20 de março de 2020

Podemos parar o lucro pandêmico

Se pretendemos evitar o pior cenário do COVID-19 e evitar o sofrimento humano inimaginável, temos que combater - e até nacionalizar - as empresas que estão tentando lucrar com essa crise às custas de todos os outros.

Jeremy Gong

Jacobin
Um entregador ciclista do Uber Eats usa máscara facial como precaução contra a transmissão do coronavírus no parque Madrid Rio em 14 de março de 2020 em Madri, Espanha. Pablo Cuadra / Getty.

Tradução / Sob circunstâncias normais, os socialistas defendem a luta dos trabalhadores contra os capitalistas. Isso continua sendo verdade durante essa pandemia — e é a nossa única esperança. Para que nossa sociedade vença a guerra contra o COVID-19, os trabalhadores precisam continuar lutando contra patrões e proprietários.

Os cientistas estão alertando que, além de ser inimaginavelmente mortal e desestabilizadora, esta crise pode durar dezoito meses ou mais. Enquanto nossa sociedade adota medidas de “distanciamento social” que salvam vidas, mas que pode acarretar em dezenas de milhões de desempregados, algumas empresas “não essenciais” ainda insistem em continuar operando para continuar lucrando. E empresas de setores “essenciais”, como assistência médica e logística, começam a lucrar enormemente com a crise. Em nome do lucro, as empresas estão colocando seus trabalhadores e toda a nossa sociedade em risco por não ajudarem a retardar a propagação e a “achatar a curva” do coronavírus.

No dia 20 de março o Intercept revelou que os investidores estão esperando que empresas de assistência médica aumentem os preços de produtos essenciais, como máscaras N95 e produtos farmacêuticos experimentais. A montadora estadunidense Tesla, do bilionário destruidor de sindicatos Elon Musk, travou uma batalha perdida contra a ordem de fechamento de negócios “não essenciais”, com o objetivo de manter a produção em sua fábrica de dez mil funcionários na cidade de Fremont. As empresas farmacêuticas, com a ajuda de Joe Biden, esperam que uma eventual vacina contra o COVID-19 seja muito lucrativa, em vez de universalmente acessível ou gratuita.

Ao menos três senadores republicanos e a senadora democrata Dianne Feinstein foram pegos comprando milhões de dólares em ações, antes que o público percebesse a seriedade da pandemia e que as bolsas de valores caíssem — e após terem acesso a informações confidenciais graças às suas posições nas comissões do Senado. A Amazon está sendo incapaz de proteger seus trabalhadores, o que significa que funcionários de depósito e motoristas de entrega, já mal pagos e sobrecarregados, correm o risco de contrair e espalhar o vírus para manter a operação de nossas cadeias logísticas de suprimentos — tudo para o megabilionário Jeff Bezos manter suas altas margens de lucro.

Como se tudo isso não bastasse, o complexo e balcanizado sistema de seguros de saúde, majoritariamente com fins lucrativos e que deixa dezenas de milhões de pessoas sem assistência médica (número que provavelmente aumentará à medida que o desemprego dispara) acarretará em grandes e contínuos lucros para as seguradoras e muito mais mortes, miséria e pobreza para o resto da população.

Esse tipo de lucro às custas da crise não é apenas superficialmente imoral: ele vai piorar a crise e provocar milhares ou até milhões de mortes a mais. Lucros são efetivamente recursos, desviados para as contas bancárias dos investidores, que poderiam estar sendo destinados à desaceleração da pandemia, ao aumento de capacidade de assistência à saúde e o bem-estar social em geral, como moradia e alimentação. A motivação de lucro, não o bem social, é o que orientará decisões e dinâmicas mais amplas à medida que as empresas produzem e prestam serviços no interesse de ganhos privados.

O lucro é a razão pela qual as empresas “não essenciais” ainda estão operando contra as recomendações do governo, colocando em risco seus trabalhadores e toda a sociedade. E como os lucros advêm de preços elevados, produtos de menor qualidade, salários mais baixos e piores condições de trabalho, isso tornará a vida dos trabalhadores em setores essenciais pior e mais insegura, além de dificultar a obtenção de bens essenciais por pacientes, hospitais e municípios.

Tal qual socialistas e trabalhadores fizeram se opondo ao lucro ao Segunda Guerra Mundial, devemos fazer tudo que estiver ao nosso alcance para nos opor ao lucro pandêmico.

Nenhuma empresa deveria obter lucros exorbitantes ao fornecer assistência médica em qualquer momento, mas especialmente agora. O mesmo se aplica a qualquer outro “serviço essencial”, da venda de alimentos à entrega de encomendas. Os trabalhadores que precisam trabalhar devem ser protegidos, compensados e apoiados o máximo possível. E qualquer empresa que possa paralisar suas operações para diminuir a velocidade do vírus deve fazê-lo imediatamente, independente do quanto impacte seus lucros.

Para combater o fascismo durante a Segunda Guerra Mundial, trabalhadores e capitalistas, nos Estados Unidos e em outros países, se uniram em uma aliança desconfortável. O governo estadunidense praticamente estatizou as principais indústrias a fim de redirecionar a produção para o esforço de guerra, infraestrutura subsidiada e projetos de assistência social, instituindo controles de preços e salários. Mas os empregadores ainda abusavam e exploravam os trabalhadores para maximizar lucros.

No final de 1943, segundo o historiador Art Preis em Labor’s Giant Step, os lucros corporativos foram os mais altos da história estadunidense até então, massivamente subsidiados pelos contribuintes do país como parte do esforço de guerra. Mas, embora a maioria dos sindicatos tenha apoiado o presidente Franklin D. Roosevelt para fazer cumprir os acordos de “não-greve” da época da guerra, os trabalhadores reagiram, realizando milhares de greves ilegais e majoritariamente selvagens, resistindo aos baixos salários e condições e ritmo de trabalho desumanos.

Para combater efetivamente a pandemia de COVID-19, o lucro pandêmico deve ser estritamente restringido por controles governamentais — e quando necessário, pela ação dos trabalhadores.

Os trabalhadores devem fazer greve ou se organizar de maneiras compatíveis com suas indústrias, e devemos exigir que o governo estatize indústrias e empresas conforme necessário. A estatização, com transparência e supervisão democrática, garantirá o cumprimento do distanciamento social e das folgas remuneradas, eliminará os lucros desnecessários com a resposta à crise e garantirá que tenhamos a máxima coordenação e eficiência para vencer a guerra contra o vírus.

Ninguém que perdeu sua remuneração ou seu emprego deveria pagar por serviços de saúde, habitação ou comida — isso é atroz e pode forçar essas pessoas a saírem à rua e se submeterem a empregos inseguros, agravando a disseminação do COVID-19. E, mesmo após a crise, bens básicos como esses deveriam ser direitos sociais garantidos para todos, independentemente da situação empregatícia, e não mercadorias para fins privados.

Felizmente, já podemos ver trabalhadores reagindo em diversos locais de trabalho. Em Nova Iorque e Chicago, a ameaça de greve dos professores fechou as escolas. As greves selvagens dos operários da indústria automobilística ajudaram a convencer as Três Grandes montadoras (General Motors, Ford Motor e Fiat Chrysler) dos EUA a suspender a produção. E a National Nurses United [Enfermeiros Nacionais Unidos] está lutando pela segurança total e alocação de pessoal para os profissionais da saúde e pelo redirecionamento da indústria privada para produção de suprimentos médicos. (Eles conquistaram a última demanda segundo pronunciamento de Donald Trump dia 18 de março.)

Na Europa, os trabalhadores também estão reagindo, de funcionários dos correios em Londres a operários da indústria automobilística na Itália. Sindicatos fortes e a militância dos trabalhadores resultaram em respostas significativas de alguns governos, inclusive na Dinamarca e no Reino Unido, onde trabalhadores impedidos de trabalhar receberão folga remunerada, subsidiada principalmente pelo governo. O governo espanhol já impôs o comando estatal sobre hospitais privados. Esses governos estão reformulando suas economias da noite para o dia para deter a pandemia de uma maneira muito mais imediata e humana do que a abordagem obcecada pelo lucro do livre mercado.

Por fim, a maneira mais eficiente e humana de resolver essa crise e impedir a próxima seria decidir que serviços de saúde, alimentação e moradia são direitos humanos básicos, não mais sujeitos aos caprichos do mercado ou a quem quiser obter lucro. Além disso, devemos reivindicar o controle público e democrático sobre a indústria, assistência médica, pesquisa farmacêutica, produção e distribuição de alimentos e logística. Em outras palavras, quanto mais nos aproximarmos do socialismo democrático, mais segura e humana a nossa sociedade será.

Porém, sob o capitalismo, os empregadores ainda tentarão lucrar com essa crise — e depende dos trabalhadores combater os lucros pandêmicos e salvar o mundo.

Sobre o autor
Jeremy Gong é membro do partido Socialistas Democráticos da América na Baía Leste da Califórnia.

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