31 de março de 2020

A grande mídia versus Andrés Manuel López Obrador

A cobertura da grande mídia do presidente de esquerda mexicano, Andrés Manuel López Obrador, e sua resposta à crise do coronavírus foi terrível. Enquanto as autoridades mundiais de saúde elogiaram a abordagem do país, a mídia - reproduzindo cegamente a oposição de direita a AMLO - a criticou.

Edwin F. Ackerman

Jacobin

Pessoas esperam para atravessar uma rua no centro da Cidade do México usando máscaras em 26 de março de 2020 na cidade do México, México. Manuel Velasquez / Getty.

Tradução / Agentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) elogiaram repetidamente a resposta do governo mexicano à crise do COVID-19: “O México está implantando várias lições aprendidas por outros países, como a China, e aplicando medidas consistentes com as recomendações da OMS; foi o primeiro país a implementar um programa de detecção do coronavírus e essa é uma premissa básica para reduzir a velocidade da pandemia”.

Com casos ligeiramente acima de 400, cinco mortes (uma taxa de mortalidade de 1,5%, bem abaixo da média global) e 10% dos casos exigindo hospitalização, a estratégia apresentada pelo vice-secretário de saúde pública Hugo López-Gatell Ramírez parece estar funcionando até então. O rastreador de resposta ao COVID-19 da Universidade de Oxford coloca o México na mesma categoria de rigor que os Estados Unidos (apesar da diferença drástica no número de casos e mortes), e medidas de distanciamento social foram implementadas muito antes de outros países em relação ao número de casos.

Nós não saberíamos de nada disso se dependesse dos ataques da imprensa nacional e estrangeira, pintando o governo mexicano como inerte e o presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) como um populista supersticioso que usa imagens de santos para combater o vírus. Quase sem exceções, esses artigos omitem até as mais básicas premissas subjacentes de um plano de saúde pública em andamento há meses.

López-Gatell deu entrevistas coletivas diariamente durante todo o mês de março. Um plano para identificar e isolar casos e testar todos os contatos possíveis está em vigor desde janeiro. As taxas de teste continuam baixas, mas bem direcionadas. De acordo com Jean-Marc Gabastou, da OMS, “9.000 testes para a fase 1 da epidemia [quando todos os casos de contágio estão relacionados a viagens para fora] e, eventualmente, para a fase 2 [quando o contágio já acontece por transmissão local] é suficiente.”

Os níveis atuais de testes direcionados são complementados com dados de um sistema de rastreamento permanente que acompanha casos com sintomas semelhantes, como influenza ou doenças pulmonares, não tendo mostrado picos anômalos nesse período. Até agora, mesmo com os casos ainda na casa das centenas, as escolas estão fechadas, os eventos com mais de cem pessoas estão proibidos, o home office está sendo recomendado para todos que podem fazê-lo, as populações vulneráveis ganharam direito a um mês de licença remunerada e uma campanha de distanciamento social está em vigor em nível nacional. Medidas mais rigorosas foram adotadas na Cidade do México.

No entanto, a questão sem dúvidas permanece: por que as autoridades não pediram um bloqueio total, sabendo — como elas próprias admitiram — que o vírus continuará se espalhando, mesmo que o número de casos ainda esteja baixo? A resposta que López-Gatell articulou extensivamente (mas que misteriosamente parece não ter repercutido na maioria dos noticiários da mídia) é a seguinte: em um país com uma taxa de pobreza de 50% e uma força de trabalho informal de 60%, uma quarentena perde seu poder ao longo do tempo, à medida que as pessoas são incapazes de mantê-la. Portanto, o governo precisa adiá-la até que essa seja única medida eficaz (em estágios subsequentes de contágio, quando será mais necessária).

Com um número relativamente pequeno de casos, detecção, isolamento e distanciamento social moderado ainda são medidas eficazes. Pelos próprios cálculos de López-Gatell, os números irão aumentar; será uma epidemia longa e a quarentena poderá ser necessária. Mas preservar a eficácia do bloqueio como uma intervenção para achatar a curva requer estratégias cronológicas. Na Espanha e na Itália, de acordo com essa teoria, o bloqueio foi implementado tarde demais; em outros países, os líderes que respondem a pressões políticas em vez de preceitos epidemiológicos o instituíram muito cedo e serão forçados a revertê-lo com o passar do tempo (ou mantê-lo através de uma perda grave dos direitos civis).

Aqui, é interesse fazer um contraste com Jair Bolsonaro no Brasil e Donald Trump nos Estados Unidos que, em diferentes graus, se opuseram ao bloqueio total. Bolsonaro é contra qualquer quarentena, negando o coronavírus como se fosse uma “gripezinha”. Trump também é contra, temendo prejudicar suas perspectivas eleitorais e seus amigos ricos. Ele está considerando reverter a quarentena, mesmo enquanto o número de casos aumenta. López Obrador, por outro lado, vê o país em uma fase incipiente de uma batalha progressiva, ao contrário de Bolsonaro, e quer instituir um bloqueio precisamente quando os casos começarem a aumentar, ao contrário de Trump.

O trabalho deplorável da imprensa internacional (e mexicana) na transmissão da lógica por trás da estratégia mexicana é embaraçoso e irresponsável. A maioria dos artigos que circulam nas principais publicações simplesmente recicla o pensamento de grupos do Twitter, provenientes de um elenco de críticos instintivos de López Obrador (uma mistura de reacionários e liberais de centro-direita), expressando indignação por declarações públicas descontextualizadas.

Por exemplo, quando López Obrador exibiu uma coleção de imagens de santos que havia recebido de alguns apoiadores para sua proteção, isso foi interpretado como seu suposto “plano de combater o vírus”. As falhas de comunicação entre ele e outros agentes do governo, verdadeiras, mas, em última instância, pequenas, foram tiradas de qualquer proporção legítima.

No entanto, o desafio do México ainda está por vir, à medida que o número de casos aumenta e o planejamento dos estágios subsequentes é colocado à prova. E, como em todos os outros países, a principal crise a ser enfrentada será o colapso econômico iminente. Até o momento, os planos de López Obrador para a crise econômica ainda estão sendo estudados.

Medidas importantes foram anunciadas, como o adiantamento de transferências de dinheiro para idosos, estudantes e outros; a concessão de um milhão de empréstimos a pequenas empresas; e uma recusa firmemente expressa de socorrer corporações. Mas a principal limitação estrutural de seu projeto permanece — a crença de que a economia feita com o fim da corrupção governamental pode compensar a necessidade de aumentar os impostos sobre os ricos ou os déficits orçamentários. E, no entanto, embora uma reforma tributária redistributiva esteja sendo difícil de implementar em um país onde os fundos do governo foram sistematicamente desviados, a gravidade da crise que está por vir pode muito bem quebrar esse tabu. Quando esse momento crítico chegar, o projeto de López Obrador deverá ser reavaliado.

Sobre o autor

Edwin F. Ackerman é professor assistente de sociologia na Universidade de Syracuse e pesquisador visitante no Weatherhead Center for International Affairs em Harvard.

Interrompa-me se você acha que já ouviu isto antes: Um estudo sobre política e estética da miséria inglesa

Owen Hatherley reflete sobre as divisões geracionais que emergiram ao longo das duas últimas eleições britânicas ao traçar a evolução musical do grupo The Smiths. Comparando a trajetória política de Morrissey a de muitos eleitores do norte da Inglaterra, Hatherley investiga as raízes da transição ocorrida na região de um coletivismo anti-tatcherista à uma reação nacionalista.

Owen Hatherley


Tradução / O primeiro álbum que escutei após as eleições de dezembro de 2019 foi The Smiths. Não tenho certeza exatamente do porquê – algo sobre a infelicidade particular daquele evento; a noção de que a partir de agora sofreríamos profundamente por um bom tempo sem um fim previsto e a sensação de que a Inglaterra e o Englishness tiveram uma espécie de vitória decisiva. Sempre pareceu improvável a ideia de que a Grã-Bretanha – com exceção da Escócia, até o momento – estaria prestes a embarcar num experimento de democracia social radical e multicultural; e, caso tenha interesse em deleitar-se com o horror inglês, é exatamente sobre isso que trata o som e a estética do The Smiths. Nostalgia, culpa, repressão, uma ferida adolescente exposta conservada até os dias de aposentadoria.

O outro motivo foi tentar compreender algo que acabara de acontecer, já que a trajetória política de Steven Morrissey parecia refletir a de boa parte da população do norte da Inglaterra – de uma espécie de anti-tatcherismo esquerdista à um orgulho racista little-Englander de direita. Aqui residia talvez a chave de compreensão dos eventos, mais útil que George Orwell ou qualquer espécie de romance da “condição inglesa”– um terrível encontro de cultura pop consumista, recusa da maturidade, nostalgia imposta, racismo endêmico e desolação estetizada.

Se tornou convencional o uso da nostalgia sobre a segunda guerra mundial como explicação para um tipo particular de nacionalismo que tomou conta da Inglaterra e do País de Gales nos últimos dez anos ou mais. As tropas que foram a guerra, algumas delas totalmente inventadas, vem de fato sendo dominante na Grã-Bretanha-exceptuando Escócia pós-New Labour, desde Boris Johnson moldando sua persona em Winston Churchill – que agora possui uma sessão inteira de livros dedicados a ele nas principais livrarias – ao revival do contraproducente pôster “Keep Calm and Carry On”.

Contudo, a geração que lutou a segunda guerra – e que subsequentemente construiu um tipo de estado de bem-estar social – está majoritariamente morta. A esmagadora política geracional do referendo e as eleições de 2017 e 2019, com a maioria dos votos da esquerda entre os abaixo dos 40 e a absoluta hegemonia da direita nos acima de 60, são consequências de uma profunda transformação política entre as pessoas que nasceram entre 1945 e 1965; como aponta Susan Watkins, Johnson é um Churchill com um corte de cabelo estilo Beatles[1].

A importação do termo americano “boomers” remove o “baby boom” da terminologia original e o encurta aos que nasceram dentro do boom – numa era de pleno emprego, casas baratas abundantes e educação gratuita, no rescaldo da guerra. Mas se você gastar seu tempo vasculhando muitos dos grupos do Facebook onde essa corja discursa sobre seu desdém pelos jovens, não há sensação, ou o que quer que seja, que eles sintam-se de algum modo privilegiados, ou beneficiários de algum destino histórico superior. Nós nos fodemos, logo eles também deveriam se foder. E quem melhor para explicar esse cenário que Morissey?

Morissey é um exemplo extremo de um tipo comum desse período. Nascido em 1959 numa família de imigrantes irlandeses da classe trabalhadora de Manchester, foi criado em habitações do estado em Hulme e Stretford e reprovou em seu exame 11-plus – ele depois ascenderia espetacularmente para além dos limites de sua condição de classe através da mídia de massas primeiro como jornalista musical, onde habilidosamente escreveu um livro sobre o New York Dolls e outro sobre James Dean, e depois como um tipo peculiar de ídolo pop; discutivelmente, a figura fundadora do indie inglês.

The Smiths, a banda que formou em 1982 com Johnny Marr[3], construiu uma posição deliberadamente contra o modernismo na cultura pop do Reino Unido da época, particularmente em Manchester, onde suas melodias e abordagem nostálgica foram criadas como oposição tanto a estética advinda do Bauhaus e aos sons eletrônicos da Factory Records quanto ao abrasivo neo-vorticismo do The Fall.

Após uma longa, e em geral medíocre carreira solo, Morrissey tem se tornado reconhecido recentemente por revelar explicitamente suas simpatias à extrema-direita; algo que já era uma suspeita tornou-se evidente quando ele começou a vestir em aparições públicas no ano de 2018 um broche da organização fascista For Britain. Essa seita foi fundada um ano antes disso por Anne-Marie Waters, uma política expulsa do UKIP por possuir laços estreitos com organizações paramilitares fascistas.

Voltando ao The Smiths, o que você pode perceber em suas músicas atualmente é uma total recusa da superação dos traumas de infância. Que, às vezes, são os do próprio Morissey – várias músicas tratam, ou parecem tratar, de relacionamentos homossexuais, com um poder frequentemente arrebatador, como nas brutais tomadas de consciência de “Reel Around the Fountain”, por exemplo. Por vezes tratam arrastadamente de assassinatos, em representações vívidas que se encontram em algum ponto de um poema de Tony Harrison e a manchete do News of the World. Em “Suffer Little Children”, a música final do disco, sob guitarras assustadoramente sinuosas, belas e repetitivas, os assassinatos de Ian Brady e Myra Hindley, que sequestravam crianças com a idade de Morrissey na época e as matavam nos pântanos dos arredores de Manchester, são intercaladas com a seguinte paisagem:

Os frescos campos pantanosos de lilases

Não conseguem esconder o cheiro forte da morte

A forma com que a cadência da canção se repete insistentemente, sussurrada com um prazer sombrio, do mesmo modo que uma sedutora versão de um tabloide fascinado pelo horror, não sugere raiva ou empatia. As músicas mais conhecidas no álbum são ou representações da miserável bedsit life (“O que se ganha por nossos problemas e dores?/ Apenas um quarto alugado em Whalley Range”) ou afirmações de tanto identificação quanto oposição a “Inglaterra” – que é “minha” e ao mesmo tempo “deve-me uma vida – mas pergunte-me o motivo e cuspirei em seu olho”. Nessa canção, “Still Ill”, a pungência da nostalgia, e sua identificação com o ambiente particular de uma cidade industrial, deprimida e úmida, são incomparáveis; principalmente por sua imprecisão, pelo foco confuso de seu anseio:

Contudo não podemos mais nos agarrar
aos antigos sonhos
não, não podemos nos agarrar
a tais sonhos

Debaixo da ponte de ferro nos beijamos
e apesar ter ficado com os lábios doloridos
não foi como nos velhos tempos
não, não foi como naqueles dias

Assim canta um homem que tinha 23 anos na época. Poderia parecer estranho em 1983, quando o álbum foi lançado, ver isso como uma espécie de afirmação nascente do nacionalismo inglês; especificamente porque a banda parecia de algum modo identificado, embora de uma forma complexa, com a esquerda, tocando em concertos beneficentes para o Liverpool Council, sendo afirmadamente gay (apesar de nunca totalmente fora do armário) na época da Section 28, e, particularmente, em seu estranho mas fervoroso republicanismo, esboçado nas surreais disputas imaginadas com o príncipe Charles e enfim no seu regicídio na caleidoscópica fantasia de “The queen is dead”, canção a qual o sonho de insurgência é realizado através da citação de uma música da época da guerra “Take Me Back to Dear Old Blighy”.

É só gradualmente que a crueldade da visão de Morrissey torna-se aparente. Entretanto, muitas de suas músicas são sobre o sofrimento que advém da crueldade; sobre ser vitimado por uma elite industrial vitoriana que, de algum modo, conseguiu perdurar até as escolas secundárias modernas dos anos 60. Em “The Headmaster Ritual”, cantada numa conjugação do presente mas claramente sobre uma experiência comum em qualquer autoridade escolar numa grande cidade dos anos 80, temos:

Zumbis beligerantes
dirigem as escolas de Manchester
bastardos covardes, todos

O professor lidera a tropa
invejoso da juventude
com as mesmas piadas desde 1902

Ou em “Barbarism Begins at Home”, do mesmo álbum; o mesmo cenário, só que doméstico – violência arbitrária e desproposital, casual e aleatória; e novamente, com um senso de interminável repetição e inevitabilidade:

E uma porrada na cabeça
é o que você recebe por perguntar

E uma porrada na cabeça
é o que você recebe por não perguntar

Essas canções e as ligações indissociáveis que mantêm com as capas dos álbuns e dos singles (geralmente projetadas ou dirigidas pelo próprio Morrissey), junto aos clipes de Derek Harman, existem num mundo fechado que termina bruscamente em 1964, em algum ponto antes da migração em larga escala dos distritos da zona do algodão do sul da Ásia para os distritos da zona do algodão do noroeste da Inglaterr; antes da vitória eleitoral de Harold Wilson; antes dos Beatles tornarem-se estranhos; antes que os distritos de Manchester como Hulme fossem submetidos a um “comprehensive redevelopment”; antes do colapso da indústria têxtil e depois da introdução da TV mas certamente antes da TV a cores, com música pop mais no estilo Joe Meek, Billy Fury e Lulu, do que psicodelia ou soul.

A criação e evocação de um ambiente totalmente embalsamado é extraordinariamente completa; e é feito com tanta atenção e paciência aos detalhes que só pode ser vista como uma tentativa de reconstruí-lo completamente na mente.

Em uma entrevista da Melody Maker com Morissey em 1988, coincidindo com o lançamento de Viva Hate, seu primeiro e de longe melhor disco solo, Simon Reynolds tentou alfinetar o cantor acerca disso. “Viva Hate… retorna repetidamente ao ‘inglesismo’ que obceca Morrissey… [Ele] parece valorizar os próprios constrangimentos e desânimos de uma Inglaterra em vias de desaparecimento, [fetichisando] os limites perdidos”. Questionando-o da seguinte forma: “Em ‘Late Night, Maudlin Street’, você diz ‘ eu nunca tive uma hora feliz por aqui’ – mas toda sensação da música, o jeito que você sussurra os devaneios sob o transe da guitarra de Vini [Reilly], fazem do tempo e do espaço algo que parece mágico, de outro mundo, e incrivelmente precioso”. Admitindo Morrissey responde: “É um truque de memória”, “Olhando para trás e pensando que talvez as coisas não fossem tão ruins mas, claro, elas eram.”

Esse lado vicioso se tornou claro em 1986 quando o The Smiths lançou “Panic”, com seu ataque não mais as paradas pop, mas em direção a todo e qualquer tipo de música negra dançante. Na época do lançamento, ele respondeu um questionário da NME que possuía a pergunta álbum favorito de reggae” com “reggae é vil”, algo que justificou mais tarde dizendo que o gênero era uma forma de “nacionalismo negro”. Em “Panic”, os dois lados caminham juntos, a imagem detalhada da miserável urbanização britânica (e também irlandesa, nesse caso) e o desconsolado campo – com a chegada de uma força estranha, inescapável, que aparecia e envenenava esse ambiente.

Esperanças podem surgir em Grasmeres 
Mas, querida, você não está a salvo aqui 
Então você corre 
Para a segurança da cidade 
Mas há pânico nas ruas de Carlisle 
Dublin, Dundee, Humberside 
Eu me pergunto 
Incendeiem a discoteca 
Enforquem o abençoado DJ 
Porque a música que eles tocam constantemente 
NÃO DIZ NADA A MIM SOBRE MINHA VIDA.

Em Viva Hate há a primeira de muitas músicas da carreira solo de Morrissey que possui representações desconcertantes de asiáticos britânicos – em “Bengali in Platforms”, o “difícil de contentar-se” deslocado protagonista, tentando encaixar-se na cultura pop anglo-americana, é paternalmente recebido com um “ vida é suficientemente difícil quando você pertence a este lugar”. Em “Asian Rut” torna-se ainda mais assustador, uma desapaixonada anedota de um ataque racista; e “National Front Disco”, um retrato cínico dos fascistas ingleses dos anos 70 com o “Inglaterra para os ingleses!” cantado suavemente no refrão. Quando apoiou Madness em 1992, Morrissey se embrulhou numa bandeira britânica, o que foi visto amplamente, pelo menos na crítica musical, como um gesto em direção aos fãs skinheads, numa época em que posar em público com a bandeira era um gesto reservado a extrema direita.

Nos últimos anos isso foi além de qualquer negação plausível. Numa entrevista recente no seu próprio site, ele reafirmou seu apoio a Anne-Marie Walter (em algum momento, ele complementou declarando seu entusiasmo por “Tommy Robinson”), além de dizer que gostaria de ver Nigel Farage tornar-se primeiro ministro, reiterando seu desdém pelo “Islã” e comentando as acusações de racismo com “Todos preferem ultimamente sua própria raça, isso faz com que todos sejam racistas?”. Em sua página no Facebook, ano passado, ele denunciou o “Reino Soviético Unido”. Essas são declarações padrões do conservadorismo britânico, causando estranheza unicamente pelo fato de ser um pop star gay dos anos 80, que não vive no Reino Unido há décadas, as dizendo, e não engenheiro aposentado de Trafford Park.

As conquistas mais notáveis da carreira de Morrissey desde 1988 foi publicar sua autobiografia em 2013 pela Penguin Classics. Lê-la é uma experiência igualmente bizarra. Começa com centenas de páginas sobre Manchester dos anos 60, escritas com a mesma obsessão saudosista que permeia as músicas do The Smiths; com o mesmo faro e precisão: uma tentativa de recriar completamente uma sociedade em toda sua miséria e violência; um mundo em um microcosmo – seguido de trezentas intermináveis, entediantes e arrogantes páginas sobre celebridades, gravadoras e processos; notáveis por sua autocomiseração de tirar o folego.

É muito fácil simplesmente separar esses dois lados, assim como desvincular o The Smiths e o fascista suburbano de 61 anos que os liderou. A questão é que os dois estão totalmente vinculados. Pode ser difícil descobrir o quê exatamente no passado tantos da geração de Morrissey sentem saudades. Certamente não são as council houses, pleno emprego, educação gratuita, propriedade pública ou mobilidade social; pois se tudo isso é de alguma forma destacado, é apenas para desacreditar o utopismo tosco do Labour Party em tentar recriá-los.

O que isso é, é uma nostalgia da miséria; uma saudade do tédio. Um deslocamento da pobreza da economia à estética[5]. Os zumbis beligerantes. Os covardes desgraçados. Os espancamentos. A ignorância. A poluição e a fuligem. Os ataques à gays e paquistaneses. Os assassinatos nos pântanos. O ressentimento dos jovens atuais não é apenas por não terem sofrido o mesmo que os jovens de outrora. As lembranças obsessivas desses traumas são uma forma de constantemente reviver uma experiência de luta pessoal e maturidade: um romance de formação da primeira casa financiada e do tédio dos bem de vida, seja daqueles que tem o aluguel pago ou a Council House adquirida (ou, no caso de Morrissey, uma vila nas montanhas de Los Angeles). E quem pode impedir esse auto-engrandecimento advindo da reencenção do passado? Os asiáticos, especialmente os muçulmanos. Os jovens. A esquerda. Os “conscientes”. Nesse sentido, Morrissey é verdadeiramente a voz de uma geração.

Notas:

[1] Susan Watkins, “Beyond Brexit”, New Left Review 121, January-February 2020. É possível também notar o modo que a música de campanha do Express and Mail’s “Big Ben Must Bong for Brexit” soa como uma das letras alegres e nonsense do Marc Bolan.

[2] Sobe a quase-universal direita dos ex-jornalistas musicais, ver MT Page, “The Psychdelic Left”, Tribune, 8 Novembro 2019.

[3] Enquanto antigo entusiasta de música moderna, socialista e patrono da Manchester Modernist Society, Marr é inocente de muitos dos crimes específicos de Morrissey.

[4] REYNOLDS, Simon. “Miserablism”, in Blissed Out – The Raptures of Rock (Serpents Tail, 1990), p. 16-17.

[5] Se alguém duvida disso, eu recomendo que vejam essa discussão do grupo do Facebook “Memory Lane UK”: twitter.com/georgina_199/status/1219997879697334272 (data do acesso: 06/05/2020, dia de finalização da tradução brasileira).

Sobre o autor

Owen Hatherley is the author of several books including The Ministry of Nostalgia and and A Guide to the New Ruins of Great Britain. He is the Culture Editor of Tribune.

30 de março de 2020

A realidade endossou Bernie Sanders

A crise do coronavírus está revelando a brutalidade de uma economia organizada em torno da produção em prol do lucro e não da necessidade humana.

Keeanga-Yamahtta Taylor

The New Yorker

Bernie Sanders’s policy proposals are especially apt now, when the coronavirus crisis is revealing an economy organized around production for the sake of profit, not need. Photograph by Justin Sullivan / Getty.

Tradução / O debate sobre o papel do governo na abordagem da desigualdade de renda, insegurança habitacional, acúmulo de dívidas e assistência médica continua, agora contra o cenário sombrio do enfurecido coronavírus. É difícil articular a velocidade com que os EUA e, de fato, o mundo, mergulharam em uma crise existencial. Estamos passando por um evento de saúde pública sem precedentes, cuja diminuição e potencial resolução dependem de uma série de prescrições, incluindo ordens que aniquilarão a economia. A disseminação mortal do COVID-19 exige cercos como uma maneira de matar de fome o vírus que se inocula em corpos para habitar. As consequências de fazê-lo retiram os trabalhadores do trabalho e os consumidores do consumo; nenhuma economia pode operar nessas condições.

A vida americana foi repentina e dramaticamente revirada e, quando as coisas são viradas de cabeça para baixo, o fundo é trazido à superfície e exposto à luz. Em 2005, quando o furacão Katrina e suas consequências devastaram a costa do Golfo, também forneceu um olhar mais profundo sobre a escuridão da desigualdade nos EUA. Como o ator Danny Glover disse na época: “Quando o furacão atingiu o Golfo e as águas da inundação atravessaram Nova Orleans, mergulhando sua população restante em um carnaval de miséria, ela não transformou a região em um país do Terceiro Mundo, como tem sido depreciativamente implícito na mídia; revelou um país do Terceiro Mundo. Revelou o desastre dentro do desastre; a pobreza extenuante subiu à superfície como uma contusão em nossa pele”.

Durante anos, os Estados Unidos se safaram persistentemente destruindo seu fraco estado de bem-estar ocultando ou demonizando as populações mais dependentes dele. Os pobres são relegados como socialmente disfuncionais e inaptos, incapazes de lucrar com as riquezas da sociedade americana. Existem mais de 40 milhões de pessoas pobres nos EUA, mas elas quase nunca merecem uma menção. Enquanto a pobreza negra é apresentada como exemplar, a pobreza branca é obscurecida e as experiências dos latinos e de outras pessoas pardas são ignoradas. Cerca de quatro em cada cinco americanos dizem que vivem de salário em salário. Quarenta por cento dos americanos dizem que não podem cobrir despesas inesperadas de emergência de 400 dólares.

Este é um vírus que prosperará na intimidade da pobreza americana. Há anos, mesmo em meio à recuperação econômica da crise financeira de 2008, o aumento dos aluguéis e os salários e salários estagnados forçaram milhões de famílias a improvisar casas; quase quatro milhões de famílias vivem em casas superlotadas. Essa é a ironia cruel do mandato de abrigo no local da área da baía de São Francisco: a região está no epicentro da crise habitacional nos EUA, como exemplificado por sua crescente população desabrigada e sem teto. Como você pratica o isolamento social sem privacidade ou espaço pessoal? Existem os escritórios públicos lotados em que as pessoas pobres se reúnam para acessar a serviços e renda. Existem as salas de emergência que funcionam como prestadores de serviços de saúde primários - sem mencionar as prisões do condado e as prisões estaduais.

A desigualdade econômica é exacerbada pela injustiça racial, ambas mantidas no lugar por uma rede de segurança social esfarrapada. As populações negras e pardas são particularmente vulneráveis à infecção porque a pobreza é uma fonte de condições subjacentes, como diabetes, hipertensão, doença pulmonar e doença cardíaca, que aumentam a probabilidade de o vírus ser mortal. Eles também são mais vulneráveis porque maiores taxas de pobreza e subemprego dificultam o acesso aos cuidados de saúde. Em Milwaukee, a cidade mais segregada nos EUA, onde o desemprego negro é quatro vezes a taxa de desemprego branco, a maioria dos casos diagnosticados de coronavírus são homens negros de meia idade. E como qualquer um que já tenha se perguntado como fará o pagamento do aluguel, o estresse da incerteza econômica é corrosivo, consumindo a capacidade do sistema imunológico.

Mas o perigo de contrair o coronavírus dificilmente será o problema da classe trabalhadora e pobre. Aqueles que, por causa da pobreza e insegurança, são mais vulneráveis à infecção, também têm contato desproporcional com o público em geral, por meio de seu trabalho de varejo e serviços de baixo salário. Considere a situação do profissional de saúde em casa. Milhões desses trabalhadores atendem a uma população majoritariamente idosa e domiciliada por baixos salários por hora e frequentemente sem seguro de saúde. Em 2018, os profissionais de saúde em casa, dos quais 87% são mulheres e 60% são negros ou latinos, ganharam uma média de onze dólares e cinquenta centavos por hora. Esses trabalhadores são os tendões de nossa sociedade: eles devem trabalhar para garantir que nossa sociedade continue funcionando, mesmo que esse trabalho represente ameaças potenciais a seus clientes e ao público em geral. Sua insegurança, combinada com o fracasso de ações significativas por parte do governo federal, tornará quase impossível a supressão do vírus.

Até agora, o governo Trump previsivelmente confundiu a resposta ao coronavírus. Mas a resposta do Partido Democrata foi dificultada por sua hostilidade compartilhada em liberar o poder do Estado, através do avanço de vastos programas universais, para atender a uma catástrofe sem precedentes e devastadora. Cerca de metade dos trabalhadores americanos recebe seguro de saúde através de seu empregador. À medida que as perdas de empregos aumentam, milhões de trabalhadores perdem seu seguro enquanto a crise da saúde pública aumenta. No último debate democrata, o ex-vice-presidente Joe Biden insistiu que os EUA não precisam de cuidados de saúde com pagamento único porque a gravidade do surto de coronavírus na Itália provou que não funciona. Estranhamente, ele simultaneamente insistiu que todos os testes e tratamentos do vírus deveriam ser gratuitos porque estamos em crise. Essa insistência em que os cuidados de saúde só devem ser gratuitos em caso de emergência revela uma profunda ignorância sobre as maneiras pelas quais a medicina preventiva pode mitigar os efeitos mais severos de uma infecção aguda. Em meados de fevereiro, um estudo do governo chinês sobre as mortes relacionadas ao coronavírus no país constatou que aqueles com condições pré-existentes representavam pelo menos um terço de todas as mortes por covid-19.

Descartar a necessidade de assistência universal à saúde também mostra um alheiamento ao poder das despesas médicas para alterar o curso da vida. Dois terços dos americanos que pedem falência dizem que dívidas médicas ou perda de trabalho enquanto estavam doentes contribuíram para sua situação de precariedade. Os custos do tratamento médico se tornam um motivo para adiar as visitas ao médico. Uma pesquisa de 2018 descobriu que 44% dos americanos adiaram o atendimento médico devido ao seu custo. Já metade dos americanos pesquisados disse que se preocupa com os custos dos testes e tratamento do covid-19. Em uma situação como a nossa, fica fácil ver as maneiras pelas quais o acesso onerado aos cuidados de saúde agrava a degradação da saúde pública. Jogadores da NBA, celebridades, e os ricos têm acesso ao teste de coronavírus, mas os enfermeiros e profissionais de saúde de primeira linha, centros de saúde comunitários e hospitais públicos não. As desigualdades na assistência à saúde são problemas que foram deixados sem vigilância, criando tantas fraturas pequenas e imperceptíveis que, em meio a uma crise de grande escala, a estrutura está entrando em colapso, quebrando com seu próprio peso.

O caso nunca foi tão claro para uma transição para o Medicare for All, mas sua conquista colide com a hostilidade de décadas do Partido Democrata em financiar o estado de bem-estar social. No cerne dessa resistência está a gloriosa perniciosa da "responsabilidade pessoal", através da qual o sucesso ou o fracasso na vida é visto como uma expressão de fortaleza ou frouxidão pessoal. Dizem que o sonho americano está ancorado na promessa de mobilidade social sem restrições, um destino impulsionado pela autodeterminação e perseverança. Esse pensamento arraigado evita o fato de que foi o New Deal, nos anos 30, e o GI Bill, nos 40, que, através de uma combinação de programas de trabalho federais, subsídios e garantias apoiadas pelo governo, criou um estilo de vida da classe média para milhões de americanos brancos. Nos anos 60, como resultado de prolongados protestos negros, Lyndon Johnson foi o autor da Guerra contra a Pobreza e de outros programas da Grande Sociedade, destinados a diminuir o impacto de décadas de discriminação racial no emprego, moradia e educação.

Em 1969, com Richard Nixon no comando, durante uma crise econômica que encerrou a maior expansão econômica da história americana, os conservadores atacaram a noção de "contrato social" incorporado em todos esses programas, alegando que recompensavam a preguiça e eram evidências de direitos especiais para alguns. Quando Nixon concorreu à reeleição, em 1972, ele alegou que sua campanha colocou a "ética do trabalho" contra a "ética do bem-estar" que visavam diminuir o impacto de décadas de discriminação racial no emprego, moradia e educação.

Este foi um ataque não apenas à ajuda pública e habitação subsidiada, mas também às pessoas que usavam esses programas. Os republicanos aproveitaram com êxito os ressentimentos raciais dos suburbanos brancos, que condenaram "seus" dólares em impostos indo descontroladamente para os outros, revoltando os afro-americanos. Eles se ressentiam de "integração forçada", "ônibus forçado" e "os burocratas", como Nixon chamou ironicamente as Administrações Democráticas anteriores. É importante entender que isso não era demonização por si só ou por causa de alguma antipatia irracional em relação aos afro-americanos. Tratava-se de manter baixa a taxa de imposto sobre as sociedades e restabelecer a lucratividade do capital após uma outra crise econômica mais longa. É difícil para as empresas e seus representantes políticos aconselhar os trabalhadores comuns a fazer mais com menos. Era mais fácil culpar rainhas do bem-estar, truques de bem-estar e uma subclasse oblíqua, ainda que negra, pelo fim desses programas "desperdiçadores". Em 1973, Nixon declarou sem cerimônia o fim da "crise urbana" - o catalisador de grande parte do estado de bem-estar de Johnson. Isso criou o pretexto para estripar o Escritório de Oportunidades Econômicas, o órgão que administrava a rede de programas antipobreza criados pela Guerra contra a Pobreza.

A eventual deserção de eleitores brancos comuns do Partido Democrata para os republicanos significou que os democratas logo adotaram a estratégia da direita de minimizar as raízes estruturais da desigualdade enquanto retratavam as comunidades negras como as principais responsáveis por suas próprias dificuldades. No final dos anos 80, o Partido Democrata estava defendendo a política de ordem e lei e os duros ataques racistas aos direitos sociais. Em uma coluna de 1988 para o Post of Newark, Delaware, intitulada "Sistema de Previdência prestes a mudar", o então senador Biden escreveu: “Estamos todos muito familiarizados com as histórias de mães assistenciais dirigindo carros de luxo e levando estilos de vida que espelham os ricos e famosos”. Exageradas ou não, essas histórias estão subjacentes a uma ampla preocupação social de que o sistema de assistência social quebrou - que apenas remunera verificações de assistência social e não faz nada para ajudar os pobres a encontrar empregos produtivos. Essa afirmação não foi extraordinária; refletia amplos esforços para transformar as percepções públicas do Partido Democrata. No início dos anos 90, o presidente Bill Clinton estava prometendo "acabar com o bem-estar como o conhecemos", o que conseguiu fazer até o final da década.

Esse é o cenário histórico da hipocrisia das prioridades de gastos do governo dos EUA hoje. As denúncias bipartidárias do grande governo não se aplicam aos montantes obscenos gastos nas forças armadas ou na manutenção do sistema de justiça criminal do país. Os EUA, em todos os níveis do governo, gastam mais de 80 bilhões de dólares anualmente para operar prisões e prisões e manter liberdade condicional e liberdade condicional. O orçamento para as forças armadas dos EUA chegou a impressionantes 738 bilhões de dólares apenas este ano - mais do que os sete maiores orçamentos militares do mundo. Enquanto isso, os programas de bem-estar social - do vale-refeição ao Medicaid, habitação subsidiada e assistida e escolas públicas - são forçados a fornecer, na menor margem possível, a triagem de crises, em vez de realmente tirar as pessoas da pobreza.

Quando os críticos de Bernie Sanders zombaram de sua plataforma como apenas um monte de "coisas grátis", eles se baseavam nos últimos 40 anos de consenso bipartidário sobre benefícios e direitos de bem-estar social. Eles argumentaram, em vez disso, que a competição organizada pelo mercado garante mais opções e melhor qualidade. De fato, a surrealidade da lógica do mercado estava em exibição clara quando, em 13 de março, Donald Trump realizou uma conferência de imprensa para discutir a crise do covid-19 com executivos da Walgreens, Target, Walmart e CVS e uma série de pesquisas laboratoriais e corporações de dispositivos médicos. Não havia prestadores de serviços sociais ou educadores para discutir as necessidades imediatas e esmagadoras do público.

A crise está expondo a brutalidade de uma economia organizada em torno da produção em prol do lucro e não da necessidade humana. A lógica que o mercado livre conhece melhor pode ser vista na priorização da acessibilidade nos serviços de saúde, à medida que milhões se voltam para a ruína econômica. É visto das maneiras pelas quais os estados foram lançados em uma competição frenética entre equipamentos de proteção individual e ventiladores - o equipamento vai para o estado que puder pagar mais. Isso pode ser visto nos testes ainda criminalmente lentos, ineficientes e inconsistentes do vírus. Ele é encontrado no resgate de bilhões de dólares do setor de aviação, juntamente com testes de meios de níquel e moeda de -0 centavos para determinar quais pessoas podem ser elegíveis para receber assistência pública ridiculamente inadequada.

O argumento para retomar um estado viável de bem-estar social é não apenas atender às necessidades imediatas de dezenas de milhões de pessoas, mas também restabelecer a conectividade social, a responsabilidade coletiva e um senso de propósito comum, se não a riqueza comum. De maneira implacável e sem emoção, a covid-19 está demonstrando a vastidão de nossa conexão e reciprocidade humanas. Nossa coletividade deve ser confirmada em políticas públicas que reparem a fria infraestrutura de assistência social que ameaça desmoronar sob nosso peso social. Uma sociedade que permite que centenas de milhares de trabalhadores de saúde em casa trabalhem sem seguro de saúde, que mantém os prédios da escola abertos para que crianças negras e mestiças possam comer e ser protegidas, que permite que milionários armazenem sua riqueza em apartamentos vazios enquanto as famílias sem-teto navegam as ruas, que ameaçam despejos e inadimplência de empréstimos, enquanto centenas de milhões são obrigadas a permanecer no interior para suprimir o vírus, são desconcertantes em sua incoerência e desumanidade.

Naomi Klein escreveu sobre como a classe política usou catástrofes sociais para criar políticas que permitam a pilhagem privada. Ela chama de "capitalismo de desastre" ou " doutrina de choque”. Mas ela também escreveu que, em cada um desses momentos, também existem oportunidades para as pessoas comuns transformarem suas condições de maneira a beneficiar a humanidade. A hierarquia de classe da nossa sociedade incentivará a disseminação desse vírus, a menos que soluções dramáticas e antes impensáveis sejam imediatamente colocadas sobre a mesa. Como Sanders aconselhou, devemos pensar de maneiras sem precedentes. Isso inclui assistência médica universal, uma moratória indefinida sobre despejos e execuções hipotecárias, o cancelamento de dívidas de empréstimos a estudantes, uma renda básica universal e a reversão de todos os cortes no vale-refeição. Essas são as medidas básicas que podem estancar a crise imediata de privação - de milhões de demissões e milhões por vir.

A campanha de Sanders foi um ponto de entrada para esta discussão. Demonstrou apetite público, e até desejo, por vastos gastos e novos programas. Esses desejos não se traduziram em votos porque pareciam um empreendimento arriscado quando a consequência foram mais quatro anos de Trump. Mas a crescente crise do covid-19 está mudando o cálculo. Enquanto as autoridades federais anunciam novos pacotes de ajuda de um trilhão de dólares diariamente, nunca mais podemos voltar às discussões banais sobre "Como pagaremos por isso?" Como não podemos? Agora é um momento para refazer nossa sociedade.

Keeanga-Yamahtta Taylor é colaboradora do The New Yorker. Ela é a professora Leon Forrest de Estudos Afro-Americanos na Northwestern University e autora de vários livros, incluindo “Race for Profit: How Banks and the Real Estate Industry Undermined Black Homeownership”, que foi finalista de 2020 do Prêmio Pulitzer de história.

"Recursos preciosos" são as pessoas

Alguém questionou a ajuda de R$ 1,2 trilhão aos bancos?

Petrus Elesbão

Folha de S.Paulo

O sindicalista Petrus Elesbão, presidente do Sindilegis (Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo e do Tribunal de Contas da União) - Divulgação

O editorial publicado nesta Folha na segunda-feira (30), sob o título “Recursos Preciosos”, possivelmente levará o leitor a acreditar que o grande responsável pelo desequilíbrio das contas públicas frente à crise causada pelo novo coronavírus é a folha de pagamento de pessoal do serviço público e que, em algum momento, todos terão que arcar com sua parcela de sacrifício diante do quadro de emergência.

Muito nos preocupa essa linha de raciocínio, que, além de colocar a manutenção dos serviços públicos, voltados à população, como “não prioritários ou excessivos”, quer se sustentar em teses que já foram derrubadas —como as que supõem que o Estado está inchado e que o gasto com o pagamento de servidores está entre os maiores do mundo.

Tomando por referência países europeus, EUA e Japão, o núcleo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontou em estudo recente que, mesmo em meio ao declínio das políticas do estado de bem-estar social praticadas nas décadas anteriores, o Estado brasileiro tributa e emprega menos do que a média internacional: em 2015, a carga tributária bruta no Brasil, nos três níveis de governo, chegou a 35,6% do PIB, contra 42,4% da média da OCDE; enquanto isso, os empregados no setor público brasileiro, novamente nos três níveis da Federação, somaram 12,1% da população ocupada, ante uma média de 21,3% na OCDE.

Quando se fala de gastos da União com servidores, chega-se à conclusão de que o gasto recente, medido em proporção do PIB, está próximo da média histórica sem apresentar tendência alguma a explosão ou descontrole.

Em 2018, as despesas com pessoal e encargos na União somaram 4,4% do PIB, o mesmo percentual de duas décadas atrás e menor do que a cifra média alcançada nos anos de 2000 a 2009. O percentual da folha em relação ao PIB caiu para 3,8% em 2014, voltando a subir no período recente em razão de: a) fraco desempenho do PIB entre 2015 e 2018; e b) recomposição parcial de remunerações entre 2016 e 2019. E, mesmo depois de 2014, já em um cenário de estagnação econômica e perda de receitas, não houve explosão de gastos com ativos relativamente ao PIB ou à receita corrente líquida.

A categoria não se exime de dar sua cota de sacrifício, até porque servir à sociedade é seu motivo de ser, mas teme ser transformada em bode expiatório numa situação tão sensível quanto esta, com propostas que fragilizam o serviço público, amplificam a retirada de direitos dos trabalhadores e diminuem o fôlego da própria economia. É crucial lembrar que os trabalhadores, tanto do serviço público quanto do privado, são consumidores e que as empresas precisarão vender seus serviços e produtos.

Somos favoráveis à manutenção de salários de todos os trabalhadores. Tão importante quanto injetar dinheiro público ou conseguir crédito barato para salvar empresas, por exemplo, é proteger a renda das pessoas, consumidores em última instância, para evitar colapso econômico e convulsão social. Em tempo: alguém questionou a ajuda de R$ 1,2 trilhão aos bancos? Realmente esse montante era necessário?

Sobre o autor

Presidente do Sindilegis (Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo e do Tribunal de Contas da União)

Hospitais espanhóis sofreram morte por mil cortes

A requisição de hospitais privados pela Espanha é um bom exemplo de mobilização do governo para lidar com o surto de COVID-19. No entanto, as enfermarias sobrecarregadas do país também mostram como as políticas neoliberais deterioraram os serviços de saúde pública - privando hospitais de recursos enquanto os desviam para alternativas pagas.

Brais Fernandez


A bandeira de Madri, a bandeira espanhola e a bandeira européia voam a meio mastro em frente ao Palácio de Correos, em homenagem àqueles que morreram de COVID-19 em 30 de março de 2020 em Madri, Espanha. Carlos Alvarez / Getty.

Tradução / A recente estatização de hospitais privados para oferecer leitos a toda população é um bom exemplo da mobilização do governo progressista do PSOE-UP para reverter os impactos da pandemia. As enfermarias sobrecarregadas de países como a Espanha demonstram como as políticas neoliberais dilapidaram a saúde publica durante as últimas décadas.

A Espanha tem o terceiro maior número de casos confirmados do coronavírus no mundo – os números crescem depressa. Os índices são extremamente voláteis, e no momento enfrentamos um aumento exponencial tanto em infectados quanto em mortes, num total de 85.195 e 7.340 respectivamente, em boletim de 29 de março. Ainda é muito cedo para saber se as medias adotadas pela coalizão governamental do Partido Socialista – Unidas Podemos (PSOE-UP) serão capazes de deter o curso de contágios. Porém, a crise na saúde está rapidamente se tornando uma crise multifacetada na sociedade espanhola.

Ao contrário dos Estados Unidos, a Espanha tem, pelo menos, um sistema público de saúde. A Constituição aprovada em 1978 durante a transição democrática o consagrou, representando uma vitória para a classe trabalhadora espanhola, fortalecida ainda por uma emenda, em 1989, que garantiu o direito “universal” ao tratamento médico. A identificação popular com esses valores tem se consolidado no decorrer da crise atual. Se não fosse pelo sistema público de saúde, milhares de famílias teriam de escolher entre perder seus entes queridos ou o endividamento e a pobreza. Em uma situação de múltiplos contágios, a escolha deles seria limitada a quais contas pagar no mês. Valorizar adequadamente o sistema de saúde público nos permite entender o dano que políticas neoliberais têm causado a ele.

Em anos recentes, muitos serviços de saúde foram privatizados, não apenas pelo partido de centro-direita Partido Popular (PP), mas também pelo de centro-esquerda PSOE e elementos mais conservadores de grupos pro-independência na Catalunha. Embora a resistência por parte dos trabalhadores da saúde e pacientes tenha contido o progresso da privatização em certos níveis, o PP em Madri – cidade que hoje é o centro do surto do COVID-19 – tem sido especialmente agressivo na transferência de serviços e recursos para companhias privadas. Essas mudanças foram, como em todo discurso neoliberal, supostamente justificadas em nome das “melhorias” e aumento de eficiência.

O resultado é um sistema de saúde público em colapso sob o peso da crise. O sistema está, ao mesmo tempo, falido financeiramente e dependente da sobrecarga de trabalho das equipes de saúde. Imagens de enfermeiras trabalhando sem proteção adequada, ou notícias de que cadáveres de idosos vítimas do coronavírus foram abandonados em casas de repouso privadas, com pacientes vivos ainda nelas, abalaram a opinião pública. A crise do coronavírus revela a crescente distância entre o discurso dos políticos sobre “o melhor sistema de saúde do mundo” e uma realidade imposta a nós pela devastação neoliberal.

A resposta do governo

A escalada da crise pegou a recém-formada coalizão progressista PSOE-UP de surpresa. Pior, devemos agora acrescentar uma iminente crise econômica ao cenário, o que todos os analistas consideram inevitável. A economia da Espanha depende fortemente do turismo e sofre de uma taxa de desemprego estruturalmente alta. Depois de anos de fraco crescimento, baseado fundamentalmente na supressão de salários e no crescimento do mercado de trabalho precário, o desemprego está atualmente na casa dos 14% e a expectativa é que passe dos 20% nas próximas semanas. Se a crise de saúde continuar, pode haver terríveis consequências, incluindo a falência/o fechamento de milhares de pequenas empresas e uma paralisia econômica sem precedente.

Apesar da aparência externa de unidade, o governo está dividido acerca das rotas que deve seguir. O setor mais ortodoxo, liderado pela vice premier Nadia Calviño, defende com firmeza uma política de limitação de gasto do Estado frente a crise o tanto quanto for possível. Treinada na cúpula da burocracia da União Europeia, Calviño se mostra como garantidor de que os piores pesadelos do capital financeiro sobre os déficits públicos não vão se realizar. O Unidas Podemos, com menos peso no ramo executivo em comparação ao PSOE, propôs uma série de medidas sociais paliativas para prevenir um desastre social; entretanto, tem alcançado poucos resultados. Aqui, os membros de esquerda do governo precisam aprovar leis que atendam às necessidades básicas das pessoas – por exemplo, a garantia do pagamento de alugueis e hipotecas, e o fornecimento de uma renda mínima para aqueles setores mais atingidos pela crise.

Porém, a crise pode se aprofundar ainda mais. A realidade é que a Espanha é uma economia periférica, extremamente dependente de fluxos de capital internacional. No contexto atual, no qual a crise de saúde se costura com a crise econômica, qualquer governo seria forçado a tomar uma série de medidas para garantir a mínima sobrevivência de sua população. O dilema fundamental que o governo enfrenta é como se dirigir a esse problema através de formas de redistribuição de renda, ou seja, aumentando a contribuição de impostos daqueles que tem mais capacidade de pagar. Até o momento, o governo do PSOE-UP tem descartado ir por esse caminho: não aumentou os impostos de grandes empresas ou grandes fortunas para cobrir novos gastos, nem exigiu que os bancos devolvessem os 65 milhões de euros que o tesouro público gastou para afiançá-los durante a última crise.

A política trabalhista do governo tem sido, ao contrário, dirigida para mitigar o crescimento do desemprego através do amortecimento de demissões, acionando um mecanismo conhecido como MTRE (Medida Regulatória Temporária de Emprego). A MRTE significa que companhias suspendem seus empregados por um período específico. Durante esse período, o Seguro Social é responsável pelo pagamento dos salários dos trabalhadores e pela contribuição dos empregadores ao Estado. Essa medida pode ser útil para pequenos negócios e cooperativas em apuros, mas é escandalosamente lucrativa para empresas maiores. Ela socializa os custos salariais dos empregadores sem aumentar a contribuição deles ao fundo público – forçando o Estado, em consequência, a contar com fundos que eram destinados a serviços sociais ou a tomar empréstimos no mercado internacional.

Austeridade à vista

Alógica dessa política econômica é, sem dúvidas, um prelúdio para um novo período de austeridade. A extensão da crise da saúde permanece incalculável – o seu ritmo é o dos países em colapso. A hegemonia desse momento biopolítico induz novos medos e gera novas tensões em resposta à crise, onde exigências cooperativas coexistem com o medo e o anseio por ordem.

A população tem reagido com solidariedade nas vizinhanças e cidades, forjando exemplos de apoio mútuo. Toda noite, às 20h, milhões de pessoas vão as suas sacadas para aplaudir os trabalhadores do sistema público de saúde, ainda que se encontrem impossibilitados de sair de casa. Contudo, medidas de isolamento também criam poderosas desigualdades.

Até o momento, o governo vem se negando a declarar a paralisação de setores produtivos não essenciais, causando a exposição de milhares de trabalhadores à proliferação do vírus. E, ao lado do reconhecimento da importância da saúde pública, o Estado de emergência também começou a fortalecer o papel das políticas e dos militares. Os primeiros abusos de poder começam a aparecer nas ruas.

Encarando tais dificuldades, os movimentos sociais e a esquerda anti-capitalista tem explorado respostas à crise. Organização comunitária tem sido decisiva na articulação de respostas ao nível territorial, por exemplo, ao conferir a situação dos vizinhos e mantendo comunicação com profissionais médicos. Mas é óbvio que em uma sociedade ocidental capitalista, o peso do Estado permanece enorme. Isso é o que o marxista italiano Antonio Gramsci chamou de relação “integral” do Estado e sociedade – em tal crise, o Estado não desaparece (mesmo que o seu aparato de bem-estar recue), mas, ao contrário, rearticula as relações sociais ao redor dele.

Nesse sentido, a prioridade é evitar o colapso social catastrófico que ameaça pulverizar as já precárias condições sociais da classe trabalhadora, incluindo os direitos e garantias que são efetivados pelo Estado. Nesse sentido, centenas de organizações lançaram em conjunto a campanha Plano de Choque Social, com o objetivo de forçar governantes a adotar uma série de medidas de emergência. Essas medidas incluem a suspensão do pagamento de aluguel e hipoteca, aumento da receita do Estado através da taxação progressiva dos mais ricos, ampliação dos serviços públicos e garantia de uma renda básica mínima para toda a população.

É difícil saber quanto tempo essa crise vai durar. Mas, a crise econômica global é iminente – com repercussões provavelmente brutais para a já cambaleante economia espanhola. O governo progressista está dividido entre prestar lealdade ao capital financeiro ou às demandas sociais urgentes. Enquanto isso, a direita neo-fascista espreita, concentrada no partido Vox. Não tendo sido capaz de assumir um papel de liderança até o momento – e recentemente enfraquecida por escândalos de corrupção que envolvem a monarquia -, a extrema-direita tentará se munir com base nos medos da população e na “estatização” da sociedade produzida pela nova autoridade das forças de segurança.

Em meio a suspensão em larga escala da vida social, nos encontramos em uma situação sem precedentes. Quando chegar o dia em que possamos sair de casa, vamos nos encontrar vivendo com mais pobreza, mais desemprego, mais dívidas, mais cortes sociais e com os ricos ainda mais ricos. O novo período após a crise do coronavírus gera muitas dúvidas e incertezas. É hora de nos prepararmos para enfrentá-las.

Sobre o autor

Brais Fernandez é membro editorial da Viento Sur e um ativista no Anticapitalistas na Espanha.

27 de março de 2020

Essa crise expôs os absurdos do neoliberalismo. Isso não significa que irá destruí-lo

O impacto do coronavírus abalou as bolsas de valores do mundo e impôs a necessidade de significativos socorros estatais. Mas as medidas para lidar com a crise correm o risco de estimular um capitalismo mais controlador e autoritário – aquele que protege os interesses corporativos, enquanto transfere os custos para os demais.

Costas Lapavitsas

Jacobin

As negociações em Wall Street foram interrompidas imediatamente após o sino de abertura com as ações registrando perdas acentuadas após movimentos de emergência do FED para tentar evitar uma recessão devido à pandemia de coronavírus. Johannes Eisele / Getty Images.

O estado de emergência gerado pelo COVID-19 na saúde pública se transfigurou rapidamente em uma crise no cerne da economia mundial, que também ameaça países em desenvolvimento na periferia. Isto alterou o equilíbrio entre Estado e mercado, expondo, mais uma vez, as lacunas da ideologia neoliberal. A crise econômica desnuda completamente o capitalismo contemporâneo – e provavelmente deve se revelar ainda mais impactante do que o abalo provocado na saúde pública.

A crise do COVID-19 tem raízes mais profundas, que se encontram no funcionamento patológico do capitalismo financeirizado e globalizado na última década. A Grande Crise de 2007–9 pôs fim à “era de ouro” das finanças dos anos 90-2000, e a década seguinte foi marcada pelo fraco crescimento da economia mundial. A lucratividade era insuficiente, o crescimento da produtividade, baixo e os investimentos não mostravam nenhum dinamismo. As finanças também estavam com problemas, expressos na menor rentabilidade e na inexistência do dinamismo extraordinário do período anterior. Se a crise historicamente sem precedentes de 2007–9 marcou o auge da financeirização, a nova crise do coronavírus cristaliza sua deterioração.

Evidentemente, o combustível imediato da crise foi as ações dos Estados-nações diante do temor criado pela epidemia. Tendo inicialmente ignorado a emergência médica, vários governos passaram a bloquear desesperadamente países inteiros e áreas geográficas, restringindo viagens, fechando escolas e universidades etc. Isto afetou fortemente as já enfraquecidas economias centrais ao induzir o colapso generalizado da demanda, a interrupção das cadeias de abastecimento, a queda na produção, milhões de demissões de trabalhadores e perda de receita corporativa. Tudo isto impulsionou o desmoronamento sem precedentes das principais bolsas de valores e levou os mercados monetários ao desespero.

A situação é semelhante a um suposto retorno da Peste Negra do século XIV, no qual as sociedades do século XXI reagissem com uma mistura semelhante de pânico cego e isolamento das comunidades. Naquela oportunidade, quando os Estados eram pobres e as monarquias feudais atrasadas, a praga eliminou um terço da população europeia. O coronavírus, por sua vez, parece ter baixa taxa de mortalidade e, diferentemente do passado, tem atingido Estados capitalistas desenvolvidos e tecnologicamente avançados. Já existe intenso debate entre epidemiologistas sobre a adequação e sustentabilidade do bloqueio generalizado ou se os Estados deveriam ter se concentrado em testes intensivos da população.

Não cabe aos economistas políticos avaliar políticas epidemiológicas. Mas há um certo consenso de que as reações de vários Estados e o consequente colapso da atividade econômica sejam parte da natureza fundamentalmente falha do capitalismo financeirizado neoliberal. Um sistema econômico baseado na competição e na busca pura por lucro – ambos garantidos por um Estado poderoso – mostrou-se incapaz de lidar com calma e eficácia diante de um abalo de saúde pública de gravidade desconhecida.

Vários países desenvolvidos careciam de infraestrutura básica de saúde para tratar aqueles que ficaram gravemente doentes, além de terem pouco equipamento para testar a população em larga escala e proteger os grupos com maior probabilidade de contrair a doença. Ademais, é provável que o bloqueio e o isolamento generalizado de grandes sectores da sociedade tenham implicações muito graves para os trabalhadores assalariados, bem como para as camadas mais pobres, fracas e marginalizadas. As repercussões mentais e psicológicas também serão devastadoras. A organização social do capitalismo contemporâneo mostrou-se disfuncional até do ponto de vista de sua engenharia estrutural.

Igualmente impressionantes foram as ações dos Estados poderosos depois que a magnitude do colapso econômico se tornou clara. Em março, os bancos centrais dos Estados Unidos, União Europeia e Japão realizaram massivas injeções de liquidez e diminuíram as taxas de juros a zero, tentando estabilizar as bolsas de valores e mitigar a falta de fluidez nos negócios. O Fed (Banco Central dos Estados Unidos), por exemplo, anunciou que compraria volumes ilimitados de títulos do governo e até mesmo títulos corporativos privados recém-emitidos. Enquanto isso, os governos dos Estados Unidos, da União Europeia e de outros locais planejaram enormes expansões fiscais, sob a forma de empréstimos e garantias de crédito para empresas, subsídios de renda para trabalhadores afetados, prorrogações fiscais, aumentos ou subsídios de seguridade social, “repaymentholidays” de dívidas etc.

De maneira extraordinária, o governo Trump anunciou planos de fornecer US$ 1.200 por adulto ou US$2.400 por casal, com pagamentos adicionais para crianças, começando pelas famílias mais pobres. Este desembolso fazia parte de um pacote que poderia exceder US$ 2 trilhões – aproximadamente 10% do PIB dos EUA –, e fornecia ainda $500 bilhões em empréstimos a empresas atingidas, US$ 150 bilhões a hospitais/profissionais de saúde e US$ 370 bilhões a pequenas e médias empresas. De modo igualmente inusitado, o governo conservador britânico declarou sua intenção de se tornar empregador em última instância, pagando até 80% dos salários dos trabalhadores, caso as empresas os mantivessem na folha de pagamento. Estes pagamentos seriam no valor de até £ 2.500 por mês e, portanto, acima da renda média. Não contente com isso, o governo britânico também nacionalizou efetivamente as ferrovias por seis meses e houve rumores sobre a nacionalização das companhias aéreas.

Alguns dias antes, até acadêmicos de esquerda considerariam tais medidas radicais. A ideologia neoliberal das últimas quatro décadas foi rapidamente afastada, o Estado emergiu como regulador da economia e passou a concentrar enorme poder. Não foi difícil para muitos da esquerda acolherem as novas ações estatais, tomando-as como sinal de “retorno do keynesianismo” e morte do neoliberalismo. Estas conclusões são, porém, precipitadas.

Por um lado, o Estado-nação sempre esteve no coração do capitalismo neoliberal, garantindo o domínio de classe do bloco corporativo e financeiro reinante por meio de intervenções seletivas em momentos críticos. Além disso, as medidas contra o Covid-19 foram acompanhadas por políticas fortemente autoritárias, trancando massivamente as pessoas em suas casas e bloqueando enormes metrópoles. O Estado também demonstrou seu vasto poder de fiscalizar a sociedade por meio da coleta de informações através de big data. Por exemplo, o governo de direita de Israel aprovou o rastreamento de telefones celulares pela agência policial de inteligência com o fim de enviar mensagens a pessoas que, sem saber, entraram em contato com pacientes contaminados por coronavírus. O recado era claro: “não apenas sabemos onde está, mas sabemos melhor do que você quem você conheceu”.

O autoritarismo está totalmente alinhado com a ideologia neoliberal dominante das últimas quatro décadas. A orientação do Estado está adequada à fragmentação da sociedade, visto que as pessoas estão isoladas em extremo estresse, assumindo a “responsabilidade individual” por manter o distanciamento social. Ao mesmo tempo, um grande número de pessoas ainda precisa trabalhar e usar transporte público, enquanto direitos trabalhistas são demolidos, demissões avançam independentemente do devido processo legal e o trabalho remoto destrói todos os limites das jornadas laborativas aceitas.

Ainda é incerta a direção que o capitalismo global vai tomar diante do choque do coronavírus – ou mesmo quando ainda suportaremos as longas consequências da Grande Crise de 2007-9. O poder colossal do Estado e sua habilidade de intervir simultaneamente na economia e na sociedade poderiam resultar, por exemplo, em uma forma mais autoritária de capitalismo controlado, na qual os interesses da elite corporativa e financeira deverão ser proeminentes. Esta possibilidade exige que os socialistas analisem com cuidado e criticamente as ações adotadas pelos Estados para lidar com a crise do coronavírus.

A crise até aqui

O primeiro passo para esta análise é fazer um resumo do curso da crise até o momento. Crises são eventos históricos concretos e refletem o desenvolvimento institucional do capitalismo. Os principais passos da crise do coronavírus podem ser extraídos de publicações (algumas rapidamente desatualizadas) de organizações multilaterais, imprensa etc. Deste modo:


  1.  O Covid-19 surgiu na China no final de 2019, mas a resposta inicial do Estado chinês foi lenta, provavelmente pela falta de conhecimento sobre a gravidade do vírus. Por outro lado, outros Estados também demoraram em reagir mesmo após a experiência da erupção completa da pandemia na China. Até início de Março de 2020, por exemplo, o número de casos diários confirmados no Reino Unido foi abaixo de dois dígitos. Não obstante o conhecimento da tragédia chinesa, o governo do Reino Unido não fez quase nada.
  2. O Estado chinês bloqueou grandes porções de seu território e outros países também criaram meios de isolamento, restringindo o movimento de milhares de pessoas. A demanda por turismo, viagens aéreas, hospedagens, restaurantes e bares desmoronou por completo. Igualmente afetada foi a demanda por comida, roupas, utensílios domésticos etc, ainda que seu impacto ainda não esteja claro. A incerteza gerada pela retração do consumo também atingiu planos de investimentos, mas, de novo, é difícil avaliar o impacto neste estágio inicial.
  3. O bloqueio e o movimento restrito de trabalhadores interromperam a cadeia de produção e distribuição de mercadorias, inicialmente na China, que fornecia grande volume de insumos para todo o mundo, e depois nas outras partes da Ásia, Europa e Estados Unidos. Ao lado da queda da demanda, tal interrupção levou à redução da produção.
  4. Todos os fatores citados – redução da produção, queda da demanda e crescente incerteza – destruíram as receitas das empresas. Os empregos de milhões estão ameaçados, sobretudo no setor de serviços. Em março, muitos já tinham sido demitidos. O desemprego piorou o consumo e prejudicou ainda mais a produção. Com a diminuição das receitas, as empresas tornaram-se menos capazes de pagar suas dívidas, o crédito comercial desapareceu e, em meados de março, a liquidez (ou seja, o dinheiro vivo) era escassa. A crise adquiriu uma grave dimensão creditícia, o que agravou ainda mais seu efeito na produção e distribuição.
  5. Uma prévia da devastação econômica potencial pode ser obtida a partir do caso chinês. Segundo estatísticas oficiais, o valor agregado na produção em Janeiro e Fevereiro caiu em 13,5% comparado com o mesmo período em 2019 (a produção caiu em 15,7%). Além disso, investimentos, exportações e importações despencaram, respectivamente, em 24,5%, 15,9% e 2,4%. A contração Chinesa por si só seria suficiente para provocar um grave impacto na economia mundial. Como muitos outros países centrais estão em lockdown, as consequências poderão ser enormes, particularmente em setores como companhias aéreas e turismo.
  6. As repercussões sobre os trabalhadores serão devastadoras. Especialmente sensíveis são os setores enfraquecidos por anos de políticas neoliberais, como, por exemplo, trabalhadores com contratos flexíveis, informais e autônomos. Igualmente vulneráveis são os trabalhadores altamente endividados (ou sem poupança) que têm acesso limitado a benefícios e serviços públicos. As mulheres provavelmente serão mais afetadas porque estão super-representadas em tais grupos, mas também devido ao aumento do trabalho de cuidado decorrente dos problemas de saúde na família, permanência de crianças no lar etc.
  7. As condições globais pioraram ainda mais à medida que a crise desencadeou um colapso gigantesco dos mercados de ações. Durante anos, as principais bolsas de valores em todo o mundo estiveram bastante inflacionadas e o risco de uma crise grave já se fazia sentir em 2018. A erupção do coronavírus levou a uma queda espetacular de mais de um terço, de fevereiro a março. O resultado foi o dramático encolhimento da liquidez que provocou uma crise no mercado monetário nos Estados Unidos, o centro das finanças mundiais, em meados de março. O choque se transformou em uma crise capitalista completa.
  8. À medida que o medo tomou conta dos mercados mundiais, o fluxo de capital através das fronteiras, especialmente do centro para a periferia da economia mundial, também foi afetado. As evidências existentes não permitem tirar conclusões definitivas, mas existe a possibilidade de uma “parada subita” que tornaria os países em desenvolvimento incapazes de pagar as dívidas de importações e serviços, aumentando, deste modo, a perspectiva de crises cambiais. Em meio à turbulência, uma guerra de preços entre os produtores de petróleo fez despencar o preço do barril de petróleo (Brent) em 50% entre o final de fevereiro e o final de março. Esta queda gigantesca ameaçou a viabilidade de um conjunto de produtores em todo o mundo, inclusive na indústria de faturamento hidráulico dos EUA.


Em termos analíticos, esta sucessão de eventos, que constituem a crise atual, só faz sentido se pensados à luz dos desdobramentos da Grande Recessão de 2007-09. Na sequência do colapso da Lehman Brothers, o dinamismo do capitalismo financeiro esvaiu-se nos países centrais, embora persistisse de algum maneira nos países em desenvolvimento. Nossas estimativas, baseadas em dados do Banco Mundial, sugerem que as taxas médias de crescimento em 2010-19 foram as mais baixas nos últimos quarenta anos: 1,4% no Japão, 1,8% na União Europeia, 2,5% nos Estados Unidos e 8,5% na China (com queda significativa no crescimento na segunda metade da década). Essas taxas apontam para o esgotamento das forças motrizes da acumulação capitalista, particularmente durante o último decênio. Para se ter uma ideia das raízes mais profundas da crise, basta considerar aspectos-chaves do desempenho da economia dos EUA – o filão da globalização e financeirização.

Acumulação fraca

Amaneira mais simples de resumir o desempenho estrutural do capitalismo dos EUA é considerar a taxa de lucro das empresas não financeiras, como mostra a Figura 1:

Fig. 1 Taxa de lucro de empresas não financeiras, EUA, 1980–2018
Fonte: BEA, NIPA data.

A trajetória da taxa de lucro foi amplamente cíclica e alinhada com as flutuações gerais da economia dos Estados Unidos. Após a Grande Crise de 2007–9, a taxa de lucro se recuperou fracamente, atingiu seu pico em 2014 e depois diminuiu. Claramente, o choque do coronavírus atingiu a economia dos EUA em um momento em que ela já se encontrava fraca e a acumulação mostrava sinais de exaustão. Tal fraqueza estrutural também pode ser revelada por uma variedade de outros dados. Depois de 2007–9, a produtividade do trabalho cresceu apenas 1% ao ano; o investimento permaneceu estável e baixo, em torno de 18% do PIB; e o estoque real de capital encolheu.

Uma comparação com a China, a segunda maior economia do mundo, pode ser instrutiva. Após a crise de 2007–9, sua taxa média de lucro estimada aumentou por vários anos, mas começou a declinar em 2014. Embora o desempenho chinês permaneça substancialmente mais forte do que o norte-americano, a fraqueza estrutural de seu padrão de acumulação também se dá nos demais indicadores. Após 2007–9, a produtividade do trabalho aumentou em torno de 7% a 8% ao ano, o investimento ficou praticamente estável em 45% do PIB e a utilização da capacidade industrial caiu rapidamente. O coronavírus atingiu a economia chinesa em um de seus piores momentos desde o início de sua transição capitalista.

A comparação com a União Europeia, cuja economia como bloco é maior que a da China, mas menor que a dos Estados Unidos, acrescenta mais elementos para a compreensão do quadro geral da crise do Covid-19. Depois de 2007–9, seu crescimento de produtividade foi pior do que o norte-americano, sobretudo na zona da União Econômica e Monetária (UEM), na qual os principais países giraram abaixo de 1% ao ano. A Polônia, que não está na UEM, se destacou em produtividade com crescimento acima de 3%. A produção industrial aumentou substancialmente na Alemanha, apesar do fraco crescimento. Isto, todavia, foi possível em razão da vantagem competitiva graças ao longo período de supressão de salários. Apesar disso, em 2019 sua produção caiu, também revelando a fraqueza estrutural alemã.

Oprimida pela estrutura de austeridade do euro, a União Europeia ficou estagnada durante a última década. Neste período, um novo complexo industrial começou a surgir na Europa Oriental (e.g. Polônia) intimamente associado à indústria alemã. A participação do trabalho no PIB continuou todavia estacionada. Salvo na Alemanha, onde o crescimento dos salários foi significativo pela primeira vez em décadas, o capital defendeu fortemente seus interesses. Mas sem crescimento apoiado em produtividade, a competitividade alemã caiu. Em resumo, assim como nos Estados Unidos e China, o coronavírus também atingiu a União Europeia em um momento de grande debilidade econômica.

Como mostra os três casos acima indicados, as raízes da crise econômica causada pelo coronavírus encontram-se no esgotamento do padrão da acumulação capitalista do período anterior. Por óbvio que o impacto da crise será provavelmente muito diferente em cada uma destas economias conforme suas diferenças estruturais. A China se tornou a fábrica do mundo com o valor agregado na indústria de transformação respondendo por aproximadamente 30% do PIB. Para os Estados Unidos, este valor corresponde a pouco mais de 10%. O valor agregado nos serviços aumentou substancialmente na China, à medida que a economia se tornou mais madura, embora represente apenas 50% do PIB. Nos Estados Unidos, ele está acima de 75%. Como o lockdown recai sobretudo nos serviços, é provável que os Estados Unidos sejam mais afetados primariamente do que a China.

O mesmo vale para a União Europeia, cuja economia é fortemente baseada em serviços, particularmente em países da periferia do sul, como Espanha, Portugal e Grécia, que possuem indústria fraca e dependem do turismo. O choque será provavelmente ainda maior na Itália, que se encontra estagnada há duas décadas e, desde 2010, nunca esteve tão longe de pagar sua dívida. As lideranças da UE têm, portanto, razão em achar que a crise do coronavírus pode ser uma ameaça à sua própria existência. Esta é a razão da maciça intervenção do Banco Central Europeu (BCE), mas também das ações de vários Estados-Nações, cujas despesas têm praticamente aberto a jaula de aço da austeridade.

O setor financeiro

O enfraquecimento do capitalismo financeirizado nos Estados Unidos pode ser mais bem analisado a partir da taxa de lucro dos bancos comerciais dos EUA. Ver Fig. 2:

Fig. 2 Taxa de lucro dos bancos comerciais (retorno sobre o patrimônio), EUA, 1980–2018.
Fonte: FDIC data.

A lucratividade dos bancos comerciais dos EUA – o pivô do sistema financeiro – alcançou suas máximas históricas no período que compreende do início dos anos 90 até pouco antes da crise de 2007–9. Trata-se da “era de ouro” da financeirização dos EUA. Dois fatores explicam os lucros excepcionais dos bancos: primeiro, sua capacidade de garantir um “spread” bancário significativo entre a taxa de juros dos empréstimos e a taxa de juros dos depósitos; e, segundo, sua capacidade de obter grandes tarifas e comissões através da mediação de transações financeiras entre empresas, famílias e outras organizações financeiras. Após 2007–9, a rentabilidade do banco nunca atingiu os mesmos valores. De um lado, o Fed baixou as taxas de juros para quase zero, comprimindo os spreads bancários; de outro, as receitas advindas de tarifas e comissões caíram à medida que o volume de transações financeiras diminuiu. A rentabilidade dos bancos teve uma breve alta em 2018, mas isso se deveu principalmente ao Fed, que aumentou suavemente as taxas de juros em 2017–8.

A década após 2007–9 pode ser mais bem analisada, considerando a trajetória da dívida nos Estados Unidos, conforme a Fig. 3. Nela podemos observar, proporcionalmente ao PIB, as i) dívidas das empresas não financeiras, ii) dívidas das famílias, iii) dívidas do governo e iv) dívidas das empresas financeiras domésticas:

Fig. 3 Dívida setorial dos EUA em relação ao PIB.
Fonte: St Louis FRED data.

A dívida privada dos Estados Unidos caiu após 2007–9, ao contrário da tão anunciada “explosão da dívida”. A dívida hipotecária diminuiu substancialmente por causa, sobretudo, do profundo impacto da Grande Crise nas famílias. A dívida entre as empresas financeiras domésticas também baixou, deixando menos margem para os bancos lucrarem com tarifas e comissões. Por outro lado, a dívida das empresas não financeiras começou a aumentar em 2015 e eventualmente excedeu seu pico anterior pré-Grande Crise. O aumento da dívida corporativa facilitou a sobrevivência de uma multidão de empresas frágeis, que possuem baixa rentabilidade e são mais vulneráveis ​​a choques. Estima-se que essas “empresas zumbis” em 2017 representavam 12% do total do setor crporativo nas quatorze economias mais desenvolvidas. Está em aberto, todavia, como a crise do coronavírus afetará a capacidade de pagamento dessas empresas, tendo em mente que taxas de juros zero reduzem os custos de serviço das dívidas.

Neste período, houve um aumento real de fato na dívida do Estado, o que deixou o governo dos Estados Unidos mais endividado do que em qualquer outro momento desde a Segunda Guerra Mundial. A financeirização após a Grande Crise tornou-se, assim, na medida em que demonstrou algum dinamismo, um processo de explosão do endividamento público, que, por sua vez, também estava conectado ao endividamento das empresas em mercados financeiros abertos – incluindo o mercado de ações.

O papel do Estado e a explosão da bolha de ações

Após a Grande Crise, o governo dos Estados Unidos aproveitou as oportunidades criadas e usou seu poder para defender o capitalismo financeirizado e globalizado. Gerou um enorme déficit fiscal ao longo da década – especialmente em 2009–2012 e, depois, em 2018–19 –, que permitiu o crescimento do PIB e aumentou enormemente sua dívida. O aumento da dívida pública tornou possível para o Fed sustentar um tremendo surto de criação de dinheiro, mantendo as taxas de juros próximas de zero. A oferta de moeda (M3) aumentou de 50% do PIB em 2007 para 70% em 2017–19.

Taxas de juros baixas e liquidez abundante permitiram às empresas não financeiras tomar empréstimos baratos em mercados abertos e participar no jogo clássico da financeirização de “recompra de ações”, garantindo altos lucros aos acionistas e elevando os preços dos títulos. Com dinheiro facilmente disponível, outros operadores do mercado de ações, como, por exemplo, Exchange-Traded Funds (ETFs) e os Fundos multimercado, também expandiram suas atividades. O resultado foi um aumento contínuo e gradual do mercado de ações, em que o índice Standard and Poor’s (S&P) subiu de 735 em fevereiro de 2009 para 3.337 em fevereiro de 2020. Em suma, após 2007–9, a intervenção governamental feita pelos Estados Unidos para sustentar o capitalismo financeiro levou ao crescimento de uma bolha que não tinha qualquer relação com a fraqueza estrutural da lucratividade, as taxas de crescimento, o crescimento da produtividade etc.

Este quadro é essencial para compreender o choque financeiro causado pelo coronavírus. Já aparente em 2017-18, a bolha não poderia perdurar muito tempo. Nesse sentido, o Fed começou a aumentar as taxas de juros lentamente acima de zero com o intuito de recuperar condições mais normais nos mercados financeiros. Em dezembro de 2018, o índice S&P despencou brevemente para 2.416, mas o Fed aumentou rapidamente as taxas de juros e a bolha foi retomada. Por razões já explicadas, o coronavírus desferiu um golpe de natureza muito diferente e o mercado de ações entrou em estrondoso colapso, caindo para 2.237 em 23 de março de 2020. O anúncio subsequente do governo Trump de uma enorme intervenção fiscal levou a S&P a se recuperar, embora a volatilidade permaneça muito alta.

O colapso das bolsas revelou a existência de outras operações especulativas que pioraram drasticamente as condições nos mercados financeiros. O desmoronamento dos preços pressionou os ETFs e os Fundos de Investimento, forçando-os a buscar dinheiro vivo para cumprir suas obrigações. Em seguida, constatou-se que foram criadas cadeias especulativas pelas quais esses Fundos tomavam empréstimos no mercado de recompra (o principal mercado de liquidez entre instituições financeiras) com a venda de Títulos do Tesouro dos EUA e depois usavam o dinheiro para comprar Títulos do Tesouro nos mercados futuros. Lucrava-se, assim, com as pequenas discrepâncias de preço. As somas eram enormes. À medida que os preços das ações entraram em colapso, os Fundos venderam Títulos do Tesouro de forma cada vez mais desesperada e, na verdade, elevaram as taxas de juros.

Note-se que o Fed foi confrontado com uma situação bizarra: o crescimento frenético da escassez de liquidez e o aumento das taxas de juros nos mercados monetários, mesmo que a economia norte-americana tenha sido inundada com dólares por mais de uma década. O absurdo capitalista raramente foi demonstrado de maneira tão vívida. O Fed precisou intervir com urgência e prometeu comprar volumes ilimitados de títulos públicos e até de títulos privados, aumentando ainda mais a oferta de dinheiro. Sua intervenção maciça foi acompanhada pelo gigantesco pacote fiscal do governo dos Estados Unidos. Mais uma vez, o Estado norte-americano colocou vigas sob o colapso do capitalismo financeirizado.

Neste contexto, é importante observar a diferença entre os Estados Unidos e a União Europeia. A Comissão Europeia permitiu tacitamente aos Estados-membros ignorar o Pacto de Estabilidade e Crescimento, enquanto o BCE abandonou suas regras de compra de títulos em um esforço de evitar um calote italiano, o que catalisaria imediatamente uma nova crise do euro. Estas ações foram importantes, pois permitiram aos países da União Europeia operar sem obstáculos desnecessários. Mas não houve nenhuma intervenção fiscal coordenada por instituições europeias que possa ser remotamente comparável aos EUA ou mesmo ao Reino Unido.

De fato, a crise forçou a União Europeia a se envolver em políticas econômicas que se desviam de sua cartilha. Até agora, os países europeus têm tomado decisões político-econômicas com pouquíssima cooperação ou mútuo condicionamento. O velho problema de conflitos e hierarquias entre os Estados-membros não desapareceu. Por isso, as propostas de emissão de “coronabonds” da zona euro para financiar despesas fiscais estão enfrentando forte resistência. Se o dinheiro deve ser disponibilizado aos Estados afetados, pode ser através do Mecanismo Europeu de Estabilidade, com várias condições associadas. Simplesmente não há comparação com a resposta do Estado norte-americano.

O que vem a seguir?

Acrise do coronavírus representa um momento crítico no desenvolvimento do capitalismo contemporâneo. Certamente, a crise será longa – e seu pleno impacto nos Estados Unidos, na União Europeia, na China, no Japão e nos países em desenvolvimento ainda está por vir. Não há dúvidas de que estamos diante do risco de uma enorme depressão em toda a economia mundial. As falhas sistêmicas da financeirização e globalização foram duramente reveladas pelo estado emergencial da saúde pública. Ao mesmo tempo, o Estado tornou-se cada vez mais implicado na manutenção deste sistema falho. O caráter das intervenções estatais não dá, no entanto, motivos para supor que haverá uma transformação no topo da hierarquia política e social, resultando em políticas que favoreçam os interesses dos trabalhadores.

A decisão do governo dos EUA de aumentar significativamente seu déficit – e portanto seus empréstimos –, cujo efeito é aumentar a oferta de moeda e levar as taxas de juros a zero, é essencialmente a mesma de 2007 a 2009. Mesmo que uma depressão seja evitada, os resultados de médio prazo serão provavelmente os mesmos, pois a fraqueza estrutural da acumulação capitalista não é confrontada. Certamente haverá contradições políticas decorrentes da defesa da ordem neoliberal, sobretudo devido à demonstração de poder dos Estados-nações ao intervir na economia. Isso será particularmente importante na União Europeia, onde as respostas fiscal e de emergência em saúde à crise vem até agora de Estados-nações individuais e não de instituições coletivas.

Se lançarmos um olhar sobre as insuficiências do capitalismo neoliberal, fica claro que a crise do Covid-19 levanta provocativamente a questão da reorganização democrática tanto da economia quanto da sociedade conforme o interesse dos trabalhadores. Há uma necessidade urgente de enfrentar o caos da globalização e da financeirização apresentando propostas concretas radicais. Isso também requer formas de intervenção capazes de alterar o equilíbrio social e político em favor das camadas populares.

A pandemia trouxe à tona exigências vitais de transformação social. Explicitou o imperativo de se ter um sistema de saúde pública racionalmente planejado e capaz de lidar com choques epidêmicos. Também levantou a necessidade urgente de solidariedade, ação comunitária e políticas públicas para apoiar os trabalhadores e os mais pobres que enfrentam bloqueios, desemprego e colapso econômico.

De maneira mais ampla, a crise do Covid-19 reafirmou a necessidade histórica de enfrentar um sistema em declínio, preso em seus próprios absurdos. Incapaz de se transformar racionalmente, o capitalismo globalizado e financeirizado continua recorrendo a doses cada vez maiores dos mesmos paliativos desastrosos. Por oposição, o primeiro imperativo é defender os direitos democráticos diante das ameaças estatais e insistir para que os trabalhadores tenham amplo poder de decisão em todas as deliberações. Somente assim, poderiam surgir propostas alternativas radicais, dentre elas, medidas de larga escala, como o planejamento de políticas industriais que possam oferecer tratamento ao enfraquecimento da produção, facilitar uma transição ecológica, combater as desigualdades de renda e enfrentar a financeirização através da criação de instituições financeiras públicas. A crise do coronavírus já transformou os termos da luta política – e os socialistas devem responder urgentemente.

Este artigo baseia-se em parte no trabalho da equipe de pesquisa criada pelo EReNSEP-Ekona, que se propõe a examinar as implicações a longo prazo da atual crise. Agradeço a N. Águila e T. Moraitis pelos cálculos a partir dos dados BEA. A Y. Shi agradeço pelos cálculos baseados nos dados do Wind, Anuário Estatístico Nacional da China, do FRED St. Louis e do Banco Mundial. Também gostaria de agradecer A. Medina Català, P. Cotarelo e S. Cutillas pelos cálculos conforme dados da OCDE e do BCE. Por fim, obrigado a Shehryar Qazi pela ajuda em estabelecer alguns dos mecanismos especulativos nos mercados monetários dos EUA. O artigo, como de praxe, é de responsabilidade exclusiva do autor.

This article relies on some of the work of the research team established by EReNSEP-Ekona to examine the longer-term implications of the current crisis. Thanks are due to N. Águila, to T. Moraitis for calculations using BEA data. Thanks are due to Y. Shi for calculations using Wind, China National Statistical Yearbook, FRED St. Louis, and World Bank data, to A. Medina Català, P. Cotarelo, and S. Cutillas for calculations using OECD and ECB data, and to Shehryar Qazi for help with establishing some of the speculative mechanisms in US money markets. The article is solely the author’s own responsibility.

Sobre o autor

Costas Lapavitsas é professor de economia da SOAS (Universidade de Londres) e ex-membro do Parlamento grego.

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