30 de agosto de 2018

Reservas, para que te quero?

Uso de reservas internacionais para pagamento de dívida não parece uma boa ideia

Laura Carvalho

Folha de S.Paulo

Reuters

Após se aproximar de sua máxima histórica, o dólar fechou em leve queda na última quarta-feira (29), a R$ 4,11. Em meio à reversão dos fluxos financeiros internacionais, a desvalorização acumulada do real já é de 24,27% no ano.

Apesar do desemprego elevado, do baixo crescimento dos salários e da inflação próxima ao piso da meta, analistas já preveem uma elevação da taxa de juros básica pelo BC para evitar uma perda de valor ainda maior da moeda nacional.

A medida, que pode ajudar a deter a saída de capitais especulativos, ajudaria a conter os efeitos da alta do dólar sobre a inflação e a dívida em moeda estrangeira do setor privado. O problema é que os juros mais altos também servem para tornar a recuperação da economia brasileira ainda mais lenta.

Além de pôr em xeque a hipótese de que a aprovação da PEC do teto de gastos em 2016 e a maior credibilidade da equipe econômica é que seriam responsáveis pela queda de patamar na taxa de juros e a valorização do real, o episódio traz à tona discussões mais profundas sobre o (não) funcionamento do regime de metas de inflação.

Na prática, desde seu estabelecimento em 1999, a inflação só ficou dentro da meta e os juros só caíram quando o cenário externo ajudou. Quando os movimentos nos mercados financeiros mundiais foram no sentido de trazer capitais especulativos para o país, o dólar se manteve baixo, contribuindo para ancorar a inflação. Quando houve saída de capitais, o dólar subiu e a inflação acelerou, quase sempre ultrapassando o teto da meta.

O problema é que a maior parte desses movimentos não se deve à política econômica doméstica, e sim a ações no centro do capitalismo financeiro mundial sob as quais não temos nenhum controle.

No artigo de 2015 intitulado "Dilemma not Trilemma: the global financial cycle and monetary policy independence", Hélène Rey, da London Business School, mostrou como a taxa de juros básica fixada pelo banco central americano determina boa parte dos ciclos financeiros globais, restringindo a autonomia da política monetária de cada país.

A autora concluiu que, ao contrário do postulado na hipótese conhecida nos manuais de macroeconomia como trilema da política econômica que estabelece que a política monetária só é independente em meio à mobilidade de capitais caso a taxa de câmbio seja flutuante, os ciclos financeiros globais fazem com que os bancos centrais na periferia não tenham autonomia para fixar a taxa de juros doméstica, independentemente do regime de câmbio implementado.

Nesse caso, como aponta Rey, o ganho de autonomia para a política monetária dependeria de algum tipo de controle sobre os fluxos de capitais para dentro e/ou para fora do país.

Na ausência de tais controles, o que tem nos salvado e evitado uma alta ainda maior dos juros —ou o surgimento de uma crise cambial como a de 1999— é o alto volume de reservas internacionais acumulado nos anos 2000, bem como o baixíssimo percentual de dívida pública denominada em moeda estrangeira.

Países com situação muito menos confortável de reservas e dívida externa, como Argentina e Turquia, têm sofrido ainda mais os impactos desta fase do ciclo financeiro global. No último mês, enquanto o real perdeu 10,64% de seu valor frente ao dólar, a desvalorização do peso argentino chegou a 24,12%, e a da lira turca, a 33,06%.

Em meio a tais evidências, o uso de reservas internacionais para pagamento de dívida pública interna ou realização de investimentos públicos em moeda doméstica, tal qual proposto por candidatos da centro-esquerda, não parece uma boa ideia.

Sobre a autora



Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

28 de agosto de 2018

A grande traição no Equador

O presidente do Equador, Lenin Moreno, foi eleito para continuar a Revolução Cidadã de Correa - mas, em vez disso, decidiu desmantelá-la.

Entrevistado por
Pablo Vivanco

Uma entrevista com
Guillaume Long

Jacobin

Lenin Moreno na Assembleia Nacional em Quito, em maio de 2018. (Equipe de Fotografia Assembleia Nacional/Flickr)

Tradução / Em pouco mais de um ano, a paisagem política no Equador mudou dramaticamente.

Por mais de uma década, a Revolução Cidadã iniciada com Rafael Correa deu grandes passos na redução da pobreza e desigualdade, inclusive tirando da rua e colocando na escola centenas de milhares de crianças, ao mesmo tempo em que aumentava significativamente a classe média equatoriana. 

O país também alcançou estabilidade política e social, depois dos anos de agitação que se seguiram à crise bancária de 1998.

Contudo, a Revolução Cidadã não se deu sem detratores e contradições, incluindo discussões e protestos sobre direitos reprodutivos, indústria extrativa e, mais recentemente, escândalos de corrupção envolvendo figuras-chave do governo. 

Apesar disso, nas eleições de 2017 o Equador parecia ter resistido à tendência de vitória da direita em toda a América Latina. O candidato da Aliança PAIS de Correa, Lenin Moreno, foi eleito numa plataforma de continuidade – mas começam a surgir sinais de uma divergência iminente. 

Moreno e Correa são agora inimigos ferozes, com o governo de Moreno procurando prender seu ex-aliado como fez com o último vice-presidente de Correa, Jorge Glas. A Aliança PAIS separou-se e os aliados de Correa ainda não foram autorizados a registrar um novo partido.

O governo de Moreno aliou-se também com forças políticas da direita para aprovar medidas significativas de “austeridade” e liberalização, enquanto muda a política externa do país para uma disposição amistosa com os EUA. 

A mudança espetacular – que Correa considerou “traição” ou “golpe” – deixou muita gente perplexa.

Guillaume Long foi o último ministro das Relações Exteriores de Correa. Foi também o líder de assuntos internacionais da Aliança PAIS, e encabeçou os esforços para criar um amplo espaço aos partidos de esquerda latino-americanos convocando a Cúpula de Progressistas da América Latina (ELAP). Falou longamente à Jacobin sobre o que acontece no Equador e o estado da esquerda na região.

Pablo Vivanco

As reformas politico-econômicas que, surpreendentemente, foram iniciadas por Lenin Moreno, assim como o rompimento ocorrido na dirigente Aliança PAIS, são exemplos das mudanças tectônicas que estão acontecendo na política do país. O que explica o abandono da lealdade e da plataforma eleitoral de Lenin e seus partidários, muitos dos quais haviam apoiado Correa e a Revolução Cidadã?

Guillaume Long

Há vários fatores internos, o primeiro, é claro, sendo a escolha do sucessor de Correa, pelo próprio Correa, um erro significativo. Entendo que nasceu de boas intenções, quando Correa decidiu não concorrer novamente.

Esse deveria ser um movimento muito democrático. Era provável que Correa vencesse, por outro lado Lenin lutou para vencer, mas venceu com os votos de Correa. Se fizermos uma análise rigorosa do voto a Moreno em 2017, veremos que foi basicamente dos bastiões de apoio popular ao Correísmo.

Mas a ideia era ter alguém que fosse mais de centro, porque tivemos muitas políticas polarizadoras, particularmente em 2015, com um inesperado imposto sobre terras e heranças, que não existia antes. A direita mobilizou-se intensamente e pensamos que alguém como Lenin Moreno, um caráter benevolente que prezava o diálogo, institucionalizaria as coisas. Talvez Correa pudesse até mesmo voltar, quatro anos depois, com uma agenda mais radical, e continuar a transformação.

Mas penso também que foram cometidos vários erros pelos governos de Correa, em particular nos últimos anos. Isso deu mais poder a Lenin, porque havia uma noção de que Correa criava muito conflito. Os erros foram mais estéticos que estruturais, e fizeram de Lenin não apenas um herdeiro de Correa, mas uma alternativa viável para setores que não demonstravam simpatia por Correa.

Quando Moreno afastou-se de Correa, nos primeiros meses, ele capitalizou esse gesto com pessoas que estavam fartas do estilo polarizador de Correa governar. Particularmente nas classes médias, havia um sentimento de que era tempo para um tipo de governo muito mais ecumênico, que pudesse ouvir, que fosse menos conflitivo. Claro, isso foi usado como plataforma para a recuperação do poder e para colocar um fim em todos os tipos de política, inclusive políticas redistributivas de que as elites discordavam.

Claro que houve também fatores exógenos. Os dois últimos anos de governo de Correa foram muito difíceis. Em 2014, a quebra das commodities afetou a economia muito seriamente. Isso significa que, ao invés de terminar seu mandato em alta, Correa terminou na baixa. Agora, paradoxalmente, eu diria que seu melhor governo foi entre 2014 e 2017, quando ele surfou na queda das commodities de forma muito inteligente. O Equador é o único país do seu tipo que não enfrentou uma grande crise por causa da queda das commodities.

Houve também um terremoto, o que contribuiu com o crescimento negativo, fatores de todo tipo. O Equador acertou em muitas coisas: manejou para sair da recessão por meio de investimentos antiausteridade, derrotando o neoliberalismo, demonstrando que a austeridade não funciona nos bons tempos, e funciona ainda menos quando os tempos são difíceis.

Mas as pessoas sentiram que houve uma desaceleração na economia, as coisas ficaram mais duras, ficaram difíceis. Isso permitiu que Lenin viesse com uma agenda de mudanças, mas mudanças que viraram as costas para as reformas, para a transformação, a redistribuição, e retornaram a um estilo conservador de governar, que implica muito menos polarização com as elites.

Nesse processo, Lenin ganhou o apoio da mídia. De repente havia essa enorme hegemonia reconstruída em torno de sua figura, o que lhe permitiu consolidar-se politicamente.

Então, por que as pessoas do projeto político de Correa acompanham Lenin? O governo de Correa sempre foi muito heterogêneo, diria que do Partido Comunista até o centro-direita, era amplo. Havia setores empresariais, mas também movimentos sociais, sindicatos, o Partido Comunista, o Partido Socialista e a Aliança PAIS, que é como um partido de massas, e dentro do PAIS há muitas facções.

Isso significava que a esquerda estava representada em sua totalidade. Correa era radical em certos aspectos, mas em outros era menos radical, incluindo aí seu catolicismo profundamente arraigado, que era problemático para certos setores de seu governo. Alguns desses setores viu Moreno como alguém mais secular.

Naquele momento havia a possibilidade de que Moreno se abriria para algumas dessas frentes, certas reformas de gênero, direitos sexuais e reprodutivos. Agora sabemos que isso não aconteceu. Poderíamos examinar algumas dessas acusações contra Correa, porque eu diria que, com a grande exceção do aborto, nas outras frentes o Equador deu importantes saltos nas questões de gênero e LGBT.

Mas havia uma percepção, em certos setores da esquerda, de que Moreno seria mais progressista nesses temas. Que talvez perdêssemos algum radicalismo no fronte econômico, mas ganhássemos em políticas identitárias.

Não aconteceu, mas esta é a razão pela qual eles o apoiaram.

Pablo Vivanco

Parece paradoxal que, por um lado, a situação atual resulte da fraqueza de Correa e de seu governo; mas por outro, ele poderia provavelmente vencer a eleição. Diante disso, como descreveria o estado da esquerda e da Revolução Cidadã no Equador, hoje?

Guillaume Long

Gostaria que a política fosse menos contraditória, porque as duas coisas são verdadeiras. Penso que Correa teria vencido, mas penso também que foi muito fácil montar uma plataforma anti-Correa. Havia dois amplos setores da sociedade – um que teria votado em Correa e outro que não teria votado em Correa. Penso que Moreno conseguiu eleger-se com uma metade, mas governa com a outra.

Eu diria que a esquerda é quase inexistente hoje, no governo. Aqueles setores que uniram-se ao governo de Moreno pouco a pouco se deram conta de que ele tinha uma agenda liberal, fundamentalmente. Estamos agora vendo todas essas leis entrar em vigor, basicamente trazendo um novo tipo de ajuste estrutural que se afasta do modelo de desenvolvimento que Correa e seu governo implementaram.

Agora todos os ministérios-chave estão nas mãos, não somente da direita, mas da linha dura, incluindo os conselheiros-chave do opositor de Moreno nas eleições de 2017. O novo ministro das finanças foi conselheiro financeiro na campanha eleitoral do opositor de Moreno.

Então, a esquerda ocupa postos marginais no governo do Equador. Tivemos outra demissão semana passada. Ele tinha as mãos amarradas. Houve algumas dúvidas se Moreno ainda podia ser considerado de esquerda, logo nos primeiros meses, inclusive internacionalmente. Mas penso que agora há consenso em todo lugar, inclusive fora do Equador, de que Moreno não constituiu um governo de esquerda e que, de todos as formas possíveis, economicamente, geopoliticamente, em termos de política exterior, é um giro conservador.

Onde está a esquerda? Na oposição. Alguns poucos pequenos partidos estão acompanhando Moreno, mas todos os outros estão hoje na oposição.

O que é incrível é a própria Aliança PAIS. Ela foi fundada por Correa, depois expropriada por Moreno, quando foram expulsas todas as pessoas-chave, os fundadores. Agora, é uma casca vazia. O PAIS foi durante anos o maior partido no Equador e no entanto desmoronou, porque está dividido, tanto em sua expressão parlamentar quanto entre os que permanecem leais a Correa e os que se vendem a Moreno, mas também em sua expressão de base. Nas comunidades de base, onde há menos interesses, menos salários envolvidos, menos poder e menos dinheiro para ser distribuido ao redor, obviamente, uma grande maioria dos apoiadores do PAIS permaneceu leal a Correa.

Isso significa que eles agora estão sem partido, porque o governo de Moreno e as instituições controladas por ele impediram Correa de criar um novo partido.

Moreno conseguiu controlar o PAIS, mas o partido agora é insignificante. Perdeu a maioria no Congresso, não por meio de votos, mas por causa de todos aqueles parlamentares que deixaram o partido. E assim Moreno perdeu a maioria e, perdendo a maioria, teve também que abraçar a direita, porque a única maneira de governar é com essa aliança, que o está pressionando a fazer ajustes estruturais neoliberais.

Assim, a esquerda está na oposição, obviamente dividida numa miríade de diferentes expressões, mas cada vez mais unida contra a virada neoliberal.

Há correistas inveterados, há correistas críticos. Algumas pessoas que eram muito favoráveis a suas políticas socioeconômicas e sua política externa, que fez nascer o Estado-nação soberano, foram críticos de outras coisas, por exemplo, a questão do aborto. Há diferentes tipos de correísmo, e há também a esquerda não correísta. Esta é mais marginal e menor, mas existe e agora estamos vendo pessoas fazendo oposição de esquerda a Correa, incluindo pessoas agressivamente anti-Correa que agora são agressivamente anti-Moreno. Então, a esquerda está se reconfigurando.

Pablo Vivanco

Você mencionou uma esquerda anti-Correa que está se voltando contra Moreno. A quem está se referindo?

Guillaume Long

A esquerda anti-Correa sempre foi pequena e de elite. O único setor não-elitista foi o movimento indígena CONAIE, em declínio acelerado, que, infelizmente, cogovernado por Lucio Gutierrez , vem decaindo. Ainda há alguns remanescentes indígenas, mas nunca foram importantes em termos eleitorais.

Depois há outro tipo de esquerda hard que se denomina maoista, embora eu pense que não tem nada de maoista nela. Está ligada aos sindicatos e ao relacionamento clientelista com o estado. Eram chamados Movimento Popular Democrático e agora são Unidade Popular. Sempre fizeram oposição a Correa, porque ele obviamente limpou os sindicatos e suas relações com o estado.

Não são contra Moreno porque ele lhes deu um grande espaço nos estados, de modo a não ter problemas.

Outros setores da esquerda, particularmente a esquerda liberal, certas elites, estão começando a tornar-se mais críticas. Pode-se, por exemplo, ver acadêmicos e economistas de esquerda, que pensavam que Correa não era suficientemente radical, que sempre faziam críticas à esquerda a Correa, sendo agora ainda mais críticos de Moreno.

Pablo Vivanco

Você vê a “traição” de Lenin como alguma coisa que foi se desenvolvendo, produto de um processo de divergência, ou pensa que houve algo mais nefasto envolvido?

Guillaume Long

Ninguém esperava que Moreno fosse idêntico a Correa, nem esperaríamos que obedecesse a Correa ou fosse seu fantoche. Qualquer pessoa eleita legitimamente deveria ter seu próprio programa de governo e isso era o que todos esperávamos. O que desejávamos, em vários sentidos.

Mas uma coisa é dizer “vou ser meu próprio homem, não uma marionete”, e outra bem diferente é implementar políticas que são exatamente contrárias às que ofereceu às pessoas em sua campanha política. Moreno está implementando o programa e promessas de seu opositor na campanha. Ele até disse diante das câmeras, em tom de brincadeira, que “estava meio que odiando” as pessoas que votaram nele.

Verdadeiros líderes democráticos devem estar conscientes de que são representantes da nação, da totalidade do eleitorado, e não somente daqueles eleitores que votaram nele, mas isso é muito diferente de dizer “estou começado a preferir as pessoas que votaram contra mim”.

Isso é contrário à ideia que há por trás da democracia representativa, de que você tem um programa, faz promessas e então, se é eleito, implementa esse programa. Se não o faz, o que está na verdade dizendo é que está mentindo, que mentiu durante a campanha, que seu programa foi uma mentira, suas promessas foram uma mentira.

Não se pode dizer, como Moreno, “sou a favor da Revolução Cidadã, o que fizemos é realmente importante em termos de nossa soberania, em termos de justiça e redistribuição social” e depois se aproximar dos Estados Unidos, querer expulsar Julian Assange da embaixada, aderir à Aliança do Pacífico, colocar um fim ao processo de paz entre o Exército de Libertação Nacional (ELN) e o governo colombiano no Equador e implementar um agressivo programa de ajuste estrutural neoliberal.

Não se trata apenas de rivalidade pessoal entre dois líderes. Isso é algo maior, que tem consequências geopolíticas. É algo que foi encorajado e celebrado pelas elites do Equador, pelas elites da América Latina e pelas elites dos EUA. Penso que os Estados Unidos estão felizes, pode-se ver isso pela satisfação do embaixador dos EUA em todas as fotos, em cada evento ministerial que é organizado no Equador. Ele aparece com um largo sorriso. Está muito claro, penso, o que está acontecendo geopoliticamente.

Até que ponto foi premeditado ou foi se desdobrando é algo a ser analisado além da retórica política. Os historiadores deverão examinar com rigor se havia um plano desde o início, com envolvimento internacional, inclusive, ou se os Estados Unidos surfaram na onda e deram mais incentivos.

Mas estou absolutamente certo de que esse não é um evento inocente – é parte de um projeto mais amplo, que busca não só colocar um fim nos governos esquerdistas da América Latina, como também enlamear seu legado. Nesse sentido, o governo Moreno insere-se no TINA (There Is No Alternative) – “não há alternativa”– o tipo de fatalismo neoliberal de que medidas anti-austeridade, ou governos de esquerda não podem ter sucesso na América Latina. Isso é o que está em jogo, de fato.

A lama que foi atirada em Correa está tentando mudar o julgamento da história, mas penso que não vão conseguir. Há muitos de nós resistindo, as pessoas têm memória.

Pablo Vivanco

Regionalmente, as coisas também mudaram muito nos últimos anos. Não apenas em termos de resultados eleitorais, mas também questões persistentes em torno das contradições que surgiram com a entrada da esquerda no poder. Ao lado do seu papel como ministro do exterior, você liderou várias iniciativas políticas para o PAIS. Que lições a esquerda do continente pode tirar dessas experiências de governo?

Guillaume Long

Devíamos aprender com nossos erros, evidentemente. O projeto de Correa era criar um estado-nação moderno, num contexto muito pré-moderno. O Equador é, sob vários pontos de vista, um dos estados mais pré-modernos da América do Sul. Correa criou um estado-nação mais estável e moderno, com redistribuição de renda. O Equador tem muito a ensinar à América Latina e à esquerda, foi bem sucedido, economicamente viável – que é a crítica sempre feita à esquerda.

O modelo econômico era interessante em termos de redistribuição, de redução de desigualdade, numa parte do mundo que é a mais desigual. Foi um sucesso também em termos de seus projetos internacionais: soberania, integração e inserção estratégica num mundo multipolar. Esses são os sucessos, mas há coisas em que foi menos bem sucedido.

Penso que hoje é difícil ter um projeto de esquerda sem uma postura mais radical sobre feminismo, particularmente no contexto latino-americano. Também porque o norte global tenta erigir um pedestal dizendo que o sul global ainda é pré-moderno numa série de aspectos.

Sabemos, é claro, que essas questões tendem a avançar com a modernidade, a urbanização e a alfabetização, não se pode separá-las. E tivemos sucesso em alguns aspectos, como por exemplo a representação das mulheres na política. Tivemos um parlamento com muito mais mulheres como representantes legislativas do que a maioria das democracias europeias. Mas penso que a revolução deveria ser não somente social e econômica, deveria também ser feminista, e isso é algo que precisamos fazer.

A simplificação da questão ambiental também é uma ferramenta do imperialismo. Muitos dos problemas ambientais de países latino-americanos, tais como os enfrentados pelo Equador, devem-se em primeiro lugar à ausência da modernidade. Assim, se na Amazônia não há cidades organizadas, com um bom sistema de esgoto, e todo o lixo vai parar nos rios — o que é típico de estados fracos, uma consequência do neoliberalismo —, isso acaba prejudicando mais o meio ambiente do que políticas desenvolvimentistas, frequentemente condenadas.

Há um mito de que fomos vítimas, mas é também verdade que poderíamos ter feito mais para assegurar que nosso desenvolvimento fosse amigável ao meio ambiente. Também poderíamos ter feito mais para mobilizar politicamente a questão ambiental, e criar os tipos certos de aliança política para criar consenso hegemônico sobre os direitos da natureza, que nós consagramos em nossa constituição.

Então, em gênero, direitos reprodutivos, direitos LGBT e meio ambiente, que são as grandes questões do século 21, deveríamos ter feito mais.

No governo Correa havia em geral muita consideração com os bens comuns globais, bens públicos, todas essas coisas com que era necessário lidar em nível internacional, e não apenas superficialmente, com um discurso estilo ONG “a natureza é bela”, sem pensar em termos estruturais e sistêmicos.

Há dois tipos de redistribuição. A primeira é o tipo de redistribuição nacional, em que se redistribui recursos para o povo mais pobre, e que é o grande problema da América Latina, por causa de nossas desigualdades. Mas há o outro tipo de redistribuição, entre países ricos e pobres, e que não se pode fazer por decreto ou política pública. Tem de ser feita pela mudança da matriz improdutiva e seu papel na divisão internacional do trabalho. Essa é a única maneira, porque não há um governo global para promover essa redistribuição.

É onde Correa era forte, onde o Equador era forte. Dez anos não são suficientes para mudar a matriz produtiva, mas a visão esteva sempre voltada para a educação, a educação superior, ciência e tecnologia, energia, desenvolvimento de novos setores. Não apenas usar o dinheiro que recebíamos do petróleo ou outras fontes para redistribuir, mas para investir uma quantia significativa na transformação da economia para a redistribuição global.

Isso é algo que, penso, o Equador pode trazer para a esquerda latino-americana, porque fala-se muito sobre redistribuição doméstica mas muito pouco sobre redistribuição internacional.

Precisamos unir a esquerda e superar nossas diferenças. É sempre mais fácil superar as diferenças estando na oposição do que fazê-lo sendo governo, porque quando você está governando, faz coisas que dividem as pessoas. Mas quando está na oposição, é muito mais fácil encontrar o que Laclau costumava denominar significantes vazios, que fazem uma plataforma ampla e antioligárquica. E peso que, da próxima vez que estivermos no governo, devemos nos esforçar para ter menos divisões do que tivemos neste momento, e tentar manter essa plataforma.

Sobre o autor

Guillaume Long was president of the International Relations Commission of Ecuador’s governing Alianza PAIS party. He was Ecuador’s minister for foreign relations and holds a PhD from the University of London’s Institute for the Study of the Americas.

Sobre o entrevistador

Pablo Vivanco é o ex-diretor do TeleSUR English.

27 de agosto de 2018

Leia um capítulo de "Zé Dirceu - Memórias", a autobiografia do líder petista


O ex-ministro fala sobre a batalha da Maria Antônia

Bernardo Mello Franco

O Globo

José Dirceu com Eduardo Matarazzo Suplicy e Lula, três dos principais nomes de fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980. Alfredo Rizzutti / Estadão Conteúdo

O ex-ministro José Dirceu, de 72 anos, escreveu na cadeia o que diz ser o primeiro tomo de Zé Dirceu – Memórias (Geração Editorial). Rascunhou o texto à mão, em letra miúda, com o papel e a caneta esferográfica que tinha à disposição em quase dois anos que esteve preso em Pinhais, no Paraná. O original passava de 400 páginas.

Abaixo, leia um capítulo do livro:

***

Capítulo 6 - A BATALHA DA MARIA ANTÔNIA

A verdadeira história do que aconteceu naquele dia em Higienópolis e a insanidade de um congresso da UNE em Ibiúna

Eu era um dos dirigentes da dissidência paulista do PCB quando assumi a presidência da União Estadual dos Estudantes, mas a partir daí afastei-me do partido, dedicando-me exclusivamente ao Movimento Estudantil. Ao ser preso, não era filiado a nenhuma organização, um fato raro.

Ibiúna foi o êxtase e a agonia do Movimento Estudantil, pela grandeza e pelo tamanho do erro. Um congresso clandestino com 850 delegados! Só o Movimento Estudantil com sua audácia e coragem seria capaz de tamanha sandice.

A UNE nunca deixou de realizar seus congressos, mesmo sob a ditadura. O primeiro deles foi em 1965, em São Paulo, mediante mandado de segurança. Aconteceu na Politécnica, situada na Cidade Universitária, no Crusp, conjunto residencial — várias faculdades, como a Politécnica, estavam instaladas no campus de USP. O segundo, em Belo Horizonte e o terceiro em Valinhos, no convento de São Bento, sempre protegidos por entidades religiosas, dada a proximidade da Ação Popular com a Igreja Católica. O de 1968, já sobre influência e direção da dissidência, seria o de Ibiúna. Os demais haviam sido clandestinos, mas com reduzido número de delegados.

José Serra, da AP, era o presidente da UNE em 1964. No ano seguinte, elegeu-se José Luís Guedes, também da AP; em 1967, foi a vez de Luís Travassos, meu antecessor na presidência do Centro Acadêmico 22 de Agosto e na UEE de São Paulo.

Para entender o 30º Congresso da UNE é preciso retornar a 1968, quando o Movimento Estudantil tomou conta das ruas e faculdades do país. As greves, com ocupação de fábricas em cidades industriais, indicavam a retomada da luta operária. Além disso, a oposição ganhava terreno em setores da Igreja, no meio artístico e intelectual, em importantes fatias da classe média. A situação foi agravada pela queda de braço entre os militares que levara à “eleição” — na verdade, uma escolha do alto-comando das Forças Armadas — do marechal Costa e Silva, supostamente da linha-dura, para suceder a Castelo Branco.

A passeata dos 100 mil, no Rio de Janeiro, em março de 1968, as ocupações, o crescimento do movimento secundarista, como era chamado o Movimento Estudantil nos ginásios e colégios, acenderam a luz vermelha na cúpula do regime militar.

Dentro do movimento, a luta pela direção entre a AP e as dissidências, com participação do PCBR, do PCB, dos trotskistas da 4ª Internacional, do Partido Operário Comunista, o POC, era generalizada. Como é da natureza dessas contendas, envolveu a disputa pela sede, pela pauta, pelo método de escolha dos delegados, pelo credenciamento, pelo controle das comissões, pela mesa e pelo regimento do congresso. Ou seja, uma “guerra civil” incompatível com o momento gravíssimo que vivia o paíse o grau de repressão desencadeado.

Em Salvador, no Conselho Geral de Entidades da UNE, as dissidências tinham maioria e decidiram o local do congresso — São Paulo — e a pauta política influenciada evidentemente pela visão daquela organização política.

No clima de confronto que o Brasil vivia, organizar um congresso clandestino nessas condições era uma temeridade, com mais de 800 delegados se deslocando de todos os cantos do país.

Centenas de delegados rumaram para um pequeno sítio, o Mucuru, no bairro Apiaí, em Ibiúna. Chovia torrencialmente e as condições do local eram péssimas. Não havia instalações minimamente adequadas para tomar banho, dormir, comer e fazer reuniões. A plenária foi aberta e o Congresso poderia ter se encerrado antes de as tropas cercarem o sítio, não fossem as divergências sobre tudo — credenciamento, regimento interno, pauta e muito mais — que adiaram seu início em 48 horas. Lentidão que seria fatal para o Congresso, surpreendido com a chegada de forças policiais da Força Pública de São Paulo, Deops e mesmo do exército para prender centenas de delegados. Deveu-se o atraso também às negociações entre as facções políticas e delegações sobre as chapas e cargos, sobre o apoio a um ou outro candidato, que poderiam formar uma maioria e levar à vitória da minha candidatura a presidente da UNE ou a dos outros candidatos, principalmente o da AP, Jean Marc von der Weid, e Marcelo Medeiros, do PCBR.

Hoje parece um despautério promover um congresso clandestino com centenas de delegados, sem chamar a atenção das autoridades e órgãos de informação e inteligência, mas havia precedentes. Belo Horizonte e Valinhos, apesar das diferenças de local, instalações e número de participantes, mostraram que seria possível. Em Ibiúna, também seria factível, desde que fizéssemos um encontro relâmpago que marcasse uma vitóriado Movimento Estudantil sobre a ditadura, o que exigia um grau de unidade e de responsabilidade política de que não dispúnhamos.

O local foi definido, vim a saber depois, dado o compartimento das informações, pela comissão de organização, a partir da ajuda de um apoiador da dissidência e do Agrupamento de São Paulo. Era Domingos Simões, dono do sítio, de quem me tornaria amigo nas décadas de 1980 e 1990 e a quem visitaria mais de uma vez naqueles anos. O pedido viera de Therezinha Zerbini, esposa do general cassado e reformado pelos golpistas, Euryale Zerbini, e futuramente líder da luta pela anistia, e pelo frei Tito de Alencar, dominicano e estudante da Faculdade de Filosofia da USP.

Levantou-se, depois, a tese de que o lugar expressava “uma concepção foquista e guerrilheira”, o que é uma grande bobagem. Embora o fato de escolher um sítio combinasse com a decisão de, novamente, organizar um congresso clandestino, essa sim a verdadeira decisão a ser questionada.

Sobre a queda do Congresso, há muito folclore, mas os seus organizadores estão vivos e podem revelar toda a trama que envolveu sua concepção e organização. Da minha parte, fico com a responsabilidade política pela sua realização, apesar de não saber nada sobre onde e em que condições seria realizado por razões de segurança. Apesar da prisão de centenas de estudantes, a própria realização, a ida de mais de 800 delegados para São Paulo e seu transporte para Ibiúna revelam o potencial de organização das entidades estudantis e organizações políticas e relevam também qualquer outro erro, na verdade é que o Congresso caiu, como dizíamos, não pela compra de centenas de pães numa padaria da região, mas por sua própria concepção. Mas os tempos eram outros e o exemplo dos dois outros congressos clandestinos turbou nossa avaliação dos riscos, e a compartimentação de informações por medidas de segurança fez o resto.

Pela própria experiência do Movimento Estudantil, sabia-se ser possível organizar um congresso dentro de uma universidade, como, por exemplo, no Crusp da Cidade Universitária da USP, em São Paulo. Tínhamos este aprendizado. No Crusp acontecera o congresso da

UEE, acompanhado por milhares de estudantes, como escudo protetor à repressão que ameaçava invadir a Cidade Universitária. Foi uma estupenda vitória do Movimento Estudantil, retratada em manchetes de todos os jornais do país. Fui eleito presidente da UEE e consolidei minha liderança no encontro vitorioso do Crusp.

Era um contraponto democrático à ditadura e a suas farsas eleitorais, seu colégio eleitoral indireto, sua repressão e autoritarismo. Mas, no fundo, essa decisão retratava nosso estado de espírito e o desejo de apoiar a luta armada, optando por negar a luta parlamentar e a oposição legal dirigida pelo MDB. Já se pregava o voto nulo nas eleições de 1966.

Fomos incapazes, todos nós e a AP, de combinar as formas de luta, de articular com a oposição institucional do MDB, com os parlamentares de esquerda, com o Movimento Contra a Ditadura. Recordo minhas conversas com deputados eleitos pelo MDB, casos de Fernando Perrone, um amigo, cuja família era de Passa Quatro. E também de Mário Covas, amigo de meu cunhado, o jornalista Flamarion Mossri, e de minhas discussões com Cláudio Abramo. Todos eles tentavam nos convencer do despropósito daluta armada, ainda que cientes da necessidade da resistência sem tréguas.

Foi Mário Covas, inclusive, quem me doou as passagens de avião para comparecer à reunião do conselho de entidades da UNE em 1968 e passar por Brasília para fazer contatos e reuniões políticas antes de voltar a São Paulo. Por tais exemplos de solidariedade, Covas responderia a Inquérito Policial Militar (IPM), que levaria a sua ilegal e ilegítima cassação, reparada depois pelo povo de Santos, sua cidade natal, e pelos paulistas, elegendo-o sucessivamente deputado, senadore governador por duas vezes.

Essa viagem para Salvador e Brasília ficou muito marcada em minha memória. Conheci uma das maiores capitais do Nordeste e nossa capital federal, impactado e orgulhoso de JK, mineiro como eu, que fora capaz de arrancar o Brasil do litoral e desbravar o cerrado do planalto central. A arquitetura e a beleza do pôr do sol me deixavam inebriado e um sentimento de futuro se apossava de meus pensamentos.

Mas a vida era dura, meu cunhado só podia pagar minha passagem de ônibus, e o tempo era curto, precisava chegar logo a Salvador, daí minha pressa e o pedido a Mário Covas.

No reencontro com minha irmã Neide e seus filhos, os conselhos dela soavam para mim como carinho de irmã sem importância, era como se não existisse risco nenhum na luta contra a ditadura, era nossa geração. Ela relata-me como reagi aos seus conselhos, preocupada com meus pais e com meus atos: “Você então pegou a mão do Flama, seu sobrinho que leva o nome do pai, Flamarion, e desceu do apartamento dizendo que o papo da mãe dele estava muito chato”. Na hora de ir embora, uma indelicadeza própria da esquerda: “Aqui caberiam trêsou quatro famílias”, relembra minha irmã Neide.

Sabendo que a situação social e política era explosiva, eu tinha a intuição de que logo teríamos um desenlace. Não perduraria uma situação envolvendo a crescente mobilização contra a ditadura, as dissensões dentro do regime, os movimentos da oposição autêntica do MDB no parlamento, o aumento das ações armadas e dos choques om a repressão, sem que um lado se impusesse.

Verdade é que o MDB, como instituição, até 1974 não enfrentaria o governo que o criara. Principalmente nos anos mais terríveis, aqueles entre 1969 e 1973, manteve sua denúncia da repressão no nível mínimo. Dedicou-se a exigir o restabelecimento das liberdades democráticas ou do Estado de Direito. Isso era reflexo também do expurgo feito em suas fileiras em 1969, quando o setor mais combativo foi cassado, e da repressão que impedia sua organização pela base. Pesaram nisso também os anos do boom econômico e as campanhas psicossociais da Assessoria Especial de Relações Públicas, a AERP, máquina de lavagem cerebral do período Médici. Iludidas, as classes médias e outros setores da pequena burguesia acreditavam na política de desenvolvimento, bem-estar social e segurança. Sem o suporte das camadas médias e com os setores populares que se opunham ao regime votando nulo e branco, o MDB seria massacrado nas urnas em 1970, quando se cogitou, inclusive, de sua dissolução. Também é necessário frisar que a base social do regime se ampliou com a integração de importantes setores de técnicos e profissionais na administração pública e privada, com o enriquecimento de pequenos e médios comerciantes e industriais e com a especulação com terras, imóveis e ações da Bolsa de Valores.

Bem antes da edição do Ato Institucional número 5, começamos, por proposta minha, a preparar o Movimento Estudantil para um possível golpe dentro do golpe. Orientamos para essa situação limite, colocando na clandestinidade dirigentes e instalações, como gráficas, veículos e os poucos recursos que tínhamos. Minha principal preocupação era preservar nossa capacidade de luta e mobilização, nossa presença nas ruas e nossos centros acadêmicos, preservar lideranças evitando suas prisões e construir um sistema de comunicações resistente à repressão.

O pretexto para a edição do AI-5 e o fechamento do Congresso Nacional seria um discurso do deputado Márcio Moreira Alves, considerado ofensivo às forças armadas. A verdadeira motivação, porém, residia na aspiração dos militares mais radicais, a linha-dura, de obter poder total para concretizar os objetivos do golpe: destruir toda oposição democrática e popular ao governo e aos interesses que ele representava. Impunha o alinhamento com os Estados Unidos na Guerra Fria e na escalada de golpes em toda América do Sul, como veríamos logo noUruguai, Argentina, Bolívia, Chile. E com a Operação Condor, praticamente articulada pelos EUA e Brasil, seus principais fiadores.

Ferido de morte pelas prisões de Ibiúna e, a seguir, pelo AI-5, o Movimento Estudantil ainda resistiu em 1969 e 1970, realizando os chamados “congressinhos” regionais e elegendo, em março de 1969, uma nova diretoria para a UNE, tendo Jean Marc como presidente, derrotando Rafael de Falco, presidente do DCE da USP e nosso candidato.

Após Ibiúna, eu começaria um longo caminho pelas prisões militares e a luta jurídica pela liberdade. Eu e os demais líderes estudantis aprisionados, enquanto descia sobre o país a cortina do terror, sob o silêncio, quando não a cumplicidade, do Supremo Tribunal Federal (STF) e da mídia. Não por muito tempo, como veremos.

Estávamos todos esgotados, insones, mas sem perder a combatividade. Tínhamos vivido meses de tensão e desgaste. Em São Paulo, particularmente, enfrentamos as forças repressivas, o CCC, grupo paramilitar de estudantes de direita organizados pelo Deops e pelos órgãos de inteligência das Forças Armadas. A finalidade do CCC era dissolver assembleias, espancar estudantes, impedir eleições estudantis, depredar centros acadêmicos, ocupar faculdades pela força e realizar provocações em passeatas. Disso, o exemplo maior foi a tentativa, bem-sucedida, de nos desalojar da Faculdade de Filosofia e Letras da USP, na rua Maria Antônia, o coração e a alma do Movimento Estudantil paulista, seu principal centro político-cultural, irradiador de energia e criatividade para o país.

A chamada “Guerra da Maria Antônia” entre estudantes da filosofia contra alunos do Mackenzie é um case clássico de como se manipula um acontecimento histórico.

A UNE e a UEE eram apoiadas pelo DCE e por quatro dos cinco centros acadêmicos do Mackenzie, chamados DA, como o João Mendes, da Faculdade de Direito, presidido por Lauro Pacheco de Toledo Ferraz, o vice-presidente do DCE Jun Nakabayashi, o vice-presidente da UEE e também aluno de direito Américo Nicoletti e outras importantes lideranças da faculdade, como Renato Martinelli, Agostinho Fiordelisio, Décio Bar, José A. de Azevedo Marques, o Zé Al e Cid Barbosa Lima Sobrinho, militantes ativos do Movimento Estudantil e também muitos do PCB.

Não houve nenhuma guerra entre os estudantes da USP-Filosofia contra os do Mackenzie. E muito menos entre as duas instituições, se bem que a reitora do Mackenzie, Esther de Figueiredo Ferraz, identificada com o golpe de 1964, seria ministra da Educação no governo João Figueiredo, última fase do período ditatorial e apoiava explicitamente o CCC e a presença de grupos paramilitares na sua universidade, treinados pelo Deops sob a coordenação do policial Raul Nogueira de Lima, o “Raul Careca”.

A ditadura queria desalojar os estudantes do centro da cidade, da Maria Antônia, vértice de um círculo que incluía a FAU, na rua Maranhão, a Economia, na rua Visconde de Cairu, a Sociologia e Política, na rua General Jardim, e a Filosofia e o Mackenzie frente a frente. Eram dezenas de milhares de estudantes com grande capacidade de mobilização e agitação, o quartel-general do Movimento Estudantil paulista e sua crucial base de apoio e de atuação política.

Tudo começou com uma mera provocação de grupos direitistas do Mackenzie. Eles exigiam a retirada de uma barreira que fechava a rua Maria Antônia na confluência com Itambé e Dona Veridiana, em Higienópolis, ameaçando fazer recuar o bloqueio à força.

Fui acordado no dia 3 de outubro, vésperas do 30º Congresso da UNE. Dormia na faculdade ocupada. Seguranças do prédio e estudantes que haviam montado um “pedágio” na barreira — a maioria dos motoristas apoiava o ME — avisavam que era iminente um confronto com os estudantes do Mackenzie.

Fui ao local, negociei e fiz retroceder a “cancela” da trincheira para liberar um dos portões da Universidade Mackenzie. Apesar disso, logo recomeçaram os atritos e as agressões aos nossos cobradores de “pedágio”. Compreendi que aquela insistência buscava um conflito, o que não era nosso objetivo.

Dito e feito. Em poucos minutos, a rixa aumentou, surgiram homens armados no Mackenzie — traziam bombas químicas, fabricadas nos laboratórios da faculdade, carabinas e revólveres — que deflagraram a batalha contra nós e o prédio da Filosofia. Tentavam invadi-la e nos desalojar pela violência. Serviram à repressão e às forças policiais que, no final, viriam para apoiá-las, invadir o edifício e incendiá-lo, depois de depredar todas suas instalações.

Na conflagração, a direita assassinou, com um tiro na cabeça, o estudante seminarista José Carlos Guimarães, do Colégio Marina Cintra, situado na Consolação. José Guimarães era um dos defensores do prédio, como centenas de outros estudantes, que acorreram à Maria Antônia ao saberem da agressão. Como nossa meta não era ocupar o Mackenzie e sim defender a Maria Antônia, decidi por uma retirada para evitar novas mortes e não propiciar pretexto para uma repressão generalizada ao Movimento Estudantil. Depois de um comício relâmpago na rua Visconde de Cairu, onde discursei empunhando a camisa ensanguentada de José Guimarães, saímos em passeata pelo centro, denunciando o assassinato do jovem e pobre estudante, que viera estudar e trabalhar em São Paulo.

Os bandos paramilitares e o CCC, fundado por João Marcos Flaquer e comandado pelos delegados “Raul Careca” e Otávio Medeiros, com a participação dos estudantes Ricardo Osni, Francisco José Menin, João Parisi Filho, José Parisi, Boris Casoy, entre outros, que dirigiram o ataque ao prédio da Filosofia, com cobertura das autoridades, havia tempos usavam e abusavam da violência. Espancavam lideranças, dissolviam reuniões, vandalizavam urnas e locais de votação nas eleições estudantis como no dia 27 de setembro de 1967. Porém, a partir daquele dia, demos um basta e começamos a responder à altura. Como comprovam as fotografias de militantes do Movimento Estudantil, defendendo-se das investidas do CCC na própria Filosofia ocupada. Retrucamos com tiros a uma agressão armada noturna para surpresa e recuo imediato dos paramilitares. Bem mais tarde, Flaquer, Osni e os irmãos Parisi figurariam como torturadores no rol do livro Tortura Nunca Mais. O tiro que assassinou José Guimarães foi atribuído a Osni, segundo o próprio delegado José Paulo Bonchristiano, do Dops, em entrevista à repórter Marina Amaral, da Agência Pública.

José Parisi tinha o péssimo hábito de agredir estudantes e, arrogante, vivia se infiltrando nas manifestações como provocador. Numa dessas vezes, surpreendido e cercado por dezenas de estudantes como agente a serviço do Deops e trazido à minha presença, parecia um menino travesso que, chorando, me implorava para evitar seu linchamento. Dono de um histórico de agressões, invasões de faculdades, dissolução de assembleias, destruição de urnas de votação nas eleições, sequestros de estudantes, era tido como um dos auxiliares de Raul Careca. Para evitar o pior, decidi que ficaria “preso” conosco e criei as condições para soltá-lo, apesar do desgaste que sofri — a maioria queria mesmo era dar-lhe uma boa surra, antes de deixá-lo nu em alguma rua movimentada como a Augusta.

A versão da ditadura, do governo Abreu Sodré e da reitora do Mackenzie, que felicitou os agressores e assassinos, foi da “guerra” entre estudantes e entre as instituições. Nada mais falso. Tratou-se de provocação pensada, organizada e executada pelos órgãos de repressão para atacar e incendiar a principal faculdade da USP, onde até mesmo havíamos feito uma reforma universitária comandada por uma comissão paritária de estudantes e professores.

Antes de relatar minha prisão, minha memória me leva a Iara Iavelberg, líder estudantil, militante da Polop, presidente do Grêmio da Psicologia que hoje leva seu nome. Culta, libertária, feminista, elegante, quatro anos mais velha do que eu, Iara era uma liderança natural. Eu a via de longe nas assembleias e às vezes conversava nas reuniões políticas, um fosso de divergências políticas separava a Dissidência da Polop. No fundo eu a admirava, mas eu aos poucos me apaixonava, sem ser correspondido.

Ela nem sequer me notava fora a convivência estudantil e política. Fiz de tudo para namorá-la, mas nada. Desisti e eis que, após uma assembleia, saímos para jantar com um grupo que depois se tornaria constante e unido: André Gouveia, Zé Arantes, Lola, Moacyr Urbano Villela e sua namorada Beth Chachamovits e tantos outros. Foi quando me dei conta de que Iara já me percebia, sentava-se ao meu lado, me envolvia. Não cabia em mim de alegria e passamos a namorar e a viver uma curta e tumultuada paixão, que durou pouco, como tudo naqueles tempos, mas marcou minha vida para sempre. Imaturo e irascível, não fui capaz de manter a relação e, aos poucos, com idas e vindas, reencontros e separações, acabamos com a relação, mas não com o afeto e a amizade.

Ainda me lembro, como se fosse hoje, nosso reencontro nas ruas em pé de guerra, da Maria Antônia cercada por barricadas, numa noite no mês de agosto ou setembro, e nossa alegria e a imediata vontade de ficarmos juntos. E assim foi, pela última vez vi Iara e nos amamos com intensidade e paixão. Era 1968.

Iara filiou-se à VPR e tornou-se companheira de Carlos Lamarca. Foi brutalmente assassinada em agosto de 1971, em Salvador, para onde se deslocara acompanhando o capitão na sua última e derradeira tentativa de montar uma guerrilha no sertão da Bahia.

Cercada em seu apartamento pelas forças da repressão, foi covardemente assassinada e, como aconteceu com outros companheiros, os órgãos da ditadura, com a cumplicidade da imprensa, montaram a farsa do suicídio, desmascarada pela família de Iara e órgãos de Direitos Humanos em 2003, quando pôde finalmente ser enterrada no cemitério judaico em São Paulo.

Nunca mais me esqueci de Iara. Quando recebi a notícia de seu assassinato, uma onda de dor e revolta tomou conta de mim durante meses. Em todos os momentos de alegria ou tristeza, quando me vêm à mente meus companheiros e companheiras caídos na luta contra a ditadura, a figura de Iara preenche minha solidão. Meu desespero me dá forças e vontade de viver a vida como ela viveu, com paixão, plenamente, sem medo de ser feliz.

22 de agosto de 2018

Não há problema em ter filhos

Ao invés de desafiar as pressões que o capitalismo exerce sobre a criação dos filhos, os liberais se rendem a elas.

Connor Kilpatrick

Jacobin

Ilustração por Christoph Kleinstück

Tradução / Ter filhos faz mal para o meio ambiente… Ou era para o déficit do país? Não, espere, ter filhos é egoísta porque esse mundo já virou um inferno. Seja lá qual for a sua escolha, o importante é lembrar que, de acordo com um número crescente de liberais e progressistas, a reprodução da espécie equivale à comprar uma mansão imensa e deixar o ar-condicionado no pico, com todas as janelas abertas.

Ou talvez possamos dizer que ter filhos é mais como despejar concreto em um assentamento israelense ilegal? “O egoísmo em se ter filhos é como o egoísmo na colonização de um país”, diz a narradora do aclamado romance de Sheila Heti, Maternidade. “Quão agredida me sinto quando ouço que uma pessoa teve três, quatro, cinco ou mais filhos… Parece uma coisa gananciosa, arrogante, rude.”

Nos últimos anos, só no jornal The Guardian brotaram manchetes como “Você deixaria de ter filhos para salvar o planeta? Conheça os casais que fizeram isso”; “Quer combater as mudanças climáticas? Tenha menos filhos”; “Quebrando um tabu: Os pais que se arrependem de ter filhos”; “Quer salvar seu casamento? Não tenha filhos.”. No New York Times: “Nada de filhos por causa das mudanças climáticas? Algumas pessoas estão considerando isso”. No Business Insider, “Sete razões pelas quais as pessoas não deveriam ter filhos, de acordo com a ciência”. E essa nova lógica tem avançado rapidamente na cultura liberal mais ampla: “A divertida feminista Caitlin Moran diz que o planeta não precisa dos seus bebês”.

Fica difícil não entender a mensagem – e ainda assim, ela parece estar se chocando com ouvidos surdos.

De acordo com um estudo recente do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), a diferença entre o número de filhos que as mulheres estadunidenses desejam ter e o número que elas provavelmente terão “subiu ao nível mais alto dos últimos 40 anos”. O número de mulheres que querem um filho no futuro só cresceu desde 2002, e a única faixa etária onde houve um ligeiro aumento nas taxas de fertilidade são mulheres entre os quarenta e quarenta e quatro anos.

“A capacidade das estadunidenses de evitar uma gravidez indesejada tem crescido muito mais rapidamente do que a sua capacidade de alcançar uma gravidez desejada”, como colocou o New York Times. Com o sistema de saúde mais caro do mundo (e dezenas de milhões de pessoas ainda sem cobertura), décadas de salários estagnados e a disparada nos custos de educação e moradia, ter filhos nos EUA nunca foi tão caro. O Departamento da Agricultura estima que custará uma média de US $ 233.000 para criar uma criança nascida em 2015 até o seu décimo sétimo aniversário – e isso nem sequer inclui a matrícula na faculdade, outra exorbitância tão unicamente estadunidense. Cada vez mais, trazer uma criança ao mundo é um sonho que muitos simplesmente não podem pagar.

É aí, nesse anti-natalismo misantrópico, que o liberalismo encontra um aliado no conservadorismo. O think tank Brookings Institute coloca o adiamento da paternidade como uma de suas “Três Regras Simples que os Adolescentes Pobres devem Seguir para ingressar na Classe Média”. É uma frase que não difere daquilo que ouvimos de conservadores como George Will por décadas: que você é pobre por causa das escolhas imorais que fez.

Essa linha lembra a campanha descaradamente racista de meados da década de 1990, quando republicanos e o governo Clinton se uniram para denunciar o flagelo das “mães adolescentes solteiras” como uma ameaça mortal à saúde das crianças e aos valores familiares – “uma pedra fundamental de caráter e responsabilidade pessoal”, como a própria proposta de Clinton em 1994 colocava. Na época, outro grupo de democratas foi ainda mais longe e tentou incluir uma provisão que negava às mães solteiras com menos de 21 anos (e aos seus filhos) todos os benefícios do vale-refeição e de auxílio às famílias com filhos dependentes.

Apesar dessa campanha de terrorismo sobre essas jovens mães supostamente sem-vergonha e egoístas, essas mulheres na verdade estavam tomando as melhores decisões para suas famílias. A Dra. Arline T. Geronimus tem defendido que, ao contrário das acusações humilhantes das “mães adolescentes pobres” pelos conservadores e pelos liberais, a escolha de mulheres de baixa renda por ter filhos em uma idade mais jovem representa uma decisão lógica quando confrontadas com as restrições que se tem quando se é pobre nos EUA:

Se ela conseguir encontrar um emprego, os salários e benefícios que ela pode obter podem não compensar os custos em se ser mãe trabalhadora. Ela não pode contar com uma licença maternidade; nem há vagas suficientes nas creches ou a preços acessíveis que a libertem da dependência de parentes para cuidar das crianças uma vez que ela volte ao trabalho… sua maior chance de vínculo na força de trabalho no longo prazo será se os anos pré-escolares de seus filhos coincidirem com seus anos de pico de acesso a apoio social e prático fornecido por parentes relativamente saudáveis.

Com essa enorme lacuna entre os desejos das mulheres e a dura realidade das mães da classe trabalhadora nos EUA, o que poderia explicar esse novo e estranho anti-natalismo de tantos liberais?

Mesmo na França, há muito conhecida pelo seu generoso Estado de Bem-Estar natalista, sua nova ministra da Igualdade de Gênero, de 37 anos, tem sinalizado uma disposição para reescrever os compromissos com as mães até os pífios níveis estadunidenses. “Sempre percebo a energia e o voluntarismo que existem na América”, disse recentemente a francesa Marlène Schiappa à revista New Yorker. “Em relação ao lugar das mulheres, o reflexo na França é dizer: ‘O que o Estado vai fazer por mim?'” Quelle horreur!

Horizontes restringidos, expectativas reduzidas e fazer mais com menos – esse é o programa liberal do século XXI para as massas trabalhadoras. Em outras palavras, é uma continuação do programa de quarenta anos de austeridade do liberalismo, resultado de seu total abandono do movimento sindical. Uma vida decente, uma casa própria e uma aposentadoria confortável – uma magra parcela da imensa riqueza coletiva da nossa sociedade – são promessas há muito tempo abandonadas. Agora, aparentemente, o mesmo acontece com os filhos.

Cada vez mais, o liberalismo se mostra incapaz de imaginar uma saída para o inferno da vida nas margens em 2020. Em vez disso, eles passaram a enxergar o seu papel como um tipo de sentinelas morais: a piedosa observação e administração do colapso. É uma esquerda liberal que já não acredita que pode mudar o mundo e que, nas palavras de Adolph Reed, identifica a sua missão mais importante como simplesmente “dar testemunho do sofrimento”. Eles acreditam que uma política de massas desafiando o capital e o colapso climático é impossível ou simplesmente indesejável. De qualquer maneira, a sua resposta é a mesma – não um movimento trabalhista revivido, mas um novo moralismo de austeridade e auto-sacrifício.

Isso inevitavelmente significa pedir às mulheres que se adaptem à lógica de criar os filhos sob os ditames do mercado, em vez de desafiar essas restrições. “Se vira” e chame isso de vitória.

É uma atitude que teria deixado perplexos tanto homens quanto mulheres na Alemanha Oriental. As mulheres na República Democrática Alemã (RDA) tinham um Estado de Bem-Estar robusto para ajudá-las a criar seus filhos – a creche gratuita começava poucas semanas após o nascimento da criança e incluía café da manhã e almoço -, além de uma taxa de participação na força de trabalho muito maior. O aborto foi legalizado em 1972, anos antes da Alemanha Ocidental. Para as mulheres no lado Oriental, o divórcio também era rápido, fácil e não custava nada. Elas também eram mais propensas a sentir-se confiantes com sua aparência física e relatavam taxas mais altas de satisfação sexual do que suas primas no lado Ocidental. Apesar de todo o seu autoritarismo político, a capacidade de criar filhos na RDA não dependia da capacidade de manter unida uma família nuclear.

Hoje, na Alemanha unificada, as vagas nas creches são caras e competitivas, com uma escassez nacional de 120.000 trabalhadores no setor – todos empregos mal remunerados, é claro. No leste, as taxas de natalidade imediatamente despencaram após a queda do Muro de Berlim. Ainda hoje as mulheres na metade oriental do país continuam tendo filhos significativamente mais cedo que suas irmãs ocidentais e contando com uma diferença salarial menor entre elas e os homens – na metade ocidental do país, essa diferença é comparável à dos EUA.

Atualmente, as únicas nações que se aproximam do compromisso da Alemanha Oriental de oferecer às mulheres esse tipo de liberdade são os países onde as classes trabalhadoras organizadas fizeram incursões bem-sucedidas contra os imperativos do capitalismo. Segundo vários estudos as mulheres mais felizes do mundo são as holandesas – e não as estadunidenses com sua atitude “se vira”. E quase nenhuma delas trabalha em período integral: Graças à mobilização sindical, sua classe trabalhadora conquistou a capacidade de priorizar sua liberdade contra qualquer “dever” ao mercado de trabalho ou aos seus maridos.

Temos aqui, então, a raiz do recente anti-natalismo liberal – a própria lógica do capital. O capitalismo precisa de novos trabalhadores e consumidores; só não quer pagar pelo seu crescimento e instrução. Esses custos, na lógica do capital, devem ser repassados para o indivíduo e a família. É por isso que hoje nos Estados Unidos, o FBI e o departamento de imigração são acionados para impedir o roubo de fórmula para bebês – é preferível trancá-la em caixas de vidro no supermercado do que simplesmente socializá-la e distribuí-la gratuitamente. Em vez do Estado fornecer coletivamente o necessário para a criação das crianças, a polícia literalmente persegue os pais biológicos para obter pensão alimentícia. Nessa visão, é melhor forçar uma família nuclear a permanecer unida do que ter o Estado fornecendo coletivamente serviços de assistência à infância, educação e assistência médica para pais e filhos. É o casamento de espingarda transformado em política pública.

Passamos da visão conservadora do pós-guerra das mulheres como obedientes fábricas de bebês, para outra que diz às mulheres que elas devem adiar a gravidez o tempo que for necessário para que elas possam fazer sua carreira decolar e construir sua marca – possivelmente para sempre. Embora a medicina reprodutiva venha obtendo enormes progressos, a fertilização in vitro, os medicamentos para melhorar a ovulação, o armazenamento dos óvulos e a inseminação artificial são proibitivamente caros. Sem um sistema de saúde verdadeiramente universal, esses avanços científicos estarão sempre reservados para os ricos.

Pedir às mulheres que aguardem para ter filhos até que tenham iniciado uma carreira e economizado dinheiro suficiente é apenas o avesso de ordenar que as mulheres fiquem em casa e façam bebês para seus maridos. De ambas as maneiras se pede às mulheres que não atendam aos seus desejos, e sim a uma abstração todo-poderosa: o mercado, o meio-ambiente, o patriarcado ou mesmo um feminismo falso e distorcido.

É importante que nós profissionais de classe média lembremos que, para a imensa maioria dos trabalhadores, o mercado de trabalho não é um local potencial para a auto-realização e nem nunca será. Em vez disso, é uma arena brutal onde você é forçado a negociar um terço da sua vida para sobreviver. Em 2020, uma carreira do tipo “faça o que você ama” está fora do alcance para todos, exceto para os ricos. O que os profissionais de classe média nunca entenderão – tanto os conservadores que humilham as jovens mães solteiras quanto os liberais que exigem que as mulheres adiem a maternidade até que possam comprar o canguru da Baby Bjorn – é o quão gratificante a criação dos filhos pode ser para aqueles que não têm ilusões de que o capitalismo jamais lhes proporcionará validação.

Como podemos conquistar um programa que socialize os custos para se trazer crianças ao mundo, se tantos liberais e progressistas ainda enxergam o desejo de ter filhos como algo tipo um apartamento compartilhado em Las Vegas – um investimento caro, tolo e brega, voltado principalmente para os jecas? Em vez de propagar essa política grosseira e misantrópica, devemos exigir que o capital pare de repassar os custos da infância para os trabalhadores e para socializá-los – um programa de fornecimento gratuito de kits de itens para bebês como as caixas de maternidade finlandesas e um bom sistema de saúde pública que cubra não apenas todos os cuidados pré-natais e pediátricos, mas que também torne a fertilização assistida em um direito e não um luxo. Um programa que contrate e treine centenas de milhares de pessoas para trabalhar em creches estatais de alta qualidade. A única maneira de conseguirmos isso é através de um movimento trabalhista revivido – e não de artigos bizarros (e inevitavelmente racistas) sobre “controle da população”.

Por que uma mulher de vinte e poucos anos não deveria poder ter um filho e ainda manter a liberdade para embarcar em uma carreira? Por que uma jovem mãe solteira não deveria poder cursar uma faculdade enquanto deixa seu filho em segurança sob os cuidados do Estado? E por que ela deveria precisar encontrar ou “manter” um relacionamento com um homem apenas para poder prover o necessário para seus filhos? Uma verdadeira liberdade para as mulheres significaria a capacidade de abandonar por completo a falsa escolha entre “bebês, formação ou carreira”. No momento, porém, apenas as ricas podem realmente ter todas as opções.

Isso pode ser qualquer coisa, menos justo.

Sobre o autor
Connor Kilpatrick é editor da Jacobin.

20 de agosto de 2018

O império europeu da Alemanha

Na Alemanha atual, argumenta Wolfgang Streeck, os políticos elogiam a "Europa" - enquanto usam discretamente as estruturas da UE para promover os interesses nacionais alemães.

Uma entrevista com
Wolfgang Streeck

Entrevistado por
Loren Balhorn


Wolfgang Streeck. Matthias Jung / MPIfG

Tradução / Um dos sociólogos críticos mais conhecidos no mundo de língua alemã, Wolfgang Streeck, viu o seu trabalho estar a receber uma crescente atenção da esquerda internacional nos últimos anos.

Os seus livros mais recentes têm-se concentrado na crise estrutural do capitalismo e na medida crescente em que ele está em contradição com a democracia – uma contradição para a qual ele não vê nenhuma resolução imediata, levando-o a questionar-se por quanto tempo mais o capitalismo pode sobreviver.

Loren Balhorn, da Jacobin, falou-lhe das perspetivas da União Europeia, do papel do Estado-nação e do espectro do populismo.

Loren Balhorn

Vamos começar com uma pergunta simples: qual é a sua avaliação da grande coligação alemã após os seus primeiros cem dias? É um mal necessário, ou o senhor teria preferido outra coisa?

Wolfgang Streeck

Não, sem preferências. Talvez se houvesse alguma perspetiva de que a ala esquerda do SPD (Partido Social Democrata) na oposição seria forçada a envolver-se mais com os elementos não-sectários do Die Linke, para que algo novo pudesse emergir na interseção onde a esquerda pudesse ter algo que se aproximasse das perspetivas de assumir o poder. Mas teria sido improvável que isso acontecesse mesmo sob um governo “jamaicano”.

Loren Balhorn

Está preocupado com a possibilidade de novas eleições, dada a disputa em curso entre Angela Merkel e o seu parceiro de coligação de direita, Horst Seehofer?

Wolfgang Streeck

Não, de todo. Não faria diferença, exceto que o SPD cairia abaixo de quinze por cento, e os Verdes substituiriam a CSU (União Socialista Cristã, os Democratas Cristãos da Baviera) num governo “Merkel V”.

Loren Balhorn

Vamo-nos alargar o horizonte da nossa atenção. O senhor argumenta que um retorno ao capitalismo democraticamente regulado, que leve em conta os interesses materiais da maioria, só é possível no âmbito do Estado-nação.

Ao mesmo tempo, o senhor denunciou a tendência alemã de considerar a “Europa” como a personificação da moralidade política, em suposta oposição ao nacionalismo destrutivo dos séculos anteriores – apesar de a política da UE, na sua maioria, promover os interesses alemães.


Não seria possível impor limites à hegemonia alemã, por exemplo, através de uma regulamentação salarial e fiscal uniforme entre todos os Estados-Membros? Até ao final da década de 1990, esta exigência era feita por muitos partidos social-democratas, incluindo o SPD.

Wolfgang Streeck

De onde viriam os “regulamentos salariais e fiscais uniformes para todos os Estados-Membros”? O problema é a variedade de estruturas econômicas e sociais nacionais, que se desenvolveram ao longo do tempo. O que está a sugerir exigiria uma revisão uniforme e simultânea das instituições de importância central, que se ajustariam de forma bastante diferente às capacidades econômicas nacionais e aos interesses nacionais. Nenhum líder político, e especialmente nenhum líder politicamente responsável, poderia tentar algo assim.

E, incidentalmente, isso não adiantaria nada quanto à necessidade de acabar com a “hegemonia alemã” que corretamente mencionou. Esta hegemonia existe porque o regime de moeda comum da Europa, como um regime de moeda forte, se encaixa na economia alemã (e em algumas outras economias do norte), mas não funciona para as economias do Mediterrâneo e da França.

Loren Balhorn

Isso parece bastante plausível, mas a maioria das forças progressistas na Alemanha provavelmente rejeitaria uma estratégia de Estado-nação. De onde é que acha que vem esta ideia?

Wolfgang Streeck

Aqui está-se a referir a um problema bastante complexo. Depois da guerra, a Alemanha Ocidental não foi totalmente soberana durante muito tempo e considerou isto como uma merecida punição e um estado de coisas geralmente desejável. Por um lado, os alemães foram punidos pelo “nacionalismo” alemão, enquanto, por outro, tentaram recomendar a desnacionalização da política como o ideal de uma nova ordem mundial para todos os outros.

Paradoxalmente, isso ajudou gradualmente a restaurar a soberania nacional alemã, culminando na reunificação, enquanto nenhum outro país na Europa alguma vez teria considerado colocar a sua soberania nacional em cima da mesa.

Desde a década de 1990, as coisas tomaram sobretudo um outro rumo, já que o supranacionalismo europeu efetivamente deu origem a um império alemão. É por isso que, na Alemanha de hoje, podemos opor-nos ao nacionalismo e ao Estado-nação e, ao mesmo tempo, defender os interesses nacionais alemães sem ter de o admitir. Uma situação ideológica muito confortável – basta olhar para Angela Merkel.

Loren Balhorn

A União Europeia começou como uma tentativa de acabar com a rivalidade entre a França e a Alemanha, ligando o poder diplomático francês à força econômica da Alemanha. Poder-se-ia argumentar que a estrutura da União foi, na sua maioria, continuamente estruturada ao longo deste compromisso.

Acha que as propostas de Emmanuel Macron para “refundar a Europa” têm o potencial de cimentar, a longo prazo, estas falhas nacionais? Ou será que a lógica do interesse nacional está demasiado enraizada na estrutura da própria UE?


Wolfgang Streeck

As propostas do Macron não são nada disso. Ele é completamente vago quando se chega aos detalhes. Qual deve ser a dimensão do orçamento especial da zona euro? Que critérios devem ser utilizados na sua distribuição? De que tipo de “investimentos” é que ele fala? Porquê um “ministro europeu das Finanças”? E é isto suposto ultrapassar as nossas “linhas de falha nacionais”, como lhes chamam? Na minha opinião, não se trata de linhas de fratura, mas sim de fronteiras com as quais podemos e devemos trabalhar, não por ditames do topo para a base, mas através de acordos entre iguais.

Como já disse, ninguém na Europa está realmente a alimentar a ideia de renunciar à soberania nacional – os Alemães apenas fingem que o fazem. Em todo o caso, a soberania nacional é, em primeiro lugar e acima de tudo, uma arma para os pequenos países usarem contra os grandes, e são os grandes países que são incomodados por ela (não pela sua própria soberania, evidentemente). Se os EUA respeitassem a soberania nacional dos pequenos Estados, muitas pessoas teriam sido poupadas a muitos problemas.

E Macron fala constantemente sobre uma “França soberana numa Europa soberana” – não sobre acabar com o Estado-nação francês, mas sobre expandi-lo para a Europa. Outros países terão que encontrar uma maneira de viver com isso, e isso é possível a menos que se tenha ficado bêbado com a ideia de supranacionalismo.

Loren Balhorn

O Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, afirmou numa recente conferência de imprensa que a Grécia voltaria a ser em breve um “país normal”. Ele e outros tecnocratas europeus estão a tentar vender a Grécia como uma história de sucesso da Zona Euro – uma prova de que a estrutura permanece forte e resistente.

Como vê isto, especialmente tendo em conta a situação crítica em Itália?


Wolfgang Streeck

Essa é a conversa vazia habitual; ninguém a leva a sério. Os problemas estruturais da Grécia e de outros países mediterrânicos foram sempre subestimados, enquanto os problemas da dívida foram exagerados; mas isso é pôr o carro à frente dos bois. Mesmo que a Grécia possa agora voltar a contrair empréstimos – e teríamos primeiro de ver isso acontecer –, as suas estruturas institucionais e econômicas continuam a não ser adequadas a uma moeda forte.

Resta também a década de austeridade que prejudicou toda uma geração jovem, custando-lhes um precioso tempo de vida, para não falar de infraestruturas de serviço público, educação e formação. Isto não é compensado pelo fato de o Estado grego ser agora novamente considerado digno de confiança nos mercados financeiros, se é que o é de fato.

O mesmo se aplica à Itália, que é, no entanto, muito maior do que a Grécia, de modo que nem mesmo um acordo de dívida ao estilo (ostensivo) da Troika poderia funcionar. Os Jean-Claude Junckers deste mundo são como lemingues – ou pelo menos como o mito sobre os lemingues; na verdade, os lemingues são muito mais espertos do que os eurocratas, que marcham para o abismo com os olhos abertos, sempre ansiosos até chegarem ao chão.

Loren Balhorn

Reparei que num artigo recente, “A Europa sob Merkel IV: Balanço de Impotência”, o senhor coloca sempre o termo “populistas” entre aspas, sobretudo em relação a Die Linke e à Alternativa für Deutschland, mas também quando se fala de forças comparáveis noutros países europeus. Trata-se de uma atitude consciente da sua parte e, em caso afirmativo, porquê?

Wolfgang Streeck

Uma decisão consciente, sim. Para mim, o termo é sem sentido, não verificável, uma arma de propaganda. Na linguagem dos partidos centristas estabelecidos, toda a gente que possa ser por eles e para eles considerado perigoso é um “populista”, de Corbyn a AfD. Eles reclamam que “os populistas” “simplificam os problemas” – enquanto Merkel disputou da segunda à última eleição com o slogan, “Já me conhecem”.

O que é “complexo” é para nós decidirmos; o que definimos como “complexo” é demasiado “complexo” para os “populistas”; e não há alternativa às “soluções” que tão laboriosamente temos desenvolvido para os vossos problemas complexos. (“Não há alternativa”, etc.)

Loren Balhorn

Um dos seus livros mais recentes, Buying Time, sugere que o crescente conflito estrutural entre capitalismo e democracia levará à crescente “Hayekização” da Europa. Desde dessa altura, os partidos de direita ganharam uma série de eleições em toda a Europa e Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. Será que se vê confirmado o seu prognóstico?

Wolfgang Streeck

Por “Hayekização” quero dizer a separação institucional intencional e de longo prazo da economia, ou do mercado, da interferência democrática, ou seja, igualitária. Os partidos de direita não são necessariamente neoliberais no sentido de serem não-intervencionistas ou anti-redistributivos, pelo menos na sua retórica. O que eles realmente fazem na prática é toda uma outra questão.

Loren Balhorn

As suas previsões sobre o futuro da UE e do capitalismo em geral parecem ter-se tornado mais sombrias nos últimos anos. Lembro-me de um acontecimento ocorrido em Berlim no ano passado, em que o senhor se descreveu a si próprio como um “pensador apaixonadamente destrutivo”, e em Buying Time afirma explicitamente que os teóricos não têm de oferecer soluções. Mas você vê pelo menos alguma solução econômica possível que permaneça, por enquanto, politicamente obstruída?

Wolfgang Streeck

Se fosse tão simples apresentar-lhe uma solução, não haveria basicamente um problema. Por “destrutivo” quero dizer que eu gostaria de lutar contra esperanças irrealistas colocadas numa qualquer cavalaria prussiana que, como em Waterloo, se mostravam à noite para mudar o decorrer da batalha. O que precisamos, numa situação como a nossa, é do realismo mais claro e sóbrio possível.

Estou convencido de que a política, como de costume, não nos ajudará e que a política de hoje é, quase sem exceção, pouco mais que uma gestão elitista, tecnocrática, profissionalizada e altamente remunerada. Precisamos de uma boa medida de disfuncionamento, de ruptura, não só na economia, mas também e sobretudo na política. Qualquer coisa a menos e não conseguiremos restaurar o controle coletivo sobre as nossas vidas de que tão urgentemente necessitamos.

Esta entrevista apareceu originalmente em Ada Magazin, a revista parceira de Jacobin no mundo de língua alemã.

Sobre o entrevistado

Wolfgang Streeck é diretor do Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades, em Colônia, Alemanha. Seu livro mais recente é Tempo comprado: A crise Adiada do capitalismo democrático.

Sobre o entrevistador

Loren Balhorn é editora colaboradora da Jacobin e co-editora, juntamente com Bhaskar Sunkara, de Jacobin: Die Anthologie (Suhrkamp, 2018).

Sobre o tradutor

Zachary Murphy King é escritor e tradutor baseado em Berlim.

18 de agosto de 2018

De Enver Hoxha a Bill Clinton

Uma breve história do Exército de Libertação do Kosovo.

James Robertson

Jacobin

Membros do Exército de Libertação do Kosovo entregam suas armas aos fuzileiros navais americanos na vila de Zegra, Kosovo, em 30 de junho de 1999. Departamento de Defesa dos EUA / Wikimedia

Em fevereiro de 1998, a província sérvia de Kosovo entrou em guerra civil. Por dois anos, o nacionalista albanês Exército de Libertação do Kosovo (KLA) conduziu uma campanha de guerrilha de baixo nível contra a polícia militar sérvia na província. Em resposta, as forças sérvias gradualmente intensificaram seus esforços de contra-insurgência, visando aldeias em regiões rurais remotas e ao longo da fronteira com a Albânia.

Enquanto as batidas policiais, assaltos e execuções contra supostos simpatizantes do KLA aumentavam, o apoio ao grupo de guerrilheiros uma vez marginal cresceu.

No verão de 1998, o KLA havia começado uma ofensiva para tomar territórios importantes, incluindo as regiões de Drenica, Dukagjin e Malisheva. Militarmente, a campanha foi um desastre, e as forças sérvias retomaram rapidamente as regiões, levando os combatentes do KLA ao longo da fronteira para a Albânia.

Politicamente, no entanto, o KLA havia vencido uma importante batalha: a ofensiva forçou a questão do Kosovo a entrar para o cenário internacional. Este foi um passo fundamental na estratégia de longo prazo do grupo, que previa a intervenção ocidental como meio de assegurar a independência do Kosovo da República Federal da Iugoslávia.

A estratégia deu frutos. Em março de 1999, em resposta à escalada das hostilidades, as forças da OTAN iniciaram setenta e oito dias de ataques aéreos contra a Sérvia. A retirada subseqüente das forças sérvias e a ocupação da província pela OTAN e depois pelas tropas da ONU abriram as portas para a independência total do Kosovo em 2008.

Que a estratégia do KLA deveria ter confiado na intervenção da OTAN não é uma ironia trivial. O KLA tinha suas raízes em uma vertente ardente de política marxista-leninista que percorreu movimentos nacionais albaneses no pós-guerra. Criticamente virulentos da amizade da Guerra Fria na Jugoslávia com o Ocidente, os marxistas-leninistas do Kosovo tinham olhado para o regime de Enver Hoxha na Albânia como um farol de libertação.

Como uma organização com raízes na ideologia marxista-leninista se encontrou na expansão da OTAN nos Bálcãs? Para explicar essa virada curiosa, precisamos considerar o lugar do Kosovo na mudança da ordem internacional do pós-guerra.

Uma ponte longe demais

Para os comunistas que tomaram o poder na Iugoslávia após a Segunda Guerra Mundial, o Kosovo representou um desafio particular.

Como o coração do reino medieval sérvio, o Kosovo tinha enorme valor simbólico e espiritual na cultura sérvia. No entanto, quando a província foi anexada pelo moderno Reino da Sérvia em 1912, os sérvios haviam se tornado uma minoria entre a população albanesa muito maior do Kosovo.

Após a guerra, os comunistas iugoslavos foram, portanto, solicitados a decidir entre duas reivindicações nacionalistas rivais ao Kosovo - uma baseada nos laços históricos da Sérvia com a região, a outra enraizada no direito dos albaneses à autodeterminação nacional.

Inicialmente, os comunistas iugoslavos e albaneses acreditavam que a questão seria resolvida dentro de uma Federação Comunista dos Bálcãs. Em vez de um ponto de divisão e conflito, o Kosovo seria uma “ponte” que reunisse as comunidades albanesa e sérvia.

A ruptura da Iugoslávia com a União Soviética em 1948, no entanto, acabou com essa proposta. Quando a Albânia se aliou com Stalin contra Tito, quaisquer planos para uma Federação Balcânica foram abandonados. O Kosovo permaneceu formalmente designado como uma "região" da Sérvia, governada diretamente de Belgrado. Longe de uma ponte, a população albanesa era agora estigmatizada como uma quinta coluna na Guerra Fria dos Balcãs.

Após a cisão, a liderança iugoslava descartou as exigências dos albaneses do Kosovo por maior autonomia à medida que tramas irredentistas surgiam em Tirana ou Moscou. Vigilância policial e perseguição de albaneses aumentaram. Mais amplamente, o racismo contra os albaneses como um povo “atrasado” e “primitivo” permeava a sociedade iugoslava e era freqüentemente composto pela pobreza e o subdesenvolvimento de que a província sofria.

Dentro da economia política iugoslava, o Kosovo foi integrado como um exportador de matérias-primas para as repúblicas do norte mais avançadas economicamente. Os fundos federais destinados ao desenvolvimento econômico, portanto, priorizavam as indústrias extrativas da província, especialmente a mineração de carvão. Essas indústrias, no entanto, empregavam apenas uma fração da força de trabalho.

A agricultura, que empregava cerca de 80% da população no final dos anos 1950, foi deixada estagnada. Como resultado, o Kosovo tornou-se o lar de uma subclasse rural crescente, excluída das instituições emergentes do socialismo iugoslavo.

A luz guia do Hoxhaismo

A repressão policial, a pobreza e a discriminação alimentaram o ressentimento nacionalista entre os albaneses do Kosovo. Embora os movimentos nacionais albaneses tivessem se oposto ao governo de Belgrado desde a anexação do Kosovo em 1912, a política da Guerra Fria nos Bálcãs moldou uma nova linguagem para o nacionalismo.

Após a cisão Tito-Stalin, a Iugoslávia e a Albânia seguiram caminhos diferentes para o socialismo. A Iugoslávia, desesperada para assegurar sua independência e desenvolvimento econômico, buscou entrar na ordem liberal do pós-guerra. O modelo iugoslavo de “socialismo de autogestão” facilitou a integração nos mercados ocidentais.

Sob o governo de Enver Hoxha, a Albânia tomou um caminho radicalmente diferente, primeiro aliando-se com a União Soviética contra a Iugoslávia e depois com os chineses contra os soviéticos dez anos depois. O regime de Hoxha permaneceu comprometido com as políticas stalinistas de controle estatal centralizado, uma economia de comando e coletivização agrícola. "Hoxhaism" tornou-se sinônimo de um stalinismo intransigente, desdenhoso do "revisionismo" de Khrushchev e Tito.

Os caminhos divergentes tomados pela Iugoslávia de Tito e pela Albânia de Hoxha moldaram o desenvolvimento ideológico do movimento nacional albanês no Kosovo durante a Guerra Fria.

As políticas de oposição no Kosovo centraram-se no status da província dentro do estado iugoslavo. Desde 1945, o Kosovo recebeu um status semi-autônomo dentro da República da Sérvia. Enquanto as tensões aumentavam com a Albânia, alinhada com a União Soviética, a liderança iugoslava defendeu o governo de Belgrado sobre a província como a maneira mais segura de garantir essa fronteira vulnerável. Os ativistas albaneses do Kosovo, no entanto, argumentaram que a grande população albanesa da Iugoslávia exigia que sua própria república realizasse o desenvolvimento cultural e econômico prometido pelo socialismo.

A rejeição inicial da autonomia albanesa por Belgrado radicalizou os ativistas mais jovens no Kosovo. No início dos anos 1960, estreitas redes de organizações clandestinas começaram a se estender pela província. Enquanto a maioria desses grupos procurava uma república albanesa dentro da Iugoslávia, uma minoria começou a expressar uma demanda ainda mais radical: a total independência e unificação com a República Popular da Albânia.

Foi através destes grupos clandestinos, como o Movimento Revolucionário para a União dos Albaneses do falecido Adem Demaçi, fundado em 1963, que o vocabulário político Hoxhaista começou a circular no Kosovo. O marxismo-leninismo, nesse contexto, estava ligado às aspirações nacionais albanesas.

Essa nova linguagem política diferia nitidamente das políticas nacionalistas ou religiosas mais conservadoras que dominavam o Kosovo e a diáspora albanesa antes da Segunda Guerra Mundial. Através da lente do Hoxhaismo, o objetivo da unificação nacional foi infundido com aspirações para a transformação social revolucionária.

"Isso é comunismo real"

A partir do final da década de 1950, a linguagem e o simbolismo do stalinismo albanês sustentaram as correntes mais radicais do nacionalismo albanês no Kosovo. O apelo do Hoxhaism dependia de sua capacidade de servir a múltiplas aspirações políticas. Primeiro, como ideologia oficial do Estado albanês, era um substituto para o nacionalismo albanês, facilitando a identificação da diáspora com a “pátria mãe”. Nesse sentido, eram menos as nuances da política stalinista do que o objetivo da unificação nacional que emprestava ao Hoxhaismo seu apelo.

Segundo, como aliada da China de Mao, a Albânia oferecia um comunismo aparentemente mais “autêntico” do que o “revisionismo” iugoslavo. Mary Motes, que trabalhava como professora de inglês em Priština na década de 1960, observou esse apelo quando registrou a admiração de um aluno pela República Popular da Albânia: “O poder se foi de hoxas e sacerdotes”, o estudante anunciou para a classe. “As mulheres são livres... o Partido dos Trabalhadores da Albânia eletrificou as aldeias. Não, não há carros, mas Enver Hoxha não tem carro! Isso é comunismo real!

Tendo como pano de fundo o radicalismo global dos anos 60, alguns jovens kosovares idealizaram o stalinismo albanês como uma alternativa vital e revolucionária ao compromisso da Iugoslávia com as potências ocidentais.

Finalmente, a aliança sino-albanesa fomentou a difusão de idéias maoístas no Kosovo e na diáspora albanesa. Como parte de uma subclasse rural marginalizada, os jovens radicais albaneses no Kosovo encontraram muito a admirar na visão do maoísmo sobre a insurreição camponesa e a libertação nacional.

Apesar de sua durabilidade dentro de círculos políticos radicais, no entanto, o Hoxhaismo teve um apelo limitado entre a população mais ampla do Kosovo. Fora da extrema esquerda, a maioria dos albaneses iugoslavos desconfiava do regime de Hoxha.

A limitada détente que emergiu entre Belgrado e Tirana no final dos anos 1960 deu aos albaneses iugoslavos uma oportunidade maior de viajar para a Albânia. A pobreza e a repressão política que presenciaram serviram para dissipar as ilusões de todos, menos dos ideólogos mais fervorosos. Os albaneses do Kosovo estavam particularmente sintonizados com a brutalidade do regime de Hoxha, já que muitos tinham fortes laços familiares com o norte da Albânia, onde a população sofreu intensa perseguição do Estado.

Apesar das ansiedades de linhas-duras dentro das instituições de segurança iugoslavas, portanto, o Hoxhaismo era uma vertente menor do movimento nacional no Kosovo. Sua durabilidade, no entanto, assegurou que continuasse desempenhando um papel desproporcional ao seu apelo social.

Os dois nacionalismos

A partir de 1968, o movimento nacional albanês do Kosovo começou a se dividir em dois campos distintos: uma ala moderada “iugoslava” e uma corrente mais radical, “Hoxhaista”. Em novembro de 1968, um protesto de vários milhares de estudantes em Priština provocou manifestações em toda a província exigindo que o Kosovo recebesse status de república.

A resposta do Estado jugoslavo foi dupla: por um lado, a polícia reprimiu violentamente as manifestações; por outro, a liderança federal introduziu uma onda de reformas. Essas novas políticas defendiam a linguagem e os direitos culturais dos albaneses, determinavam sua promoção a posições de liderança política e ampliavam a autonomia provincial.

O pico dessas reformas veio com a constituição de 1974, que concedeu ao Kosovo o status de república de fato. No final da década de 1970, uma camada de albaneses do Kosovo havia sido integrada à burocracia do Estado iugoslavo e uma intelligentsia local começou a florescer nas cidades maiores. Isso forneceu a base para a ala moderada do movimento nacional albanês no Kosovo. Evitando quaisquer laços com a República Popular da Albânia, esta classe política local buscou maior autonomia através de uma integração mais profunda nas instituições iugoslavas.

As reformas políticas e culturais da década de 1970, no entanto, pouco fizeram para combater a pobreza no Kosovo. No início da década de 1980, por todos os indicadores econômicos, o Kosovo ficou muito aquém da média iugoslava, e a brecha estava crescendo. Enquanto a taxa oficial de desemprego na província era de 27,5%, o desemprego real era muito mais alto, mascarado pelas altas matrículas universitárias, subemprego e emigração em massa.

Além disso, a prioridade concedida às indústrias extrativas continuou a deixara imensa população rural quase intocada pelos programas de desenvolvimento do Estado.

O fracasso da liderança do Kosovo em resolver esses problemas econômicos forneceu solo fértil para a corrente mais radical e “Hoxhaista” do movimento nacional. Ao longo da década de 1970, organizações como o Grupo Revolucionário do Kosovo proliferaram nas crescentes populações de diáspora da Alemanha, Suíça e Estados Unidos. Embora ainda marginal no próprio Kosovo, estes grupos também começaram a encontrar uma audiência entre a crescente população estudantil na Universidade de Priština.

Para esses radicais, a liderança moderada no governo provincial era pouco mais que uma burguesia compradora, servindo a um regime colonial apoiado pelo Ocidente em Belgrado.

A tensão entre essas duas alas do movimento nacional no Kosovo eclodiu na primavera de 1981, quando protestos de estudantes universitários provocaram novamente ondas de manifestações em toda a província. Durante várias semanas, dezenas de milhares de estudantes, trabalhadores, agricultores e jovens desempregados saíram às ruas para condenar a liderança e exigir que o Kosovo recebesse status de república.

A repressão foi rápida e brutal, com o governo provincial enviando milhares de policiais e tropas federais contra a população. O Kosovo passou a assemelhar-se a um território ocupado e, entre março de 1981 e novembro de 1988, estima-se que 584.373 albaneses foram presos, internados ou interrogados.

A repressão generalizada ofereceu a primeira oportunidade real para os grupos Hoxhaistas expandirem sua influência. No início da década de 1980, esses ativistas dispersos e fragmentados se uniram em uma ampla frente popular. Seus esforços levaram à fundação do Movimento dos Povos do Kosovo (LPK), a organização que mais tarde formaria o núcleo do KLA.

Um estado de apartheid

As tensões entre as duas facções do movimento nacional albanês no Kosovo emergiram mais claramente no final dos anos 80, quando Slobodan Milošević subiu ao poder na Sérvia e a federação iugoslava começou a se fragmentar em linhas nacionais.

A ascensão de Milošević assinalou uma crise para a classe política do Kosovo. Mobilizando o nacionalismo sérvio para impulsionar-se ao poder, Milošević jurou “devolver o Kosovo à Sérvia”. Entre 1987 e 1990, a extensa autonomia do Kosovo foi dissolvida e as instituições do Estado e do partido foram expurgadas da maioria de seus membros albaneses. Os albaneses foram dispensados em massa da imprensa, do rádio e da televisão de Kosovo e substituídos pelos sérvios. A Universidade de Priština foi obrigada a reduzir o número de estudantes albaneses e aumentar as quotas de sérvios e montenegrinos.

No início dos anos 1990, o Kosovo tornou-se efetivamente um estado de apartheid. Quando as instituições do Estado provincial se esvaziaram, os membros expurgados da classe política do Kosovo foram forçados a se reagrupar dentro de uma nova organização: a Liga Democrática do Kosovo (LDK).

Fundado em dezembro de 1989, o LDK rapidamente se transformou em uma organização de massas, reivindicando cerca de 700.000 membros em todo o mundo em 1991 e declarando-se “governo no exílio”. Sob a liderança do escritor Ibrahim Rugova, o LDK buscou a independência por meio de uma estratégia de resistência passiva, defendendo o não envolvimento com as instituições sérvias e a criação de instituições paralelas geridas por albaneses. A não-violência, ponderou Rugova, ajudaria a promover a simpatia do Ocidente e, eventualmente, a intervenção estrangeira do lado dos albaneses do Kosovo.

Essa estratégia sofreu um sério golpe em 1995, quando os negociadores internacionais que buscavam a paz nas guerras civis na Croacia e na Bósnia se recusaram a assumir a causa do Kosovo. O Acordo de Dayton, que pôs fim às guerras iugoslavas, deixou o Kosovo firmemente sob o governo de Belgrado.

Nossos amigos em Washington

O crepúsculo da Liga Democrática do Kosovo assinalou a ascensão do Movimento Popular do Kosovo, mais radical. Desde a sua formação no início dos anos 80, a LPK continuou a perseguir um caminho militante para a libertação do Kosovo. Ativistas no exílio estudaram as táticas militares de grupos de libertação, como o ETA, a OLP e o IRA. Eles também debateram a forma apropriada de luta armada no Kosovo: o partido deveria se engajar em prolongada guerra de guerrilha, ou deveria armar a população local para uma insurreição de tipo intifada?

O KLA foi formado em 1993 como o braço armado do Movimento Popular do Kosovo. Nos anos seguintes, os ativistas do KLA organizaram com sucesso uma rede de contatos inseridos em comunidades rurais pobres em todo o Kosovo e simplificaram suas operações de captação de recursos na diáspora.

O fracasso da estratégia pacifista do LDK em 1995 criou o espaço para o KLA sair das margens políticas. Em 1996, o grupo publicou seus primeiros comunicados públicos e iniciou uma campanha de ataques contra a polícia sérvia e os “colaboradores” albaneses.

Embora suas raízes estivessem no marxismo-leninismo da LPK, o KLA que surgiu em 1996 era uma besta política profundamente diferente de seus precursores da Guerra Fria.

A diferença mais óbvia foi o relacionamento do KLA com as potências ocidentais. Como observa Henry Perritt, poucos membros do KLA acreditavam que só a força armada poderia libertar o Kosovo. Em vez disso, a campanha de guerrilha pretendia complementar uma estratégia política mais ampla de provocar a intervenção ocidental no Kosovo para apoiar a autodeterminação albanesa.

Tendo passado décadas condenando o governo de Tito como os “lacaios” revisionistas do imperialismo ocidental, os radicais do KLA agora olhavam para esses mesmos imperialistas como seus últimos salvadores.

Vários fatores explicam essa reviravolta ideológica. Em primeiro lugar, a estratégia da frente popular, à qual a maioria dos grupos hoxhaistas do Kosovo se voltou depois de 1981, priorizou a luta pela libertação nacional sobre a revolução socialista.

A luta de uma subclasse rural contra uma classe política urbana deu origem a esse assunto político nebuloso: "o povo". Esse deslize ideológico facilitou a adoção pelo KLA de um nacionalismo albanês em grande parte à derrocada de sua política de classe.

Em segundo lugar, o colapso do comunismo na Albânia em 1992 expôs com mais clareza a natureza brutal do Estado Hoxhaista, especialmente entre a diáspora. Confiando nessa diáspora para financiamento, a LPK descartou grande parte de sua retórica marxista-leninista.

Terceiro, o fim do comunismo transformou a geopolítica dos Bálcãs. Durante a Guerra Fria, a aliança da Iugoslávia com o Ocidente permitiu que ativistas Hoxhaistas no Kosovo identificassem o "colonialismo sérvio" no Kosovo com o imperialismo ocidental na região. As guerras civis na Croácia e na Bósnia, no entanto, demonstraram o quanto a antiga Iugoslávia de Milošević era alienada do Ocidente.

Quando os estrategistas políticos dos EUA procuraram reaproveitar a OTAN como uma força de segurança internacional, a crise da Iugoslávia ofereceu um campo de testes conveniente para um novo paradigma de "intervenção humanitária".

Atentos às possibilidades que este novo momento geopolítico havia aberto, a liderança do KLA começou a destacar o problema do colonialismo sérvio do imperialismo ocidental, acabando por criticar completamente o último.

Em meados da década de 1990, o KLA manteve pouco da política marxista-leninista que caracterizou o radicalismo albanês do Kosovo durante a Guerra Fria. O caminho para a libertação, acreditavam agora, passava por Washington.

Um estreitamento radical

A intervenção da OTAN ajudou a garantir as condições para o Kosovo declarar unilateralmente a independência da Sérvia em 2008. No entanto, a transformação ideológica do KLA teve várias consequências para a política do Kosovo.

Primeiro, contribuiu para uma mudança para um nacionalismo chauvinista. Embora o Hoxhaismo tivesse estado sempre ligado ao nacionalismo albanês no Kosovo, manteve um espírito internacionalista. Os Hoxhaistas enfatizaram sua solidariedade com outros povos dos Bálcãs e acreditavam em uma futura federação regional. Até o final de 1997, o velho marxista-leninista Adem Demaçi ainda propunha uma federação da Sérvia, Montenegro e Kosovo - “Balkania” - para resolver o crescente conflito.

Este internacionalismo foi alijado da ideologia posterior do ELK, e dentro das suas fileiras foram permitidas correntes mais ardentemente chauvinistas do nacionalismo albanês, muitas vezes com consequências violentas para as minorias sérvias e romanichéis depois da guerra.

Em segundo lugar, a queda da política de classe ajudou a suavizar o caminho para a ascensão do KLA como parte da nova classe dominante.

Após a retirada das forças sérvias em junho de 1999, o Kosovo foi colocado sob a administração das Nações Unidas, que supervisionou a criação de instituições provisórias de governo. A liderança do KLA foi rápida em alavancar seu recém-descoberto apoio popular e o monopólio efetivo da violência para garantir posições poderosas e lucrativas dentro dessas instituições. Como núcleo da nova classe política, os ex-líderes do KLA se comportaram de maneira muito semelhante a seus antecessores, usando instituições do Estado para enriquecer, acumular poder e acertar contas.

Além disso, os estreitos laços que o ex-KLA promoveu com os administradores internacionais significaram que essa classe política estava ligada ao fracasso das instituições da ONU em realizar um desenvolvimento significativo do pequeno Estado devastado pela guerra. É revelador que a resistência à ocupação do Kosovo pela ONU não tenha vindo do antigo KLA, mas sim do movimento anti-colonial Vetëvendosje! (Autodeterminação), cuja liderança cresceu a partir dos protestos estudantis em massa dos anos 90.

Finalmente, a confiança do KLA na intervenção das potências ocidentais forneceu legitimidade à doutrina da “intervenção humanitária” e ao novo paradigma de segurança que os estrategistas norte-americanos desenvolveram para reaproveitar a OTAN. Nesse sentido, precisamos considerar a Guerra do Kosovo como um passo significativo no caminho para a invasão do Afeganistão em 2001 e do Iraque dois anos depois.

O fato de a liderança do ELK não ter considerado as repercussões mais amplas de sua aliança com o Ocidente atesta o estreitamento radical de sua cosmovisão política.

Sobre o autor

James Robertson é professor assistente de história na Universidade da Califórnia em Irvine.

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