17 de outubro de 2019

Democracia catalã atrás das grades

O longo aprisionamento dos organizadores do referendo de independência da Catalunha são apenas o último sinal da virada repressiva da Espanha. A crise catalã trouxe à tona os impulsos autoritários do Estado e abriu um terrível precedente para a criminalização da dissidência.

Eoghan Gilmartin e Tommy Greene

Jacobin

Temporary monuments are erected in Tahrir Square as thousands of Egyptians gather to mark the one-year anniversary of the revolution on January 25, 2012 in Cairo, Egypt. (Jeff J. Mitchell / Getty Images)

Tradução / "Isso não é justiça, mas vingança", disse o ex-vice-presidente da Catalunha Oriol Junqueras, em resposta às notícias de que ele enfrentaria uma sentença de treze anos de prisão por acusações de sedição e peculato, como resultado de seu trabalho na organização do referendo de independência de outubro de 2017. A maioria dos outros onze réus no centro do julgamento de quatro meses que começou em fevereiro, receberam sentenças igualmente pesadas, incluindo os líderes da sociedade civil Jordi Cuixart e Jordi Sánchez, que foram condenados a nove anos de prisão.

Os catalães responderam com indignação, tomando as ruas em uma onda de protestos em massa nas horas que se seguiram ao veredito. Milhares de pessoas ocuparam o aeroporto El Prat de Barcelona, ​​além de bloquearem linhas de trem e rodovias por toda a região. A decisão dos manifestantes de atacar o aeroporto na noite de 14 de outubro foi inspirada pelas manifestações antigovernamentais em Hong Kong – e eles receberam uma resposta violenta da polícia regional. As manifestações continuaram em Barcelona e outras partes da Catalunha por três noites consecutivas, culminando com a greve geral do último dia 18.

A sentença vem quase dois anos depois que os acusados ​​foram presos por ordem do judiciário espanhol, quase simultaneamente à intervenção direta pelo governo central de Madri. A autonomia regional foi restaurada em junho de 2018, mas os líderes independentistas permaneceram em “prisão preventiva” desde então, enquanto outros, incluindo o ex-presidente catalão Carles Puigdemont, fugiram do país.

Diante da sentença, foi reemitido um mandado de detenção europeu contra Puigdemont – um claro sinal de que novas medidas punitivas estão chegando. Vindo apenas alguns anos após a promulgação de uma série de leis brutais de mordaça pelo governo conservador de Mariano Rajoy, essas medidas também sinalizam notícias sombrias para outras formas de protesto e dissidência em toda a Espanha.

A mais grave das três acusações contra os dirigentes catalães – a denúncia de rebelião – não foi confirmada pela decisão do Supremo Tribunal espanhol, uma decisão que já havia sido revelada na semana anterior em um vazamento para a imprensa nacional. No entanto, as sentenças proferidas a Junqueras e aos outros réus parecem seletivas e punitivas, no final de um processo judicial há muito criticado por sua natureza aparentemente política. A judicialização do julgamento daquilo que sempre foi um problema fundamentalmente político também significa que esta sentença não encerra verdadeiramente um processo que – nas palavras do analista político Ivan Orósa – a sociedade catalã em geral tem vivido como uma espécie de “trauma” coletivo.

Com o primeiro-ministro em exercício, Pedro Sánchez, flertando atualmente com as grandes ofertas da direita por uma coalizão, o governo catalão também se encaixa em uma mudança conservadora mais ampla na paisagem política da Espanha – uma virada que busca marginalizar não apenas os nacionalistas catalães, mas também as forças de esquerda que lutam para democratizar o Estado espanhol.

Dissidência criminalizada

Todos os réus que receberam sentenças pesadas – nove dos doze acusados ​​- foram condenados por sedição, conduta tipificada no Código Penal Espanhol que pune quem “se levante publicamente ou de forma tumultuosa” para “impedir, pela força ou fora dos meios legais, a aplicação das leis”, ou para “impedir à qualquer autoridade, corporação oficial ou funcionário público, o legítimo exercício das suas funções ou o cumprimento dos seus acordos, ou das resoluções administrativas ou judiciais”. Isso, no entanto, não abrange as acusações mais graves de “rebelião”.

A acusação de sedição não se aplicava a todos os réus da mesma maneira, e a imputação parecia não ter consistência. No caso do ex-vice-presidente Junqueras, lhe foi imputado o crime de sedição pelo trabalho desempenhado na organização do referendo de independência de 1º de outubro de 2017, que havia sido proibido semanas antes pelo Tribunal Constitucional da Espanha.

Quanto a Jordi Sánchez, presidente de um órgão da sociedade civil chamado Assembléia Nacional da Catalunha, este foi considerado culpado de sedição por ter organizado mobilizações no dia do referendo de independência, incluindo ocupações em massa nos centros de votação, visando impedir a interrupção do pleito. Considerou-se que tanto a condenação dele, quanto a de Cuixart, justificavam-se, uma vez que ambos também orquestraram os comícios em massa de 20 de setembro de 2017, descritos pelos promotores como um “período insurrecional”, além de Sánchez ter expressado a intenção de realizar um novo referendo.

A própria decisão declarou que as ações dos líderes catalães tomadas em conjunto foram um “levante revoltoso”, que minava o estado de direito. Porém, a decisão não considerou que tais ações de 20 de setembro e 1º de outubro de 2017 foram abertamente violentas, e a promotoria não conseguiu provar que a declaração de independência de 27 de outubro fosse nada mais que simbólica. No entanto, para que o veredito da sedição punitiva fosse declarado – incluindo inabilitação para exercício de cargo público após prolação da sentença – não houve necessidade de o promotor provar quaisquer atos violentos.

Espetáculo prolongado

É difícil não ver a decisão de 14 de outubro como o culminar de um espetáculo político televisivo prolongado. Além da surpreendente aplicação de penas extremamente arcaicas aos líderes políticos e da sociedade civil de uma campanha de independência não violenta, a decisão também deixa claro até que ponto a acusação foi esticada para se adequar a todos os envolvimentos distintos e separados daqueles que estão sentados no banco dos réus.

Neste sentido, todo o processo de julgamento foi considerado como uma espécie de instrumentalização do judiciário e do pacto constitucional da Espanha contra várias formas de protesto e exercício democrático no país. Na verdade, esta sentença é o exemplo mais recente da crescente repressão do sistema de justiça às liberdades e aos direitos civis na Espanha. Essa tendência tem sido acompanhada por uma virada conservadora mais ampla na política espanhola, após anos em que ondas em série de protestos em massa por toda a Espanha exigiram justiça social e reforma democrática.

Mesmo para além da questão catalã, as implicações da decisão para os protestos de esquerda são profundamente preocupantes. Como o magistrado catalão Joaquim Bosch escreveu esta semana “O aspecto mais perigoso da sentença é a sua aplicação futura e o seu impacto nas liberdades”. Na verdade, esta decisão estabelece um precedente criminalizador para organizações de habitação como a Plataforma para as Pessoas Afetadas por Hipotecas (PAH), para piquetes sindicais e ocupações em massa como aquelas vistas durante o movimento anti-austeridade 15M. Qualquer manifestante que se encontre em “oposição material” às agências de aplicação da lei poderia cair sob sua alçada. Somado às notórias leis de mordaça da Espanha e a um número crescente de decisões de censura nos últimos anos, a sentença faz parte de um movimento gradual em direção à criminalização da dissidência.

Canalizando a raiva

Em termos de repercussões políticas, os principais partidos catalães encontram-se envolvidos numa difícil operação de malabarismo, semanas antes das eleições gerais de 10 de Novembro – a quarta eleição nacional na Espanha em quatro anos. A onda de protestos, bem como o sentimento mais amplo de indignação com o veredito – que se estende muito além daqueles que apoiam a independência – deu um novo impulso a um movimento catalão que havia sido desmoralizado após dois anos de recuo.

Para a Esquerda Republicana da Catalunha (ECR) de Oriol Junqueras, o desafio é canalizar esse ultraje para uma vitória eleitoral em novembro – bem como para uma campanha mais continuada pela anistia dos prisioneiros – além de garantir que os protestos não fiquem fora de controle ou provoquem uma suspensão da autonomia regional, como aquela que se seguiu ao referendo de 2017.

Equilibrar esses dois elementos é o primeiro grande teste da estratégia da ECR pós-2017, que agora vê uma república independente como um objetivo de longo prazo. Nos dois anos desde o “outubro catalão”, a liderança do partido deixou de se envolver em um novo confronto com o Estado, reconhecendo os limites de sua abordagem unilateral anterior em nome da independência.

Como afirmou um dos conselheiros mais próximos de Junqueras, Serge Sol, no início deste ano: “não estávamos suficientemente conscientes de toda a força do Estado [em 2017]”. Na mesma linha, o antigo porta-voz do partido no parlamento espanhol, Joan Tardà, reconheceu que o movimento tinha interpretado mal o equilíbrio mais amplo de forças no impasse sobre o referendo disputado – descobrindo “uma conjuntura internacional desfavorável” que viu a União Européia tomar rapidamente o lado de Madri.

Esta autocrítica se combinou com o reconhecimento de que o bloco pró-independência precisa agora de uma abordagem mais pragmática, capaz de construir uma base majoritária mais ampla ao longo do tempo. Isso fez com que o discurso da ECR se concentrasse cada vez mais em questões sociais e econômicas, bem como uma insistência no engajamento com o governo de centro-esquerda da Espanha, liderado pelo PSOE de Pedro Sánchez. A aposta estratégica de Junqueras sustenta que, após dois anos de intensa polarização, grande parte da sociedade catalã tem pouco apetite por novas rupturas.

Isso levou a acusações de traição de certos setores do movimento pela independência. Junqueras respondeu citando suas próprias dificuldades, insistindo que “ninguém pagou um preço tão alto como nós... ninguém pode questionar nosso compromisso”. Seu partido está agora pressionando por novas eleições para o parlamento catalão após a votação nacional de novembro, o que provavelmente o levará a ultrapassar o Juntos pela Catalunha (coligação eleitoral – transversal e independentista de centro-direita) de Carles Puigdemont, bem como o partido pró-sindicalista Cidadãos, tornando-se a principal sigla da Catalunha.

O Juntos pela Catalunha, por outro lado, posicionou-se como uma oposição mais clara à cooperação com o governo minoritário de Sánchez em Madri – votando contra a investidura dos socialistas em julho – enquanto mantém um discurso mais unilateralista. No entanto, apesar de apostarem em “construir a República da Catalunha” no aqui e agora, o que cai bem entre os eleitores pró-independência mais motivados, eles também têm pouco interesse em desafiar a autoridade legal do estado. Como observa o jornalista Diego Torres, tanto para o Juntos pela Catalunha quanto para a ERC, que juntos governam a região da Catalunha, a ênfase está em “discordâncias declarativas” em vez de “desobediência institucional”.

Isso ficou claro na ocupação do aeroporto de Barcelona, na segunda-feira (14), quando grande parte da brutalidade policial – incluindo um disparo de bala de espuma à queima-roupa contra um manifestante vindo das forças de segurança catalãs, sob a direção do próprio ministro do Interior do Juntos. Isso levou à posição absurda em que o sucessor de Puigdemont como primeiro-ministro catalão, Quim Torra, elogiou a ocupação enquanto, ao mesmo tempo, seu governo defendia as investidas policiais contra os manifestantes como necessárias para evitar novas denúncias de sedição.

O principal risco para a liderança centrista do movimento de independência é que os protestos dos próximos dias escapem ao seu controle. Os ativistas estão usando a tecnologia blockchain para organizar ações diretas de maneiras cada vez mais sofisticadas e qualquer incidente grave – por exemplo, se um manifestante for morto – poderia ver os eventos ganharem vida própria nas semanas anteriores às eleições gerais espanholas.

Táticas eleitorais

Em Madri, a resposta de Pedro Sánchez vem sendo definida por seu giro à direita antes da votação de novembro. Seu Partido Socialista (PSOE) assumiu a liderança nas eleições de Abril passado, prometendo uma cooperação de esquerda face a um avanço da extrema-direita Vox, bem como o diálogo em uma linha mais suave na Catalunha.

No entanto, depois de ter se afastado da perspectiva de uma coalizão de esquerda com o Unidas Podemos, após pressão das elites corporativas, Sánchez agora aposta que pode dominar o terreno nas próximas eleições. Como observa o jornalista Enric Juliana, o cálculo ao convocar o país mais uma vez foi de que a agitação desencadeada pelo veredito catalão seria vantajosa para ele. Afastando-se de sua encarnação anterior como baluarte contra o retorno do franquismo, Sánchez busca vender a imagem de única garantia de estabilidade e governabilidade para um eleitorado esgotado por anos de impasse institucional e conflito nacionalista-identitário.

De fato, a reação inicial de Sánchez à sentença foi claramente expressa nestes termos: elogiar a Espanha como uma “democracia consolidada” com “um dos estados de direito mais avançados do mundo”, insistindo que os líderes catalães cumprissem integralmente as suas penas de prisão. Depois, com a cobertura televisiva espanhola dos protestos, os enquadrando predominantemente sob a lente de uma ameaça à segurança pública, começou a insistir numa resposta “firme e proporcional” àqueles que “procuram romper a coexistência pacífica na Catalunha”.

No entanto, com o potencial de uma nova escalada nos próximos dias, sua aposta eleitoral depende de sua capacidade de manter a paz, evitando o tipo de cenas violentas que marcaram o referendo de 2017. Como o Partido Popular conservador reduziu a liderança do PSOE nas pesquisas para cinco pontos (27,3 a 22,2%, de acordo com a última pesquisa da Celeste-Tel para o El Diario), um passo em falso de Sánchez neste momento pode custar caro.

Enquanto isso, o Unidas Podemos, de esquerda, pediu diálogo e solidariedade com os doze prisioneiros – com o líder do partido Pablo Iglesias lembrando a Sánchez que existem muitos precedentes para a concessão de perdões, como o do general Alfonso Armada, líder do fracassado golpe militar de 1981. Os aliados catalães do Podemos, En Comú Podem – liderados pela prefeita de Barcelona Ada Colau – foram além e insistiram que garantir “a liberdade dos prisioneiros” era “uma condição indispensável” para qualquer proposta que vise solucionar o conflito.

Para Alberto Garzón – líder da Izquierda Unida, uma força de esquerda no interior do Unidas Podemos – o veredito foi mais uma prova da necessidade de rever a estrutura constitucional da Espanha com seu modelo territorial e monarquia parlamentar obsoletos. No entanto, a tendência atual da política espanhola está indo na direção oposta. Os blocos polarizados de esquerda e direita que definiram a eleição de abril estão cedendo à medida em que os dois antigos partidos do estado – o PSOE e o PP – avançam em direção a alguma forma de grande acordo de coalizão.

Neste sentido, parece que a ordem política estabelecida está fechando suas fileiras diante de um cenário difícil para a Espanha, definido não só pelo conflito catalão, mas também por uma recessão amplamente esperada. O grande desconhecido em tudo isso é a resistência e a energia nas ruas da Catalunha – e como isso vai impedir, ou galvanizar, o projeto das elites espanholas de restaurar o velho regime partidário.

Sobre os autores

Eoghan Gilmartin é escritor, tradutor e colaborador da Jacobin baseado em Madri.

Tommy Greene é jornalista e tradutor freelancer baseado em Madri.

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