26 de julho de 2006

Gestão pela incitação

Se a meta não foi obtida ou a performance esperada não foi alcançada, não é mais o coletivo que assume a falta, mas o trabalhador: ele é quem não foi capaz de conseguir

Leonardo Mello e Silva

Folha de S.Paulo

O reconhecimento do assédio moral no trabalho é produto da união de duas tendências. A primeira é um movimento geral de democratização das sociedades em que as reivindicações das pessoas têm um lugar importante na cultura política dos países industrializados. Essas reivindicações legitimam os princípios de autonomia, privacidade e não-violência -simbólica também- em diversas esferas da vida coletiva, incluindo o trabalho. Com isso, algumas demandas, antes impensáveis, passaram a fazer parte do repertório do homem comum.

O assédio moral no trabalho e o direito de recusa entram nesse rol. Um patrão, um capitão de indústria "no velho estilo", certamente acharia essas conquistas democráticas um verdadeiro absurdo, uma afronta ao poder absoluto de proprietário da força de trabalho. Infelizmente, tais tipos não são coisa do passado.

A segunda tendência que se verifica é a mudança no padrão de gestão das empresas. Comprometimento, envolvimento e colaboração ativa são características tão exigidas nas empresas modernas que ficar alheio a isso acarreta ao empregado punição com a pecha de incompetente -quando a punição não afeta diretamente o salário e as possibilidades de promoção.

Se o controle rígido de cima para baixo é substituído por um autocontrole de baixo para cima, onde o compromisso ativo dos operadores é condição "sine qua non" para a produtividade e a eficiência da fábrica, então o bem-estar e a qualidade do trabalho não são elementos de menor importância para a organização. Um bom ambiente na empresa deve, portanto, ser procurado e almejado.

Com essa mudança de mentalidade, fica mais fácil lidar com problemas como o do assédio moral, pois agora eles podem, ao menos, ser tematizados. Contra uma visão muito positiva sustentada por essas tendências, impõem-se, no entanto, duas outras tendências.

A primeira, mais evidente, tem a ver com a adversidade do mercado de trabalho: quanto mais frágeis as condições de contratação, mais difícil fica para o empregado fazer com que seus direitos sejam respeitados. Melhor preservar o emprego realmente existente do que "cutucar a onça com vara curta".

Como o mundo do trabalho tem sido fortemente golpeado pelas políticas neoliberais de ataque aos sindicatos, é lícito projetar que demandas como a do assédio moral ficarão circunscritas a poucos casos e que o medo e a insegurança dos assalariados deverão recalcar a situação real, levando a uma sub-representação de ocorrências. É por isso que o sofrimento no trabalho tem uma explicação objetiva.

A segunda tendência retira sua força, paradoxalmente, da maior abertura proporcionada pelos novos métodos de gestão, que carregam um forte componente de individualização.

É cada vez maior o número de empregados -chamados, muito a propósito, de "colaboradores"- interpelados por seus superiores. Isso eleva em muito a carga de responsabilização e até mesmo de culpa. Se a meta não foi obtida ou a performance esperada não foi alcançada, não é mais o coletivo que assume a falta, mas o trabalhador: ele é quem não foi capaz de conseguir. Moralmente, isso tem um efeito tremendo, pois ninguém vai querer recuar diante de um desafio nem assumir a incapacidade de enfrentá-lo. É o que eu chamo de "gestão pela incitação".

Ainda que tal estratégia seja uma forma marota encontrada pelas empresas para extrair maior produtividade de seus subordinados, as organizações não assumem esse fato, pois o efeito é deixar cada funcionário com uma espécie de pulga atrás da orelha, desconfiado de si mesmo: "Será mesmo que não posso conseguir?".

A regulamentação do assédio moral no trabalho é um passo muito importante para a democratização das relações entre patrões e empregados, mas a lei, por si só, não é suficiente para produzir os efeitos pretendidos pelos legisladores. São as relações sociais de poder e subordinação que vão orientar o sentido que esses importantes marcos regulatórios vão ter na realidade.

Sobre o autor
Leonardo Mello e Silva é professor de sociologia do trabalho do departamento de sociologia da Universidade de São Paulo e autor de "Trabalho em Grupo e Sociabilidade Privada" (Editora 34)

22 de julho de 2006

Carta branca para Israel

Salem H. Nasser


A comunidade internacional -é assim que se autodenomina um seleto grupo de países formado por Estados Unidos, os principais países europeus e mais alguns governos com visões de mundo semelhantes- deu carta branca a Israel para continuar sua campanha militar contra o Líbano.

Ao final da última reunião de cúpula do G8, os líderes da comunidade internacional adotaram a atitude defendida pelo presidente americano, George W. Bush, e escolheram os culpados pela crise: Hizbollah, Síria, Irã. Quanto às medidas a serem tomadas, acredita Bush e aceitam os outros que não há nada urgente a fazer, pois cabe aos culpados "mudar o comportamento". Ou seja, fundamentalmente, neste caso, o Hizbollah deve devolver os soldados israelenses capturados, interromper os ataques, desarmar-se e recuar para longe da fronteira com Israel.

Até que isso aconteça, Israel pode continuar a massacrar, sitiar e punir a população civil libanesa, destruir a infra-estrutura, fazer com que o Líbano, nas expressivas palavras de Ehud Olmert, primeiro-ministro de Israel, volte 20 anos no tempo, isto é, ao seu momento de destruição total.

O Conselho de Segurança da ONU recusou-se, ao menos nessa primeira dezena de dias de ataques ininterruptos, a discutir o assunto. Nos meios diplomáticos e na mídia, fala-se abertamente em um prazo de uma semana ou dez dias para que Israel termine o serviço sem ser incomodado. Assim, "o mundo" acha desnecessário apelar para um cessar-fogo imediato e acha razoável condicioná-lo, como faz Israel, ao equivalente de uma rendição total do adversário. Em outras palavras, acha razoável que se faça impossível um cessar-fogo antes que Israel assim decida.

Esses são os sintomas, e o doente é a diplomacia. O doente é um sistema internacional em que a diplomacia se entrega à mediocridade, em que o direito fica incapacitado de agir e é dispensado com certo desdém. Os chamados esforços diplomáticos relacionados ao Oriente Médio sofrem ao menos de uma limitação evidente: não se pode discutir nada que contrarie mais substancialmente os interesses dos EUA porque é sabido que essa discussão não dará frutos. Por isso, o ponto de partida necessário para qualquer discussão diplomática parece ser a proteção dos interesses israelenses e a demonização de Irã, Síria, Hamas e Hizbollah.

As negociações envolvendo os territórios palestinos ocupados -questão à qual se liga aquela relativa a todos os territórios árabes ocupados por Israel- há muito são encaminhadas para, ao final, permitirem que Israel incorpore ao seu território aquelas terras que mais lhe interessam, porque mais férteis, porque dotadas de reservas de água ou porque mais estratégicas por qualquer outra razão, ao mesmo tempo em que mantém controle efetivo sobre um simulacro de Estado Palestino.

Quando um adversário mais real emerge como legítimo detentor do poder, ele é desqualificado como interlocutor e sabotado. É o que aconteceu com o Hamas. Do Irã e da Síria, também desqualificados como interlocutores, espera-se que se curvem aos desígnios americanos na região. Do Hizbollah, espera-se simplesmente que desapareça.

Esse mesmo ponto de partida necessário domina a discussão dessas matérias no Conselho de Segurança da ONU: ao mesmo tempo em que os EUA bloqueiam qualquer tentativa de pressão sobre Israel para que interrompa atividades ilegais, os crimes de guerra, os assassinatos seletivos, a construção de um muro incorporando territórios ocupados, ou para que cumpra as determinações prévias da mesma ONU, faz-se pressão sobre Irã, Síria e Líbano, e, hoje, só se fala na Resolução 1.559, que demanda o desarmamento do Hizbollah. Essa diplomacia parcial e unilateral e esse direito paralisado estão fadados ao fracasso. Esse fracasso se traduzirá na continuidade da violência ou em injustiça, ou nas duas coisas.

Uma outra diplomacia é necessária, mas ela não se mostra no horizonte. A comunidade internacional talvez acabe por dar razão a Hassan Nasrallah, secretário geral do Hizbollah, quando diz que não fala para a comunidade internacional ouvir porque não existe uma verdadeira comunidade internacional. Talvez seja tempo de tentar provar o contrário.

Sobre o autor

Salem H. Nasser, 38, doutor em direito internacional pela USP, é professor de direito internacional da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.

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