31 de outubro de 2022

A vitória de Lula traz um sopro de esperança para a democracia

Lula derrotou o presidente da extrema direita, Jair Bolsonaro, na eleição mais acirrada da história do país. O veterano de esquerda enfrentará enormes desafios ao tomar posse, mas seu triunfo sobre Bolsonaro deu à política brasileira uma nova chance após uma presidência catastrófica.

Olavo Passos de Souza

Jacobin

O presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, cumprimenta apoiadores após vencer a eleição presidencial, São Paulo, Brasil, 30 de outubro. (Caio GUATELLI / AFP via Getty Images)

Tradução / No domingo, 30 de outubro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu uma vitória histórica sobre o atual presidente Jair Bolsonaro. Na disputa mais acirrada desde a redemocratização brasileira na década de 1980, Bolsonaro se tornou o primeiro presidente em exercício a perder a reeleição.

A eleição dividiu o Brasil entre a defesa da democracia e um retorno à política civil de um lado, e o autoritarismo e a política reacionária do outro. A vitória de Lula, com 50,9% dos votos contra os 49,1% de Bolsonaro, provocou comemorações nas maiores avenidas do Brasil, onde o grito popular pediu o fim da crise social que assolar o país.

O jornalista brasileiro Fernando Gabeira, que lutou como guerrilheiro contra a ditadura militar, chamou a eleição de “uma vitória para o Brasil, e uma vitória para a humanidade. Agora podemos respirar de novo”. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um rival de longa data de Lula, enviou a ele uma mensagem de felicitações proclamando que “a democracia venceu”.

Vitória para a democracia

Em 2018, o total de votos de Bolsonaro no segundo turno foi um pouco mais alto: 58,2 milhões em comparação com 57,7 há quatro anos. Mas Lula conseguiu também conseguiu um aumento na votação frente a Fernando Haddad, seu correligionário do Partido dos Trabalhadores (PT), principal oponente de Bolsonaro em 2018, aumentando de 47 milhões de votos há quatro anos para 60 milhões de votos desta vez.

Lula fez campanha com uma mensagem de democracia e pragmatismo, defendendo a unidade política, e uma valorização dos direitos humanos e civis. Para seu candidato a vice, Lula escolheu Geraldo Alckmin, outro antigo rival, que foi seu oponente presidencial em 2006. A frente ampla de Lula, composta de figuras que vão dos socialistas aos neoliberais, denunciou o desprezo de Bolsonaro pelo povo brasileiro, pela economia e pelo meio ambiente, prometendo um retorno à estabilidade e ao progresso em oposição aos quatro anos de caos de Bolsonaro.

No discurso de vitória, Lula incluiu a seguinte proclamação:

Esta não é uma vitória do PT, não é uma vitória dos partidos políticos, mas uma vitória do movimento democrático, do povo brasileiro que deseja mais do que aquilo que lhe foi dado. Democracia é mais do que uma palavra bonita a ser jogada pelo ar – é algo que temos que sentir na pele.

É a terceira vitória presidencial na carreira de Lula, após dois mandatos consecutivos, entre 2002 e 2010, consolidando sua posição como o político vivo mais popular do Brasil.

Entretanto, a eleição de Lula é um momento amargo e doce, pois as eleições legislativas e governamentais do último mês foram em grande parte vencidas por candidatos conservadores ou de extrema direita que apoiaram Bolsonaro. Lula enfrentará uma hostilidade sem precedentes como presidente, já que seus opositores políticos controlarão o Congresso brasileiro, bem como seus maiores e mais ricos Estados.

Além disso, Bolsonaro afirmou repetidamente no passado que a única maneira que ele poderia perder seria no caso de fraude. Com sua base cada vez mais radicalizada e disposta a agir violentamente, resta saber o que os próximos meses significarão para a democracia brasileira.

Uma campanha sem igual

No período que antecedeu a eleição, Bolsonaro se apresentou como um campeão de estabilidade e progresso, alegando que o Brasil estava em uma condição próspera com uma economia forte, desafiando todas as evidências contrárias. Uma de suas principais ferramentas de campanha foi o uso do Auxilio Brasil, um programa social destinado aos cidadãos de baixa renda, através de transferências financeiras diretas. Inicialmente criado como um programa emergencial durante a pandemia da COVID-19, ele provou ser uma das poucas ferramentas que Bolsonaro teve para elevar seus níveis desastrosos de aprovação.

Com isto em mente, o presidente fez pressão para manter o programa vivo até outubro e turbinar a campanha presidencial. Bolsonaro afirmou que o Auxilio Brasil foi mais bem-sucedido que o Bolsa Família de Lula, o histórico programa de apoio às pessoas de baixa renda do ex-presidente que ajudou a tirar dezenas de milhões de pessoas da pobreza nos anos 2000. Enquanto a política parecia estar em desacordo com a posição econômica neoliberal de Bolsonaro, ele usou o Auxilio Brasil para se retratar como um ótimo líder humanitário.

Seus críticos, por outro lado, o chamaram de o maior ato de compra de votos em massa da história do Brasil. Entretanto, é inegável que o programa emergencial de Bolsonaro, introduzido após quatro anos de desordem econômica e social, pelo qual seu próprio governo foi responsável, aumentou sua popularidade e ajudou a mantê-lo competitivo nas urnas.

Lula, por sua vez, trabalhou duro para se apresentar como a única escolha democrática. Lembrou de seu próprio governo como uma era próspera para o país, enquanto se defendia de uma oposição amargamente hostil que o enchia de acusações falsas relacionadas à mentiras, ao comunismo e até mesmo ao satanismo.

Mesmo estando à frente nas pesquisas eleitorais, Lula não estava tão acostumado a fazer campanha na era digital quanto Bolsonaro, cujos apoiadores inundaram as redes com a narrativa reacionária. O ex-presidente, que concorreu pela primeira vez às eleições nos anos 1980 e hoje nem sequer possui um telefone celular, utilizou locais de comunicação mais tradicionais. Isto fez um forte contraste com Bolsonaro, um usuário ativo do Twitter que implantou uma máquina de notícias falsas incrivelmente eficaz.

Em uma campanha eleitoral repleta de hostilidade e violência, os dois candidatos permaneceram acirrados nas urnas durante todo o mês de outubro.

Democracia em perigo

As eleições desde o retorno da democracia nos anos 1980 têm sido marcadas pela relativa civilidade e pela transição pacífica do poder. Esta tendência começou a enfraquecer em 2010, pois a polarização transformou as campanhas do país cada vez mais hostis, fazendo com que as campanhas presidenciais de 2014, 2018 e agora 2022 fossem cada vez mais agressivas que as últimas.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a instituição que regulamenta as eleições, aplica regras rígidas de campanha para garantir que o processo democrático possa prosseguir pacificamente. A todos os candidatos é garantido um tempo de propaganda nos canais de televisão e rádio proporcional à força legislativa de seu partido. A campanha na véspera das eleições ou dentro das áreas eleitorais é ilegal, e propagandas falsas podem ser denunciadas e retiradas de circulação.

Este sistema, juntamente com as urnas eletrônicas de votação que têm se mostrado consistentemente confiáveis, fizeram das eleições brasileiras uma referência de eficiência e representação no mundo democrático. Porém, a nova era de desinformação e polarização testou estas medidas de proteção eleitoral até o limite de suas possibilidades.

Os aplicativos de comunicação como o WhatsApp são focos de notícias falsas e extremamente difíceis de monitorar. Isto tornou quase impossível evitar que a desinformação fosse enviada de um lado para o outro. As autoridades eleitorais removeram de circulação um número recorde de anúncios de TV e rádio que eram considerados agressivos, mas somente depois de seu efeito já ter sido divulgado. Os candidatos de extrema direita cresceram mais confiantes e revitalizados em seus ataques, já que a marca do conservadorismo reacionário de Bolsonaro retratava a esquerda brasileira como um inimigo mortal.

É o caso do governo Bolsonaro e seus aliados, que desempenharam um papel ativo nesta investida. O presidente constantemente atacou o processo eleitoral e respondeu aos esforços para sancionar seu comportamento antidemocrático com gritos de perseguição. Bolsonaro apresentou o TSE, a Suprema Corte (STF), os institutos de votação e a mídia em geral como parte de uma conspiração para retirá-lo do poder.

Violência da extrema direita

Esta demonização das bases democráticas alimentou um clima perigoso entre os seguidores de Bolsonaro. Os trabalhadores que fazem pesquisas eleitorais foram atacados nas ruas e apoiadores de extrema direita assassinaram várias pessoas, incluindo um homem que foi morto com um facão por expressar seu apoio a Lula. Os apelos para que a STF fosse dissolvida se tornaram comuns entre os eleitores bolsonaristas.

O mês de outubro, que culminou na eleição de domingo, foi um campo de batalha de desinformação, extremismo político e até violência aberta. Em 23 de outubro, Roberto Jefferson, um político ligado historicamente com a direita e agora com Bolsonaro, que uma vez empregou seu filho como estagiário, atacou a Polícia Federal (PF). Os ataques virtuais de Jefferson ao STF haviam violado os termos de sua prisão domiciliar e provocaram uma ação para prendê-lo, o que Bolsonaro tentou evitar.

Quando os policiais federais se aproximaram da casa de Jefferson, o ex-político respondeu com tiros e granadas, antes de ser finalmente detido. Em qualquer outra eleição, este evento teria dominado o ciclo de notícias. Entretanto, a campanha de Bolsonaro conseguiu desviar a atenção dela, direcionando a conversa para uma suposta fraude nas inserções das campanhas na rádio.

Em outro incidente, desta vez em 29 de outubro, a deputada de direita Carla Zambelli sacou uma arma em público e perseguiu um homem em uma rua de São Paulo. Zambelli alegou que o homem a estava perseguindo por sua posição política e a tinha agredido fisicamente, embora provas em vídeo desmascaram essas acusações. Transportar armas de fogo, escondidas ou não, no dia anterior a uma eleição é ilegal no país.

No entanto, Zambelli desafiou abertamente a lei, declarando em uma entrevista na TV após o incidente que ela não reconheceu a decisão da STF sobre o assunto. Esta injeção de violência armada e intimidação na cena política mostra como os esforços de Bolsonaro corroeram o discurso público e a confiança nas instituições democráticas.

A fase final

Após o desempenho surpreendentemente forte de Bolsonaro no primeiro turno e as vitórias esmagadoras dos candidatos bolsonaristas nas eleições do Congresso, Senado e Governo, a campanha do presidente foi para a ofensiva, na esperança de que eles pudessem alcançar uma surpresa. Durante a primeira quinzena de outubro, o número de votos dos bolsonaristas aumentou continuamente.

Isto serviu como um alerta para a campanha de Lula e o ex-presidente fez uma série de movimentos para garantir que ele mantivesse sua vantagem sobre Bolsonaro. Talvez o mais polêmico de todos foi sua abordagem ao bloco evangélico.

Pastores evangélicos, que constituem uma poderosa força conservadora na política e na sociedade em sua maioria apoiaram Bolsonaro e sua postura moralista “pró-família”. A direita religiosa pregou ativamente contra todas as formas de política de esquerda e alegou que Lula fecharia as igrejas. O multimilionário televangelista Silas Malafaia ficou ao lado do presidente Bolsonaro em muitos de seus comícios de campanha e até viajou com ele para o funeral da Rainha Isabel II na Inglaterra.

Lula tentou afastar a base religiosa de seu oponente, incluindo referências a Deus em seus discursos e escrevendo uma “carta aos evangélicos” na qual ele procurava dissipar seus medos. Esta carta lembrava sua “Carta ao povo brasileiro” de 2002, na véspera de sua primeira vitória presidencial, que tentou combater as alegações de seus oponentes de que ele era um comunista disfarçado. O apelo pragmático aos valores tradicionais por Lula desanimou alguns de sua base, enquanto outros o viam como uma necessidade em uma eleição apertada.

Nos debates presidenciais de outubro, Bolsonaro também mudou de tática. Afastando-se de sua retórica agressiva e explosiva bem conhecida, Bolsonaro tentou cultivar a imagem de uma figura calma e civilizada, elogiando seu próprio mandato como presidente enquanto acusava Lula de tentar prejudicar sua reputação. Esta surpreendente mudança de tática funcionou bem para o presidente em exercício, colocando Lula na posição de defender a si mesmo e suas políticas.

A reorientação foi em grande parte o trabalho do chefe de campanha de Bolsonaro e seu segundo filho, Carlos, que por muitos anos foi o formador da imagem pública de seu pai. Junto com seus dois irmãos, Carlos se tornou um político de sucesso por mérito próprio. Ele é um parceiro do aliado de Donald Trump, Steve Bannon, e da empresa Cambridge Analytica, e tem se mostrado um mestre da desinformação nas redes sociais.

A derrota de Jair Bolsonaro pode trazer um fim à sua própria carreira política. Entretanto, seus filhos continuam ativos e influentes, e sua marca de autoritário reacionário e protofascista tem crescido mais forte desde sua vitória eleitoral em 2018.

A resposta de Bolsonaro

Odesprezo de Bolsonaro pelo processo democrático é bem conhecido. Ele forjou sua carreira política como apologista da ditadura militar e de seus torturadores. A cada passo, Bolsonaro tentou barrar as medidas democráticas a fim de garantir sua reeleição.

Ao longo de 2022, ele fez campanha para a instauração do voto por cédulas de papel no lugar das comprovadas e testadas urnas eletrônicas, alegando que essas urnas seriam inevitavelmente invadidas. Ele alegou ter provas de irregularidades (mas nunca as apresentou) e pediu aos militares que fizessem sua própria contagem dos votos.

Quando os governos estaduais liberaram o transporte público no dia da eleição para garantir maior comparecimento no primeiro turno, Bolsonaro tentou detê-los. No segundo turno, a Polícia Federal Rodoviária realizou blitz no trânsito perto das áreas de votação no nordeste, o reduto político de Lula. Isto constituiu um movimento de obstrução legal para a interferência ilegal.

O STF tornou oficial a vitória de Lula, proclamando que não há “nenhum risco de que os resultados sejam ameaçados”. O presidente da Câmara dos Deputados, aliado de Bolsonaro, Arthur Lira, também reconheceu publicamente o resultado. Estes pronunciamentos certamente tornarão mais difícil para Bolsonaro desafiar sua derrota.

No entanto, as eleições estabeleceram uma forte união de políticos bolsonaristas que fizeram campanha ativa em favor do presidente. Sua base se mostrou mais do que disposta a ignorar o processo democrático a fim de proteger seu líder. Será que o Brasil ainda pode enfrentar algo semelhante aos tumultos de 6 de janeiro no Capitólio, nos Estados Unidos?

Desafio e esperança

Em seu discurso de vitória, Lula comemorou seu retorno político: “Eles tentaram me enterrar, mas aqui estou eu”. Eleito pela primeira vez em 2002, Lula teve que moderar suas posturas de esquerda para governar um país tão diverso politicamente como o Brasil. Seu tempo no cargo foi altamente bem-sucedido e terminou com uma taxa de aprovação de 87%.

Na década de 2010, Lula viu seu partido, o PT, demonizado pela investigação tendenciosa de Sergio Moro. Moro prendeu Lula sob falsas acusações em 2018, bem a tempo de impedi-lo de concorrer à presidência contra Bolsonaro. O STF anulou sua condenação em 2019, permitindo que ele voltasse ao meio político, e agora ele conseguiu um terceiro mandato, vinte anos após sua primeira vitória presidencial.

No entanto, o Lula que saiu vitorioso ontem não é a mesma figura que se tornou presidente em 2002, e o país que ele irá governar também mudou. A fim de derrotar Bolsonaro, Lula se moveu cada vez mais em direção ao centro para ampliar seu apelo. Seu vice-presidente, Geraldo Alckmin, é um oponente ideológico da esquerda, junto com muitos de seus outros aliados. O apelo de Lula aos evangélicos também tem servido para fortalecer o lugar da religião na vida política brasileira.

O Congresso que o novo presidente irá presidir é muito mais conservador e hostil do que aquele com o qual ele trabalhou nos anos 2000. Lula enfrenta uma série de desafios assustadores, tais como reverter os danos causados à Amazônia, reconstruir as entidades sociais e ambientais que Bolsonaro destruiu, e combater a cultura de ódio e preconceito que o seu antecessor cultivava. Mas quaisquer que sejam as provações que possam surgir, sua vitória deu à democracia e ao debate público uma nova chance em um país que precisava desesperadamente de esperança.

Colaborador

Olavo Passos de Souza é doutorando em história pela Stanford University.

A faca em sua garganta

Quando o monstro é exposto, não há, de fato, surpresa alguma: altos salários, descontrole no estímulo econômico via transferência de renda, excessiva quantidade de dinheiro gasto em programas sociais - formas diferentes de dizer que há dinheiro demais nas mãos daqueles que nasceram para ter [dinheiro] de menos. 

Phil A. Neel



Preços

Deslize por qualquer feed de notícia e histórias aterrorizantes se arrastarão pela tela: preços que, como mortos-vivos, erguem-se das profundezas de uma cova chamada globalização, contracheques que queimam até às cinzas, predadores emergindo das florestas periféricas para sifonarem ouro negro das perfurações que abrem em tanques de combustível. O pesadelo da inflação está de volta. E, como em toda história de terror, é preciso que haja um monstro. Mas qual é, exatamente, a causa do aumento dos preços? A mensagem política frequentemente é tão clara aqui quanto nos pequenos adesivos de humor boomer com Joe Biden que aparecem nas bombas de combustível de todo o país. Os entendidos agitam suas tochas e seguem seu monstro favorito até um covil cheio de ossos. Quando o monstro é exposto, não há, de fato, surpresa alguma: altos salários, descontrole no estímulo econômico via transferência de renda, excessiva quantidade de dinheiro gasto em programas sociais – formas diferentes de dizer que há dinheiro demais nas mãos daqueles que nasceram para ter [dinheiro] de menos. Novas despesas devem ser reduzidas, a menor manifestação de interesse da juventude pela sindicalização, por sua vez, revertida, e todo esse é-muito-dinheiro circulando por aí novamente desviado para as já habituais mãos de muito poucos. O Banco Central dos EUA, que abrigava tais monstros, deve agora assumir a responsabilidade e, enfim, empunhar a lâmina afiada da taxa de juros, como Paul Volcker, santo padroeiro dos tecnocratas brutais e das surras que não marcam na pele.

A “esquerda” mira um monstro diferente, mas ainda assim um monstro. A inflação não é provocada por altos salários, mas pela [prática abusiva da] manipulação de preços e por aqueles que lucram com a guerra. Quando muito, o aumento de preços justifica a demanda por salários mais altos, invertendo [o dilema] do ovo e da galinha. Esse entendimento é geralmente ornamentado por algum reconhecimento do estado de emergência na cadeia de abastecimento, juntando a manipulação de preços e os choques na produção em uma narrativa que, no mais sério de seus esforços, conclui que a única forma de matar o monstro é por meio de um pacote pragmático de controle de preços semelhante àqueles que foram instituídos durante a guerra[1]. Mas também aqui o protagonismo permanece com os “formuladores de políticas”, mais proeminentemente os tecnocratas do Federal Reserve [o Banco Central dos EUA]. Na verdade, tanto as narrativas de direita quanto as de esquerda têm a mesma tendência de retratar a turbulência econômica dos últimos dez anos como um prestigiado drama centrado nas intrigas de financistas e de banqueiros centrais[2]. Stephanie Kelton, ex-chefe de economia da Comissão de Orçamento do Senado e consultor político da campanha de Bernie Sanders, faz algo parecido em seu recente sucesso de vendas popularizando a “Teoria Monetária Moderna” (TMM), cuja essência afirma que já existem todos os pré-requisitos legais e teóricos para que as autoridades fiscais e financeiras despejem dinheiro em programas sociais se, ao menos assim, escolhessem fazê-lo[3]. O resultado é que até mesmo muitos “socialistas” passaram a ver como única saída para a crise – de inflação, certamente, mas também crises mais generalizadas, tais como a estagnação econômica e a catástrofe ecológica – a mobilização do Banco Central e do Tesouro para “Financiar uma Revolução Climática do Povo”[4] ou programas semelhantes, e aparentemente plausíveis, conduzidos no interior do ambiente institucional existente. A estratégia consiste em se aproximar da utopia por meio de um compromisso político. Contudo, remova os ornamentos e chegaremos a uma lógica bem mais direta: a única coisa capaz de parar uma pessoa má com um banco é uma pessoa boa com um banco.

Não é particularmente difícil traçar a mecânica real da inflação a qualquer dado momento. Ainda que ganhos mais altos e despesas sociais crescentes possam ter contribuído para a onda estagflacionária dos anos 1970 (acompanhando o alto custo da energia, decorrente da crise petrolífera), a ideia de que altos salários, ou outras formas de “demanda excessiva”, sejam sempre o principal motor da inflação e do desemprego no conjunto da economia, há muito tem sido desmentido[5]. Está bem claro que as causas mais próximas e importantes da atual onda inflacionária são a escassez na cadeia de abastecimento, ainda reflexo da pandemia, e o choque no fornecimento global de energia causada pela guerra na Ucrânia – fatos reconhecidos pelas convencionais think-tanks de macroeconomia[6]. Ambos têm desencadeado o aumento dos preços que se manifestam, inicialmente, como lucros em acelerada ascensão. O “apertado mercado de trabalho” tem sido muito mais um bicho-papão do que uma realidade. Antes da pandemia a taxa de crescimento dos salários reais era modesta, com os salários subindo mais lentamente do que o já baixo crescimento do PIB e da inflação ao longo dos mesmos anos. Assim, embora os ganhos médios tenham aumentado ligeiramente no final da década de 2010 (antes do súbito pico em 2020, acompanhando o estímulo), o crescimento dos lucros nesse mesmo período excedeu, em muito, o crescimento dos salários. Por um lado, os miseráveis ganhos que os trabalhadores obtêm através do aumento salarial tendem, com o tempo, a lhes ser arrancados pela inflação, e isso causa a sensação de que lucros forjados por preços inflacionados não são lucros normais, e sim um tipo especial de “extorsão lucrativa” monopolista. A princípio essa hipótese parece resistir até mesmo à evidência. Após um pico nos ganhos reais em 2020, um segundo pico, igualmente repentino (e ainda em ascensão), é observado nos lucros brutos das corporações não-financeiras (ver Figura 1). Embora os ganhos reais dos trabalhadores tenham crescido discretamente de 2014 em diante, os lucros totais no setor não-financeiro têm sido mais ou menos constantes de 2012 a 2020, quando a pandemia provocou uma pequena queda. Logo após, no entanto, os lucros dispararam, crescendo em um único ano o mesmo que tinham crescido em toda meia década que precedeu a Grande Recessão. Em seu conjunto, e por si só, o aumento dos lucros totais das corporações pode responder por talvez metade do recente aumento dos custos, em média[7].

Figura 1

O restante só pode ser explicado em função das causas imediatas originais, que são essencialmente os limites à produção. Contudo, mesmo considerando que metade da atual onda inflacionária seja impulsionada pelo aumento dos lucros corporativos, arrisca-se dizer que este aumento de lucros é um desdobramento da capacidade não controlada dos monopólios manipularem os preços de uma forma que é, por assim dizer, menos “justa” do que os métodos habituais de se fazer dinheiro. No entanto, e no fim das contas, o pico dos lucros não tem sido simplesmente resultado de empresas gananciosas (mesmo em setores extremamente monopolizados como o do petróleo) que se recusam a expandir a produção apesar de sua capacidade para fazê-lo, reduzindo “artificialmente” a oferta para aumentar os preços. Em muitos casos, há setores que têm sido incapazes de expandir a produção de forma lucrativa, precisamente em função desses problemas de oferta. Para mencionar o mais proeminente exemplo, até hoje a indústria petrolífera tem optado por aumentar os preços frente à redução do abastecimento, ao invés de fazer apostas cada vez mais incertas na capacidade das cadeias de abastecimento dos setores de insumos necessários, como o aço e a areia, realizarem suas entregas em tempo e a preços adequados que garantam que os investimentos na produção expandida sejam revertidos em lucros[8]. Assim, superestimando o papel dos lucros monopolistas, recorre-se a uma desproporção real na [esfera da] circulação para ocultar a fonte desta desproporção na [esfera da] produção. Em outras palavras, detectar a mecânica por detrás da onda inflacionária acaba por nos levar de volta à esfera da produção, onde o impacto da epidemia e da guerra simplesmente acelerou as tendências estruturais de longo prazo que atravessam a economia global.

Por um lado, como sublinha o historiador da economia Robert Brenner, há muito tempo que o crescimento se baseia em ciclos econômicos de expansão e recessão [de “boom” e estouro de “bolhas”] nos quais o investimento flui para determinadas classes de ativos – pense nas hipotecas subprime, ações de tecnologia ou criptomoedas – inflacionando o preço desses ativos e, consequentemente, tornando mais provável que novas rodadas de investimento sejam feitas em uma bolha de autoreforço que, por fim, termina em uma crise. Esses ciclos especulativos se tornaram tão importantes para o crescimento que todo um ecossistema institucional foi desenvolvido para dar conta deles, remodelando a gestão macroeconômica em uma espécie de “keynesianismo de preços de ativos”[9]. Embora isso possa parecer não estar relacionado a limitações no momento da produção, o fenômeno tem sido impulsionado pela queda da lucratividade[10] nos setores não-financeiros dos países de alta renda, particularmente na indústria manufatureira[11]. Quando a lucratividade cai, a taxa de investimento (especialmente o investimento “fixo” em coisas como instalações e equipamentos) também tende a cair e o capital, em contrapartida, a desaguar em qualquer outro canal que pareça capaz de garantir maiores retornos. Ao longo das últimas décadas, estes setores têm sido cada vez mais aqueles em que os retornos estão ligados à inflação dos preços dos ativos, o que também tem criado pressão para que uma quantidade crescente de ativos sejam “financeirizados”, permitindo que venham a ser negociados e alavancados mais facilmente (aumentando sua “liquidez”) a fim de que funcionem como formas alternativas de dinheiro, porém com retornos mais elevados     .

Embora a argumentação que relaciona a queda da lucratividade industrial à crescente financeirização seja frequentemente associada com (espantalhos) marxistas que fazem alegações apocalípticas sobre o iminente colapso econômico, a tendência básica é, de fato, uma característica tão amplamente reconhecida em nosso atual cenário econômico que geralmente não merece qualquer menção explícita. O ponto central do argumento – os retornos geralmente decrescentes sobre o investimento, em média, por todas as linhas da indústria manufatureira – não só não se restringe à alguma imaginada “heterodoxia” como é, essencialmente, lugar comum em toda a literatura econômica convencional, sendo utilizado para dar conta de tudo, da globalização e deslocalização industrial offshoring ao crescimento do setor de serviços. Michael J. Howell, um doutor em economia que trabalha como diretor de uma grande firma de consultoria de investimentos, ilustra bem a relação elementar: “a queda da lucratividade industrial e a respectiva escassez estrutural de ativos seguros são fatores chaves por detrás da longa trajetória de queda nas taxas de juros mundiais”[12]. As baixas taxas de juros têm estimulado picos inflacionários em setores de alta liquidez, o que vem impedindo que as taxas de crescimento econômico dos países de alta renda caiam ainda mais. Mas estes setores financeiros não são atividades meramente especulativas divorciadas da produção, uma vez que a construção e a manutenção das cadeias de abastecimento globais “são atividades de altíssima intensidade financeira, com exigências pesadas tanto para o capital de giro das empresas quanto para o crédito bancário de curto prazo”[13]. Em outras palavras, a queda da lucratividade industrial não só impulsiona o investimento na especulação de ativos financeiros, como também leva a uma crescente complexificação das características técnicas da produção em si – incluindo uma mais rigorosa divisão e mecanização do trabalho dentro das empresas, como também uma mais refinada e espacialmente dispersa divisão do trabalho entre elas – o que exige a mediação de mecanismos financeiros ainda mais complexos.

Por outro lado, a intensificação da concorrência industrial e as desacelerações econômicas mais substanciais – ambas anteriores à pandemia, mas amplificadas por ela – nos poucos países que balizaram o crescimento da economia global ao longo das últimas duas décadas (destacadamente a China), têm conduzido a uma retração geral na estrutura das cadeias de abastecimento e à estagnação do crescimento do comércio mundial. Ao “grande colapso comercial”[14] desencadeado pela crise de 2008, seguiu-se a gradual “regionalização” das cadeias de abastecimento anteriormente “globalizadas”. Estes são, contudo, termos ligeiramente mal empregados. A mudança mais crucial tem sido o crescimento da demanda consumidora nos países mais pobres, gerado tanto pela bolha (agora deflacionada) de commodities quanto pelo processo global de “descampesinização”[15], através do qual o restante dos agricultores e pastores de subsistência no mundo têm sido amplamente forçados à dependência do mercado (não importando se o emprego industrial urbano será capaz de sustentá-los)[16]. Em conjunto com o repentino colapso da demanda nos países ricos, as cadeias de abastecimento, que outrora se concentravam quase que exclusivamente em torno das exportações para a América do Norte e Europa (durante o auge da “globalização”), foram sutilmente redirecionadas e diversificadas ao longo da década de 2010, a fim de abranger a proliferação de mercados finais nas “economias emergentes”, conferindo à própria produção um caráter cada vez mais regional[17]. Sendo bem claro, a tendência se mostra como uma interrupção geral no crescimento do comércio mundial. (ver Figura 2)

Figura 

Entretanto, a intensificação da concorrência induziu uma ulterior e generalizada consolidação das empresas, incluindo a crescente monopolização dos setores (de capital intensivo ou com muitos ativos) que já estavam fortemente consolidados e uma nova onda de monopolização dentro dos setores de mão de obra intensiva. Isto começou a mudar fundamentalmente a natureza de muitas e anteriormente dispersas indústrias “maquiladoras”, com monopólios emergentes localizados em países mais pobres e que agora mecanizam e racionalizam mais de suas linhas de produção a fim de desafiarem os monopsônios já estabelecidos (grandes marcas e varejistas que controlam mercados particulares devido à escala de suas compras) e reterem uma parte maior dos lucros finais nos elos inferiores da cadeia de valor[18]. Estes lucros retidos são revertidos em novas aquisições e expansões, frequentemente nas zonas industriais emergentes de países ainda mais abaixo na hierarquia imperial[19]. O processo é também fractal, com a consolidação ocorrendo não apenas entre os grandes fabricantes terceirizados (por exemplo, a empresa taiwanesa Foxconn, que monta iPhones), mas também entre os subcontratantes (por exemplo, a empresa chinesa continental Lens Technology, que fornece as telas de vidro para a produção de iPhone), estreitando as margens de lucro e intensificando a concorrência em cada elo da cadeia. A nível internacional, isso foi acompanhado pelo aumento da concorrência geopolítica e comercial entre os países, com a desaceleração no crescimento da produção e do comércio global tornando o sucesso e o fracasso cada vez mais um caso de soma-zero. Embora esteja na moda culpar Trump pela chamada “guerra comercial” com a China, a realidade é que as mesmas tensões já vinham se acumulado ao longo de toda a administração Obama, e continuaram a se intensificar sob [o governo] Biden. Mas elas não são, de forma alguma, exclusividade dos EUA. Tanto o Japão como a União Europeia, por exemplo, também têm procurado posicionamentos cada vez mais agressivos em relação à China, como parte de uma ampliação generalizada de medidas protecionistas vistas em todo o mundo.

Isso não quer dizer, contudo, que o comércio global ou a integração econômica tem declinado. A produção ainda é planetária. A inflação, então, não é apenas um problema de política interna que pode ser resolvido ou perpetuado pelos bancos centrais. Na verdade, não apenas a eclosão da inflação do dólar estadunidense está conectada à situação das cadeias de abastecimentos mundiais, como também as tentativas de contê-la reverberam através do sistema financeiro global. Uma vez que o dólar serve como moeda global de facto, os ajustes nas taxas de juros reavaliam efetivamente o custo da dívida em toda a economia mundial, com impacto tanto no estreitamento como na intensificação do quanto se pode obter do Banco Central dos EUA. Em outras palavras, marca o padrão de um chicote estalando. O menor movimento do pulso – elevando minimamente a taxa de juros em poucas frações de um percentual – propaga ondulações até as margens mais estreitas do mercado de capitais, onde seu impacto irrompe com força total contra a vida de dezenas de milhões de pessoas que tiveram o azar de nascer nos confins do mundo. Se os burocratas acreditam ou não que são os principais responsáveis pela administração da oferta monetária numa economia nacional em particular é irrelevante. As consequências de suas ações sempre açoitam para além de suas fronteiras, primeiro desestabilizando os países mais pobres e precários, onde o “boom” de crescimento tinha sido apenas fraco. Da noite para o dia, o custo de manutenção da dívida aumenta. O mesmo acontece com o custo do investimento de entrada (que é usualmente denominado em dólar[20]). A redução mais ampla no crescimento global significa também que o investimento decrescente em outros lugares suprime a demanda pelas poucas commodities (nomeadamente matérias primas) que compõem a maior parte da produção dos países mais pobres.

O registro histórico aqui é notável: em resposta à última crise inflacionária, Paul Volcker, presidente do Banco Central dos EUA, instigou uma brusca elevação nas taxas de juros a partir de 1979 e com o ápice em 1981 (o “Choque Volcker”), aumentando deliberadamente o custo do capital e desencadeando uma recessão. Isso é amplamente considerado o eixo decisivo que assinala a virada das formas vagamente “keynesianas” de gestão macroeconômica, que frequentemente incluíam estímulos fiscais e tomavam por objetivo o pleno emprego (ou algo aproximado), na direção do atual consenso monetarista que, ao contrário, mobiliza o banco central na administração da oferta monetária, concentrando-se principalmente na contenção da inflação. Mas, embora o Choque Volcker inicial tenha sido elaborado principalmente para tratar a forma como a estagflação devorou os ativos dos ricos de países de alta renda, também acabou por precipitar[21] a Crise da Dívida do Terceiro Mundo – um colapso econômico tão grave que muitos países da África Subsaariana, por exemplo, ainda não recuperaram os níveis de industrialização que haviam alcançado às vésperas da crise, com rendas per capita que ainda hoje estão abaixo do pico atingido na década de 1970[22]. Nos EUA (e logo após no Reino Unido), o reajuste das taxas de juros também acelerou as demissões em massa e o fechamento de fábricas, impactando os setores sindicalizados da pior forma[23]. Em outras palavras, a última grande intervenção na taxa de juros, feita em nome da redução da inflação, foi uma investida nua e crua do poder de classe, sublinhando a centralidade dos interesses dos EUA na hierarquia econômica global e forçando os trabalhadores dos países de alta renda a assumirem os custos da reestruturação econômica – oferecendo apenas um limitado paliativo na forma de consumo e propriedade habitacional financiados pela dívida – enquanto os ricos facilmente se voltavam para novas linhas de negócios.

Lucros

Mas se os efeitos dos ajustes na taxa de lucro não se limitam a um só país, tampouco são as causas da onda inflacionária em si. Embora as causas imediatas da presente inflação pareçam[24] incidentais e imprevisíveis – o surto de uma praga, seguido por uma guerra -, esses fatores apenas aceleram as tendências que já estão em movimento. Na verdade, depois de quase uma década de taxas de juros próximas a zero, subsequentes à Grande Recessão [2008], o Banco Central dos EUA fez uma primeira tentativa de elevar as taxas de juros no final de 2018, como medida preventiva para impedir a eventual inflação de um mercado de trabalho em contração e evitar o potencial surgimento de novas bolhas econômicas. Mas a decisão foi revertida quando os preços do mercado de ações despencaram, ameaçando aniquilar a modesta “recuperação” em relação à Grande Recessão, meticulosamente construída sobre um especulativo “boom” tecnológico e o autofágico ilusionismo financeiro da recompra de ações. Em resposta, o Banco Central dos EUA fez uma igualmente decisiva correção, reduzindo novamente as taxas de juros para quase zero, onde permaneceriam até os primeiros meses de 2022. Foi este ciclo 2018-19 que despertou o interesse popular na Teoria Monetária Moderna e deu início à atual série de debate sobre as atribuições do Banco Central dos EUA e a perspectiva de “democratizar das finanças”. Ainda mais importante, a tentativa de elevação das taxas já em 2018 sinaliza que o oposto de nosso momento inflacionário atual – quase uma década de taxas de juros extremamente baixas, que deflacionaram o custo do capital e aceleraram o crescimento de novas bolhas de ativos – tem se provado cada vez mais insustentável. Estranhamente, por assim dizer, a atual crise inflacionária é, na realidade, a expressão de uma tendência deflacionária muito mais profunda, inerente às próprias leis de movimento do capitalismo.

Essa tendência deflacionária é facilmente observada em uma das características mais elementares da produção capitalista: a tendência à mecanização. A concorrência conduz à substituição do trabalho humano por maquinários, permitindo que uma quantidade maior de determinada mercadoria seja produzida com uma quantidade menor de trabalho. Isso também estratifica o mercado de trabalho desqualificando o trabalho realizado pela maioria dos trabalhadores, muito embora aumente a complexidade do trabalho qualificado. Isto permite que a gerência possa não apenas tirar proveito de reservas de mão de obra mais baratas, mas também explorar toda uma nova série de divisões sociais[25]. Embora os primeiros a adotarem novas tecnologias possam obter lucros inesperados ao vender um volume maior de mercadorias pelo preço corrente pagando bem menos trabalhadores-por-unidade, o preço desses produtos tende a cair à medida que as novas tecnologias vão sendo adotadas de forma mais ampla por outros produtores. Como esse processo ocorre com facilidade tanto nos setores de bens de consumo quanto nos setores de bens de capital, isso também significa que o preço efetivo da mão de obra pode ser barateado ainda mais, uma vez que os trabalhadores podem comprar uma quantidade maior de bens essenciais, tais como alimentos, roupas e vários produtos domésticos, sem um correspondente aumento do salário. Embora certos setores (comumente agrupados e classificados como “serviços”) possam ser mais resistentes à transformação técnica, a tendência de longo prazo para praticamente todas as commodities deve ser a queda dos preços se a produção estiver avançando em ritmo acelerado. Essencialmente, é isso o que tem ocorrido em todo o setor de bens de consumo com o surgimento da produção em massa e, mais recentemente, a revolução logística, que tem possibilitado o barateamento de roupas, carros, aparelhos e muitos outros produtos por meio da globalização, tornando a estagnação salarial nos países de alta renda mais suportável, ao mesmo tempo em que amplifica os ganhos salariais nos novos centros industriais pelo abafamento da inflação de preço local que geralmente acompanha o rápido crescimento das indústrias.

Isso significa que quando a inflação ocorre fora de um contexto de rápido crescimento industrial, ela geralmente sinaliza alguma desproporção a nível de circulação ou algum tipo de problema na esfera da produção, limitando, antes de mais nada, a oferta de valor. Se confinada à esfera da circulação, a inflação se concentra tipicamente em poucos setores e assume a forma clássica de uma bolha de ativos, geralmente centralizada em alguma combinação de bens imobiliários, ações da bolsa ou outras atividades de investimento em participações privadas. Embora possa soar contraintuitivo, este tipo de inflação no preço dos ativos só pode realmente surgir de forma dimensionada em condições deflacionárias (e tende a reforçar estas mesmas condições), uma vez que as bolhas de ativos exigem altos níveis de dívida e baixas taxas de juros. Às vezes, a inflação confinada à circulação também pode assumir a forma clássica de preços de monopólio, onde grandes produtores cartelizados atuam para manipular os preços que afetam diretamente apenas as commodities que eles produzem, mas que afetam também, frequente e indiretamente, os setores relacionados; um exemplo é a alta nos preços do petróleo na década de 1970, impulsionado pelo embargo petrolífero da OPEP. No entanto, como assinalado acima, os lucros inesperados podem assumir esta forma por razões puramente estruturais, quando os estoques são vendidos mas a produção está restringida.

Ao longo dos últimos trinta anos, esse tipo de inflação no preço dos ativos tem se tornado cada vez mais dominante, impulsionando o rápido aumento no fluxo transfronteiriço de liquidez e mudando precisamente a forma da economia global, a fim de priorizar as [operações de] “carry trades”, onde (para simplificar) uma dívida é contraída em moedas com baixas taxas de juros e utilizada para investir em outras moedas ou ativos de maior rendimento. Também é crucial aqui o fato de que, segundo Brenner, a relativa competitividade das diferentes moedas – com uma moeda “mais fraca” barateando efetivamente os custos de produção e, consequentemente, tornando as indústrias manufatureiras de um país mais competitivas no mercado global – também estrutura a hierarquia global da produção. Assim, áreas com acelerado crescimento industrial observam uma pressão inflacionária (possibilitando o aumento dos salários) que simultaneamente atrai investimentos no crescente setor produtivo e investimentos em portfólios puramente especulativos que exploram o diferencial de rentabilidade – com a massa de capital que flui para ativos especulativos frequentemente ultrapassando aquela que flui para o tradicional IDE [Investimento Direto Estrangeiro], suprimindo ainda mais a competitividade da indústria manufatureira e inflacionando uma bolha de ativos acima dos lucros industriais em queda. O exemplo clássico é o desenvolvimento japonês da segunda metade do século XX[26]. O fenômeno, novamente, não é nada estranho à economia convencional. A narrativa básica de “boom e bolha”, de Brenner, é repetida por Tim Lee, Jamie Lee e Kevin Coldiron – todos eles gestores atuais ou antigos de fundos de cobertura e de outras empresas de investimentos em participações privadas. Eles afirmam que, no fim das contas, estas dinâmicas dão origem  a um “carry regime” global em sintonia com a manutenção dos altos preços dos ativos e caracterizado por um “padrão de retorno serrilhado”, segundo o qual o crescimento relativamente suave nos retornos dos ativos inflacionados é periodicamente intercalado por “curtos períodos de retornos bruscamente negativos – correções e quebras”[27]. De modo similar, os/as cientistas sociais Lisa Adkins, Melinda Cooper e Martijn Konings descrevem o mesmo cenário como a criação de uma “economia de ativos”, definida pelo fato de que os ativos se valorizam em um ritmo mais rápido do que o crescimento ou os salários, gerando um quadro inteiramente novo de desigualdade, vinculado menos aos salários ou retornos sobre o investimento produtivo e mais ao acesso a fluxos de renda[28].

O surgimento deste “carry regime” ou “economia de ativos” é frequentemente narrado como uma mudança desencadeada por uma constelação de políticas estatais “neoliberais” elaboradas para favorecer os interesses dos ricos à custa dos trabalhadores, e que podem ser sintetizadas pelos regimes Reagan, nos EUA, e Thatcher, no Reino Unido. Visto que o Choque Volcker é frequentemente considerado o marco inicial da ofensiva neoliberal (acompanhando usos semelhantes das altas taxas de juros como forma de disciplinar o trabalho em outros lugares), o contraste entre um período “keynesiano” de altos gastos públicos, altos salários e alta inflação, e um período “neoliberal” em que todas as três características são invertidas, pode parecer óbvio à primeira vista. De modo similar, é evidente a maior centralidade atribuída às finanças na economia internacional durante o mesmo período, produzindo uma forte elevação na liquidez global assim como a proliferação de uma miríade de instrumentos financeiros. Com a lucratividade estagnada nos países centrais em “desindustrialização”, as finanças, os seguros e os bens imobiliários (juntamente com as bolhas em ações de tecnologia e o “boom” inusitado do petróleo) se tornaram os únicos setores capazes de dar sustentação às já modestas taxas de crescimento. Em tais relatos, as dinâmicas estruturais são frequentemente reconhecidas como restrições ou forças inerciais, mas a responsabilidade final recai novamente sobre os “formuladores de políticas”, que estão, essencialmente, escolhendo entre dois mundos possíveis: a) o mundo keynesiano da “inflação deflacionária”[29] onde os preços dos ativos desvalorizam, mas (essa é a esperança) o crescimento salarial e o gasto público aceleram em ritmo acelerado, permitindo que se aproxime do pleno emprego à custa dos ganhos do capital; ou b) o mundo neoliberal de deflação inflacionária, onde os preços dos ativos valorizam mais rápido do que os salários ou o crescimento econômico e os gastos públicos são suprimidos, permitindo que os ganhos de capital disparem à custa da renda do trabalho.

Neste esquema, a tendência de inflação em toda a economia acompanha a passagem entre os dois mundos. Se o sucesso deflacionário do Choque Volcker abriu energicamente um portal político que leva do universo keynesiano ao neoliberal, então algum tipo de choque inflacionário deve ser necessário para abrir uma porta para o futuro “socialista democrático” de pleno emprego e “finanças públicas para o povo”. Isso implicaria necessariamente o fim da economia de ativos e a inversão do “carry regime”. Mas com o que exatamente isso se pareceria? De acordo com os administradores de fundos de cobertura, “é provável que o fim absoluto do carry regime seja marcado por um colapso sistêmico que encerre o papel dominante dos bancos centrais ou por uma inflação galopante, ou por ambos”[30]. As duas opções também estão interligadas aqui, já que a própria tentativa de evitar o colapso sistêmico – talvez marcada por um choque “exógeno” como uma pandemia, uma guerra, um grande levante popular ou uma série de catástrofes ecológicas – muito possivelmente levaria à inflação, devido ao aumento de gastos em meio a paralisações econômicas, com os efeitos se propagando através das cadeias de abastecimento mesmo depois que a crise imediata já tenha acabado. Por exemplo, para evitar um colapso deflacionário, “uma medida extrema seria, provavelmente, a monetização direta dos gastos públicos: enviar recursos financeiros diretamente a cada família ou indivíduo […]”[31]. Não apenas foi exatamente isso o que aconteceu nos anos da pandemia, como também expõe o teor geral dos planos de Renda Básica Universal propostos hoje por muitos progressistas e socialistas democráticos[32]. Em último caso, os gestores de fundos cobertura concluem que uma série de intervenções do Banco Central e do Tesouro dos EUA seria capaz de evitar o colapso sistêmico. Isso nos deixa com a outra alternativa, na qual “o carry regime será finalmente encerrado pela alta inflação”, de modo que, “a partir de uma perspectiva macro […] um importante sinal de que o “carry regime” está chegando ao fim seria o surgimento da própria inflação.[33]” O mais comum é que a inflação surja gradualmente, acompanhada pelo aumento da volatilidade financeira. Contudo, “uma vez que a alta inflação esteja firmemente estabelecida”[34] e já não responda à política do banco central, fica difícil visualizar como o “carry regime” poderia continuar se sustentando.

Enquanto isso, as linhas gerais de um hipotético “anti-carry regime” que poderia vir logo após são também um tanto previsíveis, uma vez que são justamente o oposto do regime estabelecido hoje: alta inflação geral, desvalorização dos ativos, “redução da importância dos mercados financeiros”[35], acentuado crescimento da oferta de dinheiro real[36] (impulsionado pelo estímulo e mesmo pela impressão direta de dinheiro, mas também pela expansão da demanda por crédito bancário, já que os encargos da dívida seriam barateados ao longo do tempo), crises marcadas por uma espiral inflacionária fora de controle (ao invés de uma deflação rápida que marca o “padrão serrilhado” de uma “carry crash”) e um colapso na demanda por ativos “semelhantes a dinheiro”, ou mesmo por dinheiro de verdade, apesar do crescimento da oferta monetária (uma vez que a inflação assegura que a retenção de dinheiro resultará em perdas no longo prazo). A nível internacional, tal regime provavelmente seria marcado pelo declínio da liquidez global, a fragmentação do comércio mundial, o crescente conflito entre os blocos monetários competindo pelo espaço deixado por um dólar em declínio, e novas crises inflacionárias florescendo em todo o mundo, muito provavelmente consumindo primeiro as economias mais fracas.

No fim, a alternativa inflacionária ao presente mundo pode aparentar ser um pouco melhor que o atual. Isso porque os dois não são, na verdade, mundos separados, mas tão somente dois hemisférios de um só planeta em rotação. Enquanto o sol pode se pôr em um e nascer no outro gradualmente, o império do capital está sempre banhado de luz. Desse modo, as discussões acadêmicas da moda sobre a “morte do neoliberalismo” pouco ou nada acrescentam para além da trivial observação de que o sol às vezes se põe. Enquanto isso, parece provável que um mundo inflacionário combine as piores características da atualidade com as perspectivas mais sombrias no horizonte: alta inflação ao lado de alta desigualdade, crescimento estagnado ao lado de salários estagnados, guerras comerciais e guerras sem fim lado a lado. Como seria de se esperar, os gestores de fundos de cobertura oferecem ao menos um diagnóstico direto, sublinhando a realidade do poder de classe, independentemente da porta que gostaríamos de ver arrombada pelos “formuladores políticos”: “do ponto de vista da sociedade como um todo, e não apenas dos especuladores financeiros, tanto o “carry regime” quanto o hipotético “anti-carry regime” terão a característica de que aqueles com os maiores recursos vencerão”[37].

Poder

Em última análise, porém, não se trata de esquadrinhar colinas obscuras em busca de monstros desconhecidos. Não há uma causa “verdadeira” da inflação escondida por debaixo da teoria da pressão salarial ou no apelo à ganância corporativa. Inflação e deflação são tendências de preço epifenomênicas que, em maior ou menor escala, assemelham-se a marés e ondulações na superfície do imenso mar que é o nosso poder produtivo planetário total – e que Marx chamou de valor – uma vez que está efetivamente organizado por relações sociais que abrangem toda a espécie humana. O que pensamos como “política” deve, em última análise, estar de acordo com as demandas da produção planetária. A política é, portanto, uma discussão sobre os termos da situação de reféns que caracteriza a economia, não uma forma de encerrá-la. Em outras palavras, todo o processo de fazer política ocorre dentro dos limites de um jogo fraudulento, com espirais inflacionárias e deflacionárias – ou simplesmente “crises econômicas” em geral – marcando os momentos em que a relação básica de poder integrada ao jogo deve ser reafirmada. Trata-se de uma constante reordenação na qual as “contratendências”, que atrasam a queda [tendencial] da lucratividade, permitem a reprodução das mesmas relações básicas que estruturam a sociedade capitalista através da reinvenção contínua dessas relações. Embora esse processo pareça gerar constantemente novas “variedades de capitalismo” (sejam elas divididas por década ou separadas por fronteiras nacionais), efetivamente pouco muda[38]. Só existe e sempre existiu apenas uma sociedade capitalista. A longo prazo, a expansão e o desenvolvimento desta sociedade mudam as condições nas quais ela deve sobreviver, mas não mudam suas leis gerais de movimento. Novos arranjos institucionais, novos centros geográficos, o surgimento de novas tecnologias são, ao fim e ao cabo, reiterações adaptativas daquelas mesmas leis. A variação incidental deve ser distinguida das mudanças mais essenciais provocadas pelo movimento dessas leis constantes no tempo e no espaço. Estas últimas só são rastreáveis nas tendências seculares observadas a longo prazo: o constante crescimento de escala, complexidade e extensão geográfica da produção (acompanhadas por intervenções estatais mais intrincadas, monopólios maiores, cadeias de abastecimento mais complexas que exigem uma coordenação mais detalhada, a intensificação do impacto geomorfológico da produção, a penetração da lógica de mercado em novas esferas da vida, etc.); a crescente capacidade de produzir mais bens com menos trabalho e a subsequente tendência de excluir da atividade produtiva parcelas maiores da população humana (Marx entendeu a primeira condição como a principal forma de expandir o mais-valor relativo, da qual a segunda é uma consequência, constituindo a “lei geral da acumulação capitalista” que hoje aparece no aumento da “informalidade”, da “precariedade” e da “economia de serviços”); e a abertura de uma fenda cada vez maior entre os requisitos de matéria e energia do complexo de produção planetário e os ciclos da matéria e da energia que compõem o sistema terrestre (bem evidente hoje na forma de mudanças climáticas, mas melhor entendido como uma catástrofe ecológica mais abrangente que engloba a extinção em massa, o desmatamento, o esgotamento gradativo dos sistemas do solo, etc.). Essas tendências seculares também moldam e remodelam a característica mais constante da sociedade capitalista – o conflito de classes – recalibrando constantemente as perspectivas de mudança revolucionária.

Colapsos do sistema de preços, sejam inflacionários ou deflacionários, implicam em duas consequências aparentemente opostas. Do ponto de vista da reprodução do sistema, eles são simultaneamente métodos de reafirmar a estabilidade e momentos nos quais todas as compulsões silenciosas que estruturam a sociedade capitalista se tornam temporariamente audíveis. A despeito de todos os debates técnicos sobre a mecânica da inflação e dos juros, ou das escassas esperanças de que a política venha a ser usada para “o povo”, a gestão macroeconômica é (e nunca será nada além de) uma faca em seu pescoço. A taxa de juros sobe quase nada e a inflação devora o aumento em seu salário. A taxa de juros desce só um pouco e os borbulhantes preços dos ativos aumentam os aluguéis, mantendo a casa própria sempre fora do seu alcance. No presente momento, estamos sendo abençoados com o pior dos dois mundos. Os altos preços dos ativos têm permanecido elevado mesmo com o custo dos alimentos e do gás subindo. Os efeitos são inegáveis, com os exemplos mais escandalosos visíveis nas margens opostas da divisão de classes. Em 2021, os 10% mais ricos da população mundial possuíam 76% de toda a riqueza, comparado aos meros 2% que ficam com a metade inferior da população[39]. A desigualdade de riqueza não só ampliou rapidamente durante a pandemia como também se observou um aumento mais rápido da riqueza concentrada precisamente no topo [da pirâmide]: no mesmo ano, algo de 11% de toda a riqueza era detida por apenas 0,01% da população, um aumento de um ponto percentual cheio em relação ao ano anterior[40], com os (cerca de 2.775) bilionários[41] no mundo vendo sua participação aumentar de 2% em 2020 para 3,5% em 2021, e o crescimento total de sua riqueza atingir algo de 4,4 trilhões de dólares. Enquanto isso, mais de 120 milhões de pessoas foram empurradas para a extrema pobreza, destruindo praticamente uma década inteira de (modestos) ganhos de renda entre os mais pobres do mundo[42]. Esse é o contexto no qual a atual explosão inflacionária começou.

Embora essas tendências sejam, como sempre, mais extremas quando medidas a nível global, isso não significa que os países mais ricos estejam imunes ao impacto. A divisão de classe é uma linha de falha que atravessa por debaixo e para além de cada fronteira. Às vésperas da pandemia, o único censo sistemático da população em situação de rua dos EUA – a contagem anual “Point-in-Time” (PIT) do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano [estadunidense], amplamente reconhecida por fazer uma contagem substancialmente abaixo[43] do número real, destinada a medir um espectro mínimo ao invés da tendência central – contou um total de 580.466 pessoas em situação de rua em todo o país, das quais cerca de 61% tinham acesso a abrigos, com as demais [permanecendo] desabrigadas[44]. As maiores taxas per capita foram observadas em cidades com os maiores preços imobiliários[45]. Esse vínculo entre a inflação de ativos e as pessoas em situação de rua não deveria surpreender. De acordo com um estudo recente, em vinte dos maiores centros urbanos do país “um aumento de cem dólares no preço médio do aluguel estava associado com um aumento de cerca de 9% na taxa estimada de pessoas em situação de rua”[46]. Contagens populacionais mais rigorosas[47] conduzidas pelas autoridades locais dessas regiões indicam que 1-3% da população total não tem onde morar, e muitos desses Estados[48] também observam parcelas substancialmente maiores da população desabrigada, em conjunto com taxas mais elevadas de pessoas em situação de rua nas áreas suburbanas e rurais. Após a eclosão da pandemia, contudo, duas coisas aconteceram: primeiro, na tentativa de implementar medidas de distanciamento social, muitos abrigos reduziram o número total de camas e buscaram esquemas alternativos de assistência; segundo, em 2021, o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano estadunidense simplesmente cancelou por completo toda contagem da população desabrigada. Essa decisão foi tomada a despeito de seus próprios dados, que mostravam um crescimento mais rápido no número total de pessoas desabrigadas do que no total de pessoas abrigadas mesmo antes da pandemia[49].

Essa crise habitacional, intrinsecamente ligada à inflação de ativos, é agora acompanhada por uma crescente crise em outros bens de subsistências na medida em que a inflação alcança os combustíveis e os alimentos. Assim, com a pandemia e o subsequente estouro inflacionário, também se observou um drástico aumento nos crimes de sobrevivência – tais como furtos de alimento ou de fórmulas infantis – e uma mais especulativa disseminação do comércio no mercado clandestino, tal como a revenda de combustível desviado ou negociações com conversores catalíticos roubados. A imprensa tradicional põe a culpa por todo este aumento de criminalidade nas pessoas em situação de rua. Mas quando os custos, cada vez mais elevados, tornam as condições de vida insustentáveis, mais e mais pessoas encontrarão formas alternativas de obter os meios necessários à sua sobrevivência. Essas alternativas não devem ser romantizadas, tampouco vistas como uma forma de escapar aos limites do mundo capitalista. Elas são, pelo contrário, as terríveis opções de último socorro, geralmente submetidas a uma lógica predatória de segunda mão controlada por uma ordem diferente de capitalistas do mercado clandestino. Geralmente o resultado é a tragédia – o lento suicídio reacionário dos despossuídos que se aproveitam dos ligeiramente menos despossuídos, em um desdobramento fractal de traição. Mas o alargamento dessas fissuras no status quo também revelam o potencial para que novas formas de poder proletário venham a emergir, se as diferentes batalhas por subsistência puderem ser sintetizadas e suplantadas em uma luta mais ampla. Da mesma forma, o aspecto mais esperançoso de qualquer colapso no sistema de preços é o retorno do espectro da expropriação, a mais distintiva característica da prática política comunista.

 Isoladamente, tanto a ilegalidade quanto as várias formas de organização política autoconsciente – das atividades “autônomas”, como a ajuda mútua, aos projetos institucionais do sindicalismo formal ou defesa de políticas – tendem a permanecer segregadas entre si e da população em geral, romantizadas por alguma facção política dentro da ampla, mas superficial, “Esquerda”. E permanecendo separadas, essas atividades não apenas são fracas como, frequentemente, prejudicam umas às outras de forma ativa. De um ponto de vista mais amplo, contudo, o potencial para construir o poder comunista é tão visível no crescente interesse popular pela sindicalização quanto nas redes de saque semi-improvisadas e semiorganizada que se desenvolveram através do levante por George Floyd. Ao fim de tudo, a luta de classes sempre renasce nas batalhas pelos termos da subsistência. Mas também se extingue rapidamente quando confinada à mera negociação das condições de sobrevivência. Só se transforma em algo maior quando os muros que dividem os numerosos canais de subsistência são derrubados. Se tivéssemos que escolher um único princípio segundo o qual os comunistas poderiam se orientar e avaliar o sucesso ou o fracasso de seus muitos esforços, poderia ser algo assim: pequenas expropriações devem evoluir para expropriações maiores. Em outras palavras, verdadeiras vinculações comunistas só podem emergir quando as formas rudimentares de organização, que foram gestadas nessas lutas de subsistência sequestradas, evoluem para além de seus limites iniciais, destruindo as separações que prevalecem entre os diferentes caminhos políticos – ilegalidade versus legalidade, política versus autonomia – atravessando assim também as divisões entre os despossuídos. Obviamente isto não é possível quando a luta permanece tão somente subcultural, nem quando é travada estritamente dentro das instituições existentes. O primeiro princípio implica, portanto, um outro adicional: qualquer estratégia política que tente desviar, negar ou fugir da necessidade de expropriação, não é propriamente comunista.

Com toda probabilidade, a atual explosão inflacionária irá retroceder. A inflação não se consolidará de forma imediata e as atuais obstruções na cadeia de abastecimento serão atenuadas. Nos EUA, o Índice de Preços ao Consumidor já apresenta uma tendência levemente decrescente, e o Banco Central deu a entender que a próxima rodada de aumento das taxas possivelmente será acompanhada de quedas em 2023. Embora seja provável que as áreas mais diretamente afetadas pelos atuais choques [no fornecimento] de energia, decorrentes da guerra na Ucrânia, venham a ter maior dificuldade em reverter a tendência – o que fica evidente no amplo declínio dos salários reais em toda a Europa, por exemplo, e na perspectiva de um inverso frio e escuro – parece que ainda não há vontade política para esvaziar a bolha de ativos que sustenta a (lenta, mas não irrelevante) elevação das taxas dos países de alta renda. Assim como o protecionismo, a regionalização das cadeias de abastecimento, o crescimento do poder de monopólio dos fabricantes terceirizados e a ampliação das sanções políticas continuam a restringir a expansão do comércio mundial e de outros segmentos do mercado de capitais, enquanto o risco de um novo estouro inflacionário só aumenta. De modo semelhante, o desencadeamento das catástrofes ecológicas e de outras perturbações aparentemente “exógenas” vêm se tornando assuntos mensais. Assim como o Índice de Preços ao Consumidor começou a cair do pico alcançado no verão, por exemplo, o Paquistão sofreu inundações devastadoras que deixaram um terço do país debaixo d’água, deslocando milhões de pessoas e destruindo milhões de acres de terras cultivadas – o que pode vir a impactar os preços mundiais do trigo, algodão e, possivelmente, do arroz. Por um lado, então, o atual “carry regime” já vem apresentando retornos menores e os níveis extremos de desigualdade, que podem ser observados tanto nas cidades mais ricas do mundo como entre os países mais ricos e os mais pobres, estão tornando seu prolongamento cada vez mais intragável. Por outro lado, as “carry crashes” deflacionárias que marcaram os últimos trinta anos serão agora acompanhadas por crises inflacionárias mais frequentes, ligadas à lenta fragmentação do comércio e da produção.

No extremo, essa fragmentação assumirá o aspecto de políticas mercantilistas agressivas que buscam catalisar a competitividade industrial (como aquelas que estão sendo tentadas na Índia) ou até mesmo cartelizar os setores de commodities cruciais (por um lado o petróleo, por outro o lítio), possivelmente de forma combinada com a (sempre parcial) desvinculação política de economias nacionais inteiras (o exemplo mais acurado é a Rússia, embora o Brexit ilustre um caso mais suave do mesma trajeto básico). As circunstâncias das mudanças climáticas, entretanto, verão tais políticas justificadas em termos de resiliência, com cada região convertida numa fortaleza verde que deve, para sua própria sobrevivência, erguer muros contra a onda crescente de refugiados climáticos, assegurar suas próprias fontes soberanas de energia e alimentos e buscar o aumento das infraestruturas policiais e militares consideradas necessárias para a sobrevivência em face da agitação interna e das ameaças estrangeiras. Estas tendências só levarão a uma maior sobrecapacidade das principais indústrias, pressionando para baixo o crescimento global mesmo que se consiga elevar as taxas de crescimento para os poucos vencedores no jogo de soma-zero. Como no passado, o renovado empurra-empurra geopolítico dentro da hierarquia imperial irá novamente assumir a forma de uma luta justa para os países forçados a ocupar posições inferiores na grande pirâmide de extração de mais-valor. Em nome do desenvolvimento, utilizarão métodos supostamente “socialistas”, tais como o planejamento estatal e a subsidiação de indústrias chaves[50], para afirmar a ascensão de suas classes dominantes nacionais contra o imperium em decomposição. Em tal momento, as divisões entre os despossuídos se aprofundam em escala nacional e internacional. O poder comunista é construído pela derrubada de tais divisões, pela recusa em permanecer confinado às lutas de subsistência ou tomar partido quando um poder imperial menor desafia um maior, preferindo a criação de infraestruturas subterrâneas que integrem o legal e o ilegal, o autônomo e o institucional, e conectem as forças proletárias “nacionais” por todos os lados de cada fronteira em guerra sob a bandeira de expropriações cada vez maiores, suplantando assim todas essas categorias em uma concepção mais ampla de poder político – e talvez, apenas talvez, arrancando a faca em nosso pescoço para empunhá-la contra os bastardos cobertos de sangue que possuem cada polegada deste mundo em agonia.

[1] Meg Jacobs e Isabella M. Weber, “The way to fight inflation without rising interest rates and a recession”, The Washington Post, 9 de Agosto de 2022. https://www.washingtonpost.com/made-by-history/2022/08/09/way-fight-inflation-without-rising-interest-rates-recession; Richard D. Wolff, “There are Better Ways for Societies to Address Inflation Than by Hiking Interest Rates”, Richard D. Wolff, 8 de Junho de 2022. https://www.rdwolff.com/there_are_better_ways_for_societies_to_address_inflation_than_by_hiking_interest_rates.

[2] A esse respeito, provavelmente não há figura mais importante do que Adam Tooze, um historiador da economia cujos registros jornalísticos sobre o processo de tomada de decisões dos barões financeiros e dos banqueiros centrais contrastam fortemente com as teorias de “boom e bolha”, aparentemente frias e impessoais, oferecidas por historiadores da economia marxistas como Robert Brenner, que forneceu um dos mais conhecidos e sistemáticos relatos da crise de 2008 nos anos que antecederam a sua eclosão. No que se seguiu, o trabalho de Brenner tornou-se uma espécie de pedra de toque para muitos envolvidos no renascimento da teoria comunista ao longo da década de 2010. Tooze, pelo contrário, representa uma reescrita liberal tardia dos relatos incisivos de críticos marxistas como Brenner, reconhecendo todas as mesmas características principais e acrescentando detalhes esclarecedores, ecléticos e empíricos amarrados entre si através de uma criativa contação de história. Mas o ecletismo de Tooze, embora admirável em sua amplitude polímata, é também o sinal de uma fraqueza mais profunda: a incapacidade de oferecer (ou, talvez de modo mais justo, [fazer] oposição teórica à) qualquer explicação sistemática e estrutural das “leis do movimento” da economia mundial que seja capaz de prestar contas de mais do que a história está contando no momento. Esta fraqueza é por si só tratada como um distintivo de honra à moda clássica dos filósofos liberais – pragmáticos ou pós-modernistas – que rejeitam narrativas “totalizantes” como perigosamente redutoras e inerentemente autoritárias. Mas a manobra fundamental aqui é política. A história econômica recente é recontada de uma forma que obscurece o funcionamento do capitalismo enquanto sistema social, reduzindo os pormenores da economia global à (invariavelmente complexa) interatividade entre as várias personalidades que lideram as instituições que (a história contada quereria nos fazer acreditar) dirigem a economia.

[3] Stephanie Kelton, The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy, New York: Public Affairs, 2020.

[4] Este é o título de um documento de estratégia real apresentado no âmbito do jornal teórico interno do DSA [Socialistas Democráticos da América]: Neil Taylor, “How to Fund a People’s Climate Revolution”, Fórum Socialista, Inverno de 2019. https://socialistforum.dsausa.org/issues/winter-2019/how-to-fund-a-peoples-climate-revolution/

[5] Joseph Politano, “The Life, Death and Zombification of the Phillips Curve”, Apricitas Economics, 16 de Outubro de 2021. https://www.apricitas.io/p/the-life-death-and-zombification?s=r; Ekaterina V. Peneva and Jeremy B. Rudd, “The Passthrough of Labor Costs to Price Inflation”, Journal of Money, Credit and Banking, Volume 49, Issue 8, 16 de Novembro de 2017. pp. 1777-1802.

[6] Alan FitzGerald, Krzysztof Kwiatkowski, Vivien Singer and Sven Smit, “Global Economics Intelligence executive summary, April 2022”, McKinsey & Company, 9 de Maio de 2022. https://www.mckinsey.com/business-functions/strategy-and-corporate-finance/our-insights/global-economics-intelligence-executive-summary-april-2022

[7] Esta estimativa se baseia numa síntese de vários estudos que examinam a contribuição de vários fatores para a recente onda inflacionária. Por exemplo: Josh Bivens, “Corporate profits have contributed disproportionately to inflation. How should policymakers respond?”, Economic Policy Institute, 21 de abril de 2022; https://www.epi.org/blog/corporate-profits-have-contributed-disproportionately-to-inflation-how-should-policymakers-respond/; Celasun Oya, Niels-Jakob H Hansen, Aiko Mineshima, Mariano Spector and Jing Zhou, “Supply Bottlenecks: Where, Why, How Much, and What Next?”, International Monetary Fund, 17 de Fevereiro de 2022. https://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2022/02/15/Supply-Bottlenecks-Where-Why-How-Much-and-What-Next-513188?cid=em-COM-123-44313 

[8] Dan Eberhart, “Supply Chain Woes, Inflation Crimp U.S. Producers’ Growth Potential”, Forbes, 2 de Abril de 2022. https://www.forbes.com/sites/daneberhart/2022/04/02/supply-chain-woes-inflation-crimp-us-producers-growth-potential/?sh=6ba4b7d0505d

[9] Brenner, The Economics of Global Turbulence: The Advanced Capitalist.

[10] A lucratividade é medida como uma taxa, geralmente a taxa de lucro ou taxa de retorno, que não deve ser confundida com a massa de lucros brutos discutida acima. É perfeitamente possível (na verdade bem normal) que os lucros totais aumentem mesmo quando a taxa de retorno dos investimentos diminui.

[11] Robert Brenner, The Boom and the Bubble: The US in the World Economy, New York: Verso, 2003.

[12] Michael J. Howell, Capital Wars: The Rise of Global Liquidity, New York: Palgrave Macmillan, 2020. p. 46.

[13] Ibid, p. 146.

[14] Richard Baldwin, “The great trade collapse: What caused it and what does it mean?”, em Richard Baldwin (Ed.), The Great Trade Collapse: Causes, Consequences and Prospects, London: Center for Economic Policy Research. pp. 1-14. https://cepr.org/voxeu/columns/great-trade-collapse-what-caused-it-and-what-does-it-mean.

[15] Farshad Araghi, “Global Depeasantization, 1945-1990”, The Sociological Quarterly, 36(2), 1995. pp. 337–368.

[16] Para mais detalhes sobre as consequências do processo e as suas ligações com mudanças em larga escala na produção alimentar planetária, ver: Nathan Eisenberg, “Hunger Regime”, Cosmonaut, 2 de Janeiro de 2022. https://cosmonautmag.com/2022/01/hunger-regime/#easy-footnote-bottom-158-5445

[17] Gary Gereffi, “Global Value Chains in a Post-Washington Consensus World”, Global Value Chains and Development: Redefining the Contours of 21st Century Capitalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. pp. 400-428.

[18] Ashok Kumar, Monopsony Capitalism: Power and Production in the Twilight of the Sweatshop Age, Cambridge: Cambridge University Press, 2020.

[19] Documento alguns dos desdobramentos políticos destas tendências em: Phil A. Neel, “Swoosh”, Ultra, 8 de Novembro de 2015. http://www.ultra-com.org/project/swoosh/

[20] Segundo Howell (2020, p.142), cerca de 70-80% do comércio nas “economias de mercado emergentes” é faturado em dólares estadunidenses, apesar de apenas 10-15% deste comércio ser com os EUA.

[21] Walden Bello, “The capitalist conjuncture: over-accumulation, financial crises, and the retreat from globalization”, Third World Quarterly, Volume 27, Número 8, 2006. pp. 1345-1367.

[22] Pádraig Carmody, Peter Kragelund and Ricardo Reboredo, Africa’s Shadow Rise: China and the Mirage of African Economic Development, London: ZED, 2020.

[23] Samir Sonti, “The World Paul Volcker Made”, Jacobin, 20 de Dezembro de 2018. https://jacobin.com/2018/12/paul-volcker-federal-reserve-central-bank

[24] É claro que não são nada do tipo. A guerra é uma forma extrema de conflito de mercado estruturada por desigualdades imperiais globais, e a intensificação de pandemias é um resultado da devastação agroecológica da produção capitalista, tal como documentado em: Chuang, “Social Contagion: Microbiological Class War in China”, Social Contagion, Chicago: Charles Kerr, 2021. https://chuangcn.org/books/social-contagion/ch1/

[25] O estudo clássico desse fenômeno é: Harry Braverman, Labor and Monopoly Capital: The Degradation of Work in the Twentieth Century, New York: Monthly Review Press, 1974.

[26] O caso japonês é um dos vários explorados em Brenner 2003. Para uma investigação detalhada do caso japonês, ver: Makoto Itoh, The World Economic Crisis and Japanese Capitalism, London: The MacMillan Press, 1990.

[27] Tim Lee, Jamie Lee and Kevin Coldiron, The Rise of Carry: The Dangerous Consequences of Volatility Suppression and the New Financial Order of Decaying Growth and Recurring Crises, New York: McGraw-Hill, 2020. p. 4.

[28] Lisa Adkins, Melinda Cooper, and Martijn Konings, The Asset Economy, Cambridge: Polity, 2020.

[29] Este termo vem da descrição de Paul Mattick da teoria keynesiana e da crise estagflacionária da década de 1970, em: “Deflationary Inflation”, Economics and the Age of Inflation, New York: M. E. Sharpe, 1978.

[30] Lee, Lee e Coldiron, 2020. p. 210.

[31] Ibid, p. 213.

[32] Para uma apresentação crítica destes planos que documenta a sua crescente popularidade, ver: Alyssa Battistoni, “The False Promise of Universal Basic Income”, Dissent, primavera de 2017. https://www.dissentmagazine.org/article/false-promise-universal-basic-income-andy-stern-ruger-bregman

[33] ibid, p. 214.

[34] 34.

[35] ibid, p. 165.

[36] A oferta monetária é dividida em vários agregados monetários, distintos e aninhados. O agregado monetário mais básico é o M0, que inclui dinheiro físico e reservas do Banco Central. A impressão de dinheiro pelo Tesouro e certas formas de estímulo do Banco Central podem aumentar o M0. Mas um agregado monetário mais amplo e mais comumente utilizado é o M1, que inclui o M0 mais depósitos à vista (dinheiro mantido em contas bancárias que pode ser sacado à vontade) e cheques de viagem. O M1 é significativo não só porque a maior parte do dinheiro hoje em dia é mantida em contas bancárias e não em dinheiro vivo, mas também porque os bancos efetivamente criam dinheiro através do empréstimo de excedentes de reservas. Assim, o M1 pode crescer não só através da impressão de dinheiro e outras formas de estímulo fiscal, mas também através da expansão do crédito bancário.

[37] ibid, p. 173.

[38] A ideia de “variedades do capitalismo” tem sido central para o recente reavivamento da (autodenominada) pesquisa em “economia política” no âmbito das ciências sociais. O conceito foi originalmente exposto em: Peter A. Hall and David Soskice, Varieties of Capitalism: The Institutional Foundations of Comparative Advantage, Oxford: Oxford University Press, 2001.

[39] De acordo com o Relatório Mundial de Desigualdade de 2022, produzido pelo Laboratório Mundial de Desigualdade: https://wir2022.wid.world/

[40] Ibid.

[41] Tal como medido pela Lista Forbes Billionaires para 2021.

[42] Fracisco H. G. Ferreira, “Inequality in the time of COVID-19”, International Monetary Fund, Verão de 2021. https://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2021/06/inequality-and-covid-19-ferreira.htm 

[43] Em muitos condados [estadounidenses], os governos locais realizam as suas próprias e mais rigorosas estimativas da população sem-teto, quase sempre excedendo, muitas vezes substancialmente, as suas contagens PIT determinadas pelo Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano (HUD). Por exemplo, em 2020, a contagem PIT realizada pela Autoridade Regional dos Sem-Teto no Condado de King, WA, registrou apenas 13.368 sem-teto, enquanto um segundo e mais rigoroso inquérito da mesma agência registou 40.800 sem-teto (quase 2% da população total do condado no mesmo ano). Ver: Greg Kim, “How many homeless people are in King County? Depends on who you ask,” The Seattle Times, 4 de julho de 2022. https://www.seattletimes.com/seattle-news/homeless/how-many-homeless-people-are-in-king-county-depends-who-you-ask

[44] Meghan Henry, Tanya de Sousa, Caroline Roddey, Swati Gayen, e Thomas Joe Bednar, “The 2020 Annual Homeless Assessment Report (HAR) to Congress”, The U.S. Department of Housing and Urban Development, janeiro de 2021. https://www.huduser.gov/portal/sites/default/files/pdf/2020-AHAR-Part-1.pdf

[45] Gregg Colburn and Clayton Page Aldern, Homelessness is a Housing Problem: How Structural Patterns Explain U.S. Patterns, Oakland: University of California Press, 2022.

[46] GAO, “Homelessness: Better HUD Oversight of Data Collection Could Improve Estimates of Homeless Population”, United States Government Accountability Office, julho de 2020. https://www.gao.gov/assets/gao-20-433.pdf

[47] Ver Kim 2022, acima, para uma comparação realizada em King County, WA. Para uma análise mais detalhada do problema com a contagem PIT em New York, amplamente considerada como padrão de excelência para o método, ver Ricci Dipshan, “How Many Street Homeless? NYC’s Tallies Leave the Question Open”, CityLimits, 13 de outubro de 2015. https://citylimits.org/2015/10/13/how-many-street-homeless-nycs-tallies-leave-the-question-open/

[48] O [número] total de pessoas em situação de rua é maior nas zonas costeiras urbanas, que são mais caras, elevando as taxas para todos os estados da costa oeste, bem como para os do corredor nordeste. O [número de] sem-tetos que não tem acesso a abrigos é mais elevado sobretudo nos Estados do oeste, com a Califórnia liderando em quase todas as medições. Em contraste, a cidade de Nova York continua a ter um número total elevado de pessoas em situação de rua, mas os esforços agressivos para expandir os abrigos ao longo da década de 2010 fizeram com que a população desabrigada fosse substancialmente mais baixa do que nas cidades da costa oeste desde a última contagem pré-pandêmica. Mesmo em Nova York, contudo, a pandemia parece ter claramente aumentado o número de pessoas que vivem nas ruas, levando a uma nova série de agressivas varreduras no primeiro mandato do prefeito Eric Adams.

[49] Meghan Henry, Tanya de Sousa, Colette Tano, Nathaniel Dick, Rhaia Hull, Meghan Shea, Tori Morris, and Sean.

[50] Todos os países da sociedade capitalista utilizam estes métodos em diferentes níveis e são, portanto, “economias mistas” em termos de economia convencional. O planejamento industrial, a subsidiação agressiva e o controle intenso sobre a concorrência comercial e os mercados de capitais têm sido sempre [políticas] particularmente anunciadas em [países] de “desenvolvimento tardio” que tentam promover rápidos booms industriais. Quando estes países utilizam tais políticas, é comum que sejam erroneamente retratados como tendo adoptado uma forma de “capitalismo de estado” (ou mesmo de “socialismo”) que é distinta do “verdadeiro” capitalismo. Para uma boa visão histórica geral do fenômeno, ver: Ernest Ming-tak Leung, “Developmentalisms: The forgotten ancestors of East Asian developmentalism”, Phenomenal World, 18 de setembro de 2021. https://www.phenomenalworld.org/analysis/developmentalisms/

Phil A. Neel é um geógrafo comunista radicado no Noroeste do Pacífico. É autor de Hinterland: America's New Landscape of Class and Conflict (2018), um diário de campo publicado pela Reaktion (Londres), agora em brochura.

Bolsonaro perdeu, mas seguirá ditando ritmo da política

Presidente articulou melhor que outros políticos valores emergentes da sociedade

Miguel Lago

Cientista político, professor da Escola de Assuntos Públicos da Sciences Po (Paris) e da Escola de Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade de Columbia (Nova York) e diretor do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS)

Folha de S.Paulo

Eleições costumam ser encaradas como forma de premiar ou punir o governo. O governante que melhora a vidas das pessoas seria reeleito ou elegeria seu sucessor. Aquele que piorasse a vida da população, não.

Em que pese a derrota, é surpreendente o sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro (PL). A economia piorou, a fome voltou, as políticas públicas foram desmanteladas, milhares de pessoas morreram na pandemia por causa do comportamento do presidente e o futuro foi hipotecado. Em circunstâncias normais, não estaria sequer no segundo turno.

De onde vem a força de Bolsonaro? Alguns dirão que a sociedade brasileira é intrinsecamente conservadora e, portanto, preocupada com a preservação dos valores cristãos e da família. O capitão reformado seria aquele que melhor representa esse ideário.

Apoiadores de Bolsonaro acompanham a apuração das urnas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília - Gabriela Biló/Folhapress

A conclusão me parece apressada e superficial. Bolsonaro não é conservador, muito menos representa os valores cristãos.

O conservadorismo político se construiu integralmente em oposição à ruptura e à revolução. Mudanças radicais são seu pesadelo, e toda a força política conservadora busca suavizar as mudanças, impedir os arroubos, as rupturas. O conservadorismo é, por essência, contrarrevolucionário.

Bolsonaro é um revolucionário de extrema direita. Nada em seu discurso se relaciona à tradição conservadora brasileira. Ao contrário, ele articula forças emergentes e insurgentes presentes em nossa sociedade: a religiosidade neopentecostal, a estética do agro e a sociabilidade de perfil.

O Brasil é o maior país católico do mundo, mas a força religiosa preponderante é a neopentecostal. Para grande parte dos fiéis católicos, a identidade católica não é definidora das escolhas do dia a dia, como é a neopentecostal.

Esta identidade condiciona todas as decisões, desde a forma de se vestir, se comportar, consumir e votar. Sua influência no comportamento dos brasileiros é muito maior. Ainda que minoritária do ponto de vista estatístico, ela pesa muito mais do que a grande maioria silenciosa e desarticulada.

Sobre o segundo ponto, o Brasil depende cada vez mais do agronegócio. Seu peso na economia tem sido crescente e acompanha a desindustrialização do país. Essa força econômica emergente articula uma estética própria.

A vestimenta de gaúchos e sertanejos, tão típica de nossa tradição rural, foi substituídas pela de caubói. O rodeio se tornou o grande festival do país, e a música que mais toca nas rádios brasileiras é uma espécie de country music cantada em português.

A posse e o porte de arma completam a composição deste novo "homem do campo". A promoção dessa nova estética é articulada pelo setor e difundida pelo país inteiro sob os slogans "o agro é pop", "o agro é tech" e daí por diante…

Quanto ao último ponto, a população brasileira está entre as maiores consumidoras de redes sociais do mundo. A sociabilidade de grande parte de nossos compatriotas se dá primordialmente através dos perfis de redes sociais. Somos aquilo que desejamos projetar em nossos perfis. O conhecimento foi substituído pela opinião, e o encontro na praça deu lugar à aventura narcísica.

Bolsonaro soube articular muito bem esse novo ambiente comunicacional com a identidade neopentecostal e a estética do agro. Seu movimento se tornou o fio condutor dessas forças propulsoras e a partir delas o capitão reformado construiu uma nova gramática política desprendida da lógica do "bom governo".

O que está em jogo é derrubar a tradição brasileira e substituí-la por uma nova visão de mundo. Para tanto é necessário eliminar o "inimigo" —nomeado como "a esquerda", mas, na realidade, o bolsonarismo tem como alvo as construções sociais e institucionais de décadas da sociedade brasileira.

O bolsonarismo representa uma ruptura política e cultural com a tradição brasileira. Quem vota em Bolsonaro não o faz por acreditar racionalmente que ele representará melhor seus interesses, mas por representar suas opiniões. Trata-se de um voto exclusivamente identitário.

Enquanto essas forças forem as identidades políticas preponderantes no país, o bolsonarismo seguirá ditando o ritmo da política. Bolsonaro perdeu neste domingo (30) nas urnas, mas o trabalho para derrotar o bolsonarismo na sociedade será imenso.

Opções golpistas encolhem e Bolsonaro encara abismo isolado

Se apostar na bagunça dos caminhoneiros, presidente enfrentará reação quase unânime

Folha de S.Paulo

Quando apareceu rapidamente em frente às câmaras para saudar o fim do processo eleitoral e abrir caminho para manter seu quinhão de poder no terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Arthur Lira (PP) disparou a mais importante sinalização institucional da noite do domingo (30).

O presidente Jair Bolsonaro (PL) está mais isolado do que nunca, mesmo contando seu padrão insular de articulação política. O presidente da Câmara foi seguidos pelo do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), e por toda a litania dos Poderes no reconhecimento do resultado das urnas.

Bolsonaro deixa o Palácio da Alvorada rumo ao Planalto na manhã desta segunda (31) - Evaristo Sá/AFP

Ninguém apareceu para gritar que houve fraude fora das redes robotizadas do bolsonarismo. Nenhuma Damares, nenhum Moro, nenhuma Zambelli. E os líderes mundiais rapidamente parabenizaram Lula, Joe Biden (EUA) à frente.

Ato contínuo, o mandatário máximo se comportou como criança que perdeu a partida e foi correndo para casa se trancar em um silêncio vexatório, digno de um João Figueiredo saindo do Planalto para não passar a faixa a José Sarney em 1985. E não pôde levar consigo a bola do jogo.

Ela ficou com seus aliados, após quase quatro anos de ameaças de ruptura de ordens diversas. Não que o potencial disruptivo do presidente tenha se exaurido por completo, como o silêncio que mantém até a confecção destas linhas indica e as barricadas em mais de 240 pontos de estradas federais provam.

Mas tudo indica que, ao contemplar o abismo em sua solidão, Bolsonaro se veja na posição descrita por Friedrich Nietzsche em 1886 e seja encarado de volta. E o que ele verá é uma pletora de ameaças a quaisquer manifestações golpistas daqui em diante.

Um importante presidente de partido de centro dizia nesta manhã que, se tentar amplificar a bagunça ensaiada desde domingo por seus aliados caminhoneiros, Bolsonaro irá encarar nada menos que a sugestão para que renuncie. Impeachment, se houvesse tempo hábil, estaria à mão também.

Outro líder, este do centrão que reabsorveu Bolsonaro e aproveitou-se de sua musculatura eleitoral para engordar a ponto de dominar de vez a Câmara e o Senado, diz que esforços estão sendo feitos para que o presidente entre em modo de resignação e entenda que só isso o salva de uma saraivada imediata de questionamentos jurídicos.

Pois o emprego da Polícia Rodoviária Federal na evidente tentativa de intimidar eleitores nordestinos, e na relatada inação em alguns pontos de bloqueio de estradas, configura crime de responsabilidade claro, mesmo na visão deste aliado. Não seria o primeiro para o qual o establishment fecharia os olhos em nome de não balançar ainda mais o barco.

Mas aqui voltamos ao abismo, ou seja, qual a contemplação que Bolsonaro faz. Nos delírios bolsonaristas, amparados no forte apoio a seus atos antidemocráticos, particularmente os feriados de 7 de Setembro de 2021 e neste ano, uma derrota para Lula implicaria um movimento de rua imediato em favor do presidente.

Até aqui, o que se vê são crimes contra o direito de ir e vir praticados por uma minoria importante e organizada, mas uma minoria. E todo o mundo político, salvo talvez os filhos de Bolsonaro, o áulico Walter Braga Netto e alguns generais do bolsonarismo, ex-usuários de farda ou não, já avisou que não entrará no jogo.

Emparedados ficam os militares, que foram instrumentalizados por Bolsonaro ao servir à sua campanha contra as urnas eletrônicas: como a Folha mostrou domingo, há pressão interna no Planalto para um relatório sugerindo fraudes a ser assinado pela Defesa.

Se não há nenhum indício de que apoiariam uma contestação com armas na mão, a movimentação nas estradas enseja o temor de uma querela institucional: algum governador pede para o Exército fazer o que a PRF não está fazendo e liberar estrada, e Bolsonaro nega a autorização, forçando a entrada do Supremo na discussão.

Mas essa hipótese extrema, com suas variantes, já se mostrou rejeitada pelo entorno ampliado de Bolsonaro, para não falar em seus adversários percebidos. Mais importante, há a posição do serviço ativo. O Alto-Comando do Exército, principal colegiado militar do país, sinalizou ao governo que não irá aderir a nenhuma contestação da eleição.

Um dos movimentos centrais nesse balé foi dado pelo assertivo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes. Ele matou no peito, para usar a expressão de gosto em Brasília, a cartada dada pela PRF no domingo. Chamou seu comandante para uma conversinha, conseguiu desmoralizar o processo golpista e, de quebra, não escalou a crise ao manter o cronograma das eleições.

Sem adiamento do pleito, tudo transcorreu com tensão, mas com formatação de naturalidade democrática. Resta saber se a tática do domingo seguirá a mesma, ou se o ministro irá usar o arsenal que tem à disposição para enquadrar o que resta do governo Bolsonaro.

Essa munição é outro componente do abismo à frente do presidente, que de resto sempre trabalhou com a hipótese de que poderia ser preso assim que perdesse o foro privilegiado. Agora a data está estabelecida, e o modelo Roberto Jefferson ou Carla Zambelli de reação ronda conversas de adversários e aliados.

Bolsonaro vende a ideia de que algum tipo de imunidade para si e sua família garantiria a estabilidade pós-derrota. O problema, para ele, é a credibilidade de sua tática mesmo entre quem lhe dá sustentação.

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...