22 de agosto de 2018

Não há problema em ter filhos

Ao invés de desafiar as pressões que o capitalismo exerce sobre a criação dos filhos, os liberais se rendem a elas.

Connor Kilpatrick

Jacobin

Ilustração por Christoph Kleinstück

Tradução / Ter filhos faz mal para o meio ambiente… Ou era para o déficit do país? Não, espere, ter filhos é egoísta porque esse mundo já virou um inferno. Seja lá qual for a sua escolha, o importante é lembrar que, de acordo com um número crescente de liberais e progressistas, a reprodução da espécie equivale à comprar uma mansão imensa e deixar o ar-condicionado no pico, com todas as janelas abertas.

Ou talvez possamos dizer que ter filhos é mais como despejar concreto em um assentamento israelense ilegal? “O egoísmo em se ter filhos é como o egoísmo na colonização de um país”, diz a narradora do aclamado romance de Sheila Heti, Maternidade. “Quão agredida me sinto quando ouço que uma pessoa teve três, quatro, cinco ou mais filhos… Parece uma coisa gananciosa, arrogante, rude.”

Nos últimos anos, só no jornal The Guardian brotaram manchetes como “Você deixaria de ter filhos para salvar o planeta? Conheça os casais que fizeram isso”; “Quer combater as mudanças climáticas? Tenha menos filhos”; “Quebrando um tabu: Os pais que se arrependem de ter filhos”; “Quer salvar seu casamento? Não tenha filhos.”. No New York Times: “Nada de filhos por causa das mudanças climáticas? Algumas pessoas estão considerando isso”. No Business Insider, “Sete razões pelas quais as pessoas não deveriam ter filhos, de acordo com a ciência”. E essa nova lógica tem avançado rapidamente na cultura liberal mais ampla: “A divertida feminista Caitlin Moran diz que o planeta não precisa dos seus bebês”.

Fica difícil não entender a mensagem – e ainda assim, ela parece estar se chocando com ouvidos surdos.

De acordo com um estudo recente do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), a diferença entre o número de filhos que as mulheres estadunidenses desejam ter e o número que elas provavelmente terão “subiu ao nível mais alto dos últimos 40 anos”. O número de mulheres que querem um filho no futuro só cresceu desde 2002, e a única faixa etária onde houve um ligeiro aumento nas taxas de fertilidade são mulheres entre os quarenta e quarenta e quatro anos.

“A capacidade das estadunidenses de evitar uma gravidez indesejada tem crescido muito mais rapidamente do que a sua capacidade de alcançar uma gravidez desejada”, como colocou o New York Times. Com o sistema de saúde mais caro do mundo (e dezenas de milhões de pessoas ainda sem cobertura), décadas de salários estagnados e a disparada nos custos de educação e moradia, ter filhos nos EUA nunca foi tão caro. O Departamento da Agricultura estima que custará uma média de US $ 233.000 para criar uma criança nascida em 2015 até o seu décimo sétimo aniversário – e isso nem sequer inclui a matrícula na faculdade, outra exorbitância tão unicamente estadunidense. Cada vez mais, trazer uma criança ao mundo é um sonho que muitos simplesmente não podem pagar.

É aí, nesse anti-natalismo misantrópico, que o liberalismo encontra um aliado no conservadorismo. O think tank Brookings Institute coloca o adiamento da paternidade como uma de suas “Três Regras Simples que os Adolescentes Pobres devem Seguir para ingressar na Classe Média”. É uma frase que não difere daquilo que ouvimos de conservadores como George Will por décadas: que você é pobre por causa das escolhas imorais que fez.

Essa linha lembra a campanha descaradamente racista de meados da década de 1990, quando republicanos e o governo Clinton se uniram para denunciar o flagelo das “mães adolescentes solteiras” como uma ameaça mortal à saúde das crianças e aos valores familiares – “uma pedra fundamental de caráter e responsabilidade pessoal”, como a própria proposta de Clinton em 1994 colocava. Na época, outro grupo de democratas foi ainda mais longe e tentou incluir uma provisão que negava às mães solteiras com menos de 21 anos (e aos seus filhos) todos os benefícios do vale-refeição e de auxílio às famílias com filhos dependentes.

Apesar dessa campanha de terrorismo sobre essas jovens mães supostamente sem-vergonha e egoístas, essas mulheres na verdade estavam tomando as melhores decisões para suas famílias. A Dra. Arline T. Geronimus tem defendido que, ao contrário das acusações humilhantes das “mães adolescentes pobres” pelos conservadores e pelos liberais, a escolha de mulheres de baixa renda por ter filhos em uma idade mais jovem representa uma decisão lógica quando confrontadas com as restrições que se tem quando se é pobre nos EUA:

Se ela conseguir encontrar um emprego, os salários e benefícios que ela pode obter podem não compensar os custos em se ser mãe trabalhadora. Ela não pode contar com uma licença maternidade; nem há vagas suficientes nas creches ou a preços acessíveis que a libertem da dependência de parentes para cuidar das crianças uma vez que ela volte ao trabalho… sua maior chance de vínculo na força de trabalho no longo prazo será se os anos pré-escolares de seus filhos coincidirem com seus anos de pico de acesso a apoio social e prático fornecido por parentes relativamente saudáveis.

Com essa enorme lacuna entre os desejos das mulheres e a dura realidade das mães da classe trabalhadora nos EUA, o que poderia explicar esse novo e estranho anti-natalismo de tantos liberais?

Mesmo na França, há muito conhecida pelo seu generoso Estado de Bem-Estar natalista, sua nova ministra da Igualdade de Gênero, de 37 anos, tem sinalizado uma disposição para reescrever os compromissos com as mães até os pífios níveis estadunidenses. “Sempre percebo a energia e o voluntarismo que existem na América”, disse recentemente a francesa Marlène Schiappa à revista New Yorker. “Em relação ao lugar das mulheres, o reflexo na França é dizer: ‘O que o Estado vai fazer por mim?'” Quelle horreur!

Horizontes restringidos, expectativas reduzidas e fazer mais com menos – esse é o programa liberal do século XXI para as massas trabalhadoras. Em outras palavras, é uma continuação do programa de quarenta anos de austeridade do liberalismo, resultado de seu total abandono do movimento sindical. Uma vida decente, uma casa própria e uma aposentadoria confortável – uma magra parcela da imensa riqueza coletiva da nossa sociedade – são promessas há muito tempo abandonadas. Agora, aparentemente, o mesmo acontece com os filhos.

Cada vez mais, o liberalismo se mostra incapaz de imaginar uma saída para o inferno da vida nas margens em 2020. Em vez disso, eles passaram a enxergar o seu papel como um tipo de sentinelas morais: a piedosa observação e administração do colapso. É uma esquerda liberal que já não acredita que pode mudar o mundo e que, nas palavras de Adolph Reed, identifica a sua missão mais importante como simplesmente “dar testemunho do sofrimento”. Eles acreditam que uma política de massas desafiando o capital e o colapso climático é impossível ou simplesmente indesejável. De qualquer maneira, a sua resposta é a mesma – não um movimento trabalhista revivido, mas um novo moralismo de austeridade e auto-sacrifício.

Isso inevitavelmente significa pedir às mulheres que se adaptem à lógica de criar os filhos sob os ditames do mercado, em vez de desafiar essas restrições. “Se vira” e chame isso de vitória.

É uma atitude que teria deixado perplexos tanto homens quanto mulheres na Alemanha Oriental. As mulheres na República Democrática Alemã (RDA) tinham um Estado de Bem-Estar robusto para ajudá-las a criar seus filhos – a creche gratuita começava poucas semanas após o nascimento da criança e incluía café da manhã e almoço -, além de uma taxa de participação na força de trabalho muito maior. O aborto foi legalizado em 1972, anos antes da Alemanha Ocidental. Para as mulheres no lado Oriental, o divórcio também era rápido, fácil e não custava nada. Elas também eram mais propensas a sentir-se confiantes com sua aparência física e relatavam taxas mais altas de satisfação sexual do que suas primas no lado Ocidental. Apesar de todo o seu autoritarismo político, a capacidade de criar filhos na RDA não dependia da capacidade de manter unida uma família nuclear.

Hoje, na Alemanha unificada, as vagas nas creches são caras e competitivas, com uma escassez nacional de 120.000 trabalhadores no setor – todos empregos mal remunerados, é claro. No leste, as taxas de natalidade imediatamente despencaram após a queda do Muro de Berlim. Ainda hoje as mulheres na metade oriental do país continuam tendo filhos significativamente mais cedo que suas irmãs ocidentais e contando com uma diferença salarial menor entre elas e os homens – na metade ocidental do país, essa diferença é comparável à dos EUA.

Atualmente, as únicas nações que se aproximam do compromisso da Alemanha Oriental de oferecer às mulheres esse tipo de liberdade são os países onde as classes trabalhadoras organizadas fizeram incursões bem-sucedidas contra os imperativos do capitalismo. Segundo vários estudos as mulheres mais felizes do mundo são as holandesas – e não as estadunidenses com sua atitude “se vira”. E quase nenhuma delas trabalha em período integral: Graças à mobilização sindical, sua classe trabalhadora conquistou a capacidade de priorizar sua liberdade contra qualquer “dever” ao mercado de trabalho ou aos seus maridos.

Temos aqui, então, a raiz do recente anti-natalismo liberal – a própria lógica do capital. O capitalismo precisa de novos trabalhadores e consumidores; só não quer pagar pelo seu crescimento e instrução. Esses custos, na lógica do capital, devem ser repassados para o indivíduo e a família. É por isso que hoje nos Estados Unidos, o FBI e o departamento de imigração são acionados para impedir o roubo de fórmula para bebês – é preferível trancá-la em caixas de vidro no supermercado do que simplesmente socializá-la e distribuí-la gratuitamente. Em vez do Estado fornecer coletivamente o necessário para a criação das crianças, a polícia literalmente persegue os pais biológicos para obter pensão alimentícia. Nessa visão, é melhor forçar uma família nuclear a permanecer unida do que ter o Estado fornecendo coletivamente serviços de assistência à infância, educação e assistência médica para pais e filhos. É o casamento de espingarda transformado em política pública.

Passamos da visão conservadora do pós-guerra das mulheres como obedientes fábricas de bebês, para outra que diz às mulheres que elas devem adiar a gravidez o tempo que for necessário para que elas possam fazer sua carreira decolar e construir sua marca – possivelmente para sempre. Embora a medicina reprodutiva venha obtendo enormes progressos, a fertilização in vitro, os medicamentos para melhorar a ovulação, o armazenamento dos óvulos e a inseminação artificial são proibitivamente caros. Sem um sistema de saúde verdadeiramente universal, esses avanços científicos estarão sempre reservados para os ricos.

Pedir às mulheres que aguardem para ter filhos até que tenham iniciado uma carreira e economizado dinheiro suficiente é apenas o avesso de ordenar que as mulheres fiquem em casa e façam bebês para seus maridos. De ambas as maneiras se pede às mulheres que não atendam aos seus desejos, e sim a uma abstração todo-poderosa: o mercado, o meio-ambiente, o patriarcado ou mesmo um feminismo falso e distorcido.

É importante que nós profissionais de classe média lembremos que, para a imensa maioria dos trabalhadores, o mercado de trabalho não é um local potencial para a auto-realização e nem nunca será. Em vez disso, é uma arena brutal onde você é forçado a negociar um terço da sua vida para sobreviver. Em 2020, uma carreira do tipo “faça o que você ama” está fora do alcance para todos, exceto para os ricos. O que os profissionais de classe média nunca entenderão – tanto os conservadores que humilham as jovens mães solteiras quanto os liberais que exigem que as mulheres adiem a maternidade até que possam comprar o canguru da Baby Bjorn – é o quão gratificante a criação dos filhos pode ser para aqueles que não têm ilusões de que o capitalismo jamais lhes proporcionará validação.

Como podemos conquistar um programa que socialize os custos para se trazer crianças ao mundo, se tantos liberais e progressistas ainda enxergam o desejo de ter filhos como algo tipo um apartamento compartilhado em Las Vegas – um investimento caro, tolo e brega, voltado principalmente para os jecas? Em vez de propagar essa política grosseira e misantrópica, devemos exigir que o capital pare de repassar os custos da infância para os trabalhadores e para socializá-los – um programa de fornecimento gratuito de kits de itens para bebês como as caixas de maternidade finlandesas e um bom sistema de saúde pública que cubra não apenas todos os cuidados pré-natais e pediátricos, mas que também torne a fertilização assistida em um direito e não um luxo. Um programa que contrate e treine centenas de milhares de pessoas para trabalhar em creches estatais de alta qualidade. A única maneira de conseguirmos isso é através de um movimento trabalhista revivido – e não de artigos bizarros (e inevitavelmente racistas) sobre “controle da população”.

Por que uma mulher de vinte e poucos anos não deveria poder ter um filho e ainda manter a liberdade para embarcar em uma carreira? Por que uma jovem mãe solteira não deveria poder cursar uma faculdade enquanto deixa seu filho em segurança sob os cuidados do Estado? E por que ela deveria precisar encontrar ou “manter” um relacionamento com um homem apenas para poder prover o necessário para seus filhos? Uma verdadeira liberdade para as mulheres significaria a capacidade de abandonar por completo a falsa escolha entre “bebês, formação ou carreira”. No momento, porém, apenas as ricas podem realmente ter todas as opções.

Isso pode ser qualquer coisa, menos justo.

Sobre o autor
Connor Kilpatrick é editor da Jacobin.

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