânsitos temerosos no transporte público numa cidade reduzida ao mínimo de sua atividade não são sinal de uma pausa no tempo. Nem tudo parou. Enquanto aqueles que nos governam saem vitoriosos a desfrutar do que pareceria ser este (breve) momento de poder sem contrapeso, o processo em que nos encontrávamos subsiste subterraneamente em nossas raivas, anseios e perguntas; em nossas redes e conspirações silenciosas.
Composto de crises
Vivemos hoje a excepcionalidade da pandemia da COVID-19 no contexto da excepcionalidade que habitamos desde 18 de outubro. Esta é a pandemia em meio a revolta e é também a pandemia num contexto de terrorismo de Estado. A potência das manifestações ressoa na distância como um passado que não quer ser, ou talvez como um presente na tarefa contra o esquecimento, contra a impunidade e contra a expropriação da imaginação de outra vida possível.
Aparece então um desejo que é também uma necessidade: a distância física não pode ser condição de isolamento e paralise. Pelo contrário, temos nos chamado a não nos soltar justamente porque sabemos que vivemos esta crise sanitária com companheiros que são presos políticos da revolta, num contexto de total impunidade das autoridades responsáveis pela violação sistemática dos Direitos Humanos cujas primeiras medidas de emergência pandêmica foram a restauração da militarização por meio do toque de recolher nas cidades.
Já que este não é um parêntese, mas o tempo, a vida e a política também, a pergunta hoje não é o que faremos depois que isso passar? A pergunta talvez seja: como configurar cenários de saída que não reforcem os giros autoritários, as brigas do penúltimo contra o último, a violência patriarcal em escalada dentro das casas em quarentena, a violência racista que se intensifica? Sem dúvida, o que façamos hoje será determinante para os cenários de alternativa à crise, mas o que já vínhamos fazendo é igualmente importante. Não partimos do zero na revolta e muito menos partimos do zero agora. Começamos um programa para transformar radicalmente o modo em que a vida se organiza, a vida toda.
Com essa orientação é que temos tentado atuar neste tempo. Propusemos um Plano de Emergência Feminista como resposta e uma chamada à ação coletiva após a primeira semana de declaração de emergência sanitária no país. Neste contexto, levantamos junto com outros movimentos greves pela vida para exigir uma quarentena total com condições de dignidade para todos e constituímos uma Rede de Apoio Feminista para fazer frente a exacerbação da violência patriarcal no contexto do confinamento. Desde as assembleias territoriais buscamos sustentar redes de cuidado e apoio mútuo. Estar organizados tem nos permitido constituir um corpo próprio que prioriza os cuidados e seu lugar fundamental entre os trabalhos que sustentam a vida.
Igualmente, viver esta pandemia em meio de uma revolta abre perguntas e possibilidades que sem essa ação própria não teriam lugar. Como enfrentar de maneira efetiva estas políticas do massacre? Como podemos instalar nossas vidas e nosso cuidado sobre as ganâncias de poucos? Como organizar uma resposta ao mesmo tempo situada e globalmente imbricada a partir da potência internacional da greve feminista? Como, a final, podemos pôr em ação nossa força própria nestas circunstâncias?
É evidente que não existe uma resposta fixa para estas perguntas. Para nós se trata de reconhecer, neste cenário de incertezas, que as certezas de hoje podem se desprender da memória e da confiança no que estávamos fazendo juntas.
Estamos, como poucas vezes na história recente, diante de uma crise mundial que nos une numa experiência compartilhada. Assim como o movimento feminista veio fazendo com o estremecimento global dos últimos 8 de março, se abre também hoje a possibilidade, e a necessidade, de dar uma resposta comum diante deste vértice histórico. Em nesse sentido, o movimento feminista como potência internacionalista tem de ser trincheira contra o radical avanço da precarização, a privatização dos bens comuns, os fundamentalismos e as violências num contexto de desastre econômico que hoje se apresenta como um acontecimento inevitável. Precisamos constituir um alternativa.
No dia em que Sebastián Piñera foi tirar um retrato em primeiro plano junto ao monumento a Baquedano, a Plaza de la Dignidad se encontrava deserta. Essa sexta-feira não havia bandeiras pretas, nem lenços verdes. O que nós vimos além do seu gesto macabro não foram apenas as pichações exigindo sua saída, o que ele buscava ostentar como troféu são as letras pintadas a uns metros nas quais ainda é possível ler o lembrete daquilo que fomos então e daquilo que somos quando não nos soltamos: históricas.
Sobre as autoras
Javiera Manzi A. é membro do comitê de coordenação da 8M no Chile.
Alondra Carrillo V. é membro do comitê de coordenação da 8M no Chile.
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