8 de outubro de 2019

A aniquilação de Rojava

Uma retirada dos EUA da Síria que abriu caminho para a destruição do experimento democrático radical dos curdos não serviria à causa da paz - e não seria um golpe ao imperialismo dos EUA.

Djene Bajalan e Michael Brooks


Tropas curdas das Forças Democráticas da Síria estão em uma base operacional avançada observando a linha de frente em 10 de novembro de 2015, perto da cidade de Hole, mantida pelo ISIL, na região autônoma de Rojava. John Moore / Getty.

Tradução / No fim de Setembro, o presidente turco Recep Tayyip Erdoğan disse à Assembleia Geral das Nações Unidas: “Nossa intenção é estabelecer um corredor de paz com a profundidade de 30 quilômetros e extensão de 480 quilômetros na Síria para que a comunidade internacional possa estabelecer dois milhões de Sírios ali.” Na segunda feira, com o anuncio de Donald Trump de que os Estados Unidos podem retirar suas tropas do Norte da Síria, a proposta do “corredor de paz” de Erdoğan se tornou mais próxima da realidade.

Entretanto, apesar das palavras aparentemente humanitárias de Erdoğan, o desejo da Turquia de ocupar o norte da Síria é movido por razões cínicas e malévolas. O “corredor da paz” seria um local conveniente para descartar refugiados sírios, cuja presença na Turquia tem sido vista, crescentemente, como um peso político. Promoveria também a oportunidade de acabar com o controle curdo no Norte da Síria (também conhecida como Rojava) para destruir seus sonhos democráticos radicais.

“Syrians Fuck Off”

Desde a erupção da guerra civil síria, entre três a quatro milhões de sírios tem encontrado um santuário na Turquia. Em 2016, Erdoğan assinou um acordo multimilionário com a União Europeia para abrigar refugiados no país ao invés de envia-los à Europa. Porém, como o fluxo de pessoas fugindo do combate continua, o sentimento anti-refugiados da Turquia tem crescido e autoridades turcas estão cada vez mais obstinadas em buscar maneiras de remover os sírios do país.

A oposição, fragmentada na Turquia, tem se beneficiado do pico de ânimo anti-sírio, particularmente os partidos de centro e conservadores. Enquanto o partido de esquerda pró-Partido Democrático Curdo e resolutamente pluralista está impulsionando uma agenda social e economicamente progressista, muitos dos outros oponentes de Erdogan são nacionalistas seculares que tem pouca simpatia com aqueles que fogem do governo Assad.

A vitória do Partido Republicano do Povo (CHP) na eleição presidencial de Istambul, em junho passado, foi, em parte, causado pela xenofobia anti-síria. Na noite da vitória da oposição, a hashtag racista #SuriyelilerDefoluyor (“Syrians are fucking off”) se tornou trend topic no Twitter e assim que assumiu o gabinete, o novo presidente do CHP reclamou da suposta onipresença de sinais árabes em alguns distritos da cidade.

Enquanto Erdoğan e seus aliados estiverem empenhados em alardear seus objetivos benevolentes, existe uma lógica política doméstica mais sinistra por trás de seu esforço para despejar milhões de refugiados sírios do outro lado da fronteira.

Rojava e a politica do grande-poder

O primeiro obstáculo para o plano de Erdoğan para Rojava são as Forças Democráticas Sírias (SDF). A Turquia considera há tempos as forças da SDF uma extensão do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), no qual Ankara tem combatido desde 1984 e vê como uma organização terrorista.

Às vezes, Erdoğan tentou cortejar os eleitores curdos entrando em contato com o PKK. Antes da eleição presidencial de Istambul em junho, o governo permitiu que a imprensa publicasse uma carta de Abdullah Öcalan, na esperança de dissuadir os eleitores curdos de apoiarem a oposição.

Mas, na maioria das vezes, Erdoğan tem tomado sua má sorte entre os eleitores curdos (particularmente desde o verão de 2015) como razão para adotar medidas agressivas contra os curdos na Turquia – agredir cidades curdas, atacar estabelecimentos curdos, prender e aprisionar líderes políticos curdos, remover oficiais curdos eleitos e etc.

Erdoğan também adotou uma postura cada vez mais belicosa em relação ao movimento curdo do outro lado das fronteiras turcas. Por exemplo, apesar das estreitas conexões econômicas e políticas entre Turquia e Governo Regional do Curdistão no Iraque (KRG) – uma relação cimentada por mutuo desdém pelo PKK e seus afiliados – a Turquia se opôs veementemente ao referendo de independência de setembro de 2017 no Iraq. Após o referendo, Ancara alocou seus aliados curdos no KRG sob um esmagador bloqueio econômico.

A hostilidade de Erdoğan em relação SDF tem sido ainda mais acentuada, mesmo com movimento na Síria evitando os pedidos de independência curda. Embora a hostilidade esteja parcialmente enraizadas nas relações entre o SDF e o PKK, também pode ser entendido como produto do sucesso dos curdos sírios.

Seguindo o surgimento do ISIS e sua expansão dramática em vastas regiões da Síria e do Iraque, os sírios curdos emergem como um dos grupos-chave na coalizão construída pelos Estados Unidos para combater o avanço do autoproclamado Califado. Esta aliança sempre foi uma comunhão de conveniência. Em termos ideológicos, levou a situação peculiar em que o suporte militar norte-americano facilitou a formação de um experimento de esquerda baseado na interpretação de Öcalan baseado no trabalho do anarquista nova iorquino Murry Bookchin: o confederalismo democrático. Mais seriamente pela perspectiva de Washington, este pacto enfraqueceu as relações com a Turquia, aliada dos EUA, a medida que Erdoğan se tornava mais hostil aos curdos sírios. Em suma, a parceria dos Estados Unidos com os curdos se criou tensões insustentáveis na politica externa dos Estados Unidos.

Pareceu inevitável que, em algum momento, o Estados Unidos tivessem que escolher entre Ancara e Rojava. Enquanto a guerra com o ISIS continuasse, esta decisão poderia ser adiada. Mas, com a derrota efetiva do ISIS, a razão da presença norte-americana na Síria chegou ao fim. Agora, com o anuncio de Trump de que os EUA poderiam se retirar da Síria – decisão prevista em dezembro de 2018 -, esta contradição na politica estadounidense pode se desdobrar em favor de Erdogan.

Twitando em resposta as criticas, o presidente declarou “NOS LUTAREMOS ONDE NOS BENEFICIARMOS E APENAS LUTAREMOS PARA VENCER”. O compromisso de Trump com Ancara poderá abrir o caminho para a Turquia marchar até Rojava para varres a população e transformar a demografia do norte da Síria.

Arabização e reengenharia de Rojava

As tentativas de redesenhar o balanço demográfico no norte da Síria tem uma longa historia. Após a independência da Síria, houveram esforços para diluir o caráter curdo no norte do país por governos nacionalistas árabes em Damasco. Em 1962, estima-se que 20% da população curda síria tenha sido privada de sua cidadania, uma medida que os negou o direito de comprar terras ou trabalhar em setores estatais. Nos anos de 1970, o regime de ba’athist tentou construir um “cinturão árabe” para tirar os curdos de comunidades curdas em países vizinhos.

Estes esforços físicos de arabizar o norte da Síria – também lar de inúmeras minorias étnicas e religiosas – foram acompanhados por uma guerra ideológica. Os nomes dos lugares foram arabizados, a linguagem curda foi restrita e manifestações culturais de especificidade curda foram proibidas.

De maneira mais abrangente, o governo da Síria procurou retratar consistentemente a comunidade curda como se fosse composta por estrangeiros intrusos, refugiados fugindo da repressão na Turquia. Durante os anos de 1980 e 1990, o PKK, que recebeu apoio do regime de Assad, estava disposto a seguir essa narrativa. Mas, o surgimento de uma coalização mais radical liderada pelos curdos no norte da Síria, após o início da guerra civil síria, demonstrou a fraqueza da campanha de arabização na Síria. Agora, parece que Erdoğan planeja intervir onde sucessivos governos sírios falharam.

O presidente turco já deixou clara sua opinião sobre quem ele considera ser os verdadeiros donos do norte da Síria – e são os árabes. Também não precisamos adivinhar como seria um ataque turco ao norte da Síria. Em janeiro de 2018, as forças turcas lançaram uma invasão sem um motivo real na cidade de Afrin, de posse de curdos sírios, destruindo a cidade e deslocando centenas de milhares de pessoas.

Na época, os pronunciamentos da Turquia eram notavelmente semelhantes, com Erdoğan declarando Afrin como uma cidade árabe majoritariamente. Desde a ocupação da cidade, as milícias islâmicas apoiadas pelas forças turcas se envolveram em um reinado de terror que viu as autoridades tomarem terras curdas e entregare-las às famílias árabes. Se a Turquia puder invadir e ocupar o resto de Rojava, é provável que os curdos sofram o mesmo destino deplorável.

Uma vitória para o anti-imperialismo?

Como sugere a resposta à (abortada) retirada de dezembro de 2018, muitos da esquerda anti-imperialista sem dúvida veriam a saída dos EUA da Síria como positiva. E certamente, o militarismo oposto dos EUA e a superação imperial são louváveis. Mas será que uma retirada dos EUA que permitiu à Turquia acabar com um dos experimentos recentes mais dinâmicos no governo socialista e empreender uma campanha genocida contra os curdos realmente beneficiaria a esquerda internacional?

A ameaça que a Turquia apresenta aos curdos sírios é de proporções existenciais. Se a Turquia ocupar o norte da Síria, o progresso social feito na região, incluindo os avanços na libertação das mulheres e no autogoverno popular, seria destruído. Já vimos a Turquia e as milícias islâmicas que eles apoiam reverter esses ganhos em África.

Em termos mais gerais, o plano da Turquia de reinstalar milhões de refugiados sírios árabes na região seria realizado as custas da população curda. Erdoğan está determinado a não apenas acabar com o governo curdo, mas também anular o potencial dos curdos de desempenhar um papel decisivo nos assuntos do norte da Síria com um grau de perpetuidade. Mais uma vez, as ações da Turquia na África – apreendendo terras curdas e expulsando curdos de suas casas – fornecem um presságio sinistro do destino potencial do restante de Rojava.

Então, deixamos outro conjunto importante de perguntas: uma retirada dos EUA que facilita uma invasão turca seria realmente uma vitória pela paz? E considerando a longa adesão da Turquia à OTAN, seria um golpe ao imperialismo dos EUA?

Sobre os autores

Djene Bajalan é professor assistente no Departamento de História da Missouri State University. Sua pesquisa se concentra nos assuntos do Oriente Médio e ele já ensinou e estudou no Reino Unido, Turquia e Curdistão do Iraque.

Michael Brooks é apresentador do The Michael Brooks Show e co-apresentador do The Majority Report.

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