28 de fevereiro de 2022

Crise governamental no Peru de hoje

O governo prioriza a própria sobrevivência com medidas que buscam evitar o impeachment ao renunciar ao programa pelo qual foi votado. Ao contrário, seria necessário que ele voltasse ao curso original das transformações estruturais.

Anahí Durand


O presidente eleito do partido Peru Libre, Pedro Castillo, dirige-se a seus apoiadores durante um comício em Lima, Peru. (Raul Sifuentes/Getty Images)

O regime neoliberal, imposto no Peru com o autogolpe de Fujimori de 1992, arrasta uma longa crise que ainda hoje está aberta. A eleição de Pedro Castillo como Presidente da República por um eleitorado atingido pela pandemia, pela crise econômica e farto da classe política foi uma resposta a essa crise, mas não sua solução. Castillo assumiu o governo cobrindo uma forte demanda de identificação e representação política das maiorias excluídas, levantando também uma agenda de mudanças urgentes em saúde, educação, nacionalização de recursos estratégicos, promoção da agricultura, diversificação produtiva. Desde o primeiro dia, a direita peruana em todas as suas variantes declarou guerra ao governo, inventando uma fraude e depois conspirando por uma "vaga por incapacidade moral" protegida por uma interpretação constitucional forçada. Hoje, sete meses após a instalação do governo, analisamos a situação política peruana, abordando, em primeiro lugar, as características de uma administração precária sitiada pelo golpe e, em segundo lugar, as possíveis soluções para a crise do regime que incluem mudanças democratizantes no quadro de um processo constituinte.

Um governo sitiado: golpe e precariedade

No devastado Peru pós-pandemia, quando um professor rural, camponês e sindicalista, liderado por um partido com ideias marxistas-leninistas como o Peru Libre, chegou ao Palácio do Governo, desencadeou uma feroz campanha nacional e internacional das elites e dos grupos de poder. Apesar da histeria, que proclamava a chegada iminente do comunismo, Castillo conseguiu vencer no segundo turno por aproximadamente 45.000 votos. Diante de tal resultado, a direita optou pelo caminho trumpista de inventar uma narrativa de fraude que impedia um processo de transferência ordenado e desacreditava as instituições democráticas. Além disso, as ações de grupos de choque reacionários, perseguindo políticos e autoridades, demonstraram uma violência pouco vista que infelizmente veio para ficar.

Desde o primeiro dia de seu mandato, o governo Castillo enfrentou um cerco permanente. A direita nacional, relutante em perder o poder, encontrou na relativa maioria parlamentar o espaço para conspirar pela destituição do presidente e desestabilizar o governo, com o apoio da mídia e dos setores empresariais. Para isso, abusaram da figura de interpelação e censura dos ministros e optaram por forçar o mecanismo de "vacância por incapacidade moral", como aconteceu em dezembro, quando o grupo de direita Avanza País apresentou a primeira moção de vacância sem obter os votos necessários. Esse fracasso, no entanto, não impediu o cerco de direita ao governo. Ao contrário, continuaram a conspirar com apoio internacional, evidenciado no encontro da presidente do Congresso María del Carmen Alva com parlamentares do VOX na Espanha e, mais recentemente, nas oficinas e almoços financiados pela Fundação Neuman. Em meio a tudo isso, o centro político dificilmente se diferencia da extrema direita no sentido de que pede a renúncia do presidente e não seu afastamento. Vale notar que todos esses esforços não encontram contrapartida ativa na cidadania que rejeita tanto ou mais o Congresso do que o Executivo e não quer ver a Sra. Alva como Presidente da Nação. Por enquanto, diante da impossibilidade de acelerar um cenário de vacância presidencial, a direita parece diminuir a intensidade na busca pelo impeachment via Parlamento, embora esteja trabalhando em outras frentes como a frente midiática com a grande mídia alinhada a seu favor, ou o judicial com acusações fiscais individuais contra Castillo e sua comitiva próxima.

Mas o governo também deve lidar com sua própria precariedade e erros. Por um lado, destaca-se a debilidade da coalizão de esquerda com a qual Castillo chegou ao poder e que não conseguiu fortalecer. A confluência formada, a princípio, por Perú Libre, Juntos por el Perú, Nuevo Perú, Frente Amplio e outros grupos de esquerda que compunham o primeiro gabinete foi se enfraquecendo, ainda mais diante do sectarismo e pragmatismo do Perú Libre que, longe de liderar a confluência, ele preferiu se livrar dos aliados e abraçar uma trégua fraca com os direitos. Por outro lado, o presidente tem tido dificuldades ostensivas em consolidar um círculo de confiança política, delegando funções de assessoramento a conterrâneos e parentes que, como no caso de seu secretário-geral, acabaram por envolvê-lo em situações de pouca transparência, que o Ministério Público está investigando com velocidade incomum e que, em um país particularmente afetado pela corrupção, é urgente esclarecer. Também destaca a ausência de uma estratégia política de relacionamento com as organizações sociais, pois embora o Peru não tenha uma grande densidade organizacional, existem sindicatos, rodadas camponesas, organizações de mulheres, que poderiam ser articuladas para promover mudanças e ampliar o apoio. Tudo isso impede que uma correlação de forças adversas mude, impondo uma lógica progressiva de sobrevivência, visando obter a aprovação necessária no Congresso enquanto as transformações prometidas são postergadas.

Além da sobrevivência; agenda de mudanças e afastamento constitucional

Hoje, os setores majoritariamente populares que levaram o professor de escola à presidência continuam exigindo mudanças: ainda esperam um sistema de saúde pública de qualidade, descentralização efetiva, maior igualdade de gênero ou que os lucros da mineração dêem mais à nação. Eles ainda esperam mudanças na Constituição. Mas o governo e os atores políticos, ao invés de atender a essas demandas, ficam presos no curto prazo. Talvez quem conseguir superar esse jogo curto e ficar de pé para olhar a floresta além de cada árvore, tenha melhores condições de variar a correlação de forças e abrir um novo momento histórico.

A direita mostra uma determinação inabalável de curto prazo para remover Castillo e enterrar qualquer chance de vitória para a esquerda nas próximas décadas. É a primeira vez que perdem a administração do Executivo nas mãos de um grupo plebeu com o qual praticamente não têm ligações, então optaram primeiro pelo negacionismo e depois por um golpe com uma boa dose de classismo e racismo. O caminho da "humalização" para que Castillo governe com agenda e  técnicos neoliberais não parece ser uma opção e tudo indica que eles persistirão em seus esforços de impeachment do presidente, incentivando o processo judicial e esperando que o novo presidente do Congresso, a ser eleita em julho, seja alguém menos polêmico que Maria del Carmen Alva. As eleições locais e regionais de outubro também entram em cena, pois se obtiverem bons resultados, a direita melhoraria sua correlação de forças para enfraquecer o governo e tirar o presidente do caminho.

Por outro lado, o governo mostra-se assediado e cada vez mais resignado aos cálculos de curto prazo; a nomeação de um funcionário neoliberal no Ministério da Economia ou um ministro da Cultura com altissonantes tuítes que conquista cinco votos no Congresso são exemplos disso. É possível que Castillo abandone esse caminho e volte ao Plano Bicentenário, assumindo com renovado ímpeto o programa de mudanças que o trouxe ao Palácio? Deve fazê-lo para não perder a oportunidade histórica que o povo peruano lhe deu; poderia ser apoiado pelo povo organizado e promover essa agenda programática transformadora com uma equipe de governo coerente, que demonstra com sua trajetória que pode executá-la porque compartilha dessa visão e ideologia. Mas não há certeza sobre isso e é difícil para os grupos de esquerda construir uma posição sensata. Com exceção do Peru Libre, o partido do governo que retomou a liderança com grandes doses de pragmatismo e sectarismo, os outros grupos estão divididos entre gritar traição juntando-se ao campo da oposição ou manter o apoio sustentando críticas. Se a esquerda quer ganhar destaque, deve afirmar um projeto estratégico conjunto, sem complacência com as capitulações do governo, mas implantando iniciativas de mobilização que sustentem as mudanças, cientes de que em um cenário de destituição presidencial só a direita vence. É urgente trabalhar com menos imediatismo, construindo o novo instrumento político - com a devida institucionalidade - que um setor importante da esquerda precisa e não tem (o Nuevo Perú não pôde ser inscrito) essencial para articular a diversidade de lutas (feministas, indígenas, ambientais etc.),  acumular territorialmente e s somar ao processo constituinte.

É necessário promover uma saída substantiva que resolva a crise do regime de forma democrática. A crise ainda está em aberto e foi abordada com medidas parciais que incluem perigosamente mudanças substantivas na ordem constitucional. A Comissão de Constituição do Congresso nas mãos dos fujimoristas realizou importantes reformas nas costas da população, por exemplo, anular a facultade presidencial da questão de confiança, fechar a possibilidade de um referendo e outras que consolidam um regime parlamentarista. O processo de mudança constitucional, hoje sequestrado pelo Congresso e setores conservadores para preservar seus privilégios, pode ser uma saída fundamental para a crise se for assumido de forma democratizante e participativa, com o protagonismo das diversas organizações do campo popular. Embora seja improvável que no Peru tenhamos uma explosão social que pressione por uma Assembleia Constituinte, é possível trabalhar para convencer e organizar para que essa mudança seja realizada promovendo um grande debate nacional sobre questões fundamentais para a vida das pessoas, como a precariedade do emprego, o tipo de Estado que queremos, o papel do investimento privado, a nacionalização dos recursos, a equidade de gênero ou a diversidade cultural. A disputa para mudar a correlação de forças, construindo uma nova hegemonia para um novo pacto social, ainda está aberta, e não podemos dá-la por perdida.

Sobre a autora

Socióloga e professora da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nacional Mayor de San Marcos (Lima). Faz parte do coletivo editorial da Jacobin Latin America.

Como a Europa aprendeu a usar os bancos centrais como arma

As sanções ocidentais contra a Rússia estão sendo amplamente chamadas de um movimento sem precedentes. Mas o principal mecanismo que elas usam foi testado ao longo de uma década de crise na zona do euro - e ameaça devastação econômica muito além das elites russas.

James Meadway

Jacobin

Uma mulher passa pelos escritórios do Banco Central da Rússia em 28 de fevereiro de 2022. (Mikhail Tereshchenko / TASS via Getty Images)

Tradução / Cenas de Moscou e outras cidades russas mostram os estágios iniciais de uma corrida aos bancos nas últimas 24 horas, enquanto o rublo caia quase 40% com a abertura dos mercados do leste asiático. Este foi o resultado das sanções econômicas anunciadas pelas potências europeias, Canadá e Estados Unidos, posteriormente acompanhados pelo Japão, no fim de semana. As sanções são medidas extraordinariamente severas, ameaçando uma potencial devastação econômica, mas o principal mecanismo que elas usam foi testado na última década de crise econômica e desordem.

Tal como acontece com a invasão do Iraque pelos EUA e Reino Unido, não há justificação credível para o que Vladimir Putin está infligindo à Ucrânia e ao seu povo, e o caso apresentado pelo governo russo também é baseado em desinformações. Mas a invasão e suas consequências expõem dramaticamente a forma do sistema mundial após mais de uma década de guerra, desordem e pandemia desde a crise financeira de 2008.

Nem oligarcas, nem SWIFT

Em primeiro lugar, as conversas sobre sanções financeiras tendiam a se concentrar nos fluxos de financiamentos criminosos ligados ao governo Putin e, muitas vezes, que passam pelos sistemas bancários ocidentais – sobretudo em Londres. Restrições à capacidade deste ou daquele oligarca de fazer transações como desejam, embora importantes, estão mais perto de um incômodo grave, em vez de aplicar uma pressão crítica. Da mesma forma, a proibição de “passaportes dourados” para os oligarcas está atrasada, mas dificilmente será um golpe decisivo.

Em segundo lugar, a parte crítica do pacote não é a remoção de três grandes bancos russos do sistema de informações interbancárias chamado SWIFT. Houve uma confusão significativa sobre isso e, na medida em que o SWIFT é confundido com um sistema de pagamentos ou algo fundamental para as operações de um banco, anunciar erroneamente uma remoção sancionando a Rússia do sistema pode minar a confiança do público em seus bancos.

Mas o SWIFT não é um sistema de pagamentos e não é necessário para transações domésticas convencionais; facilita a solicitação mais rápida de transferências de dinheiro entre bancos internacionais e, portanto, facilita o comércio exterior. Não é essencial para o comércio exterior: os bancos de diferentes países podem solicitar dinheiro uns aos outros de diferentes maneiras se lhes for negado o acesso, mesmo que seja por fax.

Desde 2014, depois que os Estados Unidos ameaçaram pela primeira vez encerrar o acesso russo ao SWIFT, o país vem montando seu próprio sistema de comunicações interbancárias, SPFS, funcionando desde 2017. Há também o “sleeving” de negociações, nas quais um terceiro é contratado para fornecer crédito comercial e realizar comércio entre a Rússia e algum país que procura comprar petróleo ou gás, também é uma opção.

Não é incomum a Rússia estabelecer seus próprios sistemas monetários alternativos. A China tem um sistema separado de pagamentos bancários, o Cross-Border Interbank Payments System, operacional desde 2015 e que fornece serviços de pagamentos denominados em renminbi para 80 bancos participantes, entre eles o HSBC e o Standard Chartered. A Índia está atualmente se movendo para estabelecer um sistema de pagamentos denominado em rupias para “suavizar o golpe das sanções”. A Índia, cujos laços com a Rússia remontam a seus primeiros anos livres do Império Britânico, continua sendo o maior mercado da Rússia para equipamentos de defesa e segurança. Um sistema semelhante foi estabelecido por Nova Délhi para driblar as sanções impostas ao Irã.

A longo prazo, as restrições políticas agora feitas ao principal serviço global de mensagens interbancárias centradas nos EUA (e com sede na Bélgica) provavelmente reforçarão apenas as tendências contra a globalização e em direção à organização da economia mundial divida em blocos regionais.

Mas o impacto imediato é o que importa esta manhã. Privado de acesso total ao SWIFT, o comércio entre a Rússia e o resto do mundo se tornará mais difícil, incluindo o crucial comércio de petróleo e gás. (A S&P Global tem detalhes sobre como a Rússia negocia seu petróleo.) Isso, por sua vez, tornará o acesso à moeda estrangeira mais difícil e, portanto, em um passo adiante, pode começar a ameaçar a estabilidade de seu próprio sistema bancário. Como Zoltan Pozsar, do Credit Suisse, argumenta, uma proibição do SWIFT atuará para enfraquecer ainda mais a economia russa – com algum risco de ter uma consequência financeira no Ocidente. Mas não é a principal arma financeira que está sendo implantada aqui.

O comércio de petróleo e gás também não foi diretamente visado. Com os preços de ambos já disparando e com a Rússia fornecendo cerca de 40% do gás natural da Europa, os custos para quem tenta aplicar as sanções começam a ser maiores do que os benefícios de aplicá-las. O Gás Natural Liquefeito (GNL) de produtores como Catar e Estados Unidos fornece agora cerca de 20% da demanda em todo o continente. Mas há limites de oferta, tanto no final da produção quanto nos terminais de GNL na Europa, e a demanda europeia é apenas parte de um mercado global. Qualquer aumento na demanda está competindo com as demandas de gás em toda a Ásia e além. Os estoques de gás na Europa, enquanto isso, estão em baixa recorde: se os fluxos de gás russos pararem completamente, o continente terá cerca de 6 semanas de suprimento. É, sem dúvida, a consciência dessa dependência que encoraja o governo Putin.

Armamento dos Bancos Centrais

Existe, no entanto, uma arma econômica que pode ser utilizada sem custo econômico para aqueles que a utilizam. Uma corrida bancária em Moscou não custa nada a Berlim, Londres ou Washington. E assim a principal arma do pacote de sanções são as restrições ao Banco Central da Rússia. O comunicado conjunto diz:

[Nós] nos comprometemos a impor medidas restritivas que impedirão o Banco Central da Rússia de implantar suas reservas internacionais de forma a prejudicar o impacto de nossas sanções.

Especificamente, isso visa impedir o Banco da Rússia de vender grande parte de suas reservas nos mercados internacionais, avaliadas em cerca de US$ 640 bilhões. Nos últimos dias, eles vem vendendo em ritmo acelerado, comprando rublos em um esforço para preservar o valor internacional da moeda. Se o Banco da Rússia não puder vender suas reservas, com as instituições que detêm seus ativos não dispostas a venda-las e outras não dispostas a comprá-las, a operação para sustentar o rublo se torna impossível. O rublo entrará em colapso, como vimos esta manhã. Isso, por sua vez, ameaça uma corrida bancária, já que as pessoas procuram remover seus rublos cada vez mais sem valor das contas bancárias e transformá-los em moedas mais valiosas e estáveis – como o dólar ou o euro. Uma corrida aos bancos russos pode, no momento, já estar em andamento, com filas nos bancos relatadas no fim de semana.

Nem todas as reservas do Banco Central russo se tornaram inúteis. Cerca de US$ 145 bilhões deles são mantidos em ouro (o que é fisicamente mantido na Rússia) e, se não puder ser vendido diretamente – literalmente transferindo barras físicas –, eles podem, em teoria, ser convertido em promessas de pagamento posterior. Outros US$ 90 bilhões (ou cerca de 14%) dessas reservas são mantidos em renminbi, e a China tem indicado consistentemente que não aderirá a medidas contra a Rússia.

Source: Financial Times

O Banco da Rússia passou anos desde 2014 construindo ativamente suas reservas e se desfazendo de dólares e ativos denominados em dólares. Suas participações de US$ 6 bilhões em títulos do Tesouro dos EUA hoje estão muito abaixo do recorde de US$ 176 bilhões em outubro de 2010.

Isso foi completamente político – uma tentativa deliberada de minimizar o potencial impacto de futuras sanções, do tipo que está sendo aplicado agora. Seu enorme superávit em conta corrente, a diferença de US$ 19 bilhões entre o que a Rússia exporta e o que importa, acumulada ao longo de uma década de vendas de petróleo e gás, também oferece alguma proteção contra sanções econômicas mais agressivas. A participação de dólares no comércio de exportação da Rússia caiu de 69% em 2016 para 56% no início de 2021 – ainda que significativa, ainda é uma redução na potencial exposição.

Da mesma forma, as “swaplines” que surgiram entre o Federal Reserve e os principais bancos centrais nas profundezas da crise financeira de 2008-2009, fornecendo financiamento barato em dólares do Federal Reserve para outros bancos centrais quando os mercados interbancários não eram capazes de fazer, têm sido cada vez mais emulados por economias não dolarizadas. O Conselho de Relações Exteriores tem uma animação sobre isso, mostrando o crescimento de swaplines globais desde a crise do Leste Asiático de 1997-98 aqui, ao lado de um explicador de suas operações.

Source: Council on Foreign Relations

Essas linhas de troca agora formam a espinha dorsal de um sistema financeiro emergente e cada vez mais regionalizado. Os acordos de swapline valem globalmente US$ 1,9 trilhão, e outros “acordos de financiamento regional” valem US$ 1,4 trilhão. Ambos são muito maiores do que os US$ 1 trilhão de recursos disponíveis do Fundo Monetário Internacional (FMI) para uso em emergências financeiras.

Fonte: FMI. "BSL" é "linha de swap bilateral", "RFA" é "acordo de financiamento regional".

China e Rússia têm uma linha de swap renminbi aberta desde 2014, enquanto a China assinou mais de 32 acordos de swapline com diferentes países desde 2009. A declaração, há apenas algumas semanas, por China e Rússia de uma “amizade sem limites” mostrou a direção da rota naquela época.

Mas o comércio direto China-Rússia continua sendo apenas uma parte das exportações da Rússia. E estão aumentando as evidências de que as instituições financeiras chinesas, temerosas de “sanções secundárias” contra aqueles que lidam com a Rússia diretamente dos Estados Unidos e seus aliados, estão silenciosamente se afastando do apoio. A China pode querer um mundo pós-dólar, mas a invasão da Ucrânia pela Rússia antecipa esse objetivo talvez por décadas.

Como o BCE implantou a arma do Banco Central

O golpe econômico das sanções doa bancos centrais à Rússia permanecerá excepcionalmente severo. O Banco da Rússia provavelmente descobrirá que controles de capital e aumentos dramáticos nas taxas de juros são o que eles tem para confiar e para tentar defender o rublo e, portanto, seu sistema bancário.

Os bancos centrais são o centro nervoso do sistema financeiro e bancário de qualquer moeda. Sua função principal é atuar como um “emprestador de última instância” para os bancos de uma moeda, intervindo para garantir que os bancos em dificuldades financeiras não falhem. Como extensão dessa função primária, eles podem ter poderes para (por exemplo) defender o valor da moeda de um país – o que pode ser visto como um subconjunto da defesa da credibilidade de seus bancos.

Mas esse enorme poder doméstico pode ser transformado, ao estilo do judô, em uma fraqueza avassaladora, onde um país não tem mais controle total sobre seu banco central e não pode, como resultado, garantir a estabilidade de seu sistema financeiro.

Há um precedente para o armamento do banco central que agora estamos vendo acontecer. Documentos vazados em novembro de 2014 mostraram que o Banco Central Europeu (BCE) ameaçou o governo irlandês com o colapso de seu sistema bancário se não aceitasse o resgate do BCE/UE/FMI quatro anos antes. Ainda mais dramaticamente, o BCE ameaçou repetidamente encerrar o apoio de emergência aos bancos insolventes da Grécia se o governo recém-eleito do Syriza não aceitasse as condições de resgate oferecidas a partir de fevereiro de 2015. Essas condições incluíam uma amplo pacote de austeridade, à qual o Syriza se opunha veementemente. O Syriza tentou sair do impasse com um referendo sobre a aceitação do resgate em julho daquele ano, mas sua jogada falhou. O primeiro governo de esquerda radical em décadas na Europa foi derrotado.

Tanto a Irlanda quanto a Grécia eram membros da zona do euro e politicamente alinhados com as instituições europeias – em última análise, foi a relutância da Grécia em romper mais fundamentalmente com essas instituições, deixando o euro, que permitiu que o BCE ameaçasse o colapso de seus bancos e arruinou a oposição do Syriza contra o programa de austeridade. Sanções diretas do banco central também foram usadas durante a crise financeira. O congelamento de ativos financeiros islandeses pela Grã-Bretanha em outubro de 2008, usando os poderes disponíveis sob a Lei Antiterrorista, Crime e Segurança de 2001, viu seu banco central brevemente fragilizado.

A mesma técnica do BCE – atacar o banco central para minar o sistema bancário – agora passou de ameaça para aplicação contra um país hostil, atualmente em guerra com um aliado próximo daqueles que aplicam sanções. A ogiva da arma é a mesma, mas o contexto é radicalmente diferente e, como resultado, radicalmente mais perigoso: a guinada de Putin com insinuações sombrias sobre a mobilização das forças nucleares mostra o quão eficaz é a arma, mas também mostra as graves consequências.

A Rússia não pode responder na mesma moeda ao ataque do banco central – o sistema financeiro da Rússia é pequeno, em relação ao sistema financeiro lastreado em dólar e fracamente integrado a ele – e, portanto, seu governo respondeu onde tem capacidade para fazê-lo. Não está claro até que ponto essa perspectiva de uma escalada militar russa imediata foi incorporada ao planejamento das potências ocidentais.

As pessoas que mais sofrem imediatamente com as sanções do banco central das potências conjuntas serão, é claro, o povo russo, agora contemplando a perda de uma utilidade elementar na vida moderna, o sistema bancário, ao lado da séria perspectiva de hiperinflação. Enquanto isso, o resto de nós está sendo novamente terrivelmente arrastado para mais perto do precipício da guerra nuclear.

Publicado originalmente no Pandemic Capitalism, um boletim semanal sobre a economia global. Você pode assiná-lo aqui.

Sobre o autor

James Meadway é ex-assessor do Shadow Chancellor John McDonnell e ex-economista-chefe da New Economics Foundation (NEF).

Quem provocou o conflito?

Casa Branca e Europa foram decisivas no fechamento das portas diplomáticas

Breno Altman



Apesar da narrativa dominante na imprensa ocidental vender que Moscou seria responsável pelo conflito ucraniano, os fatos demonstram um outro fluxo geopolítico. A Casa Branca, apoiada por vassalos europeus, se moveu incisivamente para empurrar Vladimir Putin ao caminho das armas, fechando as portas diplomáticas.

A atual crise militar, certamente a mais relevante desde a II Guerra Mundial, teve início em 2014, quando um golpe de Estado derrubou o presidente Viktor Yanukovich, aliado russo. Essa insurgência, apoiada pelos EUA e pela União Europeia, teve como principal bandeira a incorporação de Kiev ao bloco atlântico. Sob essa plataforma, unificaram-se de sociais-democratas a neonazistas.

A reação de Moscou foi a ocupação da Crimeia, área estratégica por seu acesso ao Mar Negro, que havia sido cedida à Ucrânia em 1954. Um referendo popular consagrou a reintegração desse distrito à Rússia, embora o resultado tenha sofrido questionamentos externos. No leste do país, na região do Donbass (de maioria russa), a resistência ao golpe levou ao surgimento das repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, imediatamente atacadas pelas Forças Armadas de Kiev.

O cenário se desdobrou em uma guerra civil de cinco meses, suspensa pelos chamados Acordos de Minsk, que previam a realização de plebiscitos sobre o futuro das áreas sublevadas. Esses pactos, até o início de 2021, garantiram uma paz relativa, sob fortes tensões e ameaças. A partir de então, ao mesmo tempo em que a Ucrânia reiniciava sua ofensiva contra os rebeldes, o presidente Volodimir Zelenski, eleito em 2019, reabriu portas para o expansionismo ocidental e defendeu a incorporação de seu país à OTAN.

Moscou apresentou, em contraposição à política ucraniana, reivindicações simples e defensivas: além do respeito aos Acordos de Minsk, o compromisso de que a Ucrânia não ingressaria na coalizão militar liderada pelos EUA e tampouco seria destinatária de armas estratégicas. Do outro lado da mesa, o Kremlin somente encontrou inflexibilidade.

A Casa Branca parece voltada para o calendário eleitoral norte-americano, buscando no embate com Putin um ativo na disputa parlamentar contra os republicanos, marcada para novembro. Acima de tudo, sinaliza uma estratégia de asfixia do principal aliado da China: provocar a guerra para justificar sanções econômicas draconianas que quebrem a Rússia e, de preferência, afetem as finanças de Pequim.

Com o descumprimento da promessa feita pelos EUA, em 1989, de conter a OTAN nas suas fronteiras originais, o que provocou o desmantelamento do sistema de segurança coletiva montado após a derrota do nazismo, o presidente russo ficou entre se render à escalada ocidental, que tem na Ucrânia fronteira decisiva, ou adotar resposta militar que aumentasse a pressão sobre Kiev.

Putin optou por ataques que destruíssem o aparato armado do vizinho e estrangulassem Kiev, o elo mais fraco da corrente, derrubando Zelenski ou obrigando-o a desistir de seus planos de filiação à OTAN.

De toda maneira, a crise ucraniana conclui um período histórico no qual a hegemonia norte-americana era tida como incontestável. Depois de 30 anos, a ordem unipolar agoniza sob os pés de uma Rússia reerguida.

Sobre o autor

Jornalista e fundador do site Opera Mundi.

26 de fevereiro de 2022

Líderes ocidentais são hipócritas quando se trata de guerra

Os líderes ocidentais estão condenando a invasão brutal da Ucrânia pela Rússia, mas eles próprios são profundamente cúmplices do derramamento de sangue em todo o mundo. 

Ronan Burtenshaw  


Um edifício residencial atingido por um míssil em 25 de fevereiro de 2022 em Kiev, Ucrânia. (Pierre Crom/Getty Images)

Tradução / Precisamos de um movimento que possa se opor à guerra em todos os lugares.Não há força mais destrutiva na sociedade humana do que a guerra. A cada dia e a cada quilômetro que avança, rasga o tecido social ao redor da vida. As escolas fecham, os transportes param, as ruas ficam vazias, e essa é a respiração profunda antes do mergulho. Quando a onda chega, traz consigo o medo como poucos de nós que não vivem em zonas de guerra podem realmente entender: os sons das bombas, as imagens de destruição em lugares a próximos de sua casa, depois a visão de sangue e ferimentos e morte. No final das contas, a guerra é isso: matança organizada.

Essa é a realidade que milhões de pessoas enfrentam hoje em toda a Ucrânia. É brutal, trágico e doloroso em igual medida. Não deve haver equívocos na esquerda ao condenar a invasão de Vladimir Putin e as mortes que ela traz em seu rastro. O contexto importa quando se trata de conflito, mas não pode haver justificativa para enviar tanques e aviões para um país soberano. É um crime histórico. Devemos fazer o que pudermos para apoiar os refugiados ucranianos que são suas vítimas e mostrar nossa solidariedade aos bravos manifestantes em cidades da Rússia que insistem em dizer que isso não seja realizado em seu nome.

Ontem, Volodymyr Zelenskyy, eleito com um mandato esmagador pelo povo ucraniano em 2019, exortou o governo Putin a acabar com a violência e negociar. Todos os que se consideram democratas devem apoiar esse apelo.

É precisamente porque a guerra é tão devastadora que precisamos de um movimento anti-guerra. Este é especialmente o caso em um mundo em que a unipolaridade e o domínio inquestionável dos Estados Unidos estão se desfazendo rapidamente. A geopolítica das décadas de 2020, 30 e 40 não se parecerá com as das décadas de 1990 ou 2000. Eles se parecerão muito mais com o século XX, com grandes potências competindo por influência em todo o mundo. Se quisermos evitar que os piores episódios dos últimos cem anos se repitam, precisamos aprender suas lições mais uma vez – e rapidamente.

Um registro de cumplicidade

Uma lição é esta: devemos ser capazes de criticar nossos próprios governos. O caminho para a guerra é pavimentado com as mitologias nacionalistas das grandes potências e a impunidade de seus líderes. No caso da Rússia, isso ficou claro nos últimos dias, com as palestras de uma hora de Putin apresentando uma versão distorcida da história. Mas não é apenas na Rússia que as grandes potências têm mitologias e os líderes vão para a guerra impunemente.

Na Grã-Bretanha, nossos líderes invadiram estados soberanos sem ter tido provocação. Eles fizeram isso no Iraque em 2003, participando do assassinato de centenas de milhares de civis. As pessoas que mentiram para nos levar para aquela guerra não enfrentaram até hoje as consequências. Suas carreiras continuaram, assim como suas vidas luxuosas, enquanto uma região inteira do mundo foi mergulhada nas profundezas do inferno por décadas. Ainda estamos vivendo com as suas consequências hoje, inclusive aqui na Grã-Bretanha, com a crise dos refugiados ou a restrição das liberdades civis provocada pela Guerra ao Terror.

Mas eles não fizeram isso apenas no Iraque. Ouvimos muito pouco hoje sobre o papel da Grã-Bretanha na guerra liderada pela OTAN na Líbia em 2011, que demoliu esse Estado, deixou seu povo nas mãos de senhores da guerra e empurrou milhares para fugir e se afogar no Mediterrâneo. Tampouco ouvimos falar da cumplicidade da Grã-Bretanha na guerra em curso no Iêmen, conduzida por nossa aliada Arábia Saudita com nossas armas, dos quais 17,6 bilhões de libras foram fornecidos pelos sistemas BAE aos sauditas desde 2015. As Nações Unidas estimam que 377.000 iemenitas morreram nesse conflito.

Essas vidas não são mais ou menos importantes do que as vidas dos ucranianos. Devemos lutar para acabar com todas essas guerras e todas as guerras que ainda estão por vir.

Uma coisa é certa: não vamos acabar com a guerra simplesmente dizendo que nosso lado representa a virtude e o outro lado representa o mal. Essa é a mitologia que engolimos de nossos líderes e da mídia no Ocidente todos os dias. Desde a Guerra Fria, o Ocidente se posicionou como defensor da democracia e da liberdade de expressão em todo o mundo. A opinião liberal em nossos países de origem repetiu este argumento ad nauseam. Mas dificilmente era verdade.

Mesmo na Rússia, quando a Guerra Fria terminou e o Ocidente reinava supremo e incontestável em toda a face da terra, o Ocidente não podia e não queria defender a democracia. Ele interveio descaradamente na eleição russa de 1996 para ajudar a fraude eleitoral que deu vitória a Boris Yeltsin, um resultado que de muitas maneiras abriu o caminho para a Rússia que vemos hoje.

Quantas pessoas no Ocidente sabem sobre o papel de seus governos nessa eleição? Quantos sabem que a privatização em massa que se seguiu sob Yeltsin resultou em milhões de mortes na antiga União Soviética? Este estudo acadêmico não é de alguns periódicos marginais; foi uma descoberta de 2009 publicada no Lancet. A expectativa de vida entre os homens russos caiu de 67 em 1985 para 60 em 2007. Isso é uma catástrofe social, e nós ajudamos a causá-la.

Não é surpresa alguma, então, que quando o sonho da democracia capitalista que vendemos ao povo russo se tornou uma fraude, eles se voltaram para um demagogo nacionalista como Putin? Não é, mas eles não fizeram isso sozinhos. Os serviços de inteligência da Grã-Bretanha ajudaram a facilitar a ascensão de Putin e Tony Blair até voou para São Petersburgo para assistir à ópera ao seu lado, a fim de reforçar sua credibilidade. Ainda mais contundente, nossos líderes apoiaram Putin em seu massacre brutal na Chechênia, ignorando os crimes de guerra que ele cometeu para promover os interesses da British Petroleum.

Na mesma época, os políticos britânicos estavam facilitando o fluxo de dinheiro dos oligarcas russos em grande escala para Londres. Logo, o Partido Conservador sozinho estava recebendo mais de 2,3 milhões de libras em doações políticas das mesmas pessoas que se beneficiaram da privatização em massa feita na Rússia. Como essas pessoas podem reivindicar qualquer autoridade para criticar Vladimir Putin?

Contra a guerra em todos os lugares

Esta é a mesma classe política que agora bravateia no Parlamento, fazendo declarações grandiosas e sacudindo os sabres da “justiça”. Nada disso deve fornecer qualquer consolo ao povo da Ucrânia. Para nossos líderes no Ocidente, eles eram tanto um peão em um tabuleiro de xadrez geopolítico quanto são para Putin. Mas, a menos que essa realidade – o fato de nossos governos não representarem justiça, democracia ou paz em escala global – fique clara às pessoas que vivem aqui, eles nunca serão responsabilizadas por suas ações.

Em 2008, a OTAN convidou a Geórgia e a Ucrânia a aderirem. A lógica para georgianos e ucranianos, com uma superpotência militar avassaladora e cada vez mais hostil ao lado, era bastante óbvia. Mas que tipo de jogo os líderes ocidentais estavam jogando? Eles alguma vez pretenderam, como exige a adesão à OTAN, entrar em guerra com a Rússia se ela invadisse esses países? A resposta a essa pergunta ficou clara quase imediatamente quando a Rússia invadiu a Geórgia. E hoje está ainda mais claro.

Mas nossos líderes seguiram em frente, encorajando o governo ucraniano a continuar no caminho da integração militar com o Ocidente. (Muitas vezes se esquece que é isso que significa ser membro da OTAN, e por que há muita oposição.) Eles venderam ao povo ucraniano a mentira de que sua democracia e liberdade seriam salvaguardadas com o poderio militar dos EUA, britânicos e franceses. Nunca seria – e nem deveria. O mundo seria um lugar mais seguro hoje se as potências nucleares se enfrentassem na Europa Oriental? Qual seria o prognóstico para a liberdade e a democracia em qualquer lugar da terra nessas circunstâncias?

E então, para que serve tudo isso? Por que os ucranianos foram convidados a caminhar por uma estrada para serem efetivamente deixados à própria sorte? Alguém realmente acreditava que a Rússia permitiria que mísseis norte-americanos fossem colocados em sua fronteira? Eles não deixaram pela mesma razão que todos sabemos que os Estados Unidos também nunca permitiriam que a China colocasse seus mísseis em Guadalajara. Na verdade, não precisamos de hipóteses quando temos a história: quando a União Soviética tentou em Cuba, tivemos a invasão da Baía dos Porcos e a Crise dos Mísseis de Cuba, o mais próximo que o mundo já chegou de uma guerra nuclear.

É correto condenar Vladimir Putin por seu papel no derramamento de sangue na Ucrânia hoje. É um massacre injustificável e uma violação do direito internacional. Também é importante levar em conta o papel de nossos próprios governos na crise – o ponto em que tivemos uma influência real e poderíamos ter mudado o curso da história. O fato é que a Grã-Bretanha poderia ter passado as últimas décadas construindo uma ordem internacional multilateral de cooperação, diálogo e paz. Em vez disso, passou seu tempo lutando, financiando guerras e perseguindo os interesses de sua elite corporativa.

As únicas pessoas que vão contar essa história, em meio ao constante auto-engrandecimento da classe política e midiática, são o movimento anti-guerra. É por isso que suas vozes importam. Eles podem nem sempre obter a análise correta, mas sua perspectiva é inestimável. E é exatamente em momentos como esse que o establishment tenta calá-los, porque sua própria visão de mundo fica exposta.

Os falcões da guerra no Ocidente zombam da ideia de multilateralismo ou de um mundo de diálogo genuíno. Eles vêem isso como ingênuo. Dizem que nunca poderia conter um líder como Putin. Mas o que sua retórica belicosa conseguiu? Quão ingênua sua abordagem à Ucrânia parece agora? Por que essas figuras, que realmente influenciam a política externa deste país, nunca são responsabilizadas por seus fracassos?

Parte da resposta é que eles encontram bodes expiatórios. Eles alinham onze parlamentares trabalhistas de esquerda que assinaram uma declaração anti-guerra e dizem que são exemplos de traidores nacionais ou fantoches de Putin. Eles ameaçam puni-los. Eles voltam sua retórica belicosa para o inimigo interno, pessoas que eles sabem que não tiveram absolutamente nenhuma influência sobre as decisões que levaram a esta guerra em primeiro lugar.

E o ciclo continua. Enquanto isso, o mesmo governo que afirma apoiar os ucranianos nega seus vistos de refugiados e promove uma série de leis anti-refugiados. As vendas de armas para regimes autoritários em todo o mundo que travam guerras continuarão. A mitologia sobre a defesa da liberdade e da democracia pelo Ocidente vai perdurar, mesmo que ofereça ilusões a povos com os quais nunca se importou ou pretendeu proteger.

A única alternativa é um movimento anti-guerra com princípios que possa construir solidariedade contra líderes belicistas para além das fronteiras nacionais – e precisamos de um mais do que nunca.

Sobre o autor

Ronan Burtenshaw é o editor da Tribune.

As fantasias anti-bolcheviques de Putin podem ser sua queda

Antes de lançar sua invasão da Ucrânia, Vladimir Putin afirmou que o país que ele está atacando agora é uma criação bolchevique. Sua visão mítica da história se baseia no imperialismo czarista mais sombrio.

Mário Kessler

Jacobin

O discurso de Vladimir Putin em 21 de fevereiro foi um prelúdio para a invasão russa em larga escala da Ucrânia. (Alexei Nikolsky/Sputnik/AFP via Getty Images)

Tradução / O discurso de Vladimir Putin em 21 de fevereiro ficará na história pelas razões mais sinistras. Ao anunciar o reconhecimento das autodenominadas Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk, seu discurso, além disso, forneceu um prelúdio para a invasão russa em larga escala da Ucrânia que se seguiu na quinta-feira. No discurso, Putin mostrou todo tipo de ressentimento nacionalista da Grande Rússia. Aqui nos concentraremos em apenas um aspecto importante: sua digressão histórica sobre o surgimento da Ucrânia - e as possíveis consequências que essa digressão pode ter.

Segundo Putin, a Ucrânia era "para nós" (ele afirmou falar pelo povo russo), "não apenas um país vizinho", mas "uma parte integrante de nossa própria história, cultura e espaço espiritual. Estes são nossos amigos, nossos parentes; não apenas colegas, amigos e ex-colegas de trabalho, mas também nossos parentes e familiares próximos." A Ucrânia moderna, no entanto, foi criada inteiramente pelos bolcheviques, a Rússia comunista "após o putsch de outubro", como Putin chamou a revolução bolchevique de 1917. No momento de sua maior fraqueza, disse Putin, Vladimir Lenin "cumpriu todas as demandas, todos os desejos dos nacionalistas dentro do país".

Mas, ele insistiu, "em termos do destino histórico da Rússia e e seus povos, os princípios leninistas de construção do Estado não eram apenas um erro, mas muito pior do que um erro". Putin estava aqui se referindo ao direito à autodeterminação que os bolcheviques proclamaram para as nações do Império Russo, até e incluindo o direito de se separar. Com o colapso da URSS, disse Putin, os governos ucranianos começaram "a construir seu estado na negação de tudo o que nos une, tentaram distorcer a consciência e a memória histórica de milhões de pessoas, gerações inteiras que vivem na Ucrânia". Mas ele alegou ainda que a Ucrânia não tem essencialmente uma tradição estável de um estado genuíno. Além disso, desde 2014, disse ele, a Ucrânia está sob o protetorado político e econômico do Ocidente e foi "reduzida ao nível de uma colônia com um regime fantoche". Ele consistentemente sustentou que a Ucrânia era uma entidade sem tradição que havia sido arbitrariamente separada da Rússia. Mas a realidade era e é diferente.

Autodeterminação

É verdade que durante séculos a Ucrânia pertenceu a vários estados: ao Reino da Polônia-Lituânia, ao Império Russo, em parte à monarquia dos Habsburgos, à União Soviética e, até 1939, em sua metade ocidental, também à República da Polônia. Em 1945, com a adição da antiga Checoslováquia Carpatho-Ucrânia, o país pertencia pela primeira vez inteiramente à União Soviética.

No entanto, já em março de 1917, uma república ucraniana foi estabelecida com o historiador Mykhailo Hrushevsky como presidente. A Rada (parlamento) exigiu sua autonomia dentro de uma Rússia federal. Na esteira da Revolução de Outubro, a Rada declarou a Ucrânia uma república popular e, nas eleições, os partidos não bolcheviques receberam a maioria. Duas revoltas bolcheviques antes do final de 1917 e início de 1918 terminaram com a captura de Kiev, mas as tropas da República Popular, apoiadas pelos exércitos alemão e austríaco, recapturaram a cidade em março de 1918. a chamada "Paz do Pão" de Brest com as Potências Centrais em 9 de fevereiro, que garantiu o fornecimento de grãos ucranianos para a Alemanha e a Áustria-Hungria. A Rússia bolchevique teve que aceitar os resultados dessa paz separada - a perda da Ucrânia - no subsequente Tratado de Paz de Brest-Litovsk.

Em abril de 1918, as Potências Centrais dissolveram a Rada e instalaram o general Pavlo Skoropadsky como chefe de Estado. Este último foi deposto em dezembro e a República Popular não-bolchevique foi restaurada. Os bolcheviques não aceitaram isso: após o colapso das Potências Centrais, eles lançaram uma ofensiva militar e capturaram Kiev em janeiro de 1919 e todo o leste da Ucrânia no início de 1920. A guerra foi marcada por massacres antijudaicos - a maior onda de extermínios antes de Auschwitz - em que as forças antibolcheviques foram de longe as principais culpadas (pogromistas bolcheviques foram fuzilados por ordem do Comissário do Povo Leon Trotsky). A Ucrânia Ocidental também se declarou uma república popular, em 1918, para se juntar à república oriental. No entanto, foi ocupada pela Polônia até a partição do estado polonês entre a Alemanha e a URSS em setembro de 1939.

O curto período de Estado não deve obscurecer o fato de que uma consciência nacional ucraniana moderna lutando pela independência já existia no século XIX - um fato que Putin omitiu completamente. O ucraniano, desvalorizado por alguns russos como dialeto camponês, tornou-se uma língua literária através de escritores como Ivan Kotlyarevsky e mais tarde Taras Shevchenko. Este processo foi avançado por historiadores como Mykola Kostomarov e Volodymyr Antonovich, mas especialmente pelo aluno deste último Hrushevsky. Em muitos trabalhos, este último examinou a cultura independente do povo ucraniano, cujas realizações, apesar de fortes pontos de contato, não faziam automaticamente parte da cultura russa. Embora Hrushevsky fosse considerado um historiador “burguês” na União Soviética (ele morreu em Kiev em 1934), ele ainda conseguiu continuar sua pesquisa. Seus resultados apareceram em publicações de historiadores na Ucrânia soviética, bem como por emigrantes ucranianos no Ocidente.

Os historiadores Omeljan Pritsak e Ivan Rudnytsky criaram instituições de pesquisa de renome mundial sobre história e cultura ucraniana em Harvard e na Universidade de Alberta, em Edmonton, Canadá. Desde 1991, essas instituições trabalham em cooperação com colegas ucranianos para desmantelar os restos da imagem histórica stalinista. Restaurar essa mesma imagem (mas sem seu branqueamento pseudocomunista) é um dos objetivos de Vladimir Putin e seus apoiadores.

Descomunização

"Você quer descomunização?" perguntou Putin, citando a demolição de monumentos de Lenin na Ucrânia. "Bem, estamos muito felizes com isso. Mas não devemos, como dizem, parar no meio do caminho. Estamos prontos para mostrar a você o que a descomunização real significa para a Ucrânia". O internacionalismo de Lenin e o chauvinismo da Grande Rússia de Putin são, de fato, incompatíveis.

Tudo isso deve mostrar aos socialistas em particular que o homem que governa o Kremlin é seu maior inimigo. Isso é verdade independentemente de todos os erros cardinais do Ocidente. O governo Putin tem total responsabilidade pela guerra atual, assumindo os desejos imperiais da Rússia czarista, que Joseph Stalin retomou após a ruptura com o internacionalismo bolchevique de 1917.

Putin se apresenta como o santo padroeiro de todas as minorias russas que ele alega estarem ameaçadas de "genocídio". Esta mentira histórica pode ter outras consequências, pois as minorias russas também vivem nos Estados Bálticos. Sua adesão à OTAN impedirá a Rússia de invadir - mesmo no caso de um Donald Trump (reeleito) enviar sinais que dão carta branca a Putin? Por mais improvável que isso pareça, o que está acontecendo atualmente parecia tão improvável apenas algumas semanas atrás.

O mais importante é um amplo movimento internacional de paz para atrapalhar a atual guerra da Rússia e se opor ao futuro aumento militar. Qualquer um na Rússia que se atreva a protestar contra a guerra merece o maior apoio possível - por menores que sejam as possibilidades no momento.

Colaborador

Mario Kessler é membro sênior do Centro Leibniz de História Contemporânea em Potsdam, Alemanha.

Como a Alemanha e os Estados Unidos se tornaram melhores amigos

Depois de 1945, os soviéticos logo substituíram os alemães como o principal inimigo do Departamento de Estado na Europa. Os laços cada vez mais estreitos de Washington com Bonn basearam-se na lógica da Guerra Fria - mas também nas organizações de redes privadas onde as elites empresariais e políticas se reuniam.

Uma entrevista com


O desenvolvimento da parceria EUA-Alemanha foi tudo menos natural. (Imagens Getty)

Entrevistada por Colin Adams

Tradução / A participação da Alemanha na OTAN e sua estreita cooperação na política externa com os Estados Unidos parecem hoje quase como uma evolução natural. Além da recusa da Alemanha em aderir à invasão americana do Iraque em 2003, o apoio (ocidental) alemão à política externa dos EUA tem sido praticamente inegociável desde 1945. Mesmo com as ameaças do ex-presidente Donald Trump em retirar o contingente militar americano da Alemanha, cerca de quarenta mil soldados permanecem no país. Os dois também são parceiros próximos na maioria das organizações internacionais, particularmente na OTAN.

Mas esse nem sempre foi assim. Apesar de uma história de migração em massa da Alemanha para os Estados Unidos a partir da década de 1840 e do estreito vínculo cultural entre os dois países, a Alemanha e os EUA foram adversários à frente da política externa durante décadas. Foi somente com a capitulação da Alemanha nazista em 1945 e a fundação da República Federal da Alemanha em 1949 que foi formada uma verdadeira aliança entre a Alemanha e os EUA.

Esta aliança do pós-guerra foi facilitada por várias instituições públicas e privadas em ambos os países. Duas importantes (e complementares) organizações privadas que desempenharam um papel fundamental em seu desenvolvimento foram a Atlantik-Brücke na Alemanha e o American Council on Germany nos Estados Unidos. O recente livro da historiadora Anne Zetsche, The Atlantik-Brücke and the American Council on Germany, 1952-1974, examina criticamente a influência política de ambas as organizações nas primeiras décadas após a Segunda Guerra Mundial. Ela se reuniu com Colin Adams para discutir por que a parceria Alemanha-EUA foi tudo menos um desenvolvimento natural - e examina o papel que essas organizações desempenham nas políticas alemãs e estadunidenses atuais.

Seu livro descreve como as elites nos Estados Unidos e na Alemanha Ocidental intermediaram a aproximação entre os dois Estados no pós-guerra. A Atlantik-Brücke e o Conselho Americano sobre a Alemanha desempenharam papéis importantes aqui. Quem está envolvido nestas organizações e qual o propósito que elas servem?

Anne Zetsche

Meu livro foca a história da Atlantik-Brücke e sua organização homônima americana, o American Council on Germany (ACG), durante o período de 1949 a 1974. O Atlantik-Brücke (Atlantic Bridge) e o ACG são ambos órgãos vitais de uma rede e coordenação da elite transatlântica, embora ambos tenham desempenhado uma importante função integradora nos assuntos internos de cada país também. A Atlantik-Brücke em particular reuniu empregadores e sindicatos, assim como políticos, diplomatas, ex-militares e funcionários da mídia.

A atual diretoria da Atlantik-Brücke é formada por políticos do Partido Social Democrata (SPD), do Partido Democrata Cristão (CDU), do Partido Verde e do Partido Democrata Livre, bem como por representantes de corporações multinacionais e da Confederação Alemã de Sindicatos. Tanto a Atlantik-Brücke como a ACG operam, portanto, como “grupos de articulação” que reúnem elites de vários setores da sociedade. O papel de tais grupos é crucial para abolir a divisão artificial entre estruturas públicas, estatais e privadas. Esses grupos permitem que as elites empresariais (que, por definição, não são democraticamente eleitas) obtenham acesso privilegiado aos responsáveis pelas decisões políticas em uma base informal. Esta opção não está disponível para a maioria das pessoas e, portanto, é problemática em uma sociedade democrática. O que é particularmente interessante sobre a Atlantik-Brücke e a ACG é que elas possibilitam este acesso privilegiado em uma base transnacional.

Colin Adams

Quais foram as questões centrais que orientaram sua pesquisa?

Anne Zetsche

Eu estava interessada em quem fundou essas organizações e suas motivações, que compõe os membros de ambos os grupos, como essas organizações eram financiadas e as atividades que a Atlantik-Brücke e a ACG desenvolviam. Que papel a Atlantik-Brücke e a ACG desempenharam nas relações germano-americanas após a Segunda Guerra Mundial? Esses grupos foram parcialmente responsáveis pela aproximação relativamente rápida entre dois países que haviam sido recentemente inimigos tão amargos? As explicações geopolíticas para a Guerra Fria e a consequente divisão em blocos ocidentais e orientais são bem conhecidas. Mas isto não nos diz realmente como as atitudes e ressentimentos entre alemães e americanos foram transformados nos níveis social e individual.

Eu também estava interessada nos aspectos sociológicos destas duas organizações, especificamente na composição de seus membros. Minha pesquisa é uma exploração crítica de como figuras privadas, não democráticas, trabalharam com funcionários públicos, políticos e diplomatas para ajudar a moldar as relações internacionais.

Colin Adams

Quem eram as principais figuras envolvidas nestas organizações?

Anne Zetsche

A ideia por trás da fundação da Atlantik-Brücke e da ACG surgiu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Os membros fundadores eram uma mistura de americanos e alemães com laços em ambos os países. Eric Warburg era um banqueiro judeu alemão cujos bens da família foram expropriados pelo governo nazista em 1938. Warburg emigrou para os EUA pouco depois, alcançou a cidadania americana, e mais tarde retornaria à Alemanha nos anos 1950. Outro fundador foi Christopher Emmet, um rico intelectual, ativista político e jornalista de Nova York que passou anos na Alemanha antes da Segunda Guerra Mundial. Outros fundadores alemães incluíram a jornalista Marion Gräfin Dönhoff (que mais tarde se tornaria editora do semanário Die Zeit, com sede em Hamburgo), assim como Erik Blumenfeld, um comerciante de Hamburgo e político da CDU.

Estas quatro figuras procuraram estabelecer duas organizações que seriam encarregadas de promover a reconciliação e as relações amigáveis entre alemães e americanos, assim como entre a recém-formada República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental) e os Estados Unidos. Todos os quatro fundadores tinham fortes conexões nos dois lados do Atlântico, o que lhes permitiu ajudar a enfraquecer os preconceitos de longa data nos dois países. No mínimo, a Atlantik-Brücke e a ACG foram capazes de suavizar os sentimentos antiamericanos entre as elites da Alemanha Ocidental após a guerra. Nos Estados Unidos, o ACG ajudou a estabelecer uma nova imagem dos alemães como um povo democrático, apesar de seu passado nazista.

Estas quatro figuras de elite também representaram as principais forças que continuam a dominar a Atlantik-Brücke e a ACG hoje: finanças, corporações multinacionais, círculos políticos dominantes, e a mídia.

Colin Adams

No final dos anos 1940 e início dos anos 1950, não era de modo algum um dado adquirido que a Alemanha Ocidental e os Estados Unidos desenvolvessem laços econômicos e políticos tão estreitos. Quais eram alguns dos obstáculos com os quais os defensores da cooperação entre a Alemanha e os Estados Unidos tinham que se defrontar?

Anne Zetsche

O ressentimento alemão contra os americanos já existia desde o século XIX e estava ainda mais difundido no final da Segunda Guerra Mundial. Enquanto muitos alemães preferiam a ocupação americana à ocupação soviética, as reservas sobre os Estados Unidos permaneceram. Não eram apenas os social-democratas e comunistas alemães que viam os americanos como um povo sem cultura e que identificavam os Estados Unidos como um foco de capitalismo sem controle e de individualismo desenfreado. De fato, estas opiniões podiam ser encontradas em toda a sociedade alemã.

Muitos americanos também tinham uma forte antipatia para com os alemães, particularmente quando surgiram detalhes sobre o Holocausto e as táticas militares alemãs na Frente Leste. A maioria das pessoas atribuía aos alemães uma predisposição quase genética ao militarismo e ao autoritarismo, tornando-os, assim, impróprios para a democracia. Embora eu deva ressaltar aqui que apesar destes preconceitos contra os alemães, os soviéticos rapidamente vieram substituir os alemães como principal inimigo dos americanos no período imediato do pós-guerra.

Outro obstáculo para a parceria da Guerra Fria entre a Alemanha Ocidental e os Estados Unidos foi a preferência generalizada pela neutralidade, particularmente entre os social-democratas. Os defensores desta abordagem pensavam que um status neutro para a Alemanha – não aderindo nem ao bloco atlanticista nem ao soviético – poderia ter sido ainda mais vantajoso para o país. A questão da redução da presença militar americana na Alemanha Ocidental ressurgiu constantemente durante a Guerra Fria. Isto causou muita consternação entre as elites transatlânticas que constituíam a Atlantik-Brücke e a ACG.

Colin Adams

Será que a Atlantik-Brücke e a ACG procuraram acelerar a aproximação entre as duas nações?

Anne Zetsche

Ambas as organizações foram atores-chave para iniciar e moldar as redes de elite transatlânticas durante a Guerra Fria. Como componentes integrais das redes estatais privadas transnacionais, tanto a Atlantik-Brücke quanto a ACG desempenharam inúmeros papéis relacionados às relações entre a Alemanha Ocidental e os Estados Unidos desde os anos 1950 até os anos 1970. Um papel fundamental foi ajudar nas relações públicas nos Estados Unidos em nome do novo Estado da Alemanha Ocidental, produzindo uma imagem de um Estado jovem e democrático em uma Europa dividida na linha de frente da Guerra Fria. Ao mesmo tempo, estas organizações também ajudaram a comunicar e esclarecer a política dos EUA ao público da Alemanha Ocidental (e entre as elites da Alemanha Ocidental). Representantes da Atlantik-Brücke e da ACG também atuaram como diplomatas informais que ajudaram a mediar os conflitos descritos acima e a agir como conselheiros políticos.

Desde o início, um foco central deste trabalho foi facilitar os contatos pessoais entre americanos e alemães. A Atlantik-Brücke e a ACG institucionalizaram isto no final dos anos 1950 através de suas conferências germano-americanas, que foram baseadas nas notórias conferências de Bilderberg. Estas reuniões envolveram um grupo cuidadosamente coordenado de políticos, diplomatas, empresários, gerentes e jornalistas alemães e americanos que puderam discutir assuntos internacionais e relações germano-americanas sob estritas regras de confidencialidade. Estas reuniões foram financiadas pela Fundação Ford, pelo Departamento de Imprensa Federal da Alemanha Ocidental e pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha Ocidental.

Colin Adams

Você também descreve como Eric Warburg, um judeu alemão cujos bens familiares foram confiscados pelos nazistas, usou sua influência em favor de empresas industriais alemãs como a Thyssen e a Krupp, apesar de sua estreita cooperação com o regime nazista. Por que ele fez isto?

Anne Zetsche

Esta é na verdade uma das principais questões para as quais voltei sempre durante meus anos de trabalho neste livro. O retorno de Eric Warburg à Alemanha não foi de forma alguma incontroverso, particularmente entre os membros de sua família. Mas Warburg finalmente viu os crimes do regime nazista como uma aberração na história alemã. Seu retorno foi em parte baseado em uma forte conexão com sua cidade natal de Hamburgo, mas ele também foi motivado por interesses legítimos de negócios. Warburg também foi encorajado a retornar à Alemanha por seu amigo John J. McCloy, que atuou como alto comissário americano para a Alemanha de 1949 a 1952. McCloy via Warburg como uma figura central para a aproximação germano-americana e para a reconciliação entre a comunidade judaica e a Alemanha.

Mas também não devemos subestimar a importância do anticomunismo profundamente enraizado de Warburg como um fator motivador aqui. Warburg estava convencido de que uma Alemanha Ocidental economicamente forte era a única maneira de proteger seu país de origem contra a ameaça do comunismo. Foi neste contexto que Warburg trabalhou para convencer McCloy a poupar a siderúrgica August Thyssen, bem como a fábrica de gás Krupp da destruição como parte dos esforços de desindustrialização dos Aliados após a Segunda Guerra Mundial. Warburg até mesmo advogou a favor de Alfried Krupp, que foi condenado por utilizar trabalhos forçados durante os julgamentos de Nuremberg. Mas Warburg também trabalhou como mediador na Conferência de reivindicações judaicas.

Colin Adams

Afirma-se frequentemente que a Atlantik-Brücke tem laços estreitos com a CDU, com muitos apontando para a longa permanência do ex-tesoureiro da CDU Walther Leisler Kiep como presidente da Atlantik-Brücke, de 1984 a 2000, assim como o atual presidente da CDU, Friedrich Merz, como a cara da organização, a partir de 2009. Mas a CDU não é o único partido político envolvido na organização. Qual é a relação da Atlantik-Brücke com o SPD?

Anne Zetsche

É verdade que o Atlantik-Brücke tem uma reputação como um clube CDU. O membro fundador Erik Blumenfeld também foi um político da CDU e um confidente próximo da Konrad Adenauer nos anos 1950 e início dos anos 1960. Mas o Atlantik-Brücke também tinha laços com políticos com o SPD, como Max Brauer, que foi membro do conselho consultivo do Atlantik-Brücke durante seu mandato como prefeito de Hamburgo. Em meados dos anos 1960, o social-democrata Fritz Erler foi eleito para o conselho diretor da Atlantik-Brücke, seguido pelo futuro chanceler do SPD, Helmut Schmidt, no final daquela década.

Tanto a Atlantik-Brücke quanto a ACG procuraram conscientemente assegurar a representação de vários partidos políticos desde o início. Durante suas primeiras visitas à Alemanha do pós-guerra no final dos anos 1940, Christopher Emmet procurou reavivar os contatos com os social-democratas. Ao longo dos anos, organizações como a Atlantik-Brücke e ACG tiveram um efeito integrador no SPD e ajudaram a contribuir para estabelecer o SPD como uma alternativa eletiva para a CDU. Isso só foi possível ajudando o SPD a se afastar de muitos dos princípios fundamentais da social-democracia alemã ocidental, como a neutralidade e o antimilitarismo. Isso transformou o SPD em muitos dos credos da aliança atlanticista: aceitação da economia (livre) de mercado, afastamento do antimilitarismo, e aceitação do rearmamento e da adesão à OTAN.

Entretanto, é importante reconhecer que a Atlantik-Brücke e a ACG operaram num contexto mais amplo que incluiu outras instituições como o Congresso para a Liberdade Cultural e as reuniões Bilderberg, bem como as relações institucionais entre as confederações sindicais americanas (AFL e CIO) e a Confederação Sindical Alemã e o SPD. Também não devemos esquecer o papel que a CIA desempenhou durante este tempo. A CIA ajudou a canalizar somas significativas de dinheiro do governo dos EUA para apoiar Willy Brandt nas lutas pelo poder intrapartidário, a fim de promover aqueles elementos dentro do SPD que defendiam uma forte integração com o Ocidente.

Colin Adams

Organizações de elite como a Atlantik-Brücke raramente atraem a atenção do público apesar de sua influência entre os principais atores públicos e privados. Quais são suas principais percepções sobre como essas organizações realmente funcionam?

Anne Zetsche

Minha pesquisa revelou três importantes tendências que ajudaram a moldar o trabalho da Atlantik-Brücke e da ACG. Primeiro, estas organizações contribuíram para o estabelecimento de um consenso interpartidário confiável e sustentável sobre política externa, centrado em um forte relacionamento entre a Alemanha Ocidental e os Estados Unidos. Isto exigiu uma mudança entre os social-democratas da Alemanha Ocidental, afastando-se do antimilitarismo, da neutralidade e do socialismo. As redes transatlânticas de elite encontradas em ambas as organizações desempenham aqui um papel importante. Em segundo lugar, ambas as organizações fortaleceram ainda mais a parceria transatlântica, facilitando o intercâmbio entre as elites das comunidades empresariais da Alemanha Ocidental e dos Estados Unidos. Terceiro, tanto a Atlantik-Brücke quanto a ACG utilizaram seus numerosos contatos entre acadêmicos e a mídia para promover este consenso no discurso público.

Colin Adams

O que as organizações de esquerda podem aprender com a história da Atlantik-Brücke e do Conselho Americano sobre a Alemanha? Esses grupos de elite devem ser vistos como adversários, ou os membros da esquerda devem buscar acesso a tais grupos?

Anne Zetsche

Esta não é uma questão puramente teórica. Há alguns anos, o deputado Gregor Gysi, da Die Linke, na verdade procurou obter a adesão de um representante do partido no Atlantik-Brücke. Afinal, a Atlantik-Brücke sempre esteve comprometida em ser uma organização interpartidária, e o Partido Verde tem sido membro há anos. Quando o Stefan Liebich da Die Linke procurou tornar-se membro da Atlantik-Brücke (a pedido de Gregor Gysi) em 2015, houve muita indignação dentro do partido. A ideia por trás da adesão à Atlantik-Brücke era que ela permitiria à Die Linke ter acesso a informações importantes, particularmente em relação a questões de política externa. Mas a maior razão para aderir seria permitir que Liebich introduzisse as posições da Die Linke sobre uma série de tópicos importantes nesta rede de elite transatlântica.

Se a Die Linke teria ou não sucesso aqui é outra questão. Minhas pesquisas e evidências da evolução do SPD no pós-guerra sugerem que o efeito integrador de tais círculos de elite é muito forte. É improvável que qualquer voz individual de esquerda que participe dessas discussões privadas tenha uma influência significativa no consenso de elite encontrado em organizações como a Atlantik-Brücke ou qualquer organização similar.

A este respeito, sou crítico em relação a esta abordagem. Na minha opinião, tanto os da esquerda, como os partidos políticos de esquerda, como o Die Linke, deveriam, ao invés disso, procurar desenvolver alternativas a estas organizações privadas de elite. É imensamente importante trabalhar em rede e integrar vozes de esquerda na política, na mídia, na academia, na cultura e na economia de ambos os lados do Atlântico e em nível internacional mais amplo. Isto nos permitirá fortalecer ideias e objetivos comuns para um mundo diferente, mais justo e, ajudar a colocar estas ideias em ação.

O intercâmbio frequente entre diversas vozes de esquerda é crucial para alcançar este objetivo. Esta é uma área onde podemos definitivamente aprender algo com estas organizações de elite – particularmente quando levamos em conta as gerações futuras. No final dos anos 1960, as elites dentro da Atlantik-Brücke e ACG viram que a geração que desenvolveu o consenso transatlântico após a Segunda Guerra Mundial logo se aposentaria e daria lugar a uma nova geração que teria mais influência sobre os assuntos nacionais e internacionais. A visão de mundo transatlântica tinha, portanto, que ser transmitida à próxima geração de governantes de ambos os lados do Atlântico. A Atlantik-Brücke e a ACG introduziram a Conferência de Jovens Líderes no final dos anos 1960 ou início dos anos 1970, num esforço para identificar as elites de amanhã, conectá-las entre si e socializá-las na visão de mundo Atlanticista.

Colaboradores

Anne Zetsche é autora e historiadora freelancer. Seu livro, "The Atlantik-Brücke and the American Council on Germany, 1952–1974: The Quest for Atlanticism", foi publicado pela Palgrave Macmillan em 2021.

Colin Adams trabalha como autor e consultor em Berlim.

25 de fevereiro de 2022

Não nos afastamos do "não à guerra"

A justa aversão à invasão russa e a oposição a um regime nacionalista, autoritário e corrupto como o de Putin deve andar de mãos dadas com a luta pela paz.

Salvatore Cannavò



Tradução / A guerra que a Rússia desencadeou contra a Ucrânia é uma guerra inaceitável e, como todas as guerras, injustificável. A sua natureza imperial, sustentando uma estratégia nacionalista que alarga a esfera de influência russa e que, por esta via, funciona como argumento para condicionar e bloquear a vida política interna já tinha ficado clara no longo discurso com que Vladimir Putin justificou o reconhecimento das duas repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk.

Esse discurso pretendeu associar o futuro da Rússia ao seu passado czarista, quando a Ucrânia era universalmente reconhecida como o "berço" da cultura russa moderna, o núcleo da "Rus" de Kiev que se estendia entre a atual Bielorrússia e a Rússia. A culpa da sua independência e, na essência, do seu nacionalismo galopante, explica Putin, seria mesmo de Lenin que, segundo o autocrata do Kremlin, estaria manchado por uma falha grave, a autodeterminação. Putin acusa Lenin de fomentar o nacionalismo. Tal acusação faz-nos sorrir, mas, considerando o papel do líder bolchevique no processo de autonomia das várias repúblicas, é verdadeira na sua substância e ajuda a compreender o espírito do discurso de Putin e a aceleração nacionalista que pretendeu dar a esta fase do seu poder.

E, de fato, Lenin, quando em 1919 se dirigiu "aos trabalhadores e camponeses da Ucrânia", lembrou que a independência daquele país "foi reconhecida pelo Comitê Executivo Central dos Sovietes de toda a República Socialista Federativa Soviética da Rússia e pelo Partido Comunista Bolchevique Russo. Portanto, é óbvio e universalmente reconhecido que somente os trabalhadores e camponeses da Ucrânia podem e irão decidir, no seu Congresso Nacional dos Sovietes, se a Ucrânia se deve fundir com a Rússia ou estabelecer uma república autônoma e independente e, neste último caso, que vínculo federativo deve ser estabelecido entre esta república e a Rússia”.

O êxito da revolução russa, na sua fase inicial conduzida pelo próprio Lenin e por Trotsky, previa a aplicação do princípio da autodeterminação, princípio que à luz da história permanece válido ainda que possa dar origem a processos incontroláveis ​​(permanece válido, por exemplo, também para as repúblicas de Donbass, embora essa possibilidade seja afastada por aqueles que aplaudem a independência dos povos).

Mais difícil é apreender a dinâmica interna do regime e da sociedade russa que levou Moscou a dar um passo tão sério e cujo desfecho, no momento, não é possível prever. Ao nível financeiro, Putin certamente preparou-se. A Rússia é credora nos mercados internacionais, tem uma dívida mínima, situada nos 16,5% do PIB em 2021, um saldo positivo da balança comercial de 161 bilhões de euros, um Produto Interno Bruto, que após a estagnação verificada entre 2016 e 2020, cresceu 4,4% em 2021 e em vias de manter o crescimento em 2022, caso a guerra o permita. Possui grandes reservas monetárias. Pode resistir à crise durante vários meses e tem ainda a vantagem de ser um produtor de gás do qual depende o resto da Europa, o que acentua ainda mais o seu primado.

Ainda assim, o Fundo Monetário Internacional não prevê um futuro brilhante. O peso da Rússia na economia mundial caiu para os níveis mais baixos desde 2000. Apesar do bom crescimento de 2021, o país representa apenas 3,075% da economia global, o valor mais baixo dos últimos vinte anos. Nos próximos cinco anos, esse peso continuará a diminuir: em 2022 para 3,02% e em 2026 para 2,83%. O próprio crescimento registado e projetado é muito inferior à média mundial. A hipótese de que por trás da guerra esteja o projeto do pequeno círculo putiniano e dos seus oligarcas de permanecerem no poder nos próximos dez ou vinte anos é inteiramente legítima e amplamente veiculada pelas principais análises internacionais mas deverá ser enraizada em fatos mais atuais. Que melhor do que uma guerra para silenciar ainda mais qualquer forma de dissidência interna e oferecer uma distração, trágica, a uma população que parece andar, há décadas, bastante desorientada e desmoralizada?

Só que a economia poderá não ser a explicação determinante. O ataque à Ucrânia ocorre após anos de grande ativismo político e militar da Rússia. O posicionamento na Síria, que muito contribuiu para mudar o equilíbrio de poder, a projeção na Líbia e no mundo árabe em geral, as controversas relações com a Turquia, a reaproximação à China, fazem da Rússia um ator geopolítico polivalente que deseja estabilizar a sua própria posição num mundo cada vez mais instável e no qual provavelmente há espaço para ações de força. Não será coincidência que a decisão de invadir a Ucrânia tenha sido tomada no verão passado, quando o cenário internacional foi marcado pelo fim desastroso das missões militares ocidentais no Afeganistão. A OTAN, os EUA e a própria União Europeia mostraram de uma forma muito clara a sua fraqueza e a sua incapacidade de sustentar a liderança mundial, o que poderá ter motivado as decisões de Putin e do seu estado-maior.

Sentindo-se mais forte devido às fraquezas dos outros e às "vitórias" no terreno acima descritas, Putin decidiu que o longo período de expansão constante da OTAN para o leste teria de terminar, que estava na altura de quebrar o cerco e que a Ucrânia poderia representar o campo ideal para essa batalha. A Ucrânia recebeu dos Estados Unidos 2,7 bilhões de dólares em ajuda de 2014 até hoje, tornando-se, após a "revolução" da praça Maidan, o posto avançado de uma estratégia expansionista da OTAN que os EUA sempre usaram, não apenas para garantir a própria hegemonia mundial mas também para controlar as pretensões de autonomia da União Europeia. E, sem dúvida, conseguiram-no. Após a reorientação estratégica realizada em 1999, após as guerras jugoslavas, passou-se à fase de expansão para a Polônia, Letônia, Lituânia, Eslováquia, Eslovênia, República Checa, num caminho que, com a inclusão da Albânia e da Macedónia, conduzindo a uma OTAN representante de quarenta países. Países estes que, como resultado desta rede militar, mantêm um diálogo de proximidade com os EUA, sendo lisonjeados e levados a aceitar importantes acordos militares, que têm como corolário a influência política e repercussões econômicas.

Esta expansão é constantemente apontada como fonte de ameaça e insegurança pela Rússia, que tem repetidamente pedido garantias e também denunciado o desrespeito pelo compromisso estabelecido pelo EUA e pela própria OTAN após a queda do Muro de Berlim, de que a OTAN não representaria uma ameaça a leste do rio Elba, a fronteira entre a Alemanha Ocidental e Oriental. Mas a possível entrada da Ucrânia na OTAN tornou-se, a certa altura, num resultado mais que provável e com ele vem a perspectiva da presença de mísseis americanos a poucos passos da fronteira russa.

É neste conflito de interesses que reside a responsabilidade do mundo ocidental que, pretendendo dobrar à sua estratégia uma Rússia ainda incapaz de reagir, não foi capaz de fazer uma leitura dos acontecimentos - mesmo após a tragédia síria, o desastre no Afeganistão ou a instabilidade nunca resolvida no mundo árabe - e compreender a necessidade de restabelecer um sistema multilateral, estável e seguro para todos os países do planeta e não apenas para o posto avançado do capitalismo. A vontade de Putin em estabelecer uma potência, a necessidade de confinar o gigante russo pelo relançamento dos nacionalismos e a ilusão atlantista de poder administrar um projeto hegemônico numa fase difícil, são ingredientes que, combinados, criaram uma situação explosiva e de resultados incalculáveis.

Putin pretende ocupar toda a Ucrânia e trazê-la de volta ao controle de Moscou? Muitos consideram essa opção a mais difícil e perigosa para a própria Rússia, que se exporia a uma condição de desgaste. Provavelmente, e de acordo com o que serviços secretos norte-americanos vão fazendo constar, ele quer derrubar o governo Zelensky, substituí-lo por um governo amigo e criar um contexto de guerra civil eminente, no qual o papel russo seria exaltado. Se os tanques russos chegarem a Kiev e tomarem as suas ruas e praças, esta situação será quase irreversível.

O impacto econômico da guerra pode ser de longo alcance. A desaceleração das bolsas de valores, o pânico nos mercados e o aumento dos ativos de energia são uma primeira demonstração disso. Cerca de 36% do gás importado da União Europeia vem da Rússia, apesar de nos últimos anos a UE ter tentado diversificar as suas fontes de abastecimento (Noruega, Líbia, Argélia). Mas a utilização do gás russo, importado por gasodutos, continua a ser a solução mais barata, até porque contextos como os do Norte da África, palco de uma forte instabilidade, impossibilitaram a libertação desta dependência. A Itália depende do gás russo para cerca de 40% das suas necessidades, muito mais do que a Alemanha (26%) e a França (17%) e isso determina uma vulnerabilidade particular. Mas o comércio bilateral também atinge setores nevrálgicos, como a indústria ou o setor agroalimentar. Não é por acaso que o presidente da confederação patronal italiana, a Confindustria, Carlo Bonomi, quis renunciar à sua recente candidatura à presidência da Serie A de futebol para reafirmar o seu compromisso a tempo inteiro com os industriais em tempos particularmente difíceis.

Apesar dos repetidos alertas das últimas semanas, os EUA e a OTAN ficaram surpreendidos com a guerra lançada por Putin. Foi uma demonstração da incapacidade dos atuais sistemas de governança política do planeta e da instabilidade na relação de forças. De momento, não se avança com a hipótese de uma resposta militar, que foi oficialmente descartada na quinta-feira pelo secretário-geral da OTAN, Jen Stoltenberg. No entanto, as pressões militares, políticas e de vários observadores, incluindo uma certa imprensa, para que seja equacionada uma presença militar ocidental, começam a surgir com insistência. Quando, aliás, Putin é descrito como o "novo Hitler", isso é feito como forma de apontar uma saída obrigatória, a da intervenção e da escalada do conflito.

Nesta situação, não há espaço para dúvidas. A legítima aversão à guerra provocada pela Rússia, a oposição convicta a um regime nacionalista, autoritário e corrupto como o de Putin, não pode fazer-nos desviar do princípio "Não à guerra" como solução para a crise. Como aconteceu várias vezes ao longo dos anos, a eclosão de uma guerra produz uma sensação geral de desamparo e frustração, porque atesta que as soluções políticas já foram esgotadas. No entanto, isso não nos dá permissão para perder a clarividência e para não nos opormos à guerra de agressão e imperialista em qualquer forma que se apresente.

Nestas horas estamos, mais uma vez, a testemunhar à retórica já um pouco estafada de "para onde foram os pacifistas que sempre se manifestaram contra os EUA?", "Porque não se manifestam contra a Rússia?". O lento processo de dispersão do grande movimento anti-guerra que animou a Itália, e se estendeu além fronteiras, no início dos anos 2000 foi saudado com entusiasmo e satisfação pelo mundo político dominante, mas hoje pede-se uma reação a forças que, em grande parte, estão enfraquecidas. Mas, de qualquer forma, elas existem e, de fato, estão se mobilizando. E voltam novamente a colocar a questão não resolvida do desarmamento e da redução drástica dos gastos militares que, à luz da história, continua a ser a forma mais eficaz de evitar guerras e impor um modelo de paz.

O problema não é onde estarão os pacifistas, mas sim o violento choque de interesses ferozmente opostos. Tal choque existe desde que o capitalismo evoluiu para o imperialismo e descobriu a geopolítica, mas depois da revolução de Outubro assumiu a forma de uma disputa ideológica e de valores. Hoje, quando o capitalismo cobre todo o planeta, o embate continua a ser o mesmo, a disputa entre diferentes projetos imperialistas nesta ou naquela parte do mundo (e a Europa ainda representa, como durante o século XX, um formidável terreno de disputa hegemônica). Hoje parece difícil ou impossível argumentar que existe outro modelo e outra forma de resolver crises e governar o mundo, mas isso não significa que esse caminho esteja errado.

Sobre o autor

Salvatore Cannavò, vice-diretor do jornal Il Fatto e diretor editorial da Edizioni Alegre, é autor, entre outras coisas, de Mutualismo, ritorno al futuro per la sinistra (Alegre).

24 de fevereiro de 2022

A integridade territorial dos Estados versus a autodeterminação dos povos

Não deveria ser surpreendente que os governos proclamem a validade absoluta - ou ao menos a precedência - do princípio correspondente, em cada ocasião, aos seus interesses.

John V. Whitbeck



Dois princípios muito citados, ambos com raízes fincadas no direito internacional, estão frequentemente em conflito - a integridade territorial dos Estados e a autodeterminação dos povos.

Este conflito recorrente e inevitável está evidente no reconhecimento diplomático, pela Rússia, das duas repúblicas separatistas - Donetsk e Lugansk - da região do Donbass, ambas de maioria russa. Nelas, assim como nas regiões da Abkhazia, Ossetia do Sul e Crimeia (que foram reconhecidas como Estados independentes pela Rússia), a maior parte das populações claramente desejava separar-se do país ao qual haviam sido associados – Geórgia e Ucrânia. O mesmo ocorreu no Kosovo, que em 1991 separou-se da Sérvia.

Não deveria ser surpreendente que os governos proclamem a validade absoluta - ou ao menos a precedência – do princípio correspondente, em cada ocasião, aos seus interesses. Os Estados ocidentais, que atualmente alardeiam o caráter absoluto e a aplicabilidade universal do princípio da integridade territorial dos Estados, já agiram de modo diferente. Eles não tiveram problema algum em apoiar a autodeterminação dos povos da Eritreia, do Timor Leste e do Sudão do Sul. Também fizeram o mesmo em Kosovo, onde contaram com o auxílio pesado de 77 dias de bombardeio da OTAN sobre Belgrado (capital da Sérvia), em violação flagrante ao direito internacional.

Uma escassíssima maioria de países-membros da ONU (97, em 193), hoje aceita o reconhecimento diplomático de Kosovo. Decisões a este respeito são inevitavelmente influenciadas por paralelos internos. Dos cinco membros da União Europeia que não reconhecem Kosovo, dois - Chipre e Espanha – têm problemas com movimentos separatistas em seus próprios territórios, enquanto a Grécia recusa-se a reconhecer em solidariedade aos cipriotas gregos.

Também é lógico que a China, apesar de sua relação “mais forte que uma aliança” com a Rússia tenha reafirmado recentemente seu compromisso profundo com o princípio da integridades dos Estados. Pequim preocupa-se como os sentimentos separatistas em Hong Kong, Taiwan e Xinjiang.

Um exemplo particular da extrema flexibilidade na aplicação dos dois princípios é oferecido pelo próprio Kosovo. Constituída por vasta maioria de albaneses, esta região, antes uma pequena parte da Sérvia, defendeu e explorou o princípio da autodeterminação dos povos (e os bombardeios da OTAN), para alcançar sua independência. No entanto, recusa-se, desde então, a aceitar a integração, à própria Sérvia da parte norte de seu próprio país, que é muito majoritariamente constituída de sérvios e cuja população, compreensivelmente, não se vê ligada a Kosovo. Num aparente ataque preventivo contra uma resolução racional da disputa, o governo de Kosovo chegou a incluir de modo inédito, na bandeira nacional, um mapa de seu território pós-independência...

Por fim, o governo dos Estados Unidos teve papel pioneiro no reconhecimento da soberania israelense sobre Jerusalém Oriental e sobre as Colinas do Golan, tomadas por Israel à Síria; e no reconhecimento da soberania do Marrocos sobre o Saara Oriental (a República Árabe Democrática Sahauri). Nestes três casos, agiu contra os desejos de toda a população do território ocupado. Fica claro que o único princípio ao qual o governo norte-americano adere de modo consistente, nestes temas, é o princípio fundamental das relações internacionais contemporâneas. O que importa não é a natureza do ato, mas quem está fazendo o quê contra quem...

A maior parte dos governos, em particular os muito poderosos, escolhe seus "princípios" de um menu à la carte, de acordo com seu apetite preferido do dia.

Sobre o autor

John V. Whitbeck é um advogado internacional residente em Paris.

Vamos falar de IPI?

Precisamos de um tributo seletivo pró-saúde e pró-desenvolvimento verde

Nelson Barbosa


Funcionárias em linha de produção de fábrica de São Paulo. Eduardo Knapp/Folhapress

Segundo reportagens da imprensa, o governo anunciará um corte linear do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), de 25% ou aproximadamente R$ 20 bilhões. A medida faz parte da campanha de reeleição de Bolsonaro, mas ela traz um tema relevante: precisamos ter IPI? Para quê? Começando com um pouco de história, o IPI é um tributo sobre valor adicionado (lucros e salários), criado no fim dos anos 1960, na reforma tributária da ditadura militar, em substituição ao imposto sobre consumo, que tinha incidência cumulativa (sobre o faturamento).

Na prática, o IPI funciona como um tributo seletivo, isto é, um imposto com limites fixados em lei, mas modulação decidida por decreto, para incentivar ou penalizar alguns produtos ou atividades. Na lógica dos anos 1960, o IPI foi pensado como instrumento de arrecadação adicional do Estado, cobrando-se alíquotas extra de imposto (além da contribuição social federal, ISS e ICMS) para penalizar produtos considerados supérfluos (coisa de rico) ou prejudiciais à saúde (como bebida alcoólicas e cigarros). Passados mais de 50 anos, o que era supérfluo virou bem de consumo popular, como geladeira, máquina de lavar, fogão, automóvel e outros bens de consumo durável.

Não faz mais sentido ter imposto adicional sobre esses itens por questão de arrecadação, mas vale a pena utilizar o IPI para outros fins, como eficiência energética. Traduzindo do economês, o IPI sobre bens de consumo deveria virar tributo seletivo com alíquota fixada de acordo com o consumo de energia ou combustível do item em questão. Isso já é feito para alguns eletrodomésticos e deveria ser ampliado para veículos, estimulando a adoção de motores híbridos e elétricos (em vez de diferenciar IPI por cilindrada).

Na mesma direção, também vale a pena usar o IPI para estimular a reciclagem de materiais e o uso de produtos e insumos com menor emissão de carbono, de modo a incentivar a transição energética. Devido ao atual contexto de alta inflação, esse tipo de medida deve ser ficar para um segundo momento, mas estudos e planejamento podem começar desde já. Já no caso de produtos nocivos para a saúde, é necessário manter o IPI (ou o tributo seletivo que o substituir) como fonte adicional de arrecadação, para o SUS (Sistema Único de Saúde).

Aliás, mesma lógica deveria ser usada para criar um tributo que substituísse o DPVAT, pois é o SUS que lida com a maior parte das vítimas de acidentes de trânsito, mas estou saindo do tema. Por fim, o IPI sobre os demais insumos e produtos deveria ser simplesmente zerado, pois não faz sentido punir nossa indústria com imposto adicional. Porém, como no Brasil tributação é sempre um assunto complicado, vários setores são contra esse tipo de desoneração pois usam o IPI como forma de obter créditos tributários e pagar menos impostos (exemplo: concentrado de refrigerante produzido em Manaus).

Nesse último caso, a reforma do IPI deve analisar a cadeia produtiva de cada setor e eliminar gradualmente o tributo, o que acabará aumentando a arrecadação do governo pelo fim da farra de créditos presumidos (imposto não pago, mas ainda assim usado para abater imposto devido). Voltando à pergunta inicial: não precisamos mais do IPI dos anos 1960, mas precisamos de um tributo seletivo pró-saúde e pró-desenvolvimento verde, que não sirva de muleta para desoneração desnecessária de grandes empresas. A medida em discussão pelo governo não faz quase nada disso, mas ela força a rediscussão do tema neste ano eleitoral.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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