31 de outubro de 2019

Como conseguimos o direito de escolher

Logo após a revogação de leis anti-aborto em Dublin, a descriminalização na Irlanda do Norte foi uma vitória decisiva para as militantes feministas. A igreja e o Estado estão perdendo seu controle sobre nossos corpos — mas nós ainda precisamos lutar para tornar o aborto legal, seguro e livre.

Maev McDaid e Brian Christopher

Membros de grupo pró-escolha Alliance for Choice fazem seu caminho para Stormont em 21 de outubro, 2019 em Belfast, Irlanda do Norte.

Tradução / 22 de outubro de 2019 marcou uma vitória decisiva na Irlanda do Norte, com o aborto finalmente descriminalizado. Essa notícia certamente terá passado despercebida para muita gente — afinal, tanto na mídia nacional quanto na internacional, a Irlanda do Norte é quase sempre “representada” somente pelos intolerantes do Democratic Unionist Party (DUP). Mas semana atrás, esse partido estridentemente anti-escolha foi finalmente desautorizado pelo Palácio de Westminster. O movimento para descriminalizar aborto no Norte veio cinquenta anos depois que um passo similar foi dado na metrópole britânica. Contudo, esse sucesso se deve especialmente a décadas de lutas heroicas travadas pelas feministas irlandesas.

As leis específicas criminalizando o aborto foram aprovadas pelo Parlamento imperial do Reino Unido em 1861 e até anos recentes permaneceu em ambas jurisdições na ilha da Irlanda. Apesar da legalização parcial do aborto na Grã-Bretanha em 1967, ele continuou criminalizado no Estado conhecido como Irlanda do Norte, o qual foi particionado do Sul pelos britânicos em 1920. Essa situação mudou parcialmente em maio de 2018, quando um esmagador voto de referendo revogou o banimento constitucional do aborto (conhecido como a Oitava Emenda). Porém, não houve mudança similar no Norte.

Foi nessa situação que a campanha North is Now buscou desafiar. Ela defendeu o direito de escolher tanto para mulheres quanto para as pessoas trans, genderqueer, não-binárias e intersexo, cujos direitos reprodutivos e de saúde são frequentemente negados e distorcidos. Com a mudança na lei em outubro de 2019, uma vitória em favor do nosso direito de controlar nossos próprios corpos se materializou. Todavia, como veremos, a luta para garantir abortos legais, seguros e livres por toda a ilha da Irlanda ainda não acabou.

Cortesia de imagem de artista de Derry Shannon Patterson. Sua obra de arte documentando os protestos por direitos reprodutivos pela Irlanda pode ser encontrada em www.instagram.com/rose_may_scribble.

Como nós lutamos

Campanhas em toda a Irlanda sobre questões de direitos reprodutivos e direitos de mulheres e minorias existem há muito tempo, até antes da fronteira britânica dividir a ilha. Embora a partição em 1920 tenha criado legislaturas autônomas no Norte e Sul, ambas as sociedades foram dominadas por uma cultura conservadora e patriarcal que compartilhavam abordagens similares no que diz respeito à autonomia corporal.

Nós mesmas somos de Derry, no Norte, e nosso ativismo sempre se estendeu através da fronteira, apoiando pessoas em condados vizinhos e especialmente nas áreas mais rurais de Donegal. Para a maioria de nós do Norte, fazer campanhas no Sul para a revogação da Oitava Emenda foi, portanto, uma decisão óbvia e natural.

Embora ativistas do Norte tenham feito parte integralmente da campanha Repeal the 8th, a vitória desta também renovou a urgência e a confiança que as ativistas tinham nas demandas por mudança em suas vidas. Nós celebramos a vitória da revogação especificamente porque o ganho para o Sul foi também um ganho para o Norte e para todas na ilha da Irlanda. Entretanto, uma diferença crucial, sobre a qual vale a pena refletir aqui, é como a mudança veio a acontecer no Norte — e sua relação com o falido Estado da “Irlanda do Norte”.

O fracasso do congresso e a oportunidade do governo

O Good Friday Agreement (GFA, Acordos de Belfast ou Acordos da sexta-feira Santa) que encarregou o autônomo governo do Parlamento de governar o Norte foi assinado em 1998 — quando nós ainda estávamos na escola. Disseram à nossa geração que deveríamos ser gratas pelos direitos e oportunidades concedidas por esse arranjo histórico. Mas, na verdade, o GFA tem muitas falhas, sobre as quais já escrevemos. Uma das maiores traições nesse “acordo de paz” foi que ele permitiu à “Nova Irlanda do Norte” reter violentas leis de aborto de 1861, antes das mulheres terem o direto ao voto. De fato, os artigos 58 e 59 do Offences Against the Person Act poderiam significar prisão perpétua para qualquer pessoa que realizasse um aborto e qualquer pessoa suprindo os meios para induzi-lo.

Ao longo do século desde a divisão da Irlanda, entre Norte e Sul, sofremos de profundo conservadorismo social — devido em grande parte ao papel da Igreja no Estado. Até para aqueles que cresceram em anos mais recentes, frequentando escolas profundamente religiosas onde se dita que aborto é um pecado, enquanto sabiam que muitas colegas de classe tinham passado por uma interrupção, criou-se uma cultura de vergonha e estigma. Todavia, se o aborto é legal ou não, as pessoas vão lutar por controle sobre seus próprios corpos e buscar interrupção para gravidezes indesejadas.

Por décadas, antes de pessoas da nossa geração se tornaram engajadas, organizadores de campanhas e ativistas montaram comunidades de apoio para aquelas que precisavam de um aborto. Ainda assim, para muitos — particularmente jovens mulheres com uma rede de apoio limitada — ter um aborto significava voar para a Inglaterra, tomando pílulas em segredo, ou medidas mais drásticas, como beber demais na esperança de que causaria um aborto espontâneo. Tudo isso continuou nos anos 2000, sob o acordo do governo no qual deveríamos ter colocado nossa fé para garantir nossos direitos civis. Mas ficou claro que a sociedade irlandesa tinha progredido em uma velocidade muito maior do que as leis iriam reconhecer.

O movimento pró-escolha é formado por ativistas incríveis, tentando fornecer apoio para qualquer pessoa que está decidindo se quer ou não manter sua gravidez. Sem grupos estabelecidos como esse, e os esforços incansáveis que eles fizeram, nossa geração teria achado impossível encontrar nossa voz e fazer campanha por direitos reprodutivos. Direitos reprodutivos também avançaram mais longe como parte de um movimento internacional — de fato, depois que o Repeal the 8th Movement ganhou impulso que muitas pessoas na Grã-Bretanha perceberam que o Norte da Irlanda tinha leis de aborto tão restritivas.

Mas nenhuma solução estava vindo de dentro das próprias instituições do Norte, que permaneceram trancadas. Quando chegou a hora dessa nova legislação passar, o Parlamento não tinha feito uma audiência por mais de 1.000 dias. É o período mais longo que qualquer governo “democrático” sem audiência e a situação parece improvável de mudar no futuro próximo. Com a reacionária assembleia do Parlamento dissolvida, ativistas não tiveram escolha a não ser levar suas demandas ao governo. Aqui, o contexto de Brexit e o fraco governo Tory criou uma abertura onde a maioria dos parlamentares do governo estavam preparados para legislar — por meio de emendas um projeto de lei parlamentar — de forma a descriminalizar o aborto e legalizar o casamento igualitário no Norte.

Qual é a próxima para a Irlanda?

Enquanto tais mudanças foram enormemente populares na Irlanda, não há apetite para uma jogada mais geral em direção a um governo direto no Norte. Enquanto políticos do Parlamento são claramente desonestos, deixando o poder nas mãos de funcionários civis, ambos são insustentáveis e lamentavelmente antidemocráticos. A nova legislação pode, então, ser apenas uma solução de curto prazo para o histórico problema de má administração na Irlanda. Até direitos ao aborto ainda não foram ganhos definitivamente. Enquanto a descriminalização foi claramente bem-vinda, em março de 2020, não haverá provisões locais de serviços de aborto no Norte.

O governo garantiu que o National Health Service (NHS, Serviço Nacional de Saúde) agora irá financiar consultas para aquelas com códigos postais de Belfast (assim como suas viagens e acomodações). Contudo, lá permanecem barreiras sociais, políticas e médicas que significam que o aborto ainda não será livre, seguro e disponível no Norte num futuro próximo. Além disso, assim como nossa luta sempre foi por toda a Irlanda, nossas soluções devem ser também. Cuidado para aquelas em cidades da fronteira e vilas, particularmente, não devem ser contingentes nas jurisdições Norte e Sul. Para aquelas que vivem no oeste rural de Donegal (no lado sul da fronteira), mas que usam Derry (do outro lado da fronteira, no Norte) para suas necessidades do dia a dia, faria mais sentido para elas obterem apoio ali ao invés de mais distante no Sul.

Desde que o Sul revogou a Oitava Emenda em maio de 2018, houve enormes avanços — incluindo serviços sendo lançados em menos de um ano. Entretanto, apesar do incrível apoio para a mudança no referendo de 2019 — com mais de 66% endossando a revogação — a ressaca de estigma em uma sociedade católica afeta as pessoas social e profissionalmente. Médicos ainda estão aguardando orientação e provisões detalhadas por toda a Irlanda — com áreas rurais ficando particularmente para trás. O período de espera entre ver um médico e ter a interrupção também traz estigma para as que buscam um aborto — especialmente dado o estrito limite de tempo abaixo de três meses.

Continue a luta

De fato, a batalha pelo direito de escolher ainda não acabou. Enquanto no Sul, o Repeal desfrutou de uma ampla base de apoio, até agora nenhum dos grandes partidos do Norte apoiou inteiramente o direito de escolher. Isso irá causar problemas no futuro se o Parlamento algum dia se estabelecer — pois todas nós sabemos bem demais que enquanto nossos corpos estiverem em debate, eles continuarão sendo moedas de troca política. E nós também sabemos que nem o Parlamento, nem o Governo, têm os interesses do povo irlandês em mente – nem irão legislar de acordo com esses interesses. É por essa razão que a campanha para abortos legais, seguros e livres deve continuar, além da atual mudança na lei.

O que nós podemos confiar para ganhar nossos direitos é em movimentos de base, progressistas. Não podemos mais ser acusadas de sermos nação insular, atrasada. Pessoas irlandesas, do Norte e do Sul, se provaram internacionalistas, e prontas para tomar as ruas para lutar contra. O conservadorismo social está em recuo e cada vitória que tivemos pelo país foram conquistadas marchando nas ruas, batendo nas portas e fazendo petições. A Igreja, há muito tempo dominante na educação irlandesa, está lentamente reconhecendo que precisará abdicar deste controle. Tal é a força de nosso movimento que até partidos de centro-direita estão sendo pressionados para aceitar políticas que previamente teriam sido anátemas a eles.

Construir nosso movimento horizontalmente o tornou inclusivo e internacionalista, conectando nossas lutas a questões globais. E onde nossos movimentos fazem progresso, eles estabelecem as condições para que um novo tipo de sistema político possa emergir pela Irlanda. Essa Irlanda iria certamente estar a mundos de distância da divisão e do acordo paliativo da década de 1990 que silenciou os direitos das mulheres e as vozes progressistas.

Sobre os autores

Maev McDaid é uma ativista com Alliance for Choice Derry.

Brian Christopher é um socialista de Derry.

Lendo Marx no dia das bruxas

A vida no capitalismo é uma experiência de horror - e não há melhor guia sobre isso do que Karl Marx para entender o porquê.

Mark Steven


Imagem: Richard Haidinger / Flickr

Tradução / Como o antagonismo aparentemente onipotente de qualquer filme de terror, o capitalismo não é apenas horrível: ele apavora por ser aparentemente imparável.

“O mundo desembestado”, argumenta Chris Harman em um livro sobre o capitalismo zumbi, “é o sistema econômico como Marx o descreveu, o monstro de Frankenstein que escapou do controle humano; o vampiro que suga a força vital dos corpos vivos de que se alimenta ”.

Esse diagnóstico suscita a grande questão: como podemos nos orientar politicamente dentro de uma dinâmica social cuja própria essência é o horror?

O próprio Karl Marx se fez essa pergunta – ele, cujos escritos transbordam de metáforas e figuras nascidas no gótico, e que valem a pena revisitarmos no Halloween.

“O Capital”, nos diz Marx, “é trabalho morto que, feito um vampiro, só pode viver sugando o trabalho vivo – e que quanto mais trabalho suga, mais vive. O tempo durante em que o trabalhador trabalha é o tempo durante em que o capitalista consome a força de trabalho que comprou dele”. Ou, em uma formulação mais grotesca:

O capital dado em troca da força de trabalho é convertido em bens de necessidade, cujo consumo é o meio pelo qual os músculos, nervos, ossos e cérebros dos trabalhadores existentes são reproduzidos e os novos trabalhadores são gerados.

Esses dois trechos, ambos retirados do único livro publicado que o próprio Marx chegou a concluir, soam mais como Mary Shelley do que um trabalho de economia política, invocando vampiros predadores, monstros mortos-vivos e corpos desmembrados.

Tanto Drácula quanto Frankenstein já foram lidos como contos sobre o capitalismo. O vampiro é, é claro, um capitalista com uma pulsão infernal pela expansão imperial:

Havia um sorriso zombeteiro no rosto inchado, que parecia me levar à loucura. Era esse o ser que eu estava ajudando a transferir para Londres, onde ele poderia, entre seus milhões, e talvez pelos séculos vindouros, saciar sua sede de sangue e criar um novo e crescente círculo de semi-demônios que se empanturarrão dos desamparados. O próprio pensamento me deixava louco. Um desejo terrível recaiu sobre mim de livrar o mundo de tal monstro.

O monstro de Frankenstein, por outro lado, é a personificação zumbificada da retribuição proletária:

Tudo, exceto eu, estava em repouso ou prazer: eu, como o arqui-demônio, sofria um inferno dentro de mim; e, descobrindo-me insatisfeito, desejava rasgar as árvores, espalhar caos e destruição ao meu redor, e depois me sentar e desfrutar a ruína.

Mas, diferentemente dos romances de Stoker e Shelley, o relato de Marx não é apenas gótico. Suas descrições de um modo de produção encharcado de sangue e em carne viva são prenúncios do horror como o vemos no cinema mais recente. O que falta nessas descrições no sentido da moralidade compartilhada pelos romancistas góticos, elas compensam em uma fria racionalidade.

Os horrores para Marx são irremediáveis e absolutos. Quando ele insiste que o capitalismo é o modo de produção que “escorre da cabeça aos pés, a partir de todos os poros, com sangue e imundície”, ele se compromete, como escritor talentoso e mestre no estilo, a transmitir especificamente esse tipo de horror.

Em outras partes de O Capital, quando a imagem do vampiro retorna, a ênfase narrativa muda do predador burguês para o trabalhador explorado e, especificamente, para o seu corpo obliterado:

Deve-se reconhecer que nosso trabalhador sai do processo de produção diferente daquele que entrou. No mercado, ele permanecia como proprietário da mercadoria “força de trabalho” frente a frente com outros proprietários de mercadorias, negociante contra negociante. O contrato pelo qual ele vendeu ao capitalista sua força de trabalho provava, por assim dizer, em preto no branco, que ele se desfazia de si mesmo livremente. Concluída a barganha, se descobre que ele não era um “agente livre”, que o tempo pelo qual ele está livre para vender sua força de trabalho é o tempo pelo qual ele é forçado a vendê-la; que na verdade o vampiro não afrouxará seu domínio sobre ele “enquanto houver um músculo, um nervo, uma gota de sangue a ser explorada”.

O vampiro se revela apenas quando já é tarde demais, quando a fachada de sutilezas legais acaba se mostrando um pacto maligno, digno de Fausto, inescapável até a morte de qualquer das partes.

Estilisticamente importante é o material citado no final, extraído de uma descrição feita em outro lugar por Friedrich Engels. A citação de Engels confirma que a substância orgânica do capital, sua própria força vital expropriada, é o interior do trabalhador.

Embora Marx frequentemente beba das imagens claramente góticas de vampiros e lobisomens, espectros e coveiros, aqui podemos ver que seus relatos sobre o capital também adquirem um gosto por vísceras humanas, com frases mascando e abrindo caminho pelas cartilagens corporais:

Podemos dizer que o valor excedente repousa sobre uma base natural, mas apenas no sentido muito geral de que não há obstáculo natural que impeça absolutamente um homem de tirar de suas costas os requisitos de trabalho necessários para sua própria existência e sobrecarregar outro homem com eles – não mais do que, por exemplo, obstáculos naturais invencíveis impedem um homem de comer a carne de outro.

Como Marx bem sabia, a acumulação capitalista é um crime cujo análogo mais óbvio é o canibalismo. Nascidos para as relações de salário, não somos sujeitos humanos; somos apenas nossa capacidade de trabalhar, o que significa servir nossos diversos órgãos musculares, nervosos e cerebrais – e consumir os de nossos amigos e familiares, bem como os de completos estranhos.

Descrições góticas como essas não são meramente decorativas. Em vez disso, elas chegam à própria essência da vida sob o capitalismo. Elas nos lembram como corpos e cérebros são mutilados em mercadorias. Literalmente, precisamos apenas pensar nas deformações, lesões e fatalidades causadas por condições de trabalho tensas em todos os níveis da indústria capitalista, desde traumas neurológicos a ataques cardíacos, ossos quebrados, membros amputados e mortes em massa.

De maneira figurativa, cada minuto e cada hora gastos no trabalho assalariado é outro minuto e outra hora em que nossos corpos são conectados a uma vasta máquina que só vive por meio da drenagem de nossas substâncias vitais.

A vida sob o capitalismo é a experiência do horror, a liquefação irreversível da substância humana e seu consumo necrofágico. Como o destino cruel das vítimas em qualquer filme de terror, cujos corpos são obliterados para além de qualquer reconhecimento e tão frequentemente ingeridos por outros seres humanos, uma vez que nosso trabalho sucumbe ao valor, essa transformação é totalmente irreparável. Assim reflete o poeta Keston Sutherland em um ensaio brilhantemente nauseante sobre o jargão de Marx: “Tudo o que é carne derrete em osso e vice-versa; e nenhum esforço de escrutínio, vontade ou de imaginação fervilhante, por mais poderosamente analítica ou moral que seja, é capaz de reverter o processo industrial dessa deliquescência. ”

A lição pode ser colocada da seguinte maneira: todos nós habitamos a mesma história de terror e todos devemos ficar intensamente revoltados com isso. Mas, mesmo que não possamos desfazer o que já foi feito, essa repulsa ainda pode ser um catalisador para a revolução. Talvez seja isso que Marx estava tentando nos ensinar o tempo todo, com sua marca única de horror gótico.

Colaborador

Mark Steven é professor de literatura na Universidade de Exeter. Ele é o autor de "Red Modernism: American Poetry" e "The Spirit of Communism and Splatter Capita".

30 de outubro de 2019

"A Turquia revive o Estado Islâmico em Rojava, Síria"

A invasão da Turquia no norte da Síria é seu mais recente esforço para destruir a nascente democracia em Rojava, onde as forças lideradas pelos curdos esmagaram o Estado Islâmico, cujos combatentes agora estão voltando.

Entrevista com
Rosa Burç e Kerem Schamberger

Entrevistado por 
Steve Hudson

Jacobin

Vendedores de frutas, legumes e utensílios de cozinha para refugiados fora do campo de Badarash, em Dohuk, Iraque, que continua a crescer para os refugiados curdos sírios que fogem da invasão turca em Rojava, em 24 de outubro de 2019.

Tradução / A morte do líder do Estado Islâmico (EI) Abu Bakr al-Baghdadi não é o fim do banho de sangue na Síria - mesmo nas áreas que o EI há muito tiranizou. Nos últimos dois anos, seu território foi radicalmente reduzido, graças à ação das Unidades de Proteção do Povo (YPG) e das Forças Democráticas da Síria (SDF). Essas forças lideradas pelos curdos não apenas resistiram ao EI, como criaram uma nova forma de democracia não sectária no norte da Síria, conhecida como Rojava. Apesar da morte de al-Baghdadi, Rojava está novamente em perigo. 

Essa ameaça renovada ao projeto democrático no norte da Síria não é totalmente surpreendente. Em um teatro de guerra envolvendo potências como EUA, Rússia, Turquia e Estados do Golfo, a sobrevivência de Rojava esteve sempre à mercê de um equilíbrio geopolítico precário. Quando, no início deste mês, Donald Trump retirou o pequeno número de forças americanas da Síria, deu sinal verde para o presidente autoritário da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, para lançar uma invasão do território controlado pelos SDF.

Nesta entrevista a Steve Hudson, os ativistas pró-Rojava Rosa Burç e Kerem Schamberger falam da invasão, a proliferação de jihadistas e a ameaça ao Rojava.

Steve Hudson

Conte-nos o que é o Rojava e o que está acontecendo lá nos últimos anos.

Rosa Burç

Rojava significa literalmente “a terra onde o sol se põe” em curdo e é usado como sinônimo para o Curdistão Ocidental. Durante sete anos, em meio à guerra na Síria, as forças curdas e a população civil lutam por uma nova forma de autodeterminação. Nos últimos anos, eles construíram sua autonomia. Não fizeram isso no vácuo, mas através da luta contra o Estado Islâmico. Rojava é um símbolo de autodeterminação para os povos do Oriente Médio e especialmente da Síria.

Steve Hudson

Costumo ler isso discutido em termos de autogoverno democrático - uma democracia de base que defende os direitos das mulheres e das minorias.

Rosa Burç

Rojava é a resposta natural à ascensão e colapso dos estados-nação no Oriente Médio. Os curdos e outras minorias na região foram sistematicamente excluídos da vida política por quase um século. Portanto, Rojava é algo novo - e tem um caráter de base, porque contorna a hegemonia supressora das nações dominantes e de seus respectivos estados. Rojava é essencialmente um projeto de autodeterminação por aqueles a quem foram negados direitos fundamentais pelos estados-nação existentes.

Steve Hudson

Então, por que a Turquia invadiu agora?

Kerem Schamberger

Rosa disse algo importante: a fundação dos Estados-nação turcos, sírios e depois do Iraque não prestou atenção à diversidade multiétnica da região, mas apenas a uma identidade nacional dominante: os turcos, os sírios. Identidade árabe e iraquiana-árabe em cada país respectivo. Qualquer projeto que afirme o contrário - ou seja, a diversidade de culturas - representa uma ameaça para essa perspectiva de Estado-nação. Portanto, a Turquia tem interesse em impedir qualquer autodeterminação - e especialmente em interromper o que Rojava está tentando implementar. Também vimos isso em setembro de 2017, durante o referendo da independência no sul do Curdistão (norte do Iraque), onde todos os estados vizinhos intervieram massivamente.

A Turquia agora invadiu Rojava na tentativa de destruir esse autogoverno e resistir a todas as formas de autodeterminação curda. Mas também, para servir seus planos neo-otomanos para a expansão do estado turco. Como você pode ver, em todos os lugares que a Turquia invadiu nos últimos anos - em março de 2018 em Afrin e agora na parte ocidental do norte da Síria - não permitiu o autogoverno, mas construiu um tipo colônia, por exemplo, criando correios e universidades turcos. Refugiados da Síria, que tiveram que fugir após a guerra civil, devem se instalar nesses mesmos territórios. Isso significaria uma arabização das áreas onde a maioria dos curdos morava.

Steve Hudson

O turco agora está sendo ensinado em Afrin?

Kerem Schamberger

Sim, exatamente - não como no período de governo autônomo, quando as lições foram adaptadas às respectivas áreas e seus idiomas. Agora, o curdo não é sequer uma das línguas ensinadas nas escolas de Afrin.

Rosa Burç

Não se deve esquecer que a Turquia tem uma longa história de "guerras de turquificação" contra os curdos. Por exemplo, até 1991, o idioma curdo foi banido. Hoje, mesmo que a língua curda seja permitida, o povo curdo não tem o direito de instruir em seu próprio idioma, o que significa que não desfruta do direito à educação em sua língua materna. Nem os curdos recebem um intérprete curdo no tribunal. Pior ainda, eles são linchados - como vimos algumas semanas atrás - porque falam curdo.

O que vimos em Afrin e voltamos a ver hoje é a continuação de uma política de turificação de um século, sob ocupação. A Turquia fala sobre "riscos à segurança" para justificar suas operações na maioria das regiões curdas. Mas trata-se de esmagar qualquer forma de expressão política curda e impedir seu ressurgimento dentro ou fora da Turquia.

Steve Hudson

O que exatamente está acontecendo, especialmente contra a população civil? E em termos militares?

Kerem Schamberger

Militarmente, houve um acordo entre as Forças Democráticas da Síria (SDF) e o Exército Árabe da Síria - ou seja, o exército do regime de Assad - para defender certas áreas de fronteira contra a Turquia. Ninguém sabe o que esse acordo realmente significa, mas estamos vendo a Turquia atacando, em dois lugares em particular: Girê Spî e Serê Kaniyê. E se olharmos para o papel que essas cidades desempenharam historicamente, podemos falar de uma redivisão do Curdistão. Lá, apesar do chamado "cessar-fogo", os ataques das milícias jihadistas pró-turcas continuam em massa. Parece também que há um acordo da Rússia e dos Estados Unidos de que a Turquia pode continuar atacando essas áreas - de fato, ninguém está falando sobre os ataques em andamento.

Essas duas cidades foram centrais para o surgimento de um cinturão árabe na década de 1960. Milhares de famílias árabes do norte foram instaladas lá, com o objetivo de quebrar a maioria curda da população. Mas, nos últimos anos, ainda havia uma coexistência muito diversificada de diferentes culturas. O ataque agora pode significar re-arabização.

Os ataques turcos em Serê Kaniyê foram particularmente violentos, mas as forças curdas defenderam a cidade por mais de dez dias. Isso, contra o segundo maior exército da OTAN. Existem dezenas de milhares de mercenários jihadistas na folha de pagamento do exército turco. Todos os dias, dezenas de mortes são relatadas nesta área, incluindo civis, pois estão sujeitas a bombardeios direcionados pelas forças turcas. Atualmente, 300.000 pessoas estão fugindo. Cerca de 300–500 civis foram mortos até agora. É uma situação dramática.

Steve Hudson

Também houve a execução da política curda Hevrîn Xelef...

Rosa Burç

Sim, houve relatos e imagens de vídeo confirmados do Observatório Sírio mostrando essa execução. Ela tinha 35 anos - depois dos estudos, voltou a Rojava para contribuir com a mudança social que estava acontecendo. Foi exatamente isso que eu quis dizer antes: as pessoas fizeram todos os esforços possíveis para construir um novo sistema em Rojava. Ela esteve ativamente envolvida na construção de um conselho de mulheres e foi co-presidente do Futuro Partido da Síria.

Falar sobre sua execução é doloroso, porque ela representava pessoalmente tudo o que Rojava havia imaginado para o futuro - os curdos e todos os outros povos. Ela era conhecida por suas realizações em termos de laços diplomáticos entre vários grupos curdos, étnicos e religiosos. Ela promoveu a amizade curdo-árabe e estava trabalhando ativamente em um futuro conjunto na Síria do pós-guerra.

É importante não esquecer que as milícias jihadistas - que são pagas e apoiadas pelo segundo maior exército da OTAN - a executaram a sangue frio e que um jornal amigo do AKP, da Turquia, comemorou essa "neutralização" de uma "terrorista". Existe um nacionalismo extremo e racista na Turquia, construído em torno do ódio anti-curdo, tanto na política quanto na mídia. Quando ouvi as notícias sobre ela, meus pensamentos se voltaram para o ministro do Interior turco. Alguns dias antes, ele havia dito em uma entrevista à CNN Turca que eles não estavam combatendo uma "organização terrorista" convencional, mas uma "organização terrorista de mulheres". E então, é claro, surge a questão de saber se esse ódio às mulheres é de fato, simbólico do que está sendo feito para o Rojava.

Kerem Schamberger

Este ataque contra Hevrîn pode ser uma premonição do futuro na Turquia, se os mercenários conseguirem conquistar essas áreas. Isso significaria um reino de terror para as mulheres e para todos os que defendem uma forma diferente de coexistência.

Steve Hudson

O AKP tenta pintar todas as tentativas de autodeterminação como "terrorismo". Ao mesmo tempo, existe essa aliança com grupos jihadistas e até com o EI. Durante muito tempo, foi dito que a Turquia havia tolerado ou até ajudado a construir o EI no norte da Síria - o que está acontecendo com eles agora, especialmente os prisioneiros das áreas controladas pelos curdos?

Rosa Burç

O apoio da Turquia ao EI é antigo. Não é apenas desde que vimos recentemente bombardeiros aéreos turcos contra prisões para libertar soldados do EI, mas até na luta por Kobanê em 2015. Naquela época, Erdogan falou da captura da cidade pelo EI como uma vitória. Muitas evidências semelhantes foram acumuladas nos últimos anos; o corpo de fronteira turca permitiu por exemplo que o EI cruzasse fronteiras. O EI lutava pelos interesses turcos no norte da Síria.

Kerem Schamberger

A Turquia chama eufemisticamente seu ataque de "Operação Primavera da Paz", mas, na verdade, eu o batizaria de "reavivamento do Estado Islâmico". Uma das primeiras ações turcas foi bombardear as prisões onde os combatentes do EI foram mantidos, permitindo centenas de fugas. Também há relatos não confirmados de que armas foram lançadas para equipá-las. E também há relatos de bandeiras EI tremulando novamente. Isso é realmente inacreditável: os curdos perderam 11.000 combatentes na luta contra o Estado Islâmico, 24.000 ficaram gravemente feridos e agora esse aliado da Otan está fazendo ataques bombardeios contra os curdos. Estou na política há vinte anos, mas raramente experimentei uma injustiça tão flagrante.

Steve Hudson

E como o Ocidente reage a uma injustiça tão flagrante?

Kerem Schamberger

No momento, acho que toda a reação ocidental é hipócrita. Hoje, o governo alemão impediu a existência de embargos de armas da União Europeia. Existem embargos de estados individuais, como Espanha, Holanda ou países escandinavos - e a Alemanha pode seguir o exemplo. Mas as lojas de armas da Turquia estão cheias de armas ocidentais - de fato, o governo federal alemão entregou cerca de 500 tanques Leopard à Turquia. Qualquer embargo só teria efeito em meses ou anos.

Segundo, nos últimos quinze anos, o AKP conseguiu reativar a indústria de armas turca. Isso significa que 80% das armas turcas são produzidas lá, pois também estão atentas à transferência de conhecimento e agora podem produzir fuzis de tiro rápido alemães. Portanto, não há mais dependência de armas estrangeiras.

As sanções de que Trump está falando são ridículas - não farão nada. Acho que as sanções e as condenações verbais servem para apaziguar o público global e dizer: a União Européia também condena isso para que eles possam alegar que estão "fazendo alguma coisa", mesmo que tenham sido eles que tornaram a guerra possível. Essa é claramente a estratégia deles. Nós, da nossa parte, temos que sair às ruas, demonstrando e aumentando a desobediência civil, em vez de confiar nos governos. O próprio Ocidente não tem interesse no projeto Rojava.

Rosa Burç

Devemos olhar para o Rojava e ser inspirados por ele. O que as pessoas fizeram lá é exigir o seu próprio direito à auto-determinação, para a libertação humana. Se, em nossa indignação, simplesmente olharmos para a comunidade internacional e confiarmos nas sanções ineficazes impostas por governos estrangeiros, isso apenas significa que mais pessoas morrerão, os curdos serão deslocados, a Turquia aprofundará seu autoritarismo e Rojava não sobreviverá. Isso significará a morte de um projeto através do qual muitas pessoas em todo o mundo recuperaram suas esperanças de um futuro melhor.

Nas ruas, e onde quer que estejamos, temos que mostrar como estão interconectadas as injustiças de nossos tempos. Devemos deixar claro que uma derrota para a "utopia" de Rojavan seria uma derrota para todos os defensores da democracia dos povos ao redor do mundo. Também há coisas mais práticas que podemos fazer, como boicotes. No final, trata-se de defender uma sociedade igualitária - em Rojava e além.

Sobre os entrevistados

Rosa Burç é pesquisadora do Centro de Estudos do Movimento Social (COSMOS) da Scuola Normale Superiore em Florença, Itália. Her research is on radical democracy and grassroots movements, currently focusing on the Kurdish movement in the Middle East. She has conducted several research visits to various parts of the Kurdish region.

Kerem Schamberger é pesquisador do Instituto de Ciência da Comunicação e Pesquisa em Mídia da Universidade Ludwig Maximilian de Munique e membro da Esquerda Marxista.

Sobre o entrevistador

Steve Hudson is a UK-born activist based in Germany and co-chair of Momentum International. He co-hosts the podcast halbzehn.fm.

29 de outubro de 2019

O futuro da Grã-Bretanha será decidido em seis semanas

Nas eleições de dezembro tudo estará em disputa. Os conservadores estão nervosos e os trabalhistas têm uma tarefa difícil pela frente. Acima de tudo, precisamos mudar o foco do debate sobre o melodrama do Brexit para os estragos da austeridade.

Dawn Foster

Jacobin

O líder do Partido Trabalhista britânico, Jeremy Corbyn, chega a uma reunião de socialistas europeus antes de uma cúpula de líderes da União Europeia em 17 de outubro de 2019 em Bruxelas, Bélgica. Sean Gallup / Getty

Tradução / O eleitorado do Reino Unido voltará às urnas novamente, para a quarta eleição geral em uma década. Enquanto o Parlamento discute a data exata, as eleições de dezembro prometem uma sequência de "primeira vez": pela primeira vez uma eleição em dezembro desde 1923, pela primeira vez uma eleição no inverno desde 1974 e pela primeira vez uma eleição não realizada na quinta-feira desde 1931.

Mas também pode ser a primeira vez que uma eleição vá resultar em uma maioria trabalhista desde 2005. As pesquisas continuam incrivelmente voláteis e, com apenas dez pontos à frente, os conservadores estão em uma posição pior do que estavam no início da campanha de 2017, que terminou com eles perdendo assentos e a própria maioria que tinham, apesar de terem começado vinte e quatro pontos à frente dos trabalhistas. A arrogância que Theresa May mostrou ao convocar uma eleição antecipada para tentar aumentar sua maioria foi recompensada com um belo nariz quebrado no dia das eleições. Boris Johnson mostra agora a mesma arrogância, argumentando, exatamente da mesma forma que Theresa May, que ele precisa de uma maioria para garantir que o Brexit seja entregue.

Dias antes de o parlamento votar uma eleição antecipada, os Conservadores comunicaram que estavam inequivocamente confiantes, certos de uma grande derrota trabalhista e de que a personalidade de Johnson seduziria milhões a voltarem a votar no Partido Conservador. Agora que os trabalhistas apoiaram uma eleição, muitos parlamentares conservadores estão bem mais nervosos, pelo menos um deles afirmando que é uma "missão suicida". Os conservadores têm consciência que se trata de uma grande aposta: os eleitores podem sentir que estão sendo tomados por garantidos e trocar de partido, mas o maior risco para os conservadores é o Partido do Brexit concorrendo em centenas de distritos, argumentando que Johnson não conseguiu entregar o Brexit até a data em que foi prometido, e corroendo a votação conservadora, permitindo que o Labour assuma a liderança em assentos marginais conservadores.

Mas o Partido Trabalhista também tem vários elementos a seu favor. O partido tem de longe a maior parcela de jovens ativistas, com os conservadores falhando totalmente em recriar um movimento de juventude depois que a ala jovem do partido entrou em colapso devido a um terrível escândalo de bullying. Os trabalhistas terão muito mais pessoas entregando panfletos, batendo nas portas e abordando os eleitores pessoalmente e por telefone. O Momentum tem competência para canalizar um grande número de militantes aos principais distritos marginais, onde a disputa será mais apertada; o que foi fundamental para o aumento do número de deputados eleitos pelo partido em 2017.

As regras de imparcialidade que cobrem a transmissão dos meios de comunicação também afetam a cobertura do partido: políticas e plataformas obtêm uma audiência mais equitativa até o dia da votação, e os trabalhistas desfrutam de um grande aumento nos índices de aprovação uma vez que essas regras foram implementadas nas eleições, dois anos atrás. Uma quantidade muito maior de parlamentares trabalhistas receberam tempo de TV, e as conversas passaram a se concentrar mais nas políticas do programa do que nas disputas internas do grupo parlamentar do partido.

A maioria dos comentaristas argumenta que a eleição será disputada quase inteiramente sobre a questão do Brexit. Foi também isso que se disse da última vez, e a eleição real, na verdade, foi mesmo sobre as políticas sociais e econômicas. O Partido Trabalhista se saiu bem depois do lançamento de um manifesto radical, que cobria o Serviço Nacional de Saúde, escolas, serviços públicos e a economia. Os conservadores foram tomados de surpresa com o estrago que a política de assistência proposta – apelidada de “imposto de morte” – causou nos seus índices de aprovação, e têm colocado bem menos trabalho em desenvolver um manifesto do que os trabalhistas têm feito nos anos desde a última eleição. O fato de Johnson não ter conseguido entregar o Brexit até agora e insistir repetidamente que ele poderia tirar o Reino Unido da União Europeia até 31 de outubro será usado, por todas as partes, contra os Conservadores durante toda a campanha.

Embora os conservadores possam ter a simpatia da maioria da mídia, os trabalhistas têm idéias radicais que provavelmente atrairão os eleitores. Após nove anos de austeridade, o eleitorado será questionado sobre o que a última década fez em sua área local, em suas comunidades, em seu padrão de vida e nas chances de vida e futuro de seus filhos. Os "bancos de alimentos" quase não existiam no Reino Unido antes dos conservadores tomarem o poder em 2010; agora eles alimentam milhões e estão por todas as partes. Os menos favorecidos viram suas expectativas de vida caírem, enquanto aqueles no topo viram seus ganhos aumentarem enquanto pagavam cada vez menos impostos. Os médicos relatam desnutrição e raquitismo, doenças consideradas vitorianas e extintas, mas que agora voltaram devido ao empobrecimento deliberado das classes trabalhadoras.

Os conservadores podem ganhar, mas os trabalhistas também podem: tudo está em aberto. Os Conservadores tentarão transformar a eleição em um referendo sobre o Brexit, mas o país quer esperança para o futuro, em vez de ser arrastado para disputas parlamentares pelos ricos proprietários e empresários que habitam o Partido Conservador. Os trabalhistas tiveram um desempenho muito melhor do que o esperado em 2017 e, com trabalho duro e um manifesto robusto, poderiam enterrar os conservadores de Boris Johnson a tempo do Natal.

Sobre a autora

Dawn Foster é escritora da equipe jacobina, colunista do The Guardian e autora do livro "Lean Out".

28 de outubro de 2019

Vamos construir um novo Chile

O movimento chileno que derrubou 8 ministros e colocou o governo de joelhos não quer pequenas concessões. Quer abolir todo o legado do neoliberalismo e da ditadura pinochetista.

Uma entrevista com
Isidora Cepeda Beccar

Jacobin

Demonstrators raise their hands for a minute of silence for the deceased in the protests during the day of cultural activities called by Movimiento Unidad Social at Plaza O'Higgins on October 27, 2019 in Santiago, Chile. Marcelo Hernandez / Getty

Tradução / Este fim de semana assistimos as maiores manifestações no Chile desde a volta da democracia. Em Santiago, mais de um milhão de pessoas foram às ruas para protestar contra o governo de direita de Sebastián Piñera.

Tendo começado no início deste mês devido à irritação pelo aumento nas tarifas de transporte público, o movimento logo se expandiu para uma série de questões sociais e econômicas de longa data relativas a aposentadoria, assistência médica e salários. Mas, como atinge todos os cantos do país, suas demandas se aprofundaram: os manifestantes passaram a exigir uma nova constituição e uma reforma muito mais profunda da política do que a que foi alcançada após o regime Pinochet.

Enquanto as cidades são embaladas ao som de Víctor Jara, compositor socialista e defensor do governo de Allende executado durante o golpe de 1973, discutimos os protestos no Chile com Isidora Cepeda Beccar, participante e ativista política residente em Santiago.

Ronan Burtenshaw

Primeiramente, você pode me contar um pouco sobre como esse movimento de protestos começou?

Isidora Cepeda Beccar

Tudo começou, em primeiro lugar, porque o governo aumentou as tarifas do transporte público. No Chile, existe um Painel de Peritos em Transporte Público encarregado de definir esses reajustes. Eles argumentaram que esse aumento em particular ocorreu devido ao aumento do preço do petróleo, à variação do índice de preços ao consumidor e outros fatores, como o preço do dólar. Então aumentaram o preço em trinta pesos, o que não é muita coisa, e o governo não esperava a reação com os protestos. Mas os estudantes se organizaram e começaram a incentivar as pessoas a não pagar a passagem. Eram estudantes do ensino médio que, na verdade, têm tarifas especiais, então o aumento não os afetava.

Eles diziam: “Estou fazendo isso pela minha família” ou “estou fazendo isso pela minha mãe”. Eles tentaram abrir as estações de metrô para que as pessoas pudessem passar sem pagar. Esses protestos causaram problemas e a polícia interveio usando gás lacrimogêneo. Isso quer dizer que os afetados não eram apenas estudantes — todos na estação ou nos trens foram atingidos pelo gás lacrimogêneo.

Os protestos ganharam corpo por causa disso e, na sexta-feira passada, o caos foi tão grave que a administração do metrô decidiu fechar algumas estações. Santiago estava uma bagunça. As pessoas que tentavam chegar em casa do trabalho iam a uma estação de metrô e ela estava fechada, em seguida iam à próxima estação e ela também estava fechada. Havia muito pouca informação. Em alguns casos, as pessoas começaram a atacar as estações fechadas. Algumas estações foram incendiadas em circunstâncias suspeitas.

Essa foi a desculpa para o governo decretar estado de emergência naquela noite. Mas os protestos tiveram muito apoio popular. Nos últimos meses, houve uma série de declarações de ministros do governo mostrando como estavam por fora da precariedade que afeta muitos chilenos. As famílias da classe trabalhadora geralmente despendem 20% ou mais de seu salário em transporte. Os protestos começaram em áreas de baixa renda, onde as pessoas geralmente precisam viajar duas vezes para chegar no trabalho. As pessoas sentiam que não estavam vivendo para muito mais do que para trabalhar.

Isso significa que os protestos rapidamente se tornaram mais generalizados. As pessoas começaram a articular demandas latentes desde o retorno da democracia. Elas falavam sobre o sistema de previdência privada, em que se trabalha a vida toda com um salário decente para no final se encontrar na pobreza. O mesmo acontece com o sistema de saúde. O Estado abandonou o sistema de saúde público. Existem muitos bons médicos, mas pouquíssima infraestrutura. No mês passado, os médicos até se queixaram de falta de remédios. As pessoas precisam esperar três meses por cirurgias básicas. Um relatório recente mostrou que 26.000 pessoas morreram em 2018 devido à longa espera por cuidados médicos.

Essas injustiças são profundamente sentidas e expõem o fato de que o sistema que sucedeu a ditadura no Chile beneficia apenas uma pequena elite. A mídia fala do Chile como um país rico, a joia da América Latina. Mas a maioria dos trabalhadores não vê essa realidade em seu cotidiano. Esse movimento não vai dizer exatamente como mudar a situação — mas está exigindo claramente mudanças.

Ronan Burtenshaw

O Chile tem um presidente de direita desde a eleição de Sebastián Piñera no ano passado. Como esse governo reagiu ao movimento?

Isidora Cepeda Beccar

Tudo começou porque Piñera se recusou a ouvir os estudantes. Mas isso não foi inesperado, geralmente acontecem pequenos protestos sobre medidas governamentais. O governo achava que “mais cedo ao mais tarde eles irão se cansar e seguiremos em frente”. Isso mudou quando o governo decidiu fechar as estações de metrô — impactando a vida de todos os trabalhadores — e então reagiu com uma forte repressão aos protestos.

Na mesma sexta-feira em que as estações de metrô começaram a queimar outro prédio pegou fogo, de propriedade da empresa de energia Enel. Nós realmente não sabemos quem começou esses incêndios. Eles foram considerados pelo governo como prova de que o movimento foi organizado por grupos terroristas e como um ataque contra, em suas palavras, “todos os cidadãos”. Isso foi um erro — a tentativa de mudar tão rápido o tom da conversa das demandas do movimento, que eram bastante populares, para demonizá-lo. As pessoas perceberam como o governo estava sem contato com a realidade.

No último sábado, o governo colocou exército nas ruas, o que foi outra escalada. Então, naquele domingo, Piñera levou as coisas a um nível acima e disse que estava em uma “guerra” contra o movimento. Suas palavras exatas foram: “estamos em guerra contra um inimigo poderoso e implacável, que não respeita nada nem ninguém”. Ele não especificou quem era o inimigo, mas deixou aberto a interpretações. Ele estava evitando o problema real — o descontentamento geral — elevando o espectro do caos e de uma ameaça representada por grupos organizados violentos.

Isso foi o ápice para a maioria das pessoas comuns. Não havia justificativa para colocar de lado preocupações que são óbvias para a grande maioria. Ainda é incerto quem exatamente começou os incêndios, mas as pessoas sentiram que o presidente estava criando um monstro que não existia. A realidade é que a raiva e a frustração se acumularam por anos. As pessoas não apoiavam os atos violentos, mas muitos compreendiam.

Colocar o exército nas ruas em resposta a essa ameaça foi significativo. O histórico do exército no Chile não é positivo. Ele nunca esteve em guerra com outro país no período moderno, sempre agiu contra o seu próprio povo. É intimidador ver o exército nas ruas, mas era ainda mais quando esse mesmo exército estava torturando e matando nosso povo por atividades políticas no passado recente. Isso está realmente vivo no imaginário popular.

De repente, havia veículos blindados e tanques nas ruas. Na entrada das estações de metrô. Protegendo supermercados como o Walmart. Um toque de recolher foi imposto. Durante esse período, a maioria das pessoas ia para casa, por não querer saber o que aconteceria se o toque de recolher fosse quebrado. Tudo isso contribuiu para a ideia de que estávamos sitiados.

Houve confrontos entre manifestantes, o exército e a polícia. Os números oficiais sugerem que dezoito pessoas foram mortas — mas, se os protestos acontecem à noite, durante o toque de recolher, não sabemos realmente o que se passa. Não há imprensa. A polícia também tem invadido casas e detido ativistas. Mais de 3.000 pessoas foram detidas no total.

No início desta semana, Piñera começou a fazer concessões. O governo reverteu a alta nas tarifas de transporte e ofereceu o que ele chamou de “nova agenda social” com reformas nas aposentadorias, assistência médica e salário mínimo. Mas não foi substancial. No Chile, temos um ditado: “pão para hoje, fome para amanhã”. O salário mínimo agora é de 300.000 pesos [equivalente a 414 dólares] e ele prometeu aumentar 50.000 [69 dólares] — isso não tira ninguém da pobreza . Na quarta-feira, depois do anúncio dessas concessões, tivemos a maior onda de protestos até agora.

Nesse momento, havia um entendimento transversal de que tudo o que havia acontecido até quarta-feira não tinha sido suficiente para fazer o presidente ouvir. Não foi suficiente fazê-lo ceder, mesmo nos elementos básicos do sistema neoliberal e do modelo de desenvolvimento que são, de fato, a causa direta da desigualdade. Na sexta-feira, estima-se que mais de 1,2 milhão de pessoas, apenas em Santiago, foram às ruas. Outras milhares também participaram em outras cidades.

As demandas desta manifestação foram diversas, mas seguiram um tema: desde a renúncia do presidente até a proposta de uma nova constituição; de críticas à mídia, a repreensão da polícia e do comportamento dos militares. O movimento estava criticando a forma como o governo lidou com o conflito até agora e sua inflexibilidade.

Ronan Burtenshaw

Como o movimento tem se desenvolvido? Claramente tem crescido em tamanho... 

Isidora Cepeda Beccar

O movimento não tem um líder ou uma organização coordenadora, mas as redes sociais têm tido um papel importante. Você recebe um grupo, uma organização feminista local, por exemplo, postando no Facebook sobre uma reunião em uma praça em determinado momento e, em seguida, as informações são compartilhadas pelo bairro. O movimento tem se desenvolvido assim — manifestações nas estações de metrô e depois as de maior proporção em diferentes praças. As pessoas se reúnem à medida que o movimento progride. A última semana vimos manifestações em massa.

As pessoas responderam à narrativa do governo sobre o que estava sendo destruído. Elas viram as fotos dos incêndios e dos saques, e se organizaram para proteger seus bairros e estações de metrô. Isso também tem unido as pessoas, o que significa que a tática do governo saiu pela culatra. E o movimento se espalhou — a princípio, estava concentrado em Santiago, onde a tarifa do metrô aumentou. Mas, no último sábado, houve protestos em Valparaíso, Concepción, Temuco, Punta Arenas, assim como toques de recolher. O movimento se tornou nacional. Houve também os panelaços, que começaram em resposta ao toque de recolher, em que as pessoas batem panelas e frigideiras para fora das janelas dos seus apartamentos. Isso mostra como, mesmo quando o movimento é nacional, ele também está presente em todos os bairros. Os panelaços se tornaram ainda mais poderosos quando a chamada foi realizada nas mídias sociais para que todos os acompanhassem com uma música específica de Víctor Jara, El Derecho de Vivir en Paz.

Ouvir a música de Víctor Jara tocando nas casas das pessoas em Santiago foi incrível. E mais do que isso. À medida que o movimento crescia, você podia ouvir as pessoas cantando ¡El Pueblo Unido, Jamás Será Vencido!. Esse canto transporta para quarenta ou cinquenta anos atrás, para os tempos da Unidad Popular [coalizão do governo de Allende], mas as pessoas que estão cantando são estudantes, não veteranos da época.

Ronan Burtenshaw

Essas músicas são simbólicas não apenas em Santiago, mas em toda a esquerda internacional, falando de uma época em que havia grandes esperanças para a esquerda chilena e o governo de Allende. Como a esquerda chilena de hoje respondeu ao movimento?

Isidora Cepeda Beccar

A esquerda tem sido relutante em falar demais sobre o movimento. O descontentamento que suscitou remonta trinta anos, não apenas à ditadura, mas também à transição para a democracia. A esquerda esteve no poder [através da centro-esquerda dos partidos por la Democracia e depois o Socialista], durante a maior parte dos últimos vinte anos.

Temos que compreender que os socialistas que governavam não eram do partido de Allende. Os presidentes de esquerda que tivemos, Ricardo Lagos, mas também Michelle Bachelet, não mudaram a arquitetura da ditadura. Pinochet criou a estrutura e eles simplesmente tentaram melhorá-la. Eles continuaram no caminho da privatização enquanto, ao mesmo tempo, instituíram programas sociais para ajudar as pessoas que não conseguiam acompanhar o fluxo do mercado. Agora, o estado social é amplamente moldado pelo que você poderia chamar de Esquerda Oficial.

O último governo da Esquerda Oficial, o último de Bachelet, esteve sob a bandeira da Nueva Mayoría, e também incluiu os comunistas. Desde os dias dos protestos estudantis em 2010, o Partido Comunista do Chile produziu uma nova geração de líderes, pessoas como Camila Vallejo e Karol Cariola. Elas são muito boas e havia muitas esperanças para elas. Mas quando estavam no governo, foram muito disciplinadas e apoiaram a linha oficial. Eu acho que isso dificulta com que tenham uma voz forte e crítica. Assim elas são consideradas estando no mesmo “saco” dos outros.

Há também uma “nova” esquerda no Chile, uma aliança de partidos chamada Frente Amplio. Ela inclui a Revolución Democratica, um partido inspirado pelo Podemos, assim como de partidos verdes, humanistas, feministas e assim por diante. Eles se saíram bem nas eleições recentes e têm vinte cadeiras no parlamento, mas eu diria que eles têm tido dificuldade para ter uma mensagem clara sobre as manifestações. No primeiro sábado, o parlamento votou sobre a redução das tarifas — alguns disseram que participariam das discussões, outros disseram que não participariam até que o exército estivesse nas ruas. Foi bastante ambíguo.

A Frente Amplio representa uma nova geração de políticos, mas eu não diria que eles estão “com o povo”, por assim dizer. Seu discurso defende os interesses populares, mas seus políticos também fazem parte de uma classe média instruída. Eles não construíram uma base de fato. O Partido Comunista, por outro lado, tem uma estrutura muito forte de participação em bairros e sindicatos de baixa renda. Eles são estabelecidos em muitos lugares. A Frente Amplio tem uma estrutura política fraca nas organizações sociais. Mas isso é de se esperar quando é tão novo.

Eu acho que a esquerda em geral não esperava esses protestos e, de certa forma, mostraram o quão longe a esquerda está do povo que ela quer representar. Então agora eles estão esperando e tentando se envolver da melhor maneira possível, mostrar que estão ouvindo. Após as manifestações em massa, há muitos apelos para criar e participar dos cabildos: espaços de participação social de baixo para cima (independentes de partidos políticos), a fim de estruturar as demandas. Muitos deles são chamados independentes, mas o Partido Comunista também estará, tenho certeza, ativando suas bases para incentivar a participação popular nesses cabildos.

Ronan Burtenshaw

Os sindicatos têm sido ativos no apoio aos protestos?

Isidora Cepeda Beccar

Sim. Há muito tempo no Chile, os sindicatos têm sido sectários, respondendo apenas a suas próprias demandas. Com esse movimento de protesto, os vimos responder a demandas populares e amplas. Não são apenas problemas dos mineiros, dos pescadores ou dos trabalhadores dos transportes — são problemas da sociedade.

Na segunda-feira, alguns sindicatos decidiram parar de trabalhar e participar das manifestações. Isso incluiu setores importantes como a da mineração, que chamamos de “salário do país” devido à sua importância para o Chile e para os portos. Mas também foi interessante ver o poder dos trabalhadores do metrô. Na primeira sexta-feira, o chefe do sindicato falou sobre como a repressão policial também põe em risco seus trabalhadores nas estações. Isso colocou-os muito alinhados com os setores mais amplos dos protestos.

Os sindicatos convocaram uma greve geral que coincidiu com os protestos em massa na quarta-feira e também apoiaram as manifestações neste fim de semana.

Ronan Burtenshaw

Quais são as perspectivas de sucesso do movimento?

Isidora Cepeda Beccar

É difícil dizer, porque não há um único porta-voz que articule as demandas do movimento. É muito difuso — então, em primeira instância, a resposta precisa vir do governo. Piñera teve a oportunidade de propor reformas que satisfizessem a irritação e não o fez. Então agora vamos ver para onde vai.

Movimentos sociais como esse podem se inflamar muito rápido. Mas o risco é sempre que não possam queimar por muito tempo. As pessoas precisam voltar ao trabalho, depois de um tempo querem que as coisas voltem ao normal. Eu acho que é um risco que esse movimento tenha tão pouca forma institucional. A meu ver, a menos que as demandas sejam levadas adiante pela esquerda, isso poderá resultar em nenhuma mudança real a longo prazo. Porque agora ninguém pode ser específico — por exemplo, não podemos dizer que o movimento queira aumentar o salário mínimo em X% e, se o governo conceder, cantar vitória.

É claro que esse movimento não está apenas abordando esse ou aquele problema. Está levantando questões que vão direto à raiz. Então, acho que precisamos exigir uma nova constituição. Nossa constituição hoje é a herança do neoliberalismo no Chile, que remonta a Pinochet e os Chicago Boys. Para mudar as coisas profundamente, precisamos cortar essas raízes. Precisamos criar novas regras do jogo.

Precisamos de uma constituição completamente nova, criada por uma assembleia constituinte, com todos os tipos de representantes sociais envolvidos. Isso daria poder real ao povo e encorajaria uma necessária cultura de participação, envolvimento e compromisso social com o espaço político. O presidente, o parlamento, os partidos políticos de hoje não estão representando a voz do povo. Eles não fazem isso há décadas, por que deveriam começar agora?

Republicado do Tribune.

Sobre a entrevistada

Isidora Cepeda Beccar é uma ativista política e pesquisadora residente em Santiago, Chile. 

Sobre o entrevistador

Ronan Burtenshaw é o editor da Tribune.

"O sindicato é uma equalização de poder"

Taylor Moore foi demitido do Kickstarter por tentar se sindicalizar. Conversamos com ele sobre a campanha da empresa de crowdfunding de combate à sindicalização, a promessa do ativismo dos trabalhadores de tecnologia e a importância da democracia nas plataformas digitais.

Uma entrevita com
Taylor Moore


Foto: M Prince Photography / Flickr

Tradução / Quando os trabalhadores estadunidenses tentam se sindicalizar, cerca de um terço de seus empregadores se envolve em demissões como retaliação. Um organizador sindical hoje tem algo entre uma chance em cinco e uma chance em sete de perder seu emprego enquanto tenta assegurar a capacidade de negociar coletivamente.

No final de 2018, o Sindicato Internacional dos Trabalhadores de Escritório e Professionais (Office and Professional Employees International Union Local 153) apresentou uma queixa ao Conselho Nacional de Relações do Trabalho (National Labor Relations Board) dos EUA, alegando que foi isso o que aconteceu com Taylor Moore e dois de seus colegas de trabalho quando eles tentaram fundar um sindicato na empresa de tecnologia de crowdfunding Kickstarter.

Meagan Day falou com Moore sobre porque os trabalhadores da Kickstarter queriam se sindicalizar em primeiro lugar (o conflito começou para valer com a capitulação da administração à pressão da alt-right), o que aconteceu durante o processo (táticas clássicas de combate aos sindicatos) e se tudo valeu a pena (valeu).

Meagan Day

De onde surgiu a ideia de formar um sindicato na Kickstarter?

Taylor Moore

As coisas vinham sendo realmente imprevisíveis e frustrantes na Kickstarter por um bom tempo, mas a luta em torno do Sempre Soque Nazistas (Always Punch Nazis) foi a gota d’água.

Isso foi há pouco mais de um ano e, na época, o principal projeto dos nacionalistas brancos e da extrema direita era bloquear e envergonhar as pessoas que eles consideravam progressistas, e eles estavam obtendo um grande sucesso nisso. Conseguiram que James Gunn fosse demitido de uma franquia da Disney, tentaram que Sarah Silverman fosse demitida da Netflix e, com certeza, o Kickstarter era o próximo na fila.

Eles encontraram um projeto na Kickstarter, uma história em quadrinhos antifascista chamado “Sempre Soque Nazistas” (Always Punch Nazis), que estava a cerca de uma semana de ser financiada, e que era uma resposta ao debate (ou melhor, à tempestade em um copo d´água) sobre se seria normal ou não socar fascistas, o que na época era algo na mente de todos. O portal de extrema-direita Breitbart viu a campanha e disse: “Ei, Kickstarter, suas diretrizes proíbem incitação à violência contra qualquer outro grupo de pessoas, isso viola essas diretrizes e você deve retirá-la do ar.”

Na Kickstarter, temos uma equipe de Confiança e Segurança, uma espécie de área jurídica. Eles decidem quando e como aplicar nossas diretrizes, especialmente em casos extremos e projetos controversos. Eles analisaram o “Always Punch Nazis” e afirmaram de maneira unânime que não deveríamos cancelar este projeto, mas o gerente deles entrou na história e disse: “não, nós vamos cancelar o projeto”. Os advogados ficaram do lado dele, é claro.

A maioria das pessoas na Kickstarter ficou muito zangada com essa decisão. Eu nunca tinha visto nada explodir internamente, e já estava lá havia cinco anos na época. Então a gerência decidiu fazer uma reunião geral de emergência, e toda a empresa foi para esta grande sala de reuniões onde a direção disse que iria cancelar o projeto. Em seguida, eles abriram para comentários e perguntas, e a sala levantou-se contra eles. Não foi unânime, houve alguns funcionários que concordaram com eles, mas estava muito claro que havia uma veemente maioria dos membros da equipe que considerava isso um erro enorme. Eu falei, muitas outras pessoas falaram.

O que eu disse foi que o projeto pode ser uma sátira, pode não ser uma sátira, acho que não importa. O que importa é que nós, como comunidade, vamos tomar uma decisão que ajude os nacionalistas brancos e a máquina de imprensa neonazista, ou vamos nos opor a isso? Nossos nomes serão escritos na História como pessoas que ajudaram o movimento deles ou pessoas que se levantaram contra o que eles estavam tentando fazer?

Eu estava com muita raiva, muitos de nós estávamos. Depois dessa reunião foi a primeira vez que surgiu a palavra “sindicato”.

Meagan Day

Como essa raiva se traduziu em realmente se iniciar um esforço de sindicalização?

Taylor Moore

Então, na manhã seguinte, recebemos um e-mail da gerência dizendo que eles mudaram de ideia e decidiram não cancelar o projeto. Por mais frustrados que estivéssemos com a administração, sentimos que a decisão certa havia sido tomada. Eles fizeram a coisa certa e isso foi muito respeitável.

Porém, em duas semanas, a equipe em que eu estava foi chamada de tóxica e nos disseram para nunca mais questionar as decisões da gerência. Os funcionários foram lembrados de que Nova York é um estado de “emprego livre” e que eles podem ser demitidos a qualquer momento. A gerência até pressionou uma funcionária que fez uma postagem no Slack sobre o cancelamento do projeto para que se demitisse. Eles disseram: “não podemos confiar em você, não vemos futuro para você. Não vamos te despedir, mas aqui está o acordo de separação. ” Eles a forçaram a sair da empresa.

Isso foi mais do que inaceitável. Quer dizer, número um, era um absurdo termos que defender a ideia de não ajudar a alt-right. Número dois, você não pode forçar alguém a sair da empresa por esses motivos. É errado e antiético. O problema, claro, é que as pessoas que tomavam essas decisões eram as mesmas a quem supostamente deveríamos relatar nossos problemas com a gerência. Então, percebemos que a única maneira de essas pessoas serem contidas, a única maneira pela qual se teria um controle sobre o poder ou responsabilidade da administração seria se criássemos um novo poder, e tinha que ser um sindicato.

Não foi apenas esse incidente. Existem muitas políticas que não estão escritas em lugar nenhum e benefícios que não são garantidos podem ser retirados em um piscar de olhos. Pode haver uma política de rescisão, mas não há ninguém que os force a segui-la. A administração pode fazer qualquer coisa, legal ou ilegal, e ninguém realmente tem um mecanismo para lidar com isso. Esse é o clássico desequilíbrio de poder que motiva a existência dos sindicatos. Se você deseja um local de trabalho justo, deve mudar fundamentalmente a estrutura de poder. E isso é o que é um sindicato: um sindicato é uma equalização de poder.

Ficou muito claro para nós que devíamos pensar em um sindicato. Mas nenhum de nós tinha experiência, ninguém sabia o que fazer. Então, começamos a ter as primeiras conversas e reunimos um pequeno núcleo de pessoas, saímos e pesquisamos o máximo que podíamos – tudo, desde pesquisar no Google até tarde da noite a longas reuniões com sindicalistas profissionais. Conversamos com idosos, jovens, pessoas que atualmente estão engajadas em campanhas, pessoas que já fizeram isso antes. Foi maravilhoso. E durante todo esse tempo, enquanto estávamos pesquisando, conversávamos com os colegas de trabalho sobre as coisas que estão acontecendo na empresa e como podemos melhorá-las.

Realmente sentimos que o tempo estava passando. Achamos que isso era algo que tinha que acontecer o mais rápido possível. Não podíamos apenas esperar que outra pessoa nos salvasse. Percebemos, que não há ninguém vindo para nos salvar. Você tem que olhar para as pessoas ao seu lado, dar as mãos com elas e trabalhar juntas, e isso vai te salvar.

À medida que nossos números aumentavam, nosso conhecimento crescia e a rede de profissionais e especialistas que nos aconselhava crescia. E logo ficou muito claro que era absolutamente possível construir um sindicato dentro das paredes do Kickstarter, para mudar o desequilíbrio de poder fundamental que existia de alguma forma em todos os lugares.

Havia uma preocupação maior que pairava sobre minha mente o tempo todo, que é que se toda a cultura humana vai ser filtrada por essas plataformas digitais, é estúpido e errado deixá-las antidemocráticas. Isso me mantinha acordado à noite, a ideia de que o Kickstarter poderia se tornar algo como Facebook ou Twitter, onde se usa a máscara da neutralidade enquanto se engendra a radicalização de direita no país e no mundo. Eu absolutamente não toleraria isso.

Meagan Day

Como a gerência respondeu ao esforço de sindicalização?

Taylor Moore

A maior tragédia aqui é que eles poderiam ter dito “sim” no primeiro dia e tudo ficaria bem. Não havia desculpa razoável para eles se oporem tanto ao sindicato. Mas eles odiaram desde o início. Eles realmente odiaram. Mesmo antes de virmos a público, os e-mails que eles estavam enviando foram escritos de forma muito intencional para lançar dúvidas e ceticismo sobre a ideia do sindicato e a reputação das pessoas dentro dele, enquanto eram cuidadosos para não parecer estar tomando uma posição.

Eles enviaram e-mails para toda a empresa com o objetivo para dissuadir qualquer pessoa de pensar que valia a pena ter um sindicato. E assim que tornamos pública a notícia, ficou muito claro de que lado eles estavam. Eles disseram que o processo de negociação seria muito caro, disseram que se concentrassem todo o seu tempo na luta contra o sindicato, não teriam tempo e dinheiro para investir em outros projetos.

Em seguida, eles acusaram os organizadores sindicais de assédio racista e sexista. Até falaram que estávamos nos apropriando da cultura sindical.

Meagan Day

O que significa se apropriar da cultura sindical? Eles estavam insinuando que, por serem trabalhadores de tecnologia, os sindicatos não serviam para você?

Taylor Moore

Sim, algo que qualquer trabalhador de colarinho branco ouvirá quando tentar organizar seu escritório. Mas só porque você tem kombucha disponível e um laptop no trabalho é atribuído a você, isso não significa que eles vão tratá-lo com dignidade.

A técnica de maior sucesso que possuíam era criar intencionalmente a ilusão de que haviam dois lados entre os funcionários. Sempre que você tenta sindicalizar um local de trabalho, a gerência encontrará alguns trabalhadores para estar no que eles chamam de “comitê do não”. Eles fizeram com que funcionários da empresa escrevessem e-mails se manifestando contra o sindicato, alguns dos quais se retrataram mais tarde. É uma tática testada e comprovada.

Outra coisa que fizeram foi tentar convencer algumas pessoas que não tinham subordinados de que tecnicamente eles eram gerentes e que não podiam fazer parte do sindicato. Eles estavam confundindo os trabalhadores, sugerindo que eles não tinham permissão para tirar vantagem de seu direito de se organizar no local de trabalho. E isso teve muito sucesso, porque principalmente entre a nossa geração, as pessoas são muito mal informadas sobre como funciona a sindicalização.

Meagan Day

Eventualmente, você foi demitido. Como isso aconteceu?

Taylor Moore

Não posso falar sobre os detalhes dessa parte específica porque atualmente tenho uma reclamação em andamento no Conselho Nacional de Relações do Trabalho. Mas direi que as alegações de que nós – eu e duas outras pessoas – fomos demitidos por desempenho são falsas.

Meagan Day

E vocês três que foram demitidos estiveram muito envolvidos no esforço de sindicalização?

Taylor Moore

Sim, e todos sabiam. Nossos nomes estavam nos e-mails. Falei em público. Fizemos reuniões sindicais no meu estúdio de gravação, na esquina do escritório. Fiz perguntas difíceis à administração em várias ocasiões. Eu era conhecido como organizador sindical, assim como as outras duas pessoas que foram demitidas.

Meagan Day

Então você está desempregado agora.

Taylor Moore

Isso mesmo. Clarissa Redwine, que foi demitida poucos dias antes de mim, e eu fomos as duas primeiras pessoas a não assinar os acordos de não divulgação [NDA] em troca de indenização.

Meagan Day

De certa forma, essa conversa que você está tendo comigo é um pouco parte da liberdade que você escolheu no lugar da indenização.

Taylor Moore

Correto. O NDA do Kickstarter incluia uma cláusula de não depreciação, o que não nos teria permitido falar publicamente sobre a campanha ilegal e antiética de desmantelamento sindical em que a liderança do Kickstarter está atualmente envolvida.

Meagan Day

Você faria tudo de novo?

Taylor Moore

Num piscar de olhos! Qual seria a alternativa? Ser um covarde? Nunca fazer nada que possa ter consequências ou dificuldades é uma abordagem para a vida que resultará em uma coisa: nada.

Não se trata apenas da Kickstarter. A sindicalização da indústria de tecnologia é algo que precisa acontecer. Essas plataformas online são poderosas demais e importantes demais para serem administradas como instituições paralegais e acima da lei pela classe bilionária. Regular ou não o seu poder é literalmente uma questão existencial para a civilização. Mesmo se, por algum milagre, conseguirmos alguém no executivo que se engaje em uma campanha antitruste enérgica e de boa fé contra essas empresas, ainda teremos que nos sindicalizar.

Você não pode dar consciência às pessoas no poder, mas pode capacitar e dar poder às pessoas conscientes. Temos que fazê-lo, e se isso significa perder meu emprego, é um pequeno preço a se pagar.

Meagan Day

A tentativa de sindicalização na Kickstarter continuará?

Taylor Moore

Claro. Somos apenas três pessoas, os demitidos. Estou muito confiante em meus camaradas.

Sobre o entrevistado

Taylor Moore é um ex-funcionário da Kickstarter.

Sobre o entrevistador

Meagan Day faz parte da equipe de articulistas da Jacobin.

27 de outubro de 2019

Depoimento: O intelectual irrequieto

Wanderley Guilherme dos Santos morreu na madrugada deste sábado (26), aos 84 anos

Maria Hermínia Tavares de Almeida


Wanderley Guilherme dos Santos em seu apartamento no Rio, em 2015. Ricardo Borges/Folhapress

Na terça-feira passada (22), como acontecia a cada quinze dias, Wanderley Guilherme dos Santos foi à Rua da Matriz 82, no Botafogo, sede do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, para mais uma aula do curso de extensão “Introdução ao século 21”.

Nele o professor propunha-se a explorar “a revolução digital, seus antecedentes e suas consequências sociais e políticas, abrindo espaço ainda para a reflexão sobre o que estará por vir”, segundo o texto que o anunciava.

Naquele dia, ele expôs aos alunos sua insatisfação com o que vinha entregando e propôs encerrar por ali a ambiciosa empreitada intelectual. Os participantes rejeitaram a ideia e pediram a continuidade das aulas, agora definitivamente interrompidas pela mão pesada do destino.

O cientista político morreu na madrugada deste sábado (26), aos 84 anos, vítima de uma pneumonia.

O episódio, entretanto, revela por inteiro o intelectual que os cientistas sociais sempre chamaram apenas pelo prenome, indicando assim a posição única que ocupava como líder de nossa tribo.

Wanderley foi um intelectual apaixonado pelas grandes questões do nosso tempo, que tratava de abordar com método e rigor. Sabia que o estudo da política, embora necessariamente voltado à análise das disputas pelo poder, enquadradas por instituições que definiam regimes, estruturas estatais, formas de organização partidária ou regras eleitorais, não podia prescindir do entendimento dos processos econômicos e sociais. Sabia também que são frágeis as teorias e toscos os instrumentos de análise de que dispomos e que, portanto, o rigor com que utilizamos as primeiras para construir nossos argumentos e a busca permanente pelo dado mais preciso era condição da boa ciência social.

A democracia contemporânea e suas vicissitudes no Brasil foi o grande tema de uma obra extensa. Ressaltar algumas delas é sempre uma escolha pessoal discutível: são 32 livros e dezenas de artigos publicados em revistas acadêmicas ou coletâneas. Correndo risco, destaco “Cidadania e Justiça” (1979) que aponta os limites do processo de extensão da cidadania quando regulada por instituições corporativas; “Sessenta e Quatro: anatomia da crise” (1986), estudo precioso da polarização que conduziu os militares ao poder no Brasil em 1964; “Crise e Castigo: partidos e generais na política brasileira” (1987), no qual analisa a crise do autoritarismo sob o prisma do surgimento de uma sociedade mais plural e organizada.

Seu primeiro livro “Quem dará o golpe no Brasil?”, publicado na coleção Cadernos do Povo Brasileiro, do ISEB, é de 1962 e anunciava o que aconteceria dois anos depois. Seu último livro “A democracia impedida: o Brasil do século 21”, de 2017, trata do golpe acontecido, o impeachment de Dilma Rousseff, que caracteriza como expropriação constitucional do voto, buscando entendê-la à luz da tensão mais universal entre democracia de massas e capitalismo concentrador de riqueza e poder.

Enganam-se, porém, aqueles que saudaram o livro —ou o criticaram— como um libelo político de simpatizante petista. Em um de seus últimos artigos, “O PT e nós”, publicado no site Segunda Opinião, Wanderley afirmava referindo-se à campanha eleitoral : “De concessão em concessão, o PT transmitiu a seu eleitorado o dogma de que não se anda ao lado do povo sem a companhia de ladrões”.

Intelectual irrequieto, seu compromisso de vida sempre foi com a busca do que a cada momento lhe pareceram as ideias mais próximas da interpretação rigorosa dos fatos.

Sobre a autora

Professora titular aposentada de ciência política na USP e pesquisadora do Cebrap

26 de outubro de 2019

Ilusão e proteção social reduzida

Menor poder de compra impactará a economia

Adriane Bramante

Folha de S.Paulo

A advogada Adriane Bramante, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP). Danilo Verpa/Folhapress

É ilusão achar que a reforma da Previdência irá melhorar a situação do país. Muito pelo contrário. Assim como a promessa de que a reforma trabalhista geraria 6 milhões de novos empregos (e não gerou), a reforma previdenciária não atrairá, milagrosamente, investidores estrangeiros ou novos postos de trabalho.

A "Nova Previdência" não tem mais o adjetivo social, e a tendência é que ela garanta apenas a subsistência básica da população. Atualmente, o valor médio dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social é de R$ 1.426,31 (agosto de 2019). A reforma aprovada atinge mais de 60% dos beneficiários deste regime e muda a sistemática de cálculo das aposentadorias e pensões, cuja redução impactará significativamente a vida dos trabalhadores brasileiros.

Com renda menor, terão menos poder de compra. E, comprando menos, haverá impacto direto no consumo e nas empresas. Além disso, mais de 70% dos municípios (76,3%) têm o valor dos benefícios pagos superior ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM) —e a reforma afetará a economia dessas cidades.

Após a reforma trabalhista, muitas empresas estão contratando MEIs (Microempreendedores Individuais), pois a contribuição é de apenas R$ 49,90, já incluindo impostos e contribuição previdenciária. Outros trabalhadores preferem nem pagar a Previdência Social, tamanha é a propaganda negativa de que ela está falida e que deixará milhares de trabalhadores sem benefício. Enquanto isso, a propaganda da previdência complementar é atrativa, com imagens de idosos felizes, num lugar paradisíaco. Muito longe da realidade brasileira.

Os aposentados e pensionistas recebem os seus benefícios cada dia mais defasados e comprometidos com empréstimos consignados. Muitos deles utilizam boa parte da renda para o pagamento de planos de saúde. A situação será ainda mais gravosa quando os próximos segurados forem se aposentar e descobrirem que o benefício será menor do que o planejado.

Dependentes de segurados do INSS que falecerem após a publicação da reforma previdenciária terão a pensão por morte reduzida em 40%. Vamos imaginar um casal de idosos, com mais de 70 anos, vivendo hoje com R$ 2.000. A pensão por morte do cônjuge será de R$ 1.200, como se todas as despesas da casa fossem reduzidas em 40% após o falecimento de uma pessoa. Não há mais tempo para se replanejar.

Os trabalhadores que ficarem incapazes com menos de 20 anos de contribuição terão aposentadoria por invalidez no percentual de 60% (para as mulheres, os 60% serão para até 15 anos de contribuição). Benefícios imprevisíveis não deveriam ser calculados com base no tempo de contribuição, pois, quando o trabalhador mais precisar da proteção previdenciária, ficará bastante comprometido com uma redução significativa da sua renda.

Todas essas questões nos fazem refletir se é este mesmo o país que queremos no futuro.

Quando o Brasil reduz a proteção social sob o mantra "vamos economizar 'x' bilhões", ele assume, por consequência, o aumento da violência, do desemprego, da informalidade e das doenças em prol de uma falsa ideia de economia. Na verdade, essa economia nada mais significa do que a retirada de dinheiro de circulação e mais despesas com saúde, segurança e assistência social.

Todos nós queremos um país melhor. A reforma foi aprovada e entrará em vigor nos próximos dias.

Que Deus nos proteja!

Sobre a autora

Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), mestre e doutoranda em direito pela PUC-SP e vice-presidente da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-SP

25 de outubro de 2019

O lutador que atacou a Alemanha nazista

Setenta e cinco anos após os nazistas o assassinarem, lembramos a vida do atleta antifascista alemão e do lutador da resistência comunista Werner Seelenbinder.

Ingar Solty

Jacobin

Manifestação em memória dos mortos em um comício antifascista no Estádio Werner-Seelenbinder, em Berlim, setembro de 1945. Fred Ramage / Keystone / Getty

Tradução / Setenta e cinco anos atrás, por volta do meio dia de 24 de outubro de 1944, ele foi decapitado com um machado, acusado de traição ao estado nazista.

Na época, o forte ex-lutador olímpico pesava apenas 132 libras (cerca de 60 kg). Depois de preso por atividades de resistência, passou quase três anos e enfrentou semanas de tortura. A vida incrível de Seelenbinder, de oposição ao fascismo e defesa dos direitos dos trabalhadores, fez dele um herói nacional na ex-Alemanha Oriental.

Na República Federal da Alemanha, no entanto, seu legado foi deliberadamente enterrado, vítima do anticomunismo da Guerra Fria.

Nascido em Stettin - hoje Szczecin, Polônia - em 1904, Seelenbinder cresceu em Friedrichshain, um bairro operário no coração da "Berlim Vermelha". Foi trabalhador em Friedrichshain e testemunhou as execuções em massa de trabalhadores e soldados revolucionários durante a greve geral revolucionária de março de 1919; viu o desemprego em massa e a fome, mas também a auto-organização e resistência da classe trabalhadora.

Sua paixão era o esporte. Quando jovem, ele ingressou nas organizações esportivas da classe trabalhadora criadas pelos partidos de trabalhadores, e se tornou um lutador de luta livre. Em 1926, foi à União Soviética para participar da "Spartakiad" - a alternativa proletária às Olimpíadas - sendo por isso excluído da liga atlética e esportiva dominada pelos social-democratas alemães. Mesmo assim, ele fez parte de organizações esportivas do movimento operário alemão, ligando-se ao "Rotsport" ("Esporte Vermelho") comunista.

Essa divisão se refletiu em outros níveis da organização, embora os comunistas exercessem pouco poder nos locais de trabalho. Em 1933, esta organização comunista, e os social-democratas, sucumbiram ante o nazismo, tendo falhado em organizar uma greve como a que haviam feito em 1920, contra o "Kapp Putsch". Diante da vitória de Adolf Hitler, em 1933, Seelenbinder se manteve na resistência clandestina, com outros camaradas, para combater os nazistas. O Partido Comunista, porém, o convenceu a ingressar em um clube esportivo burguês, para que pudesse continuar seu trabalho.

A resistência olímpica

Foi um grande sucesso. Em 1933, Seelenbinder foi campeão alemão de luta livre e, nas celebrações públicas, se recusou a fazer a saudação a Hitler. Por isso, foi levado a um campo de concentração. Após sua libertação, foi readmitido no Campeonato Alemão de Luta Livre e se tornou campeão nacional em 1935. Contra a vontade do "Reichssportleitung", do regime nazista, ele foi autorizado a ir a Estocolmo e participar dos preparativos para os Jogos Olímpicos de 1936, que ocorreram em Berlim.

Após o esmagamento dos partidos de oposição e a introdução de leis raciais anti-semitas, os nazistas queriam usar as Olimpíadas para apresentar a Alemanha como um país limpo e bom. Em resposta a isso, Seelenbinder e o próprio Partido Comunista, na ilegalidade, fizeram um plano baseado no recebimento de uma medalha - que permitiria a ele usar a cobertura ao vivo internacional e as entrevistas com os medalhistas para denunciar os campos de concentração na Alemanha e a perseguição a comunistas, social-democratas, sindicalistas e judeus - mesmo que isso significasse tortura e morte.

Infelizmente, esse plano fracassou, pois Seelenbinder ficou em quarto lugar.

Seelenbinder continuou seu trabalho antifascista na resistência comunista aos nazistas. Ele se tornou parte do grupo de resistência Robert Uhrig, que tinha células comunistas ilegais em muitas fábricas em Berlim. Em 4 de fevereiro de 1942, o grupo foi traído e Seelenbinder e muitos outros foram presos. No momento de sua prisão, a lutadora da resistência comunista Erna Schmidt chegava ao seu apartamento, conforme combinado, com mais de 2.000 panfletos escondidos sob as roupas. Mas ela conseguiu convencer a Gestapo de que era apenas a faxineira e sobreviveu.

Após sua detenção, Seelenbinder foi arrastado por várias prisões da Gestapo e campos de concentração. Foi torturado por oito dias, mas resistiu e não falou. Foi então levado ao campo de trabalho de Berlim "Arbeitserziehungslager Wuhlheide", onde o médico comunista Georg Benjamin - irmão do filósofo Walter Benjamin - estava preso. Foi aqui que Hilde Benjamin - esposa de Georg Benjamin e a primeira mulher alemã (oriental) a se tornar Secretária da Justiça - visitou secretamente Georg Benjamin, junto com seu filho Michael, que mais tarde se tornou uma das influências mais importantes no Die Linke.

Seelenbinder e outros comunistas formaram um comitê clandestino nos campos de concentração, mas seus planos de fuga foram frustrados, e ele foi deportado para a prisão de Brandemburgo-Gören, onde Seelenbinder foi executado, decapitado, em 24 de outubro de 1944.

Na manhã de sua execução, Seelenbinder escreveu sua carta de despedida para sua família: "Querido pai, irmãos, cunhada e Friedel! Chegou a hora da despedida. Durante minha prisão, passei por tudo o que um ser humano pode passar. Doença, dor física e emocional - não fui poupado de nada. Eu adoraria curtir com vocês, meus amigos e companheiros de esporte, os prazeres e as alegrias que a vida após a guerra tem a oferecer, prazeres e alegrias que agora aprecio ainda mais. Após um período terrível de sofrimento, o destino decidiu agora o contrário. E, no entanto, sei que encontrei um lugar em seus corações e no coração de tantos camaradas esportivos, onde ficarei. Esse conhecimento me deixa orgulhoso e forte e, na minha última hora, não me encontrará enfraquecido."

De fato, ele foi desafiador até o fim: da sua cela, ele supostamente gritou para os outros prisioneiros: "Camaradas! Este é o Seelenbinder! Hoje ao meio dia seremos executados. Nós permanecemos fortes! ... Hitler será derrotado. Vamos dar as boas-vindas ao Exército Vermelho!"

Um legado que vale a pena lembrar

Após a libertação do fascismo, muitas ruas e praças da Alemanha Oriental - e uma das maiores salas de reuniões públicas - receberam o nome de Seelenbinder. Em 1975 o Werner Seelenbinder Hall foi palco da Conferência Mundial das Mulheres das Nações Unidas, dirigida por figuras como Angela Davis, Hortensia Allende, Frida Braun e Valentina Tereshkova - a primeira mulher a ser enviada ao espaço. Em 1992, o salão foi demolido e seu nome e memória apagados de muitos locais. A Guerra Fria continuou - o Ocidente e o anticomunismo haviam triunfado.

No entanto, isso não durou muito - e o nome de Seelenbinder seria salvo do esquecimento. Em 2004, o Sport Park, em Berlim, onde ele treinou para as Olimpíadas de 1936, foi renomeado como "Werner-Seelenbinder-Sportpark" e, em 2008, foi introduzido no "Hall da Fama do Esporte Alemão". Em 2017, a organização da sociedade civil “Allende District”, em Berlim, renovou um memorial que havia desaparecido após a unificação em 1990, elogiando "O corajoso lutador contra o fascismo, o imperialismo e a guerra: Werner Seelenbinder".

Setenta e cinco anos após a sua morte, este memorial ao lutador e ao comunista fica em frente à sede do NPD neo-nazista, como se quisesse gritar o velho slogan: "Fascismo - nunca mais!"

Sobre a autora

Ingar Solty é pesquisadora no Instituto de Análise Social Crítica da Fundação Rosa Luxemburgo, em Berlim.

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