Niklas Olsen e Daniel Zamora
Jacobin
As pessoas fazem fila fora do Hospital Elmhurst para fazer o teste devido ao surto de coronavírus em 24 de março de 2020 em Queens, Nova York. Eduardo Munoz Alvarez / Getty. |
Tradução / Ainda que cientistas tenham alertado a respeito da COVID-19, o rápido surto do vírus pegou o mundo de surpresa. De modo particular, a atual pandemia expôs as fragilidades dos sistemas de saúde do mundo inteiro após anos de austeridade – assim como demonstrou a dependência crítica que tais sistemas possuem em relação as cadeias produtivas mundiais.
Há apenas algumas semanas atrás, os líderes mundiais de direita estavam descrevendo a ameaça do novo coronavírus como um grande exagero, “gripezinha” ou como uma “fake news”, incentivando a população a sair de casa normalmente. Hoje, a maioria desses mesmos governos estão percebendo as consequências catastróficas que inevitavelmente enfrentarão caso não respondam à pandemia adequadamente. E, gostando ou não, a perspectiva política global está mudando – já que uma pandemia desta magnitude expõe a necessidade urgente do incremento de soluções impostas pelo Estado.
A gripe espanhola
Os efeitos da atual crise demonstram a importância das instituições de saúde pública – algo já visualizado há um século, quando a gripe espanhola matou 50 milhões de pessoas. Uma das principais consequências positivas da pandemia de 1918 foi o consenso das autoridades de diferentes países sobre a necessidade de adoção de sistemas de assistência universal à saúde e sobre a necessidade do desenvolvimento enfático da epidemiologia.
A partir de então, os cuidados com a saúde não foram mais vistos como uma responsabilidade puramente individual. Pelo contrário, mostrou-se um problema coletivo, de cunho social, profundamente enraizado na maneira como nos organizamos como sociedade. Como observa o historiador François Ewald, em seu estudo pioneiro sobre o estado de bem-estar francês, a ideia de doença contagiosa, que se tornou dominante depois da teoria de Louis Pasteur sobre os microrganismos, já tinha começado a mudar concepções mais antigas de cuidados à saúde baseadas em teorias eugênicas e miasmáticas.
Ao escrever sobre a nova teoria microbiana, o pensador francês Léon Bourgeois observou que “uma nova noção de humanidade poderia ser revelada e transmitida através das mentes”. Este novo entendimento da questão social “provou a profunda interdependência que existe entre todos os seres vivos”, diante de um “ataque comum a todos os organismos do mundo”. Isso nos ajudou a entender “nosso dever mútuo” de solidariedade.
Antes da gripe espanhola, não havia políticas estatais sérias de assistência médica, existindo apenas sistemas de saúde fragmentados, contando com médicos mal treinados e sem autoridades centralizadas para liderá-los ou despachá-los para alguma emergência. Mas, ao fim da referida pandemia, a ideia da medicina socializada ganhou força em todo o mundo. Esta nova ameaça invisível, que influenciou a Primeira Guerra Mundial e era literalmente incontrolável pelos mecanismos descentralizados do mercado, influenciou profundamente a forma como entendíamos a saúde pública.
Vladimir Lenin escreveu em 1920 que as guerras imperialistas haviam ofertado à humanidade “vários milhões de aleijados e uma série de epidemias”. Em resposta, o jovem Estado Soviético estabeleceu, talvez, o primeiro sistema de saúde do mundo totalmente socializado. Somente sistemas centralizados com forte “colaboração entre cientistas e trabalhadores”, argumentou Lênin, poderiam efetivamente acabar com “a pobreza opressiva, a doença e a sujeira” e “colocar a medicina nas mãos do povo”.
Esta tendência, porém, foi além da jovem União Soviética. Como argumentou Laura Spinney, “a lição que as autoridades sanitárias tiraram com a catástrofe da gripe espanhola foi que não era mais razoável culpar um indivíduo por pegar uma doença infecciosa, nem o tratar isoladamente. A década de 20 assistiu muitos governos abraçarem o conceito de medicina socializada – cuidados de saúde para todos, prestados gratuitamente”.
A consolidação definitiva desta ideia veio após o advento da Segunda Guerra Mundial, com a implementação de sistemas de saúde socializados na maioria dos países industrializados e a criação, em 1946, da Organização Mundial da Saúde (OMS). No entanto, a oposição sempre permaneceu forte, especialmente entre associações de médicos, empresas farmacêuticas e grupos conservadores.
A guerra aos cuidados médicos universais
Um dos porta-vozes mais famosos contra a campanha da American Medical Association (AMA), que almejava projetar uma instalação da saúde pública universal, foi o liberal conservador Ronald Reagan. “Hoje, a relação entre paciente e médico neste país é algo a ser invejado em qualquer lugar”, explicou o ex-presidente norte-americano em seu disco de vinil de 1961 em oposição a “medicina socializada”. “Um dos métodos tradicionais de impor estatismo ou socialismo a um povo”, acrescentou ele, “tem sido pela via da medicina”. Ele considerou o movimento pela saúde pública universal como uma ameaça socialista perigosa para o povo americano.
Reagan insistiu que o sistema do livre mercado tinha tudo: “a privacidade, os cuidados que o paciente necessitava, o direito de escolher um médico específico, e o direito de trocar um médico por outro”. Como Mitt Romney argumentou décadas mais tarde, a saúde deveria “agir mais como um mercado consumidor, ou seja, como as coisas com que lidamos todos os dias em nossas vidas: uma compra de pneus, de automóveis, de filtros de ar, de todos os tipos de produtos. A iniciativa privada tende a funcionar muito bem – mantendo os custos baixos e a qualidade alta”.
O caos atual provocado pela dramática escassez de equipamentos médicos básicos, como máscaras, luvas, testes de coronavírus e ventiladores, demonstra perfeitamente a problemática gerada pela livre concorrência e pelo livre mercado. Assim como a Irlanda continuou a exportar grandes quantidades de alimentos para a Inglaterra durante a fome de 1845-1849, na semana passada, um fornecedor da Lombardia, na Itália, exportou meio milhão de kits de teste para COVID-19 para os Estados Unidos – ainda que paralelamente a própria Itália precise desesperadamente destes testes.
Noutro giro, a corrida para encontrar uma vacina está pressionando países a tentarem agressivamente comprar empresas farmacêuticas um dos outros, incluindo patentes, para uso próprio. Donald Trump, que adota esta estratégia de mercado, recentemente ofereceu a uma empresa alemã “grandes somas de dinheiro” pelos direitos exclusivos de uma vacina contra a COVID-19. Da mesma forma, ele disse recentemente aos governadores estaduais dos EUA para comprarem ventiladores com orçamento e esforços próprios frente a escassez de equipamentos, sem ajuda ou intervenção federal. “Lojas de empresas privadas, muito melhor, muito mais direto, se você mesmo puder conseguir”, argumentou ele – induzindo os Estados federativos e hospitais a competirem entre si em vez de cooperarem na distribuição de suprimentos e equipamentos.
Entretanto, estas ideias capitalistas de “liberdade de escolha”, “primazia do consumidor” ou “autodeterminação” se espalharam para além das fronteiras políticas. Elas acabaram alimentando movimentos anti-vacinas, que possuem o potencial de impedir futuras ações contra o novo coronavírus, e que provocam ceticismo de pessoas em relação às recomendações das autoridades de saúde pública (sem mencionar as críticas feitas contra o movimento esquerdistas de “biopolítica”, retratando a ênfase à saúde pública como meio de controle social). No entanto, após décadas de críticas lançadas contra a saúde pública universal – taxando-a como ineficiente, cara e limitadora da liberdade de escolha individual – esta crise mostrará como os mecanismos descentralizados de mercado são incapazes de produzir uma fração otimizada de recursos para a saúde.
E uma das ilustrações mais exemplares deste fracasso é precisamente o sistema de saúde dos EUA. Se o mundo inveja a terra da livre iniciativa por muitas coisas, o sistema de saúde estadunidense provavelmente não está nesta lista. Tal sistema é cheio de burocracia – com formulários e contratos sem fim para preencher e assinar – aliado a custos altíssimos, causando medo ao cidadão de estar doente ou de necessitar de tratamentos médicos especiais. Para pessoas como nós, vindos da Bélgica e da Dinamarca, o sistema norte-americano de saúde é exatamente igual ao que Ronald Reagan pensava ser o socialismo: pouca qualidade, pouca eficiência e muito preço – e, na prática, menos poder de escolha.
Baixo poder de escolha
Embora a “liberdade de escolha” tenha sido provavelmente um dos principais slogans dos economistas neoliberais, no que tange aos cuidados com a saúde, o resultado foi, ironicamente, a diminuição da liberdade de escolha para a grande maioria dos pacientes. E isto fez com que a maioria dos homens comuns não consigam acessar os serviços de saúde. Se aceitarmos que a liberdade individual não pode existir sem que as nossas necessidades básicas sejam satisfeitas – que não podemos ser verdadeiramente livres numa sociedade onde milhões não podem sequer pagar uma consulta médica – então temos de admitir que um sistema gerido por empresas privadas restringe claramente nossa liberdade.
Ainda que tentemos relativizar nossa compreensão de “liberdade de escolha” em relação ao livre mercado, é inegável que o sistema de saúde americano, na prática, reduz a “soberania do consumidor”. Um dos resultados dos planos de saúde privados (seguradoras) é que você só pode escolher os médicos e hospitais associados ao seu plano médico – um plano que você não escolheu realmente, pois, foi imposto de alguma forma, seja pelo preço ou por outros motivos. Esta situação não só reforçou a desigualdade entre os norte-americanos, mas também entre centros médicos, onde alguns grandes hospitais atraem clientes mais ricos, enquanto que clínicas com pouco pessoal e equipamentos lidam com pacientes mais pobres e mais doentes. Este sistema de saúde parece estranho para a maioria dos países fora os EUA – especialmente porquê os sistemas de saúde pública destes geralmente oferecem o melhor dos dois mundos: a garantia de recebimento dos cuidados devidos e a capacidade de escolher.
Na Bélgica, por exemplo, não há restrições quanto ao hospital, médico ou especialista que você gostaria de se consultar. Qualquer paciente é livre para escolher o médico que quiser, sem ter de pagar mais por isso. Como um de nós ressaltamos a um amigo norte-americano incrédulo que visitou a Bélgica, aqui “você vai realmente onde quiser”. Os profissionais médicos também podem escolher trabalhar onde quiserem, seja em hospitais públicos ou privados, ou mesmo como independentes. Além disso, o sistema de saúde belga não exige que todos os hospitais sejam públicos (mesmo que a maioria seja). Os hospitais privados existem, desde que não tenham fins lucrativos e que respeitem os preços estabelecidos pelas autoridades públicas para cada tipo de intervenção médica.
Gratuidades a menos
A sabedoria popular previne que nada é grátis – e que eventual política de saúde pública custaria mais ao bolso do contribuinte do que um plano de saúde privado. Mas os números demonstram exatamente o oposto! Enquanto países como a Bélgica e a Dinamarca gastam cerca de 10% do seu PIB com saúde, os EUA gastam até 17,8% – tornando-se um dos sistemas mais caros do mundo. É prudente pagarmos mais por menos?
Primeiro, o sistema norte-americano desperdiça grandes recursos nos processos burocráticos de envio e monitoramento de reembolsos às companhias seguradoras. Quase ¼ (um quarto) dos custos de saúde dos EUA são puramente administrativos – mais que o dobro da média de outros países industrializados. Somado a isso, podemos acrescentar os altos preços que as empresas farmacêuticas podem exigir por seus produtos. Enquanto os cidadãos norte-americanos gastam, em média, mais de mil dólares por ano em gastos médicos, a maioria dos cidadãos europeus gastam cerca de metade disto. Não surpreende, portanto, que os lobistas mais financiados em Washington, depois dos banqueiros, sejam os da área da saúde.
Isso também explica o motivo de, nos EUA, 1/3 (um terço) dos americanos admite deixar para depois o tratamento médico. Seguindo a mesma tendência, ¼ (um quarto) da população estadunidense adiaria o tratamento médico ainda que tivessem acometidos por doenças graves. E entre as pessoas que ganham menos de 40 mil dólares por ano, esse número sobe para quase 40% (quarenta por cento). Como Vox apontou recentemente, mesmo mulheres com câncer de mama adiam o tratamento médico às vezes “por causa das altas franquias de seu plano de saúde, mesmo para serviços básicos, como diagnóstico por imagens”. Este problema é particularmente marcante diante da pandemia do novo coronavírus – pacientes com sintomas preocupantes têm sido relutantes em fazer o teste porquê não podem arcar com o custo do teste ou da hospitalização. Uma vez que isto pode prejudicar drasticamente a contenção do vírus, os republicanos foram praticamente forçados a anunciar que os testes se tornarão gratuitos.
Para superar este tipo de barreira, a Bélgica promoveu consultas preventivas em centros de saúde comunitários onde qualquer consulta médica é totalmente gratuita. Parte do objetivo disto é que tornar estas consultas gratuitas incentiva a ida ao médico mais cedo, em vez de esperar até que a condição de saúde do paciente piore – o que significa custos mais altos para a seguridade social e para a sociedade como um todo (tratamentos mais complexos, consultas especializadas, mais dias de isolamento pela doença e maior risco de contágio a outras pessoas). Como esta gratuidade está disponível a todos, você não chega a uma situação em que pessoas sem seguro médico sobrecarregam as salas de emergência com condições que poderiam ser tratadas facilmente se fossem identificadas precocemente.
O sistema dinamarquês funciona da mesma forma. Todos podem – e este é o objetivo – consultar com um médico caso sintam-se doentes ou com mal-estar. Além disso, há um forte enfoque nos cuidados preventivos, tais como vacinas e contraceptivos. Por exemplo, mulheres entre cinquenta e sessenta e nove anos são convidadas para um exame gratuito de cancro de mama a cada dois anos, enquanto que mulheres entre vinte e três e sessenta e cinco anos são frequentemente convidadas para um exame de cancro no colo do útero. Na Bélgica, o sistema também induz todos os cidadãos a fazer um check-up anual com o dentista, ajudando-os a detectar eventuais problemas mais cedo.
Todos nós precisamos de mais, não de menos
No entanto, nos últimos trinta anos, a tendência de racionalização e privatização também vem crescendo na Europa. Esta forma de abordagem de gerir os serviços públicos, hoje conhecida como “nova gestão pública”, tem desafiado severamente os sistemas de saúde da Europa. As medidas mais importantes de redução de custos incluem a diminuição dos leitos hospitalares (agora, ironicamente, funcionam com superlotação), incentivo à desinternação, redução dos estoques de mantimentos, abordagem de “maior esforço da equipe”, mais obrigações para os enfermeiros, racionalização dos equipamentos e do fluxo de pacientes e o aumento da concorrência entre hospitais, que são geridos como entidades semi-autônomas.
Na Dinamarca, por exemplo, o foco do novo governo em cortar custos levou a uma situação em que os pacientes (agora considerados consumidores) têm produtos cada vez menos atraentes para escolher. Enquanto isso, médicos e enfermeiros, por estarem agora muito ocupados com procedimentos burocráticos, como relatórios e avaliações, têm pouca mobilidade para ajudar os consumidores mais simples a navegarem pelo sistema de “escolha”. Como consequência, muitos profissionais se demitiram em protesto, buscando empregos no setor privado de saúde.
Embora estas reformas de “gestão enxuta” tenham, por vezes, aumentado a produtividade e reduzido os custos, isso tem sérias desvantagens. As recentes reformas na saúde não estão apenas associadas a maior intensidade e estresse do trabalho, mas também (como na Itália) ao aumento das taxas de mortalidade devido às disparidades geográficas e à desigualdade de acesso ao sistema. Além disso, enquanto que o aumento da eficiência na ocupação de leitos hospitalares leva a uma melhor realocação de recursos, tornando o sistema mais frágil diante de qualquer aumento repentino de pacientes. A tendência de declínio do número de leitos hospitalares (inclusive para UTI’s) cria situações que podem levar a Itália a uma catástrofe.
Por exemplo, na Dinamarca, as demissões em larga escala reduziram qualquer possibilidade de uma resposta à crise que mobilize funcionários extras. Os hospitais privados, por outro lado, vêm crescendo desde a subida ao poder de Anders Fogh Rasmussen (ex-primeiro ministro dinamarquês) nos anos 2000, principalmente por causa de um enorme aumento nos gastos públicos em hospitais privados. A expansão deve-se a um movimento de 2002 que dá aos pacientes o direito de escolher um hospital particular caso eles estejam esperando há mais de 2 meses por um tratamento em um hospital público (período reduzido para 1 mês em 2007). Sob o slogan “o dinheiro segue o paciente”, o setor público está, assim, subsidiando o tratamento privado.
Enquanto o setor privado está conquistando grande parte do “mercado” ainda controlado pelos hospitais públicos, o sistema universal da Dinamarca tem sido desafiado em mais um front – o crescimento dos seguros de saúde privado. Hoje, cerca de 2 milhões de dinamarqueses estão cobertos por esse tipo de seguro. Essas pessoas são tipicamente cobertas por empregadores, diretamente, ou através de um sistema de pensões. Enquanto que alguns afirmam que esse desenvolvimento tornará as listas de espera mais curtas, outros argumentam que isso levará à desigualdade social (aqueles com seguro terão melhor acesso à serviços médicos do que outros). Isso também corre o risco de corroer o setor público de saúde e impulsionar o crescimento de alternativas caras que desviam profissionais e recursos.
Na situação atual, porém, os europeus depositaram, em geral, sua total confiança nos sistemas públicos de saúde e na incrível devoção de seus profissionais. O apoio a médicos e enfermeiros que trabalham horas extras levou muitos cidadãos e estudantes a oferecerem sua ajuda para tentar aliviar esta situação crítica. Essa crise é concebida como um problema público, não uma questão privada, individual — e, portanto, exige uma resposta de âmbito estatal, coletiva.
Nunca desperdice uma crise
Quando Ronald Reagan registrou suas opiniões sobre serviços de saúde em 1961, ele provavelmente estava certo em argumentar que, se o norte-americano pudesse votar sobre medicina pública universal para todos, eles “votariam contra sem hesitação”. Embora isto tenha mudado especialmente nos últimos 4 anos, podemos agora dizer que estamos entrando em território desconhecido. De modo inimaginável para muitos, o novo coronavírus desafiou severamente a dinâmica do capitalismo global, parando a economia — talvez até arrastando-a para uma depressão sem precedentes.
As respostas à crise iminente podem ir em muitas direções. Por um lado, como Naomi Klein apontou, os contornos de um chamado capitalismo-coronavírus estão tomando forma, uma vez que a administração Trump e outros governos em todo o mundo estão revogando regulamentos financeiros, enquanto que a China já indicou que relaxará sua legislação ambiental para estimular sua economia. Por outro lado, os governos de todo o mundo implementaram medidas fiscais, como compensação salarial e pacotes de ajuda para pequenas empresas, para enfrentar dificuldades financeiras.
Atualmente parece haver uma redescoberta do Estado — como um instrumento que não só é adequado para manter uma ordem de mercado, aplicando a concorrência e mantendo as despesas públicas no mínimo, mas que também é capaz de impulsionar a economia através de políticas fiscais e fortes medidas políticas para o bem comum. Em uma reviravolta impressionante, os governos estão agora novamente reconstruindo a autoridade do Estado. A Espanha requisitou hospitais privados e fornecedores de medicamentos; a Itália reestatizou a companhia aérea Alitalia, enquanto que o Reino Unido fez o mesmo com suas ferrovias; a Alemanha está falando de estatização para redesenhar cadeias produtivas “com o fim de reconquistar a soberania nacional em áreas sensíveis”.
Além disso, as enormes dificuldades que os Estados têm encontrado para produzir rapidamente suprimentos básicos para conter a COVID-19 — e sua relutância em apreender estoques ou usar a lei federal para compelir empresas privadas a produzirem suprimentos — colocaram em xeque os próprios princípios globalizados do “just-in-time”.
Base para alternativas
Os recentes desdobramentos da história mundial indicam que ainda são possíveis alternativas à hegemonia neoliberal, da mesma forma que as medidas contra o coronavírus até agora geraram aprovação pública para estatizações e solidariedade social. Cabe à esquerda aproveitar essa oportunidade histórica, garantindo que as alternativas políticas não desapareçam com a mesma velocidade que surgiram.
Um lugar óbvio para começar (ou melhor, continuar) o trabalho político é na área da saúde pública. A crise atual deixou uma coisa clara: o vírus não se importa com seu plano de saúde (ou tipo de seguro). Em contrapartida, nos obriga a pensar na saúde como um direito coletivo, que requer fortes sistemas de saúde que possam ser acessados universalmente e gratuitamente por todos os cidadãos.
Mas, certamente, neste momento, devemos pensar grande – não apenas sobre a saúde como um direito coletivo, mas sobre a forma como o capitalismo tem gerenciado nossa existência. A COVID-19 mostrou que o mundo está disposto a fazer mudanças dramáticas e sacrifícios econômicos para salvar vidas. Devemos exigir que os princípios das soluções de saúde coletiva também se apliquem a outras questões, como a segurança alimentar e o combate às mudanças climáticas.
A gripe espanhola em 1918 trouxe mudanças sociais duradouras, possibilitadas através de fortes ações tomadas pelo Estado e pelo setor público. A crise da COVID-19 de 2020 oferece uma oportunidade única para mudar o mundo mais uma vez — e nos mostra que as ferramentas necessárias estão ao nosso alcance.
Sobre os autores
Niklas Olsen é professor associado de história e presidente do Centro de Estudos Europeus Modernos da Universidade de Copenhague. Ele é o autor de "The Sovereign Consumer: a New Intellectual History of Neoliberalism".
Daniel Zamora é um sociólogo de pós-doutorado na Université Libre de Bruxelles e Cambridge University. Seu livro, "Le Dernier Homme e A Finada da Revolução: Foucault après Mai 68", em co-autoria com Mitchell Dean, será publicado em inglês pela Verso em 2020.
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