A Pandemia de Coronavírus mostrou a fragilidade de nossa ordem econômica e política corrente. Encarando isso, governos ao redor do mundo insistem em uma forma de “Malthusianismo”, sem falar nos conservadores alinhados a Boris Johnson. Mas, como Sandro Mezzadra argumenta, isso também pode oferecer novos espaços para solidariedade.
Sandro Mezzadra
Tradução / Uma espera prolongada na farmácia, uma longa fila antes de entrar em um supermercado. Experiências como essas, cada dia mais comuns, podem nos ajudar a ver como a propagação do Coronavírus está transformando nossa sociedade. Ainda, mais precisamente, a pandemia global e as medidas adotadas pelo governo italiano para tentar reagir, estão, de fato, meramente exacerbando tendências que já existiam há algum tempo. Décadas recentes, dominadas pela política do medo, deixaram sua marca. Isso pode ser visto no medo corrente de contato físico, ou nos olhares suspeitos que guardam a “distância segura” entre as pessoas. Sem dúvida, tal ansiedade de controle fortalece os poderes que dominam nossas vidas, e vale a pena nos lembrarmos que, uma vez que medidas governamentais como essas são tomadas, elas se tornam parte do arsenal da possibilidade política. Ainda, outras imagens emergiram também, umas com conotações profundamente diferentes. Pessoas nas ruas sorriem umas para as outras, música é tocada em sacadas, e um senso de solidariedade cerca não apenas médicos e enfermeiras, mas também trabalhadores de fábricas em greve para defender a segurança da saúde oferecida via suas condições de trabalho.
Dentro do reino variado de movimentos sociais e da Esquerda, discussões parecem estar focando no primeiro aspecto, nomeadamente, o recrudescimento de mecanismos de controle em tempos de emergência. Mesmo além das opiniões expressas por filósofos bem conhecidos, que estão se tornando experts em virologia e epidemiologia, uma espécie de ceticismo parece prevalecer sobre a atual severidade do COVID-19. Parece-me que essa atitude é enganadora. Ao invés disso, uma discussão deveria começar do fato de que, posto de modo simples, a propagação do Coronavírus coloca uma ameaça à saúde e à vida de milhões de pessoas (primariamente os mais velhos e outros indivíduos em risco), e também à própria sobrevivência do sistema de saúde. Eu não penso que deve haver alguma dúvida sobre esse ponto. Ainda, se esse é o caso, Coronavírus é uma ameaça a algo essencial, ao “comum”. A epidemia corrente mostra a fragilidade e precariedade de tal “comum” (bem como de nossas próprias vidas), juntamente com a necessidade de “cuidado” – algo destacado em particular pelos debates feministas dos anos recentes. Mas, sem esquecer o alto controle (?) da situação presente, é essa última, igualmente essencial, perspectiva que eu quero desenvolver para pensarmos sobre o que está ocorrendo neste momento na Itália, na Europa e no Mundo.
Os efeitos econômicos do Coronavírus não têm precedentes. Pela primeira vez em décadas uma crise cuja origem está na “economia real” atingiu violentamente os mercados financeiros globais, resultando em perdas sem paralelo. Em relação ao capitalismo global, uma metáfora de “obstrução” parece ser a mais apta em ilustrar a situação presente. Como em um espelho, a crise reflete a imagem invertida do capitalismo, cujos circuitos de valorização e acumulação dependem do incansável movimento do capital, commodities, e pessoas. Correntes de fornecimento, as conexões que constituem a logística e o esqueleto infraestrutural da globalização capitalista, hoje parecem estar bloqueadas a um nível considerável. Os preços do mercado de ações – que por algum tempo dirigiram a extensão das correntes de fornecimento e suas redes de corredores conectadas, zonas especiais, e hubs – estão sendo forçadas a registrar tal bloqueio.
Não é errado dizer que a pandemia atual atingiu um ponto de não retorno no desenvolvimento do capitalismo global. Eu não estou, de modo algum, entrando em fantasias apocalípticas. O capitalismo certamente continuará a existir depois do Coronavírus, mas será uma versão profundamente diferente das que temos visto no passado recente – embora já tenha mostrado algumas mudanças radicais que se originaram da crise financeira de 2007-2008. Penso que deveríamos começar a partir disso, com referência a um nível global, para entendermos o que está acontecendo na Itália. No momento, Itália é um “laboratório”, embora em termos bem diferentes do que ocorreu em um passado não tão distante.
Correndo o risco de simplificarmos, poderia ser dito que atualmente há duas alternativas bem definidas tomando forma em resposta à crise. De um lado, há a resposta “Malthusiana” – essencialmente inspirada pelo darwinismo social – que encontra seu exemplo na áxis Johnson-Trump-Bolsonaro. De outro, há a emergência de uma resposta alternativa que mira na requalificação do sistema pública de saúde como o instrumento fundamental para reagir à crise presente – aqui, exemplos muito diferentes são fornecidos pela China, Coréia do Sul e Itália. No primeiro caso, milhares de mortes entre a população são vistas como uma forma de seleção natural; no segundo caso, por razões que são em grande medida contingentes, a questão parece ser que “a sociedade deve ser defendida”, com graus variados de autoritarismo e controle social.
Para esclarecer: de modo algum estou apoiando as medidas tomadas pelo governo italiano. Prefiro limitar-se a dizer que agora, globalmente, há um conflito em curso que trará consequências críticas não apenas para o futuro do capitalismo mas também – o que é a mesma coisa, no fim das contas – nossas próprias vidas. Essa luta afeta países como o Reino Unido, os Estados Unidos e o Brasil, cujos governos apoiam as soluções “Malthusianas”, já que resistências são firmes e arraigadas política e socialmente. Mas também afeta países como a Itália, onde tal luta é expressa pela recusa dos trabalhadores em aceitar as opções da Confindustria (a Federação dos Empregadores Italianos e a Federação Industrial Italiana) e sacrificar a si mesmos à supremacia da produção. De modo mais geral, a administração do Coronavírus aparece como um campo crucial de conflito. Apenas a intensificação de disputas sociais, agora e nos próximos meses, pode dar lugar a espaços de democracia e “cuidado” do comum. Isso se aplica à Itália não menos que aos Estados Unidos.
Há um número de cenários que podem emergir no futuro próximo, e vale a pena analisar as condições que podem permitir que eles aconteçam. O valor fundamental do sistema público de saúde, ou o direito social ao cuidado à saúde, é um elemento que não pode realmente ser questionado. Significa que, pelo menos por enquanto, será difícil propor mais cortes e pode ser bem possível que uma nova temporada de investimentos se inicie, especialmente por conta da pressão provocada pelos trabalhadores da saúde. Espera-se que o mesmo possa acontecer com a educação também, embora, é claro, será necessário confrontar as mudanças que ocorreram nas últimas semanas para impedir que se tornem condições permanentes (começando pelo uso de educação online). Assim como em toda crise, o peso do trabalho de cuidados cai sobre as mulheres, ainda mesmo que a circunstância cria espaços para novas disputas e negociações. As greves de trabalhadores mencionadas acima apontar à possibilidade de novos horizontes de sindicalização, mesmo social, e a demanda por uma “renda de quarentena”. Embora pagando um enorme preço, as recentes revoltas prisionais na Itália determinaram uma visibilidade renovada em um mundo que nos últimos anos tornou-se fundamentalmente opaco – elas atingiram, de todo modo, resultados significantes, ainda que parciais. Isso também está acontecendo em centros de detenção (CPR), não obstante diferentes tempos, onde o Coronavírus interrompeu as repatriação senão a detenção [de imigrantes].
Para reiterar meu ponto: estamos lidando com cenários que oferecem campos específicos de disputa e não meramente evoluções em lógicas governamentais. De um ponto de vista metodológico, parece-me crucial começar por aí. Além disso, o vírus mostrou o completo caráter ilusório da soberania e de seu fetichismo de fronteira. Essa é uma boa condição para abrir novamente uma reflexão sobre a Europa. É claro, a União Europeia ainda não fez muito até agora, agiu de modo contraditório, se não contraprodutivo. Porém, como podemos deixar de ver que o regime de austeridade está finalmente caindo com seu dogma de um orçamento equilibrado? Impressionantes também são as tensões “objetivas” que estão sendo descarregadas sobre o Banco Central Europeu, para que assuma o papel de credor do último recurso. Elas são tendências “objetivas” no sentido de que são independentes de uma intencionalidade política, mas ainda definem as condições para a reativação de disputas no terreno europeu. Talvez melhor, elas enquadram as circunstâncias a nível europeu de uma reentrada de disputas que desenvolver-se-ão em muitas partes do continente.
Para concluir, penso que a perspectiva aqui avançada pode nos permitir olhar para a pandemia presente focando nossa atenção aos espaços de emergência de diferentes movimentos, disputas sociais, e à Esquerda mesma. Como eu já sustentei, não estou subestimando a questão do controle, a expansão dos poderes do estado, e o maior encorajamento às políticas do medo. Esses aspectos são evidentemente parte do cenário presente. Porém, como devem ser contrapostas? Minha convicção é que, para inverter o sentido presente de um “laboratório italiano”, deve-se começar pelo “cuidado” do comum a que me referi no começo deste texto. Além disso, é necessário apreender, dentro da situação presente, as ocasiões existentes para que formemos uma política de disputas mais geral nos tempos de pandemias.
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