14 de agosto de 2018

O Estado e a Revolução de Lenin

O ensaio definitivo sobre o clássico panfleto de Lenin

Ralph Miliband


Um encontro de trabalhadores em Petrogrado, julho de 1920. Wikimedia Commons

Tradução / Marx famosamente proclamou a necessidade de “esmagar” o estado burguês. Mas o que significa isso na prática? Se o nosso objetivo é um socialismo democrático e não burocrático então por que tipo de estado devemos nos esforçar?

Esta procura por respostas leva-nos frequentemente ao Estado e Revolução de Lenine, onde o famoso revolucionário fala convictamente em transformar o “estado de burocratas” em um “estado de trabalhadores armados.”

No seguinte ensaio, Ralph Miliband, o lendário marxista britânico, oferece uma avaliação crítica do pequeno livro de Lenine e explica o porquê “de o exercício do poder socialista continuar a ser o calcanhar de Aquiles do Marxismo.” Publicado pela primeira vez em 1970, este ensaio continua a ser a leitura mais incisiva disponível do Estado e Revolução.

O Estado e a Revolução é justificadamente considerada como uma das obras de Lenine mais importantes. Aborda questões de capital importância para a teoria e prática socialista e nenhuma destas perdeu alguma da sua relevância — antes pelo contrário. E como depoimento da teoria marxista de Estado, tanto antes e particularmente após a conquista do poder, tem, porque foi escrita por Lenine, gozado de um estatuto tão excepcionalmente confiável por gerações socialistas sucessivas, e nunca mais que nestes últimos anos, uma vez que o seu espírito e substância pode ser invocado imediatamente contra as experiências hiper-burocráticas de regimes de estilo russo como contra os partidos comunistas oficiais. De forma breve, por razões intrínsecas e circunstanciais é, de facto, um dos “textos sagrados” do pensamento marxista.

Sem embargo, “textos sagrados” não fazem parte do espírito marxista ou pelo menos não deveriam fazer; e isto só por si é razão suficiente para submeter O Estado e a Revolução a uma análise crítica. Mas há ainda uma outra e mais específica razão para levar a cabo tal análise, uma vez que esta obra de Lenine é comummente vista, dentro da tradição Marxista, como capaz de prover soluções teóricas e, certamente, práticas para todas as questões importantes do exercício de poder socialista.

A minha própria leitura sugere, se é que é importante, uma conclusão bastante diferente: ou seja que o Estado e a Revolução, além de estar longe de resolver os problemas com os quais diz trata, apenas serve para sublinhar a sua complexidade e enfatizar algo cuja experiência de mais de um século e meio tem, em todos os casos, fortemente — e tragicamente — servido para confirmar, nomeadamente que o exercício do poder socialista continua a ser o calcanhar de Aquiles do Marxismo. Este é o porquê, em um ano que irá testemunhar a legítima celebração do génio e proezas de Lenine, de não poder faltar uma apreciação crítica de O Estado e a Revolução. Porque é apenas sondando as falhas no argumento que este apresenta que a discussão das questões que são fundamentais ao projecto socialista pode avançar.

O ponto principal sobre o qual todo o argumento de Lenine assenta, e ao qual ele volta uma e outra vez, deriva de Marx e Engels. Uma vez que todas as revoluções anteriores haviam “aperfeiçoado” (i.e. reforçado) a máquina do estado, “a classe trabalhadora simplesmente não se pode agarrar à maquinaria do estado e usá-la para os seus propósitos”; mas sim, em vez disso, deve esmagar, partir, destruir essa maquinaria.

A crucial importância que Lenine cola a esta ideia tem sido geralmente associada a significar que o propósito de O Estado e a Revolução é contrapor uma revolução violenta a uma “transição pacífica”. Não é assim. A contraposição é certamente importante e Lenine acreditou (por acaso muito mais categoricamente que Marx) que a revolução proletária não se poderia lograr salvo por meios violentos. Mas como Lucio Collettti recentemente observou,

A polémica de Lenine não está dirigida contra aqueles que não desejam a tomada do poder. O objecto do seu ataque não é o reformismo. Pelo contrário, está dirigida contra aqueles que desejam a tomada do poder mas não, também, a destruição do velho Estado.

“Pelo contrário” na citação acima é demasiado forte: Lenine está também a arguir contra o reformismo. Mas é totalmente verdade que a sua principal preocupação no Estado e a Revolução é atacar e rejeitar qualquer conceito de revolução que não tome literalmente as ideias de Marx de que o estado burguês deve ser esmagado.

A pergunta crucial e óbvia que isto levanta é o tipo de estado pós-revolucionário que irá suceder ao estado burguês esmagado. Porque é, claro, um dos ensinamentos básicos do Marxismo e uma das diferenças básicas com o anarquismo, que enquanto a revolução proletária deve esmagar o velho estado, não abole o próprio estado: o estado continua a existir e ainda resiste por um longo tempo, embora comece imediatamente a “debilitar-se.” O que é mais notável na resposta que Lenine dá à questão da natureza do estado pós-revolucionário é o quão longe ele leva o conceito de “debilitação” do estado em O Estado e a Revolução: até agora, de facto, o estado, na manhã da revolução, não apenas começou a debilitar-se, mas está já em um estado avançado de decomposição.

Isto, deve ser assinalado imediatamente, não significa que o poder revolucionário deva ser fraco. Pelo contrário, Lenine nunca se esquece de insistir que este deve ser de facto bastante forte e que deve permanecer forte por um largo período de tempo. O que significa na verdade é que este poder não é exercido pelo estado no sentido comum da palavra, i.e. como um separado e distinto órgão de poder, mas é “democrático”; porém o “estado” passou de um “estado de burocratas” a um “estado de trabalhadores armados.” Isto, “apesar de tudo é uma máquina de estado”, mas “na forma de trabalhadores armados que avançam no sentido de criar uma milícia envolvendo toda a população.” Novamente, “todos os cidadãos são transformados em empregados contratados pelo estado, que consiste em trabalhadores armados”; e novamente, “o estado, que é o proletariado armado e organizado como classe governante.” Idênticas ou similares formulações ocorrem no trabalho.

Em A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, escrita após a tomada do poder Bolchevique, Lenine rejeita ferozmente a visão de Kautsky de que a classe “pode apenas dominar mas não governar”: “Está igualmente tudo errado,” escreveu Lenin, “dizer que uma classe não pode governar. Tal absurdo pode apenas ser pronunciado por um parlamentário cretino que não vê nada além de parlamentos burgueses e que não reparou em nada além de “partidos de governo.”

O Estado e a Revolução é precisamente baseado na noção que o proletariado pode “governar”, e não apenas dominar, e assim o deve ser se a ditadura do proletariado é para ser mais que um slogan. “Revolução”, escreve Lenin, não consiste na nova classe comandando, governando com a ajuda da velha máquina do estado, mas na classe esmagando esta máquina e comandando, governando com a ajuda de uma nova máquina. Kautsky distorce esta básica ideia de Marxismo ou então não a entende de todo. “Esta nova máquina”, tal como aparece em O Estado e a Revolução é o estado dos trabalhadores armados. O que está envolvido aqui, em todas as suas aparências, é uma governação sem mediadores, uma noção muito mais intimamente associada com anarquismo que com Marxismo.

Isto precisa de ser analisado. Mas o que é surpreendente em O Estado e a Revolução é quão pouco é necessário analisar tal como eu me proponho mostrar.

Lenine ataca duramente os anarquistas e insiste na necessidade de manter o estado no período da ditadura do proletariado. “Não somos Utópicos,” escreve, “não 'sonhamos' em dispensar imediatamente toda a administração e subordinação.” Mas depois continua:

A subordinação, no entanto, deve ser a vanguarda armada de todos os explotados e trabalhadores, i.e. do proletariado. O começo pode e dever ser feito imediatamente, durante a noite, substituindo oficiais específicos do estado “mandões” pelas simples funções de capatazes e contabilistas, funções que estão já totalmente dentro das capacidades de um comum habitante de cidade e pode ser desempenhada por um salário de um trabalhador. Nós, trabalhadores, devemos organizar uma produção em grande escala na base do que o capitalismo já criou, confiando na nossa própria experiência como trabalhadores, estabelecendo uma disciplina severa e férrea suportada pelo estado dos trabalhadores armados. Devemos reduzir o papel dos oficiais de estado ao simples executar de forma responsável as nossas instruções, revogáveis, “capatazes e contabilistas moderadamente pagados (claro está com a ajuda de técnicos de todos tipos, classes e níveis).

Está claro que algum tipo de oficialismo continua a existir, mas está igualmente claro que funciona sob a mais rigorosa e contínua supervisão e controlo dos trabalhadores armados; e os oficiais do estado, tal como Lenin assinala repetidamente, são revogáveis em qualquer momento. Os burocratas, neste ponto de vista, não são abolidos totalmente; mas são reduzidos ao papel de subordinados na sua totalidade à execução da vontade popular, tal como esta é expressada pelos trabalhadores armados.

Quanto à segunda principal instituição do velho estado, o exército, é substituída, nas palavras citadas anteriormente, por trabalhadores armados que avançam no sentido de formar uma milícia que envolve toda a população.

Consequentemente, as duas instituições que Lenine via como “as mais características” da máquina de estado burguesa acabavam de ser radicalmente lidadas: uma delas, a burocracia, é drasticamente reduzida em tamanho e o que resta dela é totalmente subjugada pela supervisão directa popular, apoiada pelo poder da revogação imediata; enquanto a outra, o exército, é de facto abolido.

Mesmo assim, sublinha Lenine, o estado centralizado não é abolido. Mas toma a forma de “centralismo voluntário, do amalgamento voluntário das comunas na nação, da fusão voluntária das comunas proletárias com o propósito de destruir o governo burguês e a máquina de estado burguesa.”

Também aqui, as questões óbvias dizem respeito às instituições através das quais a ditadura do proletariado pode ser expressada. Pois Lenine fala em O Estado e Revolução “de uma “substituição gigantesca de certas instituições por outras instituições de um tipo radicalmente diferente.” Mas O Estado e a Revolução tem, na verdade, pouca coisa a dizer sobre as instituições, salvo algumas muito breves referências aos Sovietes de Deputados de Trabalhadores e Soldados.

Lenine reserva alguns dos seus especiais epítetos para uma forma de instituição representativa, nomeadamente “o podre e venal parlamentarismo da sociedade burguesa.” No entanto, “a saída do parlamentarismo não é, claro está, a abolição das instituições representativas nem do princípio da eleição, mas sim a conversão das instituições representativas de lojas de conversa em “corpos de trabalho.” As instituições que incorporam este princípio são, tal como já foi referido, os Sovietes de Deputados de Trabalhadores e Soldados.

Em uma ocasião, Lenine afirma que “a simples organização de pessoas armadas (tais como os Sovietes de Deputados de Trabalhadores e Soldados...); e em outra, “a conversão de todos cidadãos em trabalhadores e outros empregados a um “sindicato” gigantesco — todo o estado — e a total subordinação de todo o trabalho deste sindicato a um estado genuinamente democrático, o estado dos Sovietes de Deputados dos Trabalhadores e Soldados”; E a terceira referência é na forma de pergunta: “Kautsky revela uma 'reverência supersticiosa' aos 'ministros'; mas por que não podem estes ser substituídos, por exemplo, por comités de especialistas trabalhando sob a soberania de omnipotentes sovietes de deputados dos trabalhadores e soldados?”

Deve ser assinalado, no entanto, que os Sovietes são “soberanos e omnipotentes” em relação ao “comité” que Lenine refere. No que diz respeito aos seus constituintes, os deputados são, claro está, sujeitos a revogação a qualquer momento: a “representação” deve estar aqui concebida como operando dentro dos estreitos limites determinados pela governação popular.

O “estado” que Lenine fala em “O Estado e a Revolução” é portanto um estado em que o exército deixa de existir. Onde o que resta do oficialismo passa a estar totalmente subordinada aos trabalhadores armados; e onde todos os representantes desses trabalhadores armados estão similarmente subordinados a estes. É este “modelo” que parecia justificar a discórdia avançada anteriormente, que o “estado”, que expressa a ditadura do proletariado, esteja no dia seguinte à revolução em um estado avançado de decomposição.

Os problemas que isto levanta são enormes; e o facto de que estejam todos ignorados, em O Estado e a Revolução, não podem ficar fora de consideração em uma análise realista do assunto.

O primeiro destes problemas é o da mediação política do poder revolucionário. Com isto quero dizer que a ditadura do proletariado é obviamente inconcebível sem algum tipo de grau ou pelo menos de articulação política e liderança e isto implica organização política. Mas o facto extraordinário, dada a estrutura de pensamento de Lenine, é que o elemento político que ocupa um lugar tão crucial no seu pensamento, ou seja, o partido, receba tão escassa atenção em O Estado e a Revolução.

Há três referências ao partido na obra, duas das quais sem relação directa sobre a questão da ditadura do proletariado. Uma destas é uma observação casual relativamente à necessidade do partido se envolver na luta “contra a religião que estupidifica as pessoas”; a segunda, igualmente casual, assinala que “ao revisar o programa do nosso Partido, devemos por todos os meios ter em consideração os conselhos de Engels e Marx de maneira a chegar mais perto da verdade, para restaurar o Marxismo, livrando-o das suas distorções e para guiar a luta da classe trabalhadora à sua emancipação de uma forma mais correcta.” A terceira e mais relevante referência é como se segue: “Ao educar os trabalhadores do partido, o Marxismo educa a vanguarda do proletariado, capaz de assumir o poder e liderar todo o povo em direcção ao socialismo, de dirigir e organizar o novo sistema, de ser o professor, o guia e o líder de todos os trabalhadores e explotados e de organizar a sua vida social sem a burguesia e contra a burguesia.”

Não fica inteiramente clara com esta passagem se é o proletariado que é capaz de assumir o poder, liderar, dirigir, organizar etc.; ou se é a vanguarda do proletariado, i.e. o partido dos trabalhadores, que é aqui designado. Ambas interpretações são possíveis.

Por um lado, a questão da liderança política é deixada totalmente em suspenso. Deve ser recordado que também foi deixada por Marx nas suas considerações sobre a Comuna de Paris e da ditadura do proletariado. Mas não é algo que pode, para mim, ser deixado em suspenso na discussão da governação revolucionária — salvo em termos de uma teoria de espontaneidade que constitui uma evasão do problema em vez da sua resolução.

Por outro lado, a segunda interpretação, que encaixa melhor com tudo o que sabemos da análise de Lenine da importância do partido, serve apenas para levantar a questão sem lidar com ela. Essa questão é obviamente absolutamente primordial para que se entenda totalmente o sentido do conceito de ditadura do proletariado: qual é a relação entre o proletariado, cuja ditadura a revolução está sentenciada a estabelecer, e o partido que educa, lidera, dirige, organiza etc.?

É apenas na base da assumpção de uma relação simbiótica e orgânica entre os dois que a questão desaparece completamente; mas apesar de tal relação possa ter existido entre o Partido Bolchevique e o proletariado russo nos meses que precedem à Revolução de Outubro, i.e. quando Lenine escreveu O Estado e a Revolução, a assumpção de que este tipo de relacionamento possa ser tomada como um facto automático e permanente pertence apenas à retórica de poder e não à sua realidade.

Se é o partido ou o proletariado que é, na passagem acima citada, designada para liderar toda a população em direcção ao socialismo, o facto é que Lenine afirmou, está claro, o papel central do primeiro assim que os Bolcheviques tomaram o poder. Na verdade, em 1919 estava impondo a sua orientação política de forma exclusiva. “Sim, a ditadura de um partido!” disse ele na altura: “Estamos baseados [no partido] e não nos podemos afastar desta base, uma vez que este partido ao longo de décadas ganhou para si mesmo a posição de vanguarda de todo o proletariado fabril e industrial.” De facto, “a ditadura da classe trabalhadora e levado a cabo pelo partido dos bolcheviques que, desde 1905 ou ainda antes, se vem unindo a todo proletariado revolucionário.”

Mais tarde, tal como E. H. Carr igualmente assinala, descreve uma tentativa de distinção entre a ditadura da classe e a ditadura do partido como prova de uma “inacreditável e inextricável confusão de pensamento”; e em 1921, declarava-se abertamente contra os criticismos da Oposição Operária afirmando que “... a ditadura do proletariado é impossível excepto através do Partido Comunista.”

Qual é a relação entre o proletariado, cuja ditadura a revolução está sentenciada a estabelecer, e o partido que educa, lidera, dirige, organiza?

Este pode bem ter sido o caso mas é óbvio de um “modelo” totalmente diferente no exercício de poder revolucionário daquele apresentado em O Estado e a Revolução e que transforma radicalmente o significado associado à “ditadura do proletariado.” No mínimo dos mínimos levanta da forma mais acentuada possível a questão da relação entre o partido governante e o proletariado. Tampouco é o partido que está aqui em questão, mas sim a liderança do partido, de acordo com aquela grande dinâmica que Trotsky tinha profeticamente sublinhado após a cisão no Partido [Operário] Social Democrata Russo entre os Bolcheviques e Mencheviques, nomeadamente que “a organização do partido [o caucus] inicialmente substitui-se ao partido como um todo; depois o Comité Central substitui-se à organização; e finalmente um único “ditador” substitui-se ao Comité Central...”

Durante um tempo após a revolução, Lenin conseguiu crer e declarar que não havia conflito entre a ditadura do proletariado e a ditadura do partido; e Estaline viria a fazer dessa declaração a base e legitimação da sua própria governação absoluta. No caso de Lenine, muito poucas coisas são uma medida tão significativa de sua grandeza como a que teve, enquanto estava no poder, para questionar essa identificação e estar obcecado pela ideia de que esta não pode ser assumida como garantida. Ele podia muito bem, como os seus sucessores o fizeram, tentado esconder de si mesmo a dimensão da disparidade entre a afirmação e a realidade: que ele não o fez e que morreu bastante perturbado não é a parte menos importante do seu legado, no entanto não é a parte do seu legado que é mais provável de ser evocado e muito menos celebrado, no país da Revolução Bolchevique.

Claro que é muito tentador atribuir a transformação da ditadura do proletariado, tal como apresentada em “O Estado e a Revolução em uma ditadura do partido, ou melhor dos seus líderes, às circunstancias particulares da Rússia após 1917 — ao atraso, guerra civil, intervenções estrangeiras, devastação, privações massivas, insatisfação popular e o malogro de outros países para apelar à revolução.

A meu ver, tem que se resistir a essa tentação. Claro que as circunstancias adversas com que os Bolcheviques tiveram que lidar foram reais e bastante opressivas. Mas iria argumentar que estas circunstancias apenas agravaram, ainda que certamente a um grau extremo, um problema que em qualquer caso é inerente ao conceito de ditadura do proletariado.

O problema levanta-se porque essa ditadura, mesmo nas circunstancias mais favoráveis, não é realizável sem mediação política; e porque a necessária introdução da noção de mediação política no “modelo” afecta consideravelmente este último, para dizer o menos. Este é particularmente o caso se a mediação política é concebida em termos de uma governação de um único partido. Para tal governação, mesmo que o “centralismo democrático” seja muito mais flexível do que alguma vez o tenha sido na prática, torna muito mais difícil, e pode excluir, a institucionalização do que pode ser chamado, de forma inexacta, pluralismo socialista.

Isto pode ser excepcionalmente difícil de alcançar e pode até ser impossível na maioria das situações revolucionárias. Mas é igualmente o reconhecer que a não ser que se faça a adequada provisão para canais alternativos de expressão e articulação política, cujo conceito de governação de partido único exclui por definição, qualquer conversa sobre democracia socialista é apenas conversa fiada.

Um governo de partido único postula uma vontade proletária revolucionária e indivisível da qual é a sua expressão natural. Mas este não é um postulado razoável sobre o qual se deve basear a “ditadura do proletariado”: em nenhuma sociedade, seja lá como esta estiver constituída, há uma única e indivisível vontade popular. É precisamente por isto que o problema da mediação política se levanta. Não temos que pensar que este problema é insuperável. Mas a sua resolução requer, para começar, que este seja pelo menos reconhecido.

A questão do partido, no entanto, traz de volta a questão do estado. Quando Lenine disse, no caso da Rússia, que a ditadura do proletariado era impossível excepto através do Partido Comunista, o que ele estava também a insinuar era que o partido deve infundir a sua vontade e assegurar o seu domínio sobre as instituições que haviam sido designadas, em O Estado e a Revolução, como representativas dos trabalhadores armados.

Em 1921 apontou que “como partido de governo não podemos deixar de fundir as 'autoridades' dos Sovietes com as 'autoridades' do partido — estão fundidas connosco e continuarão a estar”; e em um dos seus últimos artigos no Pravda, escrito nos inícios de 1923, sugeriu que “a união flexível dos Sovietes com o elemento partido, que tinha sido uma 'fonte de enorme força' na política externa, será pelo menos de igual força (penso que com muito mais força) se aplicada a todo o aparato estatal.”

Mas isto significa que se o partido deve ser forte também o deve ser o estado, que serve como órgão da sua governação. E de facto, já em Março de 1918, Lenine dizia que “de momento defendemos incondicionalmente o estado”; E para a questão que ele próprio se colocou:”Quando é que o estado se começará a desvanecer?” deu a resposta: “ Devemos ter tempo para realizar mais que dois congressos antes que possamos dizer, vejam como o nosso estado se está a desvanecer. Até lá é muito cedo. Proclamar antes do tempo o desvanecimento do estado será uma violação de perspectiva histórica.”

Em nenhuma sociedade, seja lá como esta estiver constituída, há uma única e indivisível vontade popular.

Há um sentido em que isto é perfeitamente consistente com O Estado e a Revolução; e outro, mais importante, em que não é. É consistente no sentido em Lenine sempre contemplou a existência de um poder forte após a revolução ser alcançada. Mas é inconsistente no sentido em que ele também, em O Estado e a Revolução, contemplou que este poder seria exercido, não pelo estado como é comummente entendido, mas pelo “estado” de trabalhadores armados. Certo é que o estado que ele falava após a revolução não era o estado que ele falava quando escreveu O Estado e a Revolução.

Também aqui, creio que atribuir a inconsistência simplesmente às razões particulares russas que os bolcheviques enfrentaram é insuficiente. Porque me parece que o tipo de poder popular directo que Lenine descreve na obra pertence de facto, em quaisquer circunstancias que a revolução ocorra, a um futuro razoavelmente distante, em que, tal como Lenine o colocou, “a necessidade de violência contra a população em geral, da subordinação de um homem pelo outro e de uma secção da população por outra irá desaparecer totalmente assim que as pessoas se acostumem a observar as condições básicas da vida social sem violência e sem subordinação.” Até essa altura, o estado subsiste, mas não é provável que seja o tipo de estado que Lenine falava em O Estado e a Revolução: é um estado sobre o qual não é necessário que se use aspas.

Na maneira de Lenine lidar com o assunto, pelo menos em O Estado e a Revolução, dois “modelos” estão contrapostos da maneira mais vincada possível: ou há o “velho estado”, como o seu aparato militar-burocrático, i.e. o estado burguês; ou há o estado de tipo “transitório” da ditadura do proletariado que, como eu argumentei, quase não é estado nenhum. Mas se, como eu acredito, este último tipo de “estado” representa, na manhã da revolução e por um posterior longo período, um atalho que a vida real não permite, as formulações de Lenine servem para evitar em vez de encontrar a questão fundamental eque está no centro do projecto socialista, nomeadamente qual seria o tipo de estado, sem aspas, congruente com o exercício do poder socialista.

A este respeito, é preciso que seja dito que o legado de Marx e Engels é ainda mais incerto do que o de Lenine permite. Ambos homens conceberam-no, sem qualquer dúvida, como uma das tarefas principais, e de facto a principal tarefa da revolução do proletariado é “esmagar” o velho estado; e é também totalmente verdade o que Marx disse sobre a Comuna de Paris — que esta era “a forma política, finalmente descoberta, sob a qual se deve desenvolver a emancipação económica do trabalho.” Mas não é irrelevante notar que, dez anos após a comuna, Marx também escreveu que “além do facto de que isto foi apenas o levantamento de uma cidade sob condições excepcionais, a maioria da Comuna não era socialista, nem o podia ser.”

Nem, claro, alguma vez Marx descreveu a comuna como a ditadura do proletariado. Somente Engels o disse, no prefácio de 1891 de A Guerra Civil em França:

Ultimamente, a filisteia social-democracia uma vez mais se encheu com o terror total nas palavras: Ditadura do proletariado. Bom, cavalheiros, sabem a que esta ditadura se parece? Olhem para a Comuna de Paris. Essa era a Ditadura do Proletariado.

Mas no mesmo ano, 1891, Engels também disse, em Para a Crítica do Projecto de Programa Social-Democrata de 1891, que “se uma coisa é certa é que o nosso partido e a classe trabalhadora somente pode chegar ao poder na forma de uma república democrática. Esta é mesmo a forma específica para a ditadura do proletariado tal como a Grande Revolução Francesa já demonstrou...”

Comentado sobre isto, Lenin declara que “Engels repetiu aqui de uma forma particularmente notável a ideia fundamental que corre em todos os trabalhos de Marx, nomeadamente que a república democrática é a abordagem mais próxima da ditadura do proletariado.” Mas a “abordagem mais próxima” não é “forma específica”; e pode ser duvidável que a noção da república democrática como a abordagem mais próxima para a ditadura do proletariado seja uma ideia fundamental que corre por todos os trabalhos de Marx. Também, no prefácio de A Guerra Civil em França, Engels disse que o estado que

no melhor dos casos, é um mal que é legado ao proletariado vitorioso na luta pela dominação de classe e cujos piores aspectos este não poderá deixar de cortar, imediatamente, o mais possível, tal como a Comuna teve que fazer, até que uma geração crescida em novas e livres condições sociais se torne capaz de se desfazer de todo o lixo do Estado.

É com base em tais excertos que o líder Menchevique, Julius Martov, seguindo Kautsky, escreveu após a Revolução Bolchevique que Engels ao falar na ditadura do proletariado não está a usar o termo “para indicar uma forma de governo, mas para designar a estrutura do poder estatal.”

Isto, parece-me ser uma leitura errada de Engels e também de Marx. Pois ambos homens certamente pensaram que a ditadura do proletariado significava não apenas “a estrutura social do poder estatal” mas também e bastante enfaticamente “uma forma de governo”; Lenine está muito mais perto deles quando afirma em O Estado e a Revolução de “uma substituição gigantesca de certas instituições por instituições de um tipo totalmente diferente.”

O ponto, no entanto, é que mesmo tendo plenamente em conta o que Marx e Engels têm a dizer sobre a comuna, estes deixaram estas instituições de tipo totalmente diferente para ser desenvolvidas por novas gerações; E assim o fez Lenine, apesar de O Estado e a Revolução.

Isto, no entanto, não diminui a importância desta obra. Apesar de todas as questões que deixa por resolver, carrega uma mensagem cuja importância a passagem do tempo só serviu para demonstrar: é que o projecto socialista é um projecto anti-burocrático e que no seu centro está uma visão de uma sociedade em que

Pela primeira vez na história da sociedade civilizada, a massa da população se irá levantar para tomar um papel independente, não apenas em votações e eleições, mas também na administração diária do estado. Baixo o socialismo todos irão governar à vez e rapidamente se habituarão a que ninguém governe.

Esta era também a visão de Marx; e um dos méritos históricos de Estado e a Revolução é tê-la trazido de volta à posição que merece na agenda socialista. O seu segundo mérito histórico é o de ter insistido que isto não pode ser permitido ficar em uma longínqua distância, cintilando uma esperança que poderia ser ignorada facilmente no presente; mas a sua actualização deve ser considerada como uma parte imediata da teoria e prática revolucionária.

Argumentei aqui que, em O Estado e a Revolução, Lenine sobrestimou até onde o estado poderia ser levado a “desvanecer” em qualquer situação pós-revolucionária concebível. Mas é bem possível que a integração desse tipo de sobreavaliação no pensamento socialista seja a condição necessária para a transcendência do “pragmatismo” cinzento e burocrático que infestou tão profundamente a experiência socialista do último meio século.

Sobre o autor

Ralph Miliband was a prominent Marxist sociologist and the author of numerous books on socialism and politics, including Parliamentary Socialism and The State in Capitalist Society.

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