Na era de Não há alternativa, as crises deixaram de ser o momento esperado pelos revolucionários e se tornaram uma oportunidade para silenciar as lutas. Será este o caso novamente?
Niccoló Barca
Tradução / A crise sempre foi um objeto de desejo para a esquerda. A sua inevitabilidade garantia uma abertura a possibilidades revolucionárias, inspirando otimismo em todos aqueles que estavam acostumados com a derrota. Mesmo anos depois dos ensinamentos de Karl Marx terem perdido a centralidade, cada crise era usada para escrever epitáfios sobre o fim do capitalismo. “Dessa vez é para valer”.
“Não foi dessa vez”. Como dizia Mark Fisher, sobre a crise de 2008. Longe de provocar o fim do capitalismo, a crise reafirmou o mantra central do realismo capitalista: “There is no Alternative – Não há alternativa”. Tomar o controle dos bancos? Impensável. Transferir o dinheiro público para o bolso de alguns poucos? Por que não?
Não nos demos conta de que, no meio tempo, o capital havia se especializado na gestão da crise. Milton Friedman dizia aos seus Chicago Boys: “Se querem forçar uma mudança comecem uma crise”. No Chile dos anos 70 essas palavras foram usadas ao pé da letra. Em outros lugares a crise foi tratada simplesmente como uma oportunidade, um Estado de exceção a ser usado em benefício próprio. Na Rússia após a queda do Muro de Berlin isso funcionou perfeitamente: a riqueza gerida por poucos em nome de uma coletividade foi, de um dia ao outro, transferida para as mãos de poucos para ser usada em função de si mesmos. Nova Orleans, destruída pelo furacão Katrina, se transformou em um enorme laboratório de privatização dessa mesma escola. A crise econômica permitiu ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial a imposição de uma relação de dependência colonial ao mundo.
Áquila, 2009: “Nessa madrugada, às 3:32 eu ria deitado na minha cama”. («Stamattina alle 3:32 ridevo dentro al letto» – foi a frase ouvida em uma conversa telefônica entre Francesco Maria De Vito Piscicelli e um tal de Gagliardi, sobre o terremoto que atingiu e devastou Áquila, cidade italiana, na madrugada de 06 de abril de 2009, deixando mais de 300 mortos e 1.600 feridos).
Cada crise abre uma fenda nos pilares já danificados de nossa sociedade. De vez em quando essa fenda nos apresenta uma perspectiva diversa, revelando coisas que antes estavam escondidas. Fisher diria que ela permite “Se recuperar de um certo tipo de paralisia metal”. Mas isso não significa necessariamente uma mudança. Na maioria das vezes, as crises servem para legitimar aquilo que a antecipava. O caos transforma a ordem em algo a ser desejado.
É tarefa da mídia manter essa fábula de pé. Assim como em 2008 a busca pelas maçãs podres serviu como objetivo para salvar o sistema financeiro de uma crítica estrutural, a suposta universalidade dessa crise serve para ocultar os interesses econômicos que ditam sua administração e as desigualdades que ela expõe. Stuart Hall dizia que o processo através do qual a grande imprensa dá significado aos eventos presume e constrói a ideia de uma sociedade baseada no consenso. Existimos enquanto sociedade porque compartilhamos de paradigmas culturais que nos permitem interpretar a realidade de maneira comum. No interior dessa sociedade aquilo que nos une é sempre maior do que aquilo que nos divide; o consenso deriva do fato de que não existem conflitos e interesses entre classes e grupos sociais, e que para qualquer dissidência existe um veículo legal a ser resolvido.
Nas páginas dos grandes jornais, na TV, nas palavras dos grandes influencers (sinal de uma crise de legitimidade da classe política); em todos os lugares se apela abertamente ou nas entrelinhas para um senso de solidariedade nacional por uma crise que não faz distinção de classe ou de raça. A ideia da suposta paridade entre governantes e governados é reforçada e a oligarquia se declara democrática. “Estamos todos no mesmo barco”. Assim, um retorno a normalidade é simulado em uma Itália com mais de 5 milhões de pessoas em situação de pobreza absoluta, onde todos os dias 3 pessoas morrem no local de trabalho, onde 1 casa em cada 4 está vazia e os sem-teto se multiplicam. Eles querem nos convencer de que o medo de ficar sem comida ou sem-teto – a miséria de uma vida de incertezas – sejam sintomas de uma emergência e não a emergência em si.
Enquanto isso pequenos e grandes gestos, voluntariado e flash mobs nos fazem lembrar o valor de um tecido social que está sob o ataque das privatizações nos últimos 30 anos. A Confederação Geral da Indústria Italiana reluta em fazer o mínimo indispensável para garantir a segurança dos próprios trabalhadores. A Amazon e a Whole Foods pedem para que seus empregados “saudáveis” doem suas licenças médicas aos contagiados. Companhias cheias de dinheiro demitem seus funcionários, pois, este é o momento de competir e ganhar dos adversários que estão em pior situação. Nos céus voam somente os jatos privados dos super ricos. Maria Elena Boschi convida não sei quem a arrumar os buracos pelas ruas de Roma. “Já que nós já estamos em casa mesmo...”.
A mesma lógica proeminente da exploração que dita esses comportamentos está na base da incapacidade de gerir a pandemia, onde os mortos são vendidos como um fenômeno natural, enquanto, na verdade, são consequências de decisões políticas. A pesquisa de uma vacina para o COVID-19 estaria a um estágio bem mais avançado se os fundos para o estudo da SARS não tivessem sido cortados após a passagem desta última epidemia. A cura dos doentes seria menos caótica se os números de leitos – de 9,22 para cada 1000 habitantes em 1980 para 2,5 de hoje na Itália – não houvessem sido reduzidos.
Corremos o risco de, de novo, nos agruparmos em volta de um corpo ensanguentado em um lado da rua enquanto o culpado pelo acidente foge sem ser notado. E enquanto estamos observando alguém já destruiu e reconstruiu a rua, o bairro, a cidade. O fechamento das fronteiras, o exército pelas cidades, as corridas ao supermercado: quem pensa que são momentos excepcionais ainda não tem muito claro o futuro de emergências climáticas que nos espera. Isso não significa entregar-se ao derrotismo, mas ao contrário, compreender essa crise pelo que ela é: um aviso trágico, mas sempre um aviso.
Cada crise abre um terreno de luta entre forças que nenhuma “solidariedade nacional” pode conciliar, entre um capital cada vez mais experiente na gestão da crise e uma maioria de pessoas para as quais cada crise não representam mais do que um novo tipo de sacrifício. Mas, há um mês atrás, alguma coisa mudou. Os programas que, até ontem, eram impensáveis estão sendo implantados em questão de horas porque existe uma vontade política para implantá-los. O Estado está entrando em jogo em todos os lugares, resolvendo problemas que o mercado havia prometido resolver. Estamos nos lembrando do valor dos bens públicos e da importância de vários trabalhos – enfermeiros, operários – degradados por um sistema que recompensa quem “faz por si” e pune que faz pela coletividade.
Uma certa paralisia cerebral está se desfazendo, mas não parece ter uma força política capaz de colher na sua essência a potencialidade dessa crise e de articular suas contradições. As apostas, como sempre, são altas. O medo do outro, o pedido por segurança, o sentimento de traição em relação a União Europeia: a direita soberana saberá desfrutar desses sentimentos a seu próprio favor?
No meio tempo, a crise das pequenas empresas em todos os lugares dará oportunidade aos gigantes de ampliar ainda mais seus monopólios; nos últimos dias a Amazon contratou 100 mil pessoas. No fim, foi aberto um espiral de crescimentos e bem estar estatal sem precedentes para certas forças políticas, reforçando retóricas nacionalistas e xenófobas: uma combinação de progressismo econômico e conservadorismo social que deveria fazer disparar os alarmes a qualquer um que tenha um mínimo de memória histórica. A aposta, como sempre, é alta; se não se oferece uma leitura alternativa para a crise e como sair dela seremos obrigados a olhar para trás e admitir: “Mais uma vez ‘não foi pra valer’”.
Sobre a autora
Niccolò Barca é jornalista freelancer e colabora com a Jacobin Itália. Estuda no Departamento de Mídia e comunicação da Universidade de Goldsmiths, Londres. Pesquisa movimentos sociais e participação política.
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