O Chile é o berço original do neoliberalismo, aparecendo pela primeira vez na América Latina após a derrubada do presidente Salvador Allende em 1973. Se você ouvir atentamente os massivos protestos nas ruas, reconhecerá as últimas palavras de Allende: "O povo deve se defender".
Tradução / Na principais cidades do Chile, forças armadas e tanques estão enchendo as ruas. Mas os civis estão se mantendo, recusando-se a abandonar o espaço público. Os relatos oficiais indicam 15 fatalidades até agora, embora haja indícios de que o número seja maior. O presidente foi à televisão nacional para anunciar que o país está “em guerra com um inimigo poderoso que está disposto a usar a violência sem limites”. Há apagões em todo o país. Estamos em outubro de 2019, mas poderia facilmente ser 1973, quando o presidente socialista Salvador Allende foi derrubado em um golpe de estado, substituído pelo ditador Augusto Pinochet.
No último sábado, o presidente de direita, Sebastían Piñera, decretou um toque de recolher em Santiago que em pouco tempo se estenderia a outras cidades do país. Desde então, ele ampliou os poderes do chefe das forças armadas nacionais, Javier Iturriaga, a quem agradeceu por restabelecer a ordem. Nesse estado de emergência, Piñera proibiu efetivamente o direito de reunião – uma medida não vista desde os dias de Pinochet.
Apesar dessas medidas fortes, uma greve geral plurinacional (em reconhecimento às comunidades indígenas do Chile) está agora em pleno andamento em todo o país. Um novo dia de protestos em massa é esperado amanhã.
A faísca que acendeu o fogo foi um catracaço no metrô de Santiago em resposta ao caríssimo sistemas de transporte no Chile, um dos mais caros do mundo. Um movimento liderado por estudantes respondeu com uma campanha para pular a catraca, que rapidamente se espalhou para a população em geral e teve sucesso em paralisar um dos principais serviços estratégicos da capital.
O aumento das tarifas ocorreu logo após o aumento geral do custo dos serviços básicos, enganando o povo chileno com arrogância rotineira. O ministro dos Transportes sugeriu que os passageiros “acordem mais cedo”.
Um laboratório neoliberal
O movimento de protesto chileno começou a sair nas ruas alguns dias após a vitória popular, apesar de parcial, no Equador, contra o programa de ajuste imposto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Embora haja uma ideia generalizada de que o Chile é uma democracia estável impulsionada por uma economia saudável – uma imagem cinicamente forjada para atuar como um contraponto a outras nações sul-americanas – a realidade é bem diferente. É uma nação que sofreu o chicote do capitalismo neoliberal tanto quanto, se não mais, seus vizinhos no Equador, Brasil, Argentina e Peru.
O Chile é o laboratório original e perpétuo do neoliberalismo, com mais de trinta anos de políticas de choque econômico e uma guerra constante e de baixa intensidade travada contra as classes populares do país. Os infames Chicago Boys – economistas treinados pela Universidade de Chicago que foram tão influentes na divulgação de medidas neoliberais durante o regime de Pinochet – continuam trabalhando. E Milton Friedman, que sabia como criar uma crise generalizada como pretexto para suspender os dispositivos democráticos, continua sendo um ponto de referência fundamental.
Essas mesmas forças agora têm novas ferramentas à sua disposição. Como em outros países latino-americanos, a direita armou a mídia social para declarar guerra contra um setor da própria população chilena, que eles rotulam como “vândalos”, “criminosos” e até “lúmpens”. Esses ataques são lançados contra comunidades que já estão se sentindo vulneráveis. Piñera usa uma tática cínica destinada a instilar a ideia de que a paz só pode ser estabelecida através da guerra. Nesse contexto, a polícia fez nos últimos dias 2.600 prisões; 85 pessoas ficaram feridas. As organizações da sociedade civil estimam que 15 pessoas foram mortas, embora o número possa ser facilmente maior.
Os chilenos foram amplamente criminalizados pelo governo. Para dar apenas um exemplo, o governo de Piñera aprovou recentemente um projeto de lei para instalar presença policial nas escolas primárias e secundárias. Não é surpresa que os estudantes do ensino médio tenham liderado o movimento contra o aumento das tarifas.
A revolta desta semana é, de certa forma, uma reprise das mobilizações em massa de 2011 que aconteceram no país em favor da educação pública, não-denominacional e gratuita. Embora parecesse que as autoridades haviam neutralizado com sucesso o movimento, agora é evidente que essas forças estão reunindo forças, trabalhando para combater as condições intensificadas de precariedade, privatização e desapropriação.
O conflito que se desenrola hoje no Chile, no contexto da lei marcial, é a expressão de uma sociedade que atingiu um ponto de ruptura. Os chilenos estão exaustos. Durante anos, eles esperam por justiça, democracia, paz e um padrão de vida digno. As administrações neoliberais responderam com fragmentação, cooptação e gerenciamento técnico de angústia social generalizada. E ainda assim, nas semanas que antecederam a crise mais recente, Piñera teve a audácia de se referir ao Chile como “um oásis de estabilidade e democracia”, revelando sua própria confiança diante das agudas crises políticas e econômicas do país.
Batalha pelo Chile Redux
Ao contrário do movimento mais restrito de 2011, as manifestações de 2019 não puderam ser tão facilmente contidas. Nas cidades de todo o país, está se resistindo ao toque de recolher. Mesmo a decisão do governo no fim de semana de revogar os aumentos nos preços dos transportes não impediu os manifestantes; parece ter colocado mais gasolina na fogueira, com os protestos se espalhando ainda mais. Em meio a histórica cantiga “El pueblo unido jamás será vencido”, agora pode se ouvir novos slogans: “o toque de recolher pode permanecer na Alameda” (uma alusão ao endereço do Palácio presidencial de la Moneda) e “pule, não pague, lute de uma nova maneira”.
A direita chilena – um bloco que abrange o governo, o empresariado, as forças armadas e a mídia corporativa – estava em transe com suas iniciativas neoliberais. No entanto, as mobilizações desta semana estão desfrutando de legitimidade popular e encontram apoio de vários sindicatos e movimentos sociais, entre eles o sindicato dos trabalhadores do metrô (e outros ramos do transporte público), bem como os trabalhadores portuários. Além de pedir tarifas de trem subsidiadas, o sindicato dos trabalhadores do metrô pediu a nacionalização total do transporte público.
Um novo bloco social que inclui sindicatos, grupos de estudantes, feministas e ambientalistas propôs um conjunto de demandas que são “transversais” (não setoriais) e se estendem por todo o país. Além de pedir a renúncia de Piñera, entre as demandas dos manifestantes estão um aumento de salários e serviços básicos mais baratos, uma semana de quarenta horas, a restauração dos direitos sindicais e a negociação coletiva setorial, a nacionalização dos serviços públicos e dos setores estratégicos de energia, perdão da dívida estudantil, anulação do fundo de pensão do setor privado do país, cancelamento dos odiosos “códigos de água”, sancionados por Pinochet em 1981, reforma tributária progressiva e uma nova política de migração. Talvez a mais dramática demanda, que os manifestantes estão pedindo, seja uma nova constituição a ser elaborada por uma Assembléia Constituinte.
O cenário ainda está se desenrolando imprevisivelmente. Toque de recolher adicionais são anunciados diariamente, vôos foram cancelados, serviços e locais de trabalho fechados. Encarando uma presença militar crescente nas ruas, as pessoas continuam resistindo ao toque de recolher e as fileiras de trabalhadores que ingressam a greve geral continuam a aumentar. Como resultado, os principais sindicatos e organizações da sociedade civil estão se unindo à convocação da greve geral para amanhã.
Se alguém ouve atentamente as ruas, pode-se perceber o eco das últimas palavras de Salvador Allende: "O povo deve se defender, mas não deve se sacrificar. O povo não deve se deixar destruir ou ser baleado, mas também não pode ser humilhado."
Sobre os autores
Felipe Lagos-Rojas é professor adjunto do Seattle Central College e membro do partido chileno Convergencia Social.
Francisca Gómez-Baeza é aluna de doutorado na Universidade de Washington e membro do partido chileno Convergencia Social.
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