A pandemia do coronavírus impõe enormes desafios econômicos – agora é a hora de enfrentá-los com políticas que promovam a igualdade em casa e o internacionalismo em todo o mundo
Richard Kozul-Wright e Nelson BarbosaTribune
Tradução / Quando a teoria do caos entrou na moda alguns anos atrás, a imagem preferida era a de uma borboleta batendo as asas na Amazônia e impactando o clima na China. Morcegos, em vez de borboletas, parecem ser a fonte original mais provável do vírus que causa a Covid-19, mas não há dúvidas sobre seu impacto generalizado na saúde pública e na economia global.
A ameaça sanitária global atingiu proporções alarmantes e expôs a falta de preparo (e de solidariedade internacional) dos governos nacionais. O mesmo se aplica ao caos econômico. Doze anos após a crise financeira, a resposta a outro choque econômico tem sido tragicamente inadequada, tanto do ponto de vista doméstico quanto da coordenação internacional.
A crise atual não é uma repetição da crise de 2008: é potencialmente muito mais danosa e exigirá uma mobilização pública de recursos em uma escala análoga a de tempos de guerra. Com o congelamento súbito nos mercados financeiros, o Estado pode evitar o pânico atuando como uma espécie de “emprestador de última instância”, mas também precisamos de um “cuidador de última instância” para aqueles que necessitam de suporte imediato em assistência médica urgente e renda – e, depois que a crise imediata de saúde for contida, um “comprador de última instância” para alavancar a economia.
No entanto, os políticos só acordaram para a gravidade da ameaça econômica quando os preços dos ativos começarem a despencar e uma compressão iminente nos lucros expuserem uma perigosa linha de fratura devido aos altos níveis de endividamento das empresas. Foi dada prioridade à estabilização dos mercados financeiros, com o FED norte-americano assumindo a dianteira e outros bancos centrais do mundo (ainda que confusamente, como no caso do Banco Central Europeu) seguindo o mesmo caminho. Somente nos últimos dias, quando as economias do mundo começaram literalmente a desligar, é que as torneiras de créditos enfim foram abertas.
Ainda que o FED tenha liderado a flexibilização da política monetária global, a resposta fiscal – que, agora todos concordam, precisa se dar em escala massiva – foi bem mais ad hoc e descoordenada. O ministro da economia britânico reforçou consideravelmente seu orçamento pós-Brexit, e o governo italiano pediu mais tolerância fiscal por parte de Bruxelas. O Tesouro dos Estados Unidos, a Comissão Europeia e os governos chinês e japonês prometeram “medidas ousadas”, mas ofereceram poucos detalhes concretos. O G7 garantiu que empregaria “todas as ferramentas adequadas”, mas não se deu ao trabalho de definir o que entende por “adequação”.
À medida que a escala do desafio finalmente bateu na porta dos políticos, essa vacilação inicial deu lugar a declarações de “fazer tudo o que for preciso”. No entanto, como sugeriu Barry Eichengreen, após anos de deterioração do setor público pelas políticas de austeridade, a falta de “competência administrativa” poderá representar uma séria restrição em muitos países. A disseminação do vírus já expôs o enorme subfinanciamento e despreparo dos serviços públicos de saúde em todos os lugares, particularmente nos EUA, e, de forma mais ampla, a falta de estruturas para mobilizar ação coletiva.
Diante dos eventos recentes, o ex-primeiro-ministro britânico Gordon Brown questionou, com razão: “por que, frente à ameaça de uma recessão mundial, ainda não há tentativa de um esforço coordenado por parte dos governos e bancos centrais para fornecer uma resposta econômica global?” O que Brown lamenta é a falta de liderança global, e para ele as recentes guerras tarifárias não ajudaram a promover um espírito de cooperação internacional. Mas as desordens do multilateralismo são anteriores à presidência de Donald Trump, e a liderança mostrada pelo G20 em 2009 se mostrou efêmera.
O fracasso maior, que não é de exclusividade de nenhum governo, é a negligência frente aos desequilíbrios sistêmicos de um mundo hiper-globalizado, propenso ao protecionismo neo-mercantilista por parte das principais economias. Soluções privadas para problemas públicos, nacionais ou globais, têm sido incessantemente oferecidas como a maneira de fornecer resultados mais eficientes, preservando um clima favorável aos negócios. Mas na realidade, a aposta em parcerias público-privadas, a redução de riscos por mecanismos financeiros, a securitização e o financiamento misto [blended finance] não apenas falharam em impulsionar o investimento e a produtividade, mas serviram para fornecer um disfarce tecnocrático para o renascimento de um capitalismo rentista, cada vez mais predatório.
O que fazer? Conter a ameaça à saúde humana e retornar a algum sentido de normalidade na vida econômica é a prioridade na ordem do dia. Aqui, pelo menos, as metas macroeconômicas e as de saúde convergem para um grande pacote de gastos públicos. No entanto, serão necessárias medidas mais radicais para garantir que a conta da interrupção prolongada do trabalho não caia no colo dos mais vulneráveis.
Também está claro que os Estados devem negociar com os credores privados para coordenar um cancelamento de dívidas para as famílias, empresas e países mais vulneráveis. Se os bancos centrais podem salvar os mercados financeiros, então certamente os governos deverão ser capazes de formular políticas para oferecer o apoio equivalente às pessoas necessitadas.
Mas não se trata simplesmente de voltar aos “negócios como de costume”. Não devemos nunca mais retornar a um modelo econômico extrativista, baseado em uma combinação tóxica de finanças não regulamentadas e o poder de mercado concentrado, que tem enviesado as regras do jogo econômico desde a crise de 2008. Será necessário a reinvenção de estruturas tributárias progressivas, políticas industriais estratégicas, a revitalização dos bancos públicos e a disposição para enfrentar interesses privados escusos, incluindo grandes empresas farmacêuticas, para que a recuperação econômica abra o caminho para um futuro mais saudável, inclusivo e sustentável .
Porém, em nosso mundo interdependente, essas medidas serão insuficientes sem um sistema multilateral, internacional, que promova e proteja o bem-estar de todos os povos, e o coloque acima dos ganhos financeiros de curto prazo e dos interesses das corporações multinacionais. Setenta e cinco anos depois que a comunidade internacional pediu uma frente unida “para promover o progresso social e melhores padrões de vida e maior liberdade“, é necessária um novo encontro de Dumbarton-Oaks, desta vez com representação democrática genuína e totalmente comprometido com uma agenda multilateral construída em base do compromisso com a prosperidade para todos, sociedades de bem-estar e um planeta sustentável.
A ameaça sanitária global atingiu proporções alarmantes e expôs a falta de preparo (e de solidariedade internacional) dos governos nacionais. O mesmo se aplica ao caos econômico. Doze anos após a crise financeira, a resposta a outro choque econômico tem sido tragicamente inadequada, tanto do ponto de vista doméstico quanto da coordenação internacional.
A crise atual não é uma repetição da crise de 2008: é potencialmente muito mais danosa e exigirá uma mobilização pública de recursos em uma escala análoga a de tempos de guerra. Com o congelamento súbito nos mercados financeiros, o Estado pode evitar o pânico atuando como uma espécie de “emprestador de última instância”, mas também precisamos de um “cuidador de última instância” para aqueles que necessitam de suporte imediato em assistência médica urgente e renda – e, depois que a crise imediata de saúde for contida, um “comprador de última instância” para alavancar a economia.
No entanto, os políticos só acordaram para a gravidade da ameaça econômica quando os preços dos ativos começarem a despencar e uma compressão iminente nos lucros expuserem uma perigosa linha de fratura devido aos altos níveis de endividamento das empresas. Foi dada prioridade à estabilização dos mercados financeiros, com o FED norte-americano assumindo a dianteira e outros bancos centrais do mundo (ainda que confusamente, como no caso do Banco Central Europeu) seguindo o mesmo caminho. Somente nos últimos dias, quando as economias do mundo começaram literalmente a desligar, é que as torneiras de créditos enfim foram abertas.
Ainda que o FED tenha liderado a flexibilização da política monetária global, a resposta fiscal – que, agora todos concordam, precisa se dar em escala massiva – foi bem mais ad hoc e descoordenada. O ministro da economia britânico reforçou consideravelmente seu orçamento pós-Brexit, e o governo italiano pediu mais tolerância fiscal por parte de Bruxelas. O Tesouro dos Estados Unidos, a Comissão Europeia e os governos chinês e japonês prometeram “medidas ousadas”, mas ofereceram poucos detalhes concretos. O G7 garantiu que empregaria “todas as ferramentas adequadas”, mas não se deu ao trabalho de definir o que entende por “adequação”.
À medida que a escala do desafio finalmente bateu na porta dos políticos, essa vacilação inicial deu lugar a declarações de “fazer tudo o que for preciso”. No entanto, como sugeriu Barry Eichengreen, após anos de deterioração do setor público pelas políticas de austeridade, a falta de “competência administrativa” poderá representar uma séria restrição em muitos países. A disseminação do vírus já expôs o enorme subfinanciamento e despreparo dos serviços públicos de saúde em todos os lugares, particularmente nos EUA, e, de forma mais ampla, a falta de estruturas para mobilizar ação coletiva.
Diante dos eventos recentes, o ex-primeiro-ministro britânico Gordon Brown questionou, com razão: “por que, frente à ameaça de uma recessão mundial, ainda não há tentativa de um esforço coordenado por parte dos governos e bancos centrais para fornecer uma resposta econômica global?” O que Brown lamenta é a falta de liderança global, e para ele as recentes guerras tarifárias não ajudaram a promover um espírito de cooperação internacional. Mas as desordens do multilateralismo são anteriores à presidência de Donald Trump, e a liderança mostrada pelo G20 em 2009 se mostrou efêmera.
O fracasso maior, que não é de exclusividade de nenhum governo, é a negligência frente aos desequilíbrios sistêmicos de um mundo hiper-globalizado, propenso ao protecionismo neo-mercantilista por parte das principais economias. Soluções privadas para problemas públicos, nacionais ou globais, têm sido incessantemente oferecidas como a maneira de fornecer resultados mais eficientes, preservando um clima favorável aos negócios. Mas na realidade, a aposta em parcerias público-privadas, a redução de riscos por mecanismos financeiros, a securitização e o financiamento misto [blended finance] não apenas falharam em impulsionar o investimento e a produtividade, mas serviram para fornecer um disfarce tecnocrático para o renascimento de um capitalismo rentista, cada vez mais predatório.
O que fazer? Conter a ameaça à saúde humana e retornar a algum sentido de normalidade na vida econômica é a prioridade na ordem do dia. Aqui, pelo menos, as metas macroeconômicas e as de saúde convergem para um grande pacote de gastos públicos. No entanto, serão necessárias medidas mais radicais para garantir que a conta da interrupção prolongada do trabalho não caia no colo dos mais vulneráveis.
Também está claro que os Estados devem negociar com os credores privados para coordenar um cancelamento de dívidas para as famílias, empresas e países mais vulneráveis. Se os bancos centrais podem salvar os mercados financeiros, então certamente os governos deverão ser capazes de formular políticas para oferecer o apoio equivalente às pessoas necessitadas.
Mas não se trata simplesmente de voltar aos “negócios como de costume”. Não devemos nunca mais retornar a um modelo econômico extrativista, baseado em uma combinação tóxica de finanças não regulamentadas e o poder de mercado concentrado, que tem enviesado as regras do jogo econômico desde a crise de 2008. Será necessário a reinvenção de estruturas tributárias progressivas, políticas industriais estratégicas, a revitalização dos bancos públicos e a disposição para enfrentar interesses privados escusos, incluindo grandes empresas farmacêuticas, para que a recuperação econômica abra o caminho para um futuro mais saudável, inclusivo e sustentável .
Porém, em nosso mundo interdependente, essas medidas serão insuficientes sem um sistema multilateral, internacional, que promova e proteja o bem-estar de todos os povos, e o coloque acima dos ganhos financeiros de curto prazo e dos interesses das corporações multinacionais. Setenta e cinco anos depois que a comunidade internacional pediu uma frente unida “para promover o progresso social e melhores padrões de vida e maior liberdade“, é necessária um novo encontro de Dumbarton-Oaks, desta vez com representação democrática genuína e totalmente comprometido com uma agenda multilateral construída em base do compromisso com a prosperidade para todos, sociedades de bem-estar e um planeta sustentável.
Sobre os autores
Richard Kozul-Wright é diretor de estratégias de globalização e desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) em Genebra.
Nelson Barbosa is professor of economics at the São Paulo School of Economics of the Getulio Vargas Foundation e um ex-ministro das Finanças do Brasil
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