30 de novembro de 2021

Will Smith está deslumbrante em King Richard

Baseado na história real do treinador e pai das tenistas Venus e Serena Williams, interpretado por Will Smith, que acaba de ganhar Globo de Ouro, o filme King Richard nos mostra o preço que o racismo cobrou de uma geração de homens negros – mas também a luta que inspirou neles.

Eileen Jones

Will Smith interpreta o pai de Venus e Serena Williams, Richard Williams, em King Richard. (Warner Bros.)

Tradução / Will Smith é muito comovente interpretando Richard Williams, cujo plano aparentemente impossível de alcançar o estrelato no tênis com as suas talentosas filhas Venus (Saniyya Sidney) e Serena (Demi Singleton), teve sucesso. Por ser comovente, é muito fácil ser tolerante com os aspectos do gênero “biografia de esportistas” mais estereotipados de King Richard, atualmente em exibição nos cinemas e na HBO Max – as partidas tensas que devem ser jogadas contra todas as probabilidades e vencidas, os rostos impressionados enquanto os treinadores percebem o grandeza potencial das jovens jogadoras, e assim por diante. Essas cenas típicas recebem um impulso adicional pela extremidade do caso: como sabemos ao entrar no filme, Richard Williams não está apenas se gabando ou se iludindo – ele realmente tem a versão tenista do “próximo Michael Jordan”, ou como Williams coloca, “os próximos dois” Michael Jordans.

O problema que o filme tem que superar é como investir o suspense em uma narrativa que o público sabe como vai terminar. Mesmo as pessoas que não gostam de esportes conhecem as carreiras deslumbrantes das famosas Venus e Serena Williams. Talvez isso explique a falta de brilho nas bilheterias do filme nos cinemas dos EUA.

Ou pode ser que a solução para esse problema narrativo seja o que está mantendo as pessoas afastadas, em um momento em que elas preferem assistir a filmes mais leve, como Ghostbusters: Afterlife e Encanto, o novo musical de animação da Disney. É uma pena, porque a solução parece inteligente. O roteirista Zach Baylin e o diretor Reinaldo Marcus Green focam sabiamente na figura mais obscura e preocupante – mas ainda incrível – de Richard Williams, que é levado a superar uma vida inteira de racismo angustiante para garantir que suas filhas tenham sucesso.

Smith transmite tantos detalhes pungentes do terrível dano já causado a família Williams por uma sociedade cruelmente racista que às vezes é doloroso vê-lo. Composto por cabelos prematuramente grisalhos, seus olhos estão vidrados de exaustão e uma espécie de inexpressividade deliberada pela longa prática de se tornar ilegível para não demonstrar medo em um mundo predatório. Smith captura os ombros ligeiramente curvados em uma postura atlética, sobrecarregada pelas dificuldades da classe trabalhadora.

Ele foi tantas vezes espancado em sua vida, por policiais, membros da Klan e turbas aleatórias de supremacista brancos em sua juventude em Louisiana, que quando jovens membros de gangues negros o atacam nas quadras de tênis em ruínas em Compton, Califórnia, ele sabe como simplesmente cair no chão enrolado para deixar os chutes e os golpes choverem sobre ele. Ele tem sua cabeça empurrada para frente enquanto Williams teimosamente anda e dirige pelas ruas acidentadas em sua velha kombi vermelha e branca surrada, obcecado com seu “plano”, pensando em novas maneiras de treinar as garotas com técnicas de tênis vencedoras e maneiras de lapidar uma estrela – além de procurar um treinador profissional sem poder pagar, e formas de promover os talentos extraordinários de suas filhas que ninguém estabelecido no jogo parece se importar porque são meninas negras e o tênis ainda é visto como um esporte branco na década de 1990, apesar das carreiras campeãs de Althea Gibson na década de 1950 e Arthur Ashe na década de 1960-70.

“Se você falha em planejar, você planeja falhar” é um dos vários lemas de Williams que suas filhas sabem recitar.

Richard Williams é uma pessoa enlouquecedora, como a maioria dos monomaníacos, especialmente aqueles que foram brutalizados pela vida, e parece que ele vai ficando mais impossível de lidar quanto mais ele tem sucesso em nome de suas filhas. Esse é o drama principal do filme, acompanhando a história mais convencional da ascensão das irmãs Williams como campeãs de tênis, enquanto ele enlouquece os principais treinadores com sua interferência e corteja a mídia com entrevistas auto-bajuladoras.

Parece em alguns pontos que o filme está indo para um território consideravelmente mais sombrio, especialmente com um confronto entre Richard e sua esposa Oracene, também conhecida como “Brandy” (Aunjanue Ellis), que está farta de seu comportamento controlador, monopolizando todo o crédito sucesso das garotas. Ela mesma é uma atleta forte, ela lembra a ele, pois ela treinou as meninas também, e apoiou em grande parte a família como enfermeira enquanto Richard perseguia vários planos de negócios que nunca deram certo – sem mencionar seus filhos com outras mulheres aparecendo na porta.

Em suas vidas reais, a saga dos três casamentos e divórcios de Richard e muitos filhos incluem os cinco filhos que ele abandonou – junto com sua primeira esposa amargurada – para se estabelecer com a segunda esposa Oracene para criar suas três filhas mais as duas que tiveram juntos, Vênus e Serena.

Mas essa história de fundo é deixada de fora do filme, além das pistas contidas nesse confronto. Oracene Price se envolveu no projeto cedo, na fase de roteiro, com a filha Isha Price atuando como produtora executiva, e eles insistiram em várias mudanças antes de aprová-lo. Aqui está um exemplo de uma reescrita que eles exigiram, de acordo com Price, que estava lendo o roteiro em voz alta para sua mãe e começou a rir:

Em uma das versões originais do roteiro, quando papai foi espancado uma vez, minha mãe o encontrou no hospital e estava correndo ao lado da maca dizendo: “O que eles fizeram com meu marido?”… Eu li essa parte para ela e ela disse: “Ah, não!” A cena foi alterada para retratar Oracene, uma enfermeira treinada, remendando o marido na mesa da cozinha.

O filme encerra em um ponto inicial de inspiração, quando a jovem adolescente Vênus ascende à fama no tênis, com Serena logo atrás dela, onde o triunfo representa um esforço familiar unido. Há um documentário da família Williams no final, para que possamos ver quantos detalhes o filme acertou – a kombi surrada que Williams levou suas filhas, os primeiros vídeos promocionais grosseiros que ele gravou da dupla e etc.

É uma pena que esses esforços para dar ao filme um final feliz e descomplicado não fizeram o público aparecer. Porque não é um filme ruim, e sério, Will Smith está fabuloso nele. Se ele não for indicado para muitos prêmios, algo está realmente errado aqui.

Sobre o autor

Eileen Jones é crítica de cinema na Jacobin e autora de Filmsuck, EUA. Ela também hospeda um podcast chamado Filmsuck.

A Big Pharma está matando com o apartheid das vacinas

Com a disseminação da nova variante Omicron e baixos níveis de vacinação em grande parte do mundo, ainda não há um fim real à vista para o COVID. É uma má notícia para a saúde pública global - mas uma ótima notícia para as grandes empresas farmacêuticas.

Luke Savage


Army specialist Angel Laureano holds a vial of the Pfizer-BioNTech COVID-19 vaccine at Walter Reed National Military Medical Center in Bethesda, Maryland, on December 14, 2020. (Lisa Ferdinando / US Department of Defense via Wikimedia Commons)

Tradução / Com o surgimento de outra variante da COVID-19, não há um fim no horizonte para a pandemia global. É uma má notícia para todos que esperavam que 2022 pudesse trazer um retorno a algum tipo de normalidade, ou ver o fim dos tipos de restrições e proibições de viagens sendo agora reintroduzidas. Mas é, decididamente, uma boa notícia, por outro lado, para algumas grandes empresas farmacêuticas que já fizeram uma matança com as vacinas e devem colher grandes lucros à medida que variantes como o Omicron continuam a se proliferar.

A Moderna e a Pfizer adicionaram bilhões em suas capitalizações no mercado em questão de dias, desde que a notícia da Omicron apareceu pela primeira vez em meio a uma demanda antecipada por doses de reforço e, por extensão, enormes lucros. 2021 já foi um ano marcante para as várias empresas farmacêuticas que transformaram com sucesso suas marcas em sinônimo de distribuição de vacinas – os lucros da Pfizer saltaram cerca de 124% nos três primeiros trimestres do ano em comparação com 2020 e os da Johnson & Johnson, cerca de 24%.


No que diz respeito aos modelos de negócios lucrativos, a estratégia de pandemia da indústria farmacêutica é a melhor que pode existir. As vacinas do tipo mRNA produzidas por empresas como Pfizer e Moderna só foram desenvolvidas graças a bilhões investidos em pesquisas com financiamento público, e ambas as empresas pagaram bem abaixo da taxa de imposto nos EUA no primeiro semestre deste ano. Com o incentivo, a proteção e a cooperação de alguns dos Estados mais ricos e poderosos do mundo, ambos empresas também venderam muitas doses aos países ricos – cobrando com sucesso até 24 vezes os custos reais de produção, de acordo com uma análise feita por cientistas de mRNA em Imperial College London, resultando em doses 5 vezes mais caras do que o necessário.

Como essa resposta a uma pandemia global, o lançamento da vacina liderada pela indústria farmacêutica gerou uma crise humanitária completamente evitável que é muito corretamente chamada de apartheid da vacina por seus críticos. Romper com esse controle corporativo é um passo necessário para aumentar o fornecimento de vacinas e levar as doses necessárias com urgência para bilhões de pessoas que precisam delas mundo afora. Mas, como o ciclo global de notícias se preocupa com o surgimento de mais uma variante, também é um pré-requisito básico para acabar com a pandemia para todos, mesmo em países ricos com taxas relativamente altas de vacinação.

Até que as fórmulas de produção de vacinas sejam compartilhadas e as doses amplamente disponibilizadas a baixo custo, podemos esperar mais infecções e mortes desnecessárias – e uma indústria extremamente lucrativa operando a todo vapor.

Sobre o autor

Luke Savage é colunista da Jacobin

29 de novembro de 2021

O "Stalin" de Losurdo: o debate entre Jean-Jacques Marie e Domenico Losurdo

"Socialismo Gulag" escreve Jean-Jacques Marie. "Pensamento primitivo" responde Domenico Losurdo. Publicamos aqui uma resenha de Jean-Jacques Marie (colaborador de La Quinzaine littéraire e chefe do Centre d'études et de recherche sur les mouvements trotskistes et révolutionnaires internationaux) do livro de Domenico Losurdo Staline, histoire et critique d'une légende noire, juntamente com a resposta de Losurdo. Uma versão curta do texto de Jean-Jacques Marie foi publicada em La Quinzaine littéraire no. 1.034 de 15 de março de 2011. Domenico Losurdo enviou à revista trechos de sua resposta a este artigo, em tom bastante polêmico. Até o momento, a revista não trouxe isso ao conhecimento de seus leitores. Por isso, oferecemos aqui os intercâmbios entre Jean-Jacques Marie e Domenico Losurdo na íntegra.

Domenico Losurdo

Historical Materialism


Tradução / Jamais se poderá avaliar de modo satisfatório a sabedoria da frase atribuída a Georges Clemenceau: a guerra é uma coisa muito séria para que seja entregue aos generais! Na verdade, em seu ardente chauvinismo e anticomunismo, o primeiro-ministro francês mantinha uma consciência bastante lúcida em relação ao fato de os especialistas (neste caso, os especialistas da guerra) frequentemente serem capazes de ver as árvores, mas não a floresta, eles se deixam absorver pelos detalhes perdendo de vista o global; neste caso eles sabem tudo, menos o que é essencial. À afirmação de Clemenceau se é rapidamente levado a pensar quando se lê a crítica intransigente que Jean-Jacques Marie queria destinar a meu livro sobre Stalin. Pelo que parece, o autor é um dos maiores especialistas sobre "trotskismo-logia" e se põe a demonstrá-lo em qualquer circunstância.

1. Stalin liquidado pelo Relatório secreto, o Relatório secreto liquidado pelos historiadores

Ele começa imediatamente a contestar minha afirmação segundo a qual Kruschev “se propõe derrotar Stalin em todos os aspectos”. Ainda assim, é o grande intelectual trotskista Isaac Deutscher que destaca que o Relatório secreto menciona Stalin como um “enorme, tenebroso, extravagante, degenerado monstro humano”. No entano, esse retrato não é suficientemente monstruoso aos olhos de Marie! O meu livro assim continua: na arguição pronunciada por Kruschev, “por ser responsável por crimes horrendos, era um indivíduo desprezível seja no plano moral seja no plano intelectual.

Além de desumano, o ditador era também risível”. Basta pensar no pormenor sobre o qual se detém Kruschev: “é preciso ter presente que Stalin preparava os seus planos em cima de um mapamundi. Sim, companheiros, ele marcava a linha da frente de batalha sobre o mapamundi” (p. 27-29 da edição francesa). O quadro aqui traçado sobre Stalin é claramente caricatural: como fez para derrotar Hitler a URSS que era dirigida por um líder criminoso e imbecil ao mesmo tempo? E como chegou esse líder criminoso e imbecil ao mesmo tempo a reger pelo “mapamundi” uma batalha épica como aquela de Stalingrado, combatida de bairro a bairro, de rua a rua, de terreno a terreno, de porta a porta? Ao invés de responder a essas contestações, Marie se preocupa em demonstrar que – enquanto maior especialista de “trotskismo-logia” – conhece de memória também o Relatório Kruschev e se põe a citá-lo por toda parte, em aspectos que não têm nada a ver com o problema em discussão!

Como demonstração do fato de essa total aniquilação de Stalin (no plano intelectual além do moral) não subsistir à investigação histórica, chamo a atenção para dois pontos: historiadores eminentes (de nenhum dos quais se pode suspeitar ser filo-stalinista) falam de Stalin como o “maior líder militar do século XX”. E vão ainda além: atribuem-lhe um “talento político excepcional” e o consideram um político “super competente” que salva a nação russa da dizimação e escravização a que é destinada pelo Terceiro Reich, graças não apenas a sua astuta estratégia militar, mas também aos “magistrais” discursos de guerra, por vezes verdadeiros e apropriados “atos de bravura” que, em momentos trágicos e decisivos, chegam a estimular a resistência nacional. E ainda não é tudo: historiadores ardorosamente antistalinistas reconhecem a “perspicácia” com que ele trata a questão nacional no escrito de 1913 e o “efeito positivo” de sua “contribuição” para a linguística (p. 409).

Em segundo lugar, faço notar que já em 1966 Deutscher demonstrava sérias dúvidas sobre a credibilidade do Relatório secreto: “não o considero a ponto de aceitar sem reservas as assim ditas “revelações” de Kruschev, particularmente sua afirmação de na Segunda Guerra Mundial (e na vitória sobre o Terceiro Reich) Stalin apenas ter desempenhado um papel praticamente insignificante” (p. 407). Hoje, à luz de novo material à disposição, não são poucos os estudiosos que acusam Kruschev de ter recorrido à mentira. E, portanto: se Kruschev realiza a aniquilação total de Stalin a historiografia mais recente anula a credibilidade do assim dito Relatório secreto.

De que maneira Marie responde a tudo isso? Resume o ponto de vista não apenas o meu como também o dos autores citados por mim (inclusive o trotskista Deuscher) com o clichê: “Vade retro, Kruschev!”. Ou seja, o grande especialista de “trotskismo-logia” acredita poder exorcizar as dificuldades insuperáveis com que se depara pronunciando duas palavras em latim (eclesiástico)!

Vejamos um segundo exemplo. No início do segundo capítulo (“Os bolcheviques: do conflito ideológico à guerra civil”), eu analiso o conflito que se desenvolve por ocasião da paz de Brest-Litowsky. Bukharin denuncia o “declínio camponês em nosso partido e no poder soviético”; outros bolcheviques se desligam do partido; outros até declaram já desprovido de valor o próprio poder soviético. Em sentido oposto, Lênin expressa sua indignação por essas “palavras esquivas e monstruosas”. Já em seus primeiros meses de vida, a Rússia soviética vê se desenvolver um conflito ideológico de extrema rispidez e a ponto de se transformar em guerra civil.

E tão mais facilmente se transformará em guerra civil – observo em meu livro – já que, com a morte de Lênin, “vem a desaparecer uma indiscutível autoridade”. Antes – acrescento –, segundo um ilustre historiador burguês (Conquest), já naquela ocasião Bukharin havia acalentado a ideia de um golpe de Estado (p. 71). Como Marie responde a tudo isso? Novamente, ele exibe toda a sua erudição de grande, e talvez máximo, especialista de “trotskismo-logia”, mas não faz nenhum esforço para responder às questões que se impõem: se o conflito mortal que sucessivamente aflige o grupo dirigente bolchevista é culpa apenas de Stalin (o pensamento primitivo não pode passar sem o bode expiatório), como explicar a dura troca de acusações que Lênin condena como “monstruosas”, as frases pronunciadas por aqueles que estimulam a “degeneração” do partido comunista e do poder soviético? E como explicar o fato de Robert Conquest – que dedicou toda a sua existência a demonstrar a sordidez de Stalin e dos processos de Moscou – falar de um projeto de golpe de Estado contra Lênin, cultivado ou acalentado por Bukharin?

Não sabendo o que responder, Marie me acusa de manipulador e escreve até que – no que se refere à ideia de golpe de Estado acalentada por Bukharin – eu cito apenas a mim mesmo. Não tenho tempo a perder com insultos. Limito-me a fazer notar que à página 71, nota 137, cito um historiador (Conquest) que não é inferior a Marie nem em erudição nem no zelo antistalinista.

2. De que maneira os trotskistas para Marie insultam Trotsky

Com a morte de Lênin e a consolidação do poder de Stalin, o conflito ideológico se torna cada vez mais uma guerra civil: a dialética de Saturno que, de um modo ou de outro, se manifesta em todas as grandes revoluções, desgraçadamente não poupa nem mesmo os bolcheviques. Desenvolvo essa tese na segunda parte do segundo capítulo, citando uma série de personalidades entre as muitas diferentes (que revelam a existência de um aparato clandestino e militar criado pela oposição) e citando, sobretudo, Trotsky. Sim, Trotsky em pessoa declara que a luta contra “a oligarquia burocrática” stalinista “não comporta solução pacífica”. É sempre ele que declara que “o país se dirige notoriamente em direção à revolução”, em direção a uma guerra civil, e que, “no âmbito de uma guerra civil, o assassinato de alguns opressores não diz respeito mais ao terrorismo individual”, mas é parte integrante da “luta mortal” entre os alinhamentos opostos (p. 104). Como se vê, pelo menos neste caso, o próprio Trotsky coloca em dificuldade a mitologia do bode expiatório.

Compreende-se o embaraço totalmente particular de Marie. E então? Conhecemos já a ostentação de erudição como cortina de fumaça. Vamos à substância. Entre as inúmeras e muito diferentes personalidades por mim citadas, Marie escolhe duas: a uma (Malaparte) considera incompetente, à outra (Feuchtwanger) tacha como agente mercenário a serviço do crime e imbecil que se encontra no Kremlim. E assim o jogo é feito: a guerra civil desaparece e novamente o primitivismo do bode expiatório pode festejar seus êxitos. Mas recusar-se a levar em consideração os argumentos utilizados por um grande intelectual, como Feuchtwanger, para limitar-se a tachá-lo como agente mercenário a serviço do inimigo: geralmente não é esse o modo de proceder considerado “stalinista”? E, sobretudo: o que devemos pensar do testemunho de Trotsky que fala de “guerra civil” e de “luta mortal”? Não é um paradoxo o grande especialista e sumo sacerdote da “trotskismo-logia” constranger ao silêncio a divindade por ele venerada? Sim, mas não é o único paradoxo e nem mesmo o mais ressonante.

Vejamos: Trotsky não apenas compara Stalin a Nicolau II (p. 104) como vai além: no Kremlim se encontra um “provocador a serviço de Hitler”, ou “a marionete de Hitler” (p. 126 e 401). E Trotsky, que se gabava de ter muitos partidários na União Soviética e que, antes, segundo Broué (biógrafo e hagiógrafo de Trotsky), tinha conseguido infiltrar seus “fiéis” até no interior da GPU, não havia feito nada para destruir o poder contrarrevolucionário do novo czar ou do escravo do Terceiro Reich? Marie termina retratando Trotsky como um simples tagarela que se limita a uma basófia verbal de taberna, ou como um revolucionário desprovido de coerência e até medroso e vil. O paradoxo mais gritante é que sou de fato constrangido a defender Trotsky contra alguns de seus apologetas!

Digo “alguns de seus apologetas” pelo fato de nem todos serem tão despreparados como Marie. A propósito da impiedosa “guerra civil” que se desenvolve entre os bolcheviques o meu livro observa: “Estamos diante de uma categoria que constitui o fio condutor da pesquisa de um historiador russo (Rogovin), de firme e declarada fé trotskista, autor de uma obra em vários volumes, dedicada a registrar a reconstrução minuciosa dessa guerra civil. Nela se fala, a propósito da Rússia soviética, de “uma guerra civil preventiva” desencadeada por Stalin contra aqueles que se organizam para derrotá-lo. Também aos de fora da URSS, essa guerra civil se manifesta e em partes arrebenta na frente de combate contra Franco; e, com efeito, em referência à Espanha de 1936-39, se fala não de uma, mas de “duas guerras civis”. Com grande honestidade intelectual e tirando proveito do novo e rico material documentário disponível, graças à abertura dos arquivos russos, o autor aqui citado chega à conclusão: “Os processos de Moscou não foram um crime imotivado e a sangue frio, mas a reação de Stalin ao longo de uma arguta luta política”.

Polemizando com Alexander Soljenítsin, que menciona as vítimas das purgações como um bando de “coelhos”, o historiador trotskista russo cita um folhetinho que nos anos 1930 chamava a varrer do Kremlim “o ditador fascista e sua camarilha”. Depois, comenta: “Mesmo do ponto de vista da legislação russa hoje em vigor esse folhetinho deve ser analisado como um apelo a uma violenta derrocada do poder (mais exatamente do estrato superior dominante)”. Em conclusão, bem longe de ser expressão de “um ataque de violência irracional e insensata”, o sanguinário terror desencadeado por Stalin é, na realidade, o único modo com que ele consegue dobrar a “resistência das verdadeiras forças comunistas” (p. 117-118).

Assim se expressa o historiador trotskista russo. Mas Marie – para não renunciar ao seu primitivismo e à procura de um bode expiatório (Stalin) sobre o qual concentrar todos os pecados do Terror e da União Soviética em seu conjunto – prefere seguir os passos de Soljenítsin e apresentar Trotsky como um “coelho”.

3. Traição ou contradição objetiva? A lição de Hegel

No âmbito do quadro por mim traçado, permanecem firmes os méritos de Stalin: ele compreendeu uma série de pontos essenciais: a nova fase histórica que se abria com a falência da revolução no Ocidente; o período de colonização escravista que ameaçava a Rússia soviética; a urgência de recuperação do atraso em relação ao Ocidente; a necessidade de conquista de ciência e tecnologia mais avançadas e a consciência de que a luta por tal conquista pode ser, em determinadas circunstâncias, um aspecto essencial, e mesmo decisivo, para a luta de classe; a necessidade de coordenar patriotismo e internacionalismo e a compreensão do fato de uma vitoriosa luta de resistência e de libertação nacional (como foi a Grande guerra patriótica) constituir-se na mesma época uma contribuição de primeiríssimo plano à causa internacionalista da luta contra o imperialismo e o capitalismo.

Stalingrado lançou os requisitos para a crise do sistema colonial em escala planetária. O mundo de hoje caracteriza-se por crescentes dificuldades do mesmo neocolonialismo; pela prosperação de países como China e Índia e, mais no geral, da civilização na mesma época subjugada ou humilhada pelo Ocidente; pela crise da doutrina Monroe e pelo esforço de certos países latino-americanos de unir luta contra o imperialismo com a construção de uma sociedade pós-capitalista. Pois bem, este mundo não é presumível sem Stalingrado.

E, no entanto, uma vez dito isso, é possível compreender a tragédia de Trotsky. Depois de ter reconhecido o grande papel por ele desempenhado no curso da Revolução de Outubro, o meu livro assim descreve o conflito que vem a se formar com a morte de Lênin: “Na medida em que um poder carismático era ainda possível isso tendia a tomar corpo na figura de Trotsky, o genial organizador do Exército vermelho e brilhante orador e prosador que pretendia encarnar as esperanças de triunfo da revolução mundial e que para isso fazia avançar a legitimidade de sua aspiração a governar o partido e o Estado.

Stalin, porém, era a encarnação do poder legal-tradicional que procurava penosamente tomar forma: ao contrário de Trotsky – ligado tardiamente ao bolchevismo – ele representava a continuidade histórica do partido protagonista da revolução e, em seguida, detentor de nova legalidade; para além disso afirmando a realizabilidade do socialismo mesmo em um único (grande) país, Stalin infundia uma nova dignidade e identidade à nação russa que, assim, superava a crise assustadora – fictícia mais do que concreta – irrompida a partir da derrota e do caos da Primeira Guerra Mundial, e reencontrava a sua continuidade histórica.

Mas exatamente por isso os adversários gritavam “traição”, enquanto traidores aos olhos de Stalin e de seus partidários surgiam todos com seu aventurismo facilitando a intervenção de potências estrangeiras, colocavam em perigo, em última análise, a sobrevivência da nação russa – que era na mesma época o destacamento de vanguarda da causa revolucionária. O choque entre Stalin e Trotsky é um conflito não apenas entre dois programas políticos, mas também entre dois princípios de legitimação” (p. 150).

Em certo ponto, diante da radical novidade do quadro nacional e internacional, Trotsky se convence (sem razão) de que em Moscou havia uma contrarrevolução e age em conformidade a isso. No quadro traçado por Marie, ao contrário, Trotsky e seus partidários – apesar de terem conseguido se infiltrar na GPU e em outros setores vitais do aparato estatal – sem lutar deixaram-se vencer e massacrar pela contrarrevolução criminosa e idiota que foi instalada no Kremlim. Não há dúvida, é essa a leitura – para ridicularizar particularmente Trotsky, apequenando e para tornar medíocres e irreconhecíveis todos os protagonistas da grande tragédia histórica que se desenvolveu na esteira da Revolução Russa (como em todas as grandes revoluções).

Com o objetivo de compreender de modo adequado tal tragédia, é preciso fazer apelo a uma categoria de contradição objetiva estimada por Hegel (e por Marx). Desgraçadamente, porém – adverte o meu livro –, Stalin como Trotsky compartilham a mesma pobreza filosófica: não conseguem avançar para além dessa troca recíproca de acusação de traição: “De uma parte e de outra, mais do que se empenhar na análise laboriosa das contradições objetivas, e das opostas opções e dos conflitos políticos que se desenvolvem sobre tal base, prefere-se recorrer com ligeireza à categoria de traição e, em sua configuração extrema, o traidor se torna agente consciente e corrompido pelo inimigo. Trotsky não se cansa de denunciar “a conspiração da burocracia stalinista contra a classe operária”, e a conspiração é tão mais abjeta pelo fato de a “burocracia stalinista” não ser nada além do que “um aparato de transmissão do imperialismo”. É apenas o caso de dizer que Trotsky vem generosamente recebendo o troco na mesma moeda. Ele se lamenta de ter sido tachado como “agente de uma potência estrangeira”, mas, por sua vez, tacha Stalin como “agente provocador a serviço de Hitler” (p. 126).

Menos que nunca, Marie – que efetivamente ironiza minha frequente citação de Hegel – dispôs-se a problematizar a categoria de “traição”. No debate ora em curso quem é, pois, o “stalinista”?

4. O comparativismo como instrumento de luta contra as fraudes da ideologia dominante

Até aqui vimos no grande especialista de “trotskismo-logia” um esforço de erudição com fim em si mesma ou utilizada como cortina de fumaça. E, no entanto, em Marie é preciso reconhecer um raciocínio, ou melhor, uma tentativa de raciocínio. No momento em que faço uma comparação entre os crimes de Stalin – ou a ele atribuídos – e aqueles cometidos pelo Ocidente liberal e seus aliados, Marie contesta: “Então, na pátria triunfante do socialismo (porque para Losurdo o socialismo surgiu na URSS) e que concretizou a unidade dos povos é normal que sejam utilizados os mesmos procedimentos dos chefes de países capitalistas ou de um obscurantista feudal e até do czar Nicolau II”. Examinemos essa refutação. Até deixamos de lado as imprecisões, os exageros ou os verdadeiros e próprios mal-entendidos. Em nenhuma parte falo da URSS ou de outro país como “a pátria triunfante do socialismo”; em meus livros escrevi, pelo contrário, que o socialismo é um “processo de aprendizado” difícil e de maneira nenhuma concluído.

Mas concentremo-nos no essencial. Da Revolução de Outubro até nossos dias constante é a tendência de a ideologia dominante demonizar tudo aquilo que tem alguma relação com a história do comunismo. Como fiz notar em meu livro, por algum tempo Trotsky foi tachado de ser (a exemplo de Goebbels) aquele que “talvez em sua consciência tenha o número de crimes mais alto que nunca antes pesou sobre um homem” (p. 343); sucessivamente essa obscura primazia foi atribuída a Stalin e hoje a Mao Tsetung; estão por ser igualmente criminalizados Tito, Ho Chi Minh, Castro etc. Devemos suportar essa “demonização” que – como sustento no último capítulo de meu livro – é apenas a outra face da “agiografia” do capitalismo e do imperialismo?

Vejamos de que maneira a essa manipulação maniqueísta reage Marx. Quando a burguesia do seu tempo – aceitando motivo para o assassinato dos reféns e para o incêndio espalhado pelos Communards – denuncia a Comuna de Paris como sinônimo de infame barbárie Marx responde que as práticas de tomada (e de eventuais assassinatos) de reféns e de ateamento de incêndios foram inventadas pelas classes dominantes e que, de qualquer modo, pelo que diz respeito a incêndios, seria preciso distinguir entre “vandalismo por uma defesa desesperada” (aquele dos communards) e “vandalismo por prazer”.

Marie me faz muita honra quando polemiza comigo sobre esse ponto: ele faria bem em fazer o mesmo diretamente com Marx. Ou, se pudesse, com Trotsky, que age também do mesmo modo com que fui censurado: no libreto A sua moral e a nossa, Trotsky se refere a Marx, já citado por mim, e – para rebater a acusação segundo a qual os bolcheviques, e apenas eles, se inspiram no princípio segundo o qual “o fim justifica os meios” (violentos e brutais) – chama em causa o comportamento não apenas da burguesia do século XIX e XX, como também (...) o de Lutero, protagonista da guerra de extermínio contra Müntzer e os camponeses.

Mas, agarrado como está ao culto à erudição, Marie não reflete nem mesmo sobre textos dos autores por ele mais estimados. E, na verdade, me ironiza dando à sua intervenção o título “O socialismo de Gulag!”. Naturalmente, com essa mesma ironia por aí poderiam ser feitas chacotas da Rússia soviética de Lênin (e de Trotsky): “O socialismo (ou a revolução socialista) da Ceka”, ou “o socialismo (ou a revolução socialista) da tomada de reféns” (tenha-se presente que, em A sua moral e a nossa, Trotsky é obrigado a defender-se até da acusação de ter recorrido a essa prática). Na realidade, com a ironia cara a Marie pode-se liquidar qualquer revolução. Temos então: “A Comuna dos reféns fuzilados”, “a liberdade e a igualdade da guilhotina” etc. De outra parte, não se trata de exemplos imaginários: foi assim que a tradição de pensamento reacionária liquidou a Revolução Francesa (e, sobretudo, o jacobinismo), a Comuna de Paris, a Revolução Russa etc.

Marx resumiu a metodologia do materialismo histórico na afirmação segundo a qual “os homens fazem sua história sozinhos, mas não em circunstâncias escolhidas por eles”. Ao invés de pegar os gestos dessas lições para investigar os erros, os dilemas morais, os crimes dos protagonistas de cada grande crise histórica, Marie indica essa simples alternativa: ou os movimentos revolucionários são soberanamente superiores – e, antes, milagrosamente transcendentes em relação ao mundo histórico, e às contradições e aos conflitos do mundo histórico – no âmbito em que eles se desenvolvem, ou aqueles movimentos revolucionários são uma completa ruína e um engano completo. E assim a história dos revolucionários em seu conjunto se configura como a história de uma única, ininterrupta e miserável ruína e engano. E mais uma vez Marie se coloca na vala da tradição do pensamento reacionário.

5. O socialismo como processo de aprendizado trabalhoso e incompleto

Eu disse que a construção do socialismo é um processo de aprendizado trabalhoso e incompleto. Mas exatamente por isso é preciso empenhar-se em dar respostas: o socialismo e o comunismo comportam a total eliminação de identidades e até de idiomas nacionais, ou tem razão Castro quando diz que os comunistas tiveram culpa por subestimar o peso que a questão nacional continua a exercer mesmo depois da revolução anti-imperialista e anticapitalista?

Na sociedade do futuro previsível não haverá mais lugar para nenhum tipo de mercado e nem para o dinheiro, ou devemos tirar proveito da lição de Gramsci, segundo a qual é preciso ter presente o caráter “determinado” do “mercado”? Em relação ao comunismo Marx fala algumas vezes de “extinção do Estado”, e outras de “extinção do Estado no atual sentido político”: são duas fórmulas entre si sensivelmente diferentes; em qual das duas pode-se inspirar? São esses problemas a provocar entre os bolcheviques, primeiro um ríspido conflito ideológico e depois a guerra civil; e a esses problemas é preciso responder se se quiser restituir credibilidade ao projeto revolucionário comunista, evitando as tragédias do passado. Com esse espírito é que escrevi primeiro Fuga da história? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa hoje e, depois, Stalin.

História e crítica de uma lenda negra. Sem confrontar tais problemas não se poderá nem compreender o passado nem projetar o futuro. Sem confrontar tais problemas, aprender de memória até os mínimos detalhes da biografia (ou da agiografia) deste ou daquele protagonista de Outubro de 1917 servirá apenas para confirmar a profundidade do lema caro a Clemenceau: como a guerra é uma coisa muito séria para ser entregue a generais e especialistas da guerra, também a história da própria tragédia de Trotsky (para não falar da grande e trágica história do movimento comunista em seu conjunto) é uma coisa muito séria para ser entregue a especialistas e generais da trotskismo-logia.

Sobre "A Peste"

Lições da "Praga" de Camus

Tony Judt

The New York Review

November 29, 2001 issue

A editora Penguin acaba de publicar uma nova tradução de La peste, de Albert Camus, feita por Robin Buss, e o texto que se segue é o da minha introdução, escrita há alguns meses. Muitos leitores já estarão familiarizados com essa fábula sobre a chegada da peste à cidade de Oran, no Norte da África, em 194-, e as diferentes maneiras pelas quais seus habitantes reagem ao impacto devastador que ela exerce sobre sua vida. Hoje, A peste assume um novo significado e um dramático sentido de urgência.

A insistência de Camus em situar a responsabilidade moral individual no centro mesmo de todas as escolhas públicas é um desafio direto aos cômodos hábitos da nossa era. Sua definição de heroísmo — pessoas comuns fazendo coisas extraordinárias movidas pela simples noção de decência — soa mais verdadeira do que admitíamos no passado. Sua descrição de julgamentos instantâneos ex cathedra — "Irmãos, vocês fizeram por merecer" — parecerá sinistramente familiar a todos nós.

A firmeza com que Camus distingue a diferença entre o bem e o mal, a despeito da compaixão que demonstra pelos que duvidam e aceitam fazer concessões, pelos motivos e erros de uma humanidade imperfeita, lança uma luz nada lisonjeira sobre os que, na nossa época, insistem emtudo relativizar e em trocar de opinião segundo as conveniências do momento. E seu controvertido recurso a uma epidemia biológica para ilustrar os dilemas do contágio moral mostrou-se bemsucedido em aspectos que seu autor não poderia ter imaginado. Aqui em Nova York, em novembro de 2001, estamos mais bem situados do que desejaríamos para sentir o golpe vibrado pela premonitória última frase do romance.

A peste é o romance mais bem-sucedido de Albert Camus. Publicado em 1947, quando o autor tinha 33 anos, obteve um triunfo instantâneo. Um ano depois já tinha sido traduzido para nove idiomas, e muitos outros viriam a seguir. Nunca chegou a estar fora de circulação e foi alçado à condição de clássico da literatura mundial mesmo antes da morte prematura do autor, num acidente de carro, em janeiro de 1960. Mais ambicioso do que O estrangeiro, o romance de estreia que fez sua reputação, e mais acessível do que seus escritos posteriores, A peste é o livro pelo qual Camus tornou-se conhecido de milhões de leitores. Ele poderia ter achado isso estranho — O homem revoltado, publicado quatro anos depois, era o que, pessoalmente, ele preferia entre seus livros.

Como muitas das melhores obras de Camus, A peste exigiu de seu autor muito tempo de trabalho. Ele começou a juntar material para o livro em janeiro de 1941, ao chegar a Oran, a cidade do litoral da Argélia onde se passa sua história. Continuou a trabalhar no manuscrito em Le Chambon-sur-Lignon, um vilarejo nas montanhas na região central da França, aonde foi para se recuperar de uma das frequentes crises provocadas pela tuberculose no verão de 1942. Camus, contudo, logo se viu atraído para a participação na Resistência, de modo que só pôde voltar a dar atenção ao livro depois da libertação da França. Àquela altura, no entanto, o obscuro romancista argelino já havia se transformado numa figura nacional: um herói da resistência intelectual, editor de Combat (um diário nascido na clandestinidade e que exerceu enorme influência nos anos do pós-guerra) e um ícone de uma nova geração de homens e mulheres franceses, sedentos por ideias e por ídolos.

Camus parecia se encaixar à perfeição no papel. Atraente e encantador, um partidário carismático de radicais mudanças políticas e sociais, desfrutava de uma autoridade sem igual sobre milhões de seus compatriotas. Nas palavras de Raymond Aron, os leitores dos editoriais de Camus tinham “desenvolvido o hábito de formar seu pensamento diário a partir dele”. Havia outros intelectuais na Paris do pós-guerra destinados a desempenhar papéis importantes nos anos que estavam por vir: o próprio Aron, Simone de Beauvoir e, é claro, Jean-Paul Sartre. Mas Camus era diferente. Nascido na Argélia em 1913, era mais jovem que seus colegas da Rive Gauche, a maioria dos quais já estava na casa dos quarenta anos ao fim da guerra. Ele era mais "exótico", tendo chegado da distante Argel e não saído da estufa formada pelas escolas e faculdades parisienses; e havia nele algo de especial. Um observador da época captou bem isso: "O que me chamou a atenção foi o seu rosto, tão humano e sensível. Há nesse homem uma integridade tão patente que impõe um respeito quase imediato; simplesmente ele não é como os outros homens".1

A reputação pública de Camus garantiu o sucesso do seu livro. Mas o momento em que foi publicado também foi, em parte, responsável por isso. Quando o livro foi lançado, os franceses começavam a esquecer os constrangimentos e as soluções de compromisso dos quatro anos de ocupação alemã. O marechal Philippe Pétain, o chefe de Estado que iniciou e encarnou a política de colaboração com os nazistas vitoriosos, tinha sido julgado e preso. Outros políticos colaboracionistas tinham sido executados ou banidos da vida pública. O mito de uma gloriosa resistência nacional era cuidadosamente cultivado por políticos de todos os matizes ideológicos, de Charles de Gaulle aos comunistas; incômodas memórias pessoais tinham recebido uma tranquilizadora camada de verniz estampando a versão oficial, segundo a qual a França havia sido libertada dos seus opressores pelos esforços conjuntos da resistência doméstica e das forças da França Livre, lideradas desde Londres por De Gaulle.

Nesse contexto, a alegoria de Albert Camus a propósito da ocupação da França na época da guerra reabria um doloroso capítulo do passado recente francês, mas por um viés indireto e aparentemente apolítico. Por aquele ângulo, evitava provocar suscetibilidades partidárias, comexceção das extremas esquerda e direita, abordando temas delicados sem que as pessoas se recusassem de antemão a ouvi-lo. Se o romance tivesse aparecido em 1945, a atmosfera raivosa e partidarizada animada por sentimentos de vingança teria sufocado suas reflexões ponderadas a respeito da justiça e da responsabilidade. Se tivesse sido adiado até os anos 1950, seu tema teria provavelmente sido posto de lado, em face dos novos alinhamentos surgidos em função da Guerra Fria.


Se A peste deve ser lido, como certamente o foi, como uma simples alegoria a respeito do trauma vivido pela França durante a guerra, esse é um tema ao qual voltarei mais adiante. O que não deixa dúvidas é o fato de que se tratava de um livro intensamente pessoal. Camus pôs algo de si mesmo — suas emoções, suas memórias e sua sensibilidade em relação a um lugar — em todas as obras que publicou; esse é um dos motivos pelos quais se distinguia de outros intelectuais de sua geração e que explica a atração duradoura e universal que exerce. Porém, mesmo pelos padrões de Camus, A peste é notavelmente introspectivo e revelador. Oran, o cenário do romance, era uma cidade que ele conhecia bem e da qual cordialmente não gostava, ao contrário da cidade natal por ele adorada, Argel. Considerava Oran tediosa e materialista, e suas memórias sobre a cidade foram marcadas mais ainda pelo fato de sua tuberculose ter se agravado durante sua estada ali. Emconsequência disso, foi proibido de nadar — um de seus maiores prazeres — e se viu forçado a permanecer sentado semanas a fio em meio ao calor sufocante, opressivo, que proporciona o pano de fundo da história.

Essa privação involuntária de tudo o que ele mais amava na sua terra natal argelina — a areia, o mar, o exercício físico e a sensação mediterrânica de bem-estar e liberdade que Camus sempre contrapôs à paisagem cinzenta e soturna do Norte — foi agravada quando ele foi enviado ao interior da França para convalescer. A região do Maciço Central é tranquila e revigorante, e o vilarejo afastado ao qual Camus chegou em agosto de 1942 poderia ser tomado como o local ideal para um escritor. Porém, doze semanas depois, em novembro de 1942, os aliados desembarcaram no Norte da África. Os alemães reagiram ocupando todo o Sul da França (até então governado desde a cidade de Vichy, sede de uma estação de águas, pelo governo fantoche de Pétain) e a Argélia se viu isolada do continente. Camus ficou, a partir desse momento, separado não apenas da sua terra natal, mas também da sua mãe e da sua esposa, as quais só veria novamente depois da derrota da Alemanha.2

Doença, exílio e separação estavam, portanto, presentes tanto na vida de Camus como em seu romance, e suas reflexões a esse respeito compõem um contraponto vital à alegoria. Devido à sua experiência direta e intensa, as descrições de Camus da peste e da dor gerada pela solidão são excepcionalmente vívidas e sentidas. A profundidade do seu próprio sentimento é sugerida pela observação do narrador, logo no começo da história, de que "a primeira coisa que a peste trouxe para os nossos concidadãos foi o exílio", e que "estar separado de alguém a quem amamos [...] [era] a maior agonia desse longo período de exílio".

Isso por sua vez proporciona, tanto para Camus como para o leitor, um vínculo com seu romance anterior: pois doença, separação e exílio são condições que nos chegam de forma inesperada e indesejada. Servem de exemplo do que Camus compreendia como o "absurdo" da condição humana e a natureza aparentemente aleatória dos esforços humanos. Não é por acaso que um dos seus principais personagens, Grand, supostamente sem motivo algum, relata uma conversa ouvida numa tabacaria a respeito de "um jovem empregado de uma empresa que tinha matado um árabe numa praia". Isso, é claro, é uma alusão ao ato seminal de violência arbitrária em O estrangeiro, e na mente de Camus está associado às devastações provocadas pela pestilência em A peste, e não apenas pelo cenário argelino comum a ambas. 


Porém Camus fez mais do que simplesmente inserir na sua história pequenos episódios e emoções extraídos de seus primeiros escritos e da sua situação pessoal. Ele colocou a si mesmo, de forma bastante direta, nos personagens de seus romances, usando três deles em particular para representar e iluminar seu característico ponto de vista moral. Rambert, o jovem jornalista que se vê separado da mulher em Paris, fica a princípio desesperado para fugir da cidade isolada emquarentena. Sua obsessão com seu sofrimento pessoal o deixa indiferente à tragédia mais ampla, da qual se sente bastante distante — ele não é, afinal, um cidadão de Oran, tendo sido surpreendido ali apenas por obra do acaso. É justo na véspera da sua partida que compreende como, a despeito de si mesmo, ele se tornou parte da comunidade e compartilha seu destino; ignorando o risco e apesar de suas necessidades egoístas anteriores, ele permanece em Oran e se une às “equipes sanitárias”. Partindo de uma resistência inteiramente privada contra o infortúnio, ele ascende à solidariedade de uma resistência coletiva contra o flagelo comum.

A identificação de Camus com o dr. Rieux reflete seu estado de espírito instável desses anos. Rieux é um homem que, diante do sofrimento e de uma crise comum, faz o que deve fazer e se torna um líder e um exemplo, não levado por uma coragem heroica, mas antes por uma espécie de otimismo necessário. No fim dos anos 1940, Camus estava exausto e deprimido, sentindo o peso do fardo das expectativas depositadas nele como intelectual público: conforme confiou aos seus diários, "todos querem que o homem ainda empenhado em sua busca já tenha alcançado logo suas conclusões". Do filósofo “existencialista” (um rótulo que sempre desagradou a Camus) as pessoas esperavam uma visão de mundo pronta e acabada; mas Camus não tinha nenhuma a oferecer.3 Como expressou por meio de Rieux, ele estava "farto do mundo em que vivia"; tudo o que podia oferecer com alguma certeza era "algum sentimento por seus semelhantes e [ele estava] determinado a rejeitar qualquer injustiça e qualquer concessão".

O dr. Rieux faz a coisa certa apenas porque enxerga claramente o que precisa ser feito. Numterceiro personagem, Tarrou, Camus incorporou uma exposição mais elaborada de seu pensamento moral. Como Camus, Tarrou está na casa dos trinta anos; deixou sua casa, segundo ele mesmo, movido pelo desgosto que sentia pela postura do pai de defender a pena de morte — tema comque Camus se preocupou intensamente e sobre o qual escreveu bastante nos anos do pós-guerra.4

De modo doloroso, Tarrou refletiu sobre sua vida e seus compromissos passados, e sua confissão a Rieux ocupa o cerne mesmo da mensagem moral do romance: "Pensei que estava lutando contra a peste. Eu me dei conta de que, indiretamente, tinha apoiado a morte de milhares de homens, de que tinha causado suas mortes ao aprovar ações e princípios que inevitavelmente levaram a elas". Essa passagem pode ser lida como expressando as reflexões arrependidas do próprio Camus sobre sua passagem pelo Partido Comunista na Argélia durante os anos 1930. Mas as conclusões de Tarrou vão além da admissão de um erro político: "Estamos todos na peste. [...] Tudo o que sei é que é preciso dar o melhor de si para não vir a ser também uma vítima da peste. [...] E é por isso que decidi rejeitar tudo que, direta ou indiretamente, faça as pessoas morrer ou justifique o fato de outras pessoas fazerem com que morram". Essa é a voz autêntica de Albert Camus e esboça a posição que assumiria pelo resto da vida em relação ao dogma ideológico, ao assassinato político ou judiciário e a todas as formas de irresponsabilidade ética — atitude que mais tarde lhe cobraria um alto custo em termos de amigos e até mesmo em influência no mundo polarizado da inteligência parisiense.


A defesa feita por Tarrou/Camus das suas recusas e dos seus compromissos nos leva de volta à questão do status de A peste. Trata-se de um romance bem-sucedido em vários níveis, como deve ser qualquer grande romance, porém é, acima de tudo, uma inegável história de fundo moral. Camus tinha Moby Dick em alta conta e, como Melville, não hesitava em dotar sua história de símbolos e metáforas. Porém Melville podia se dar ao luxo de ir e vir livremente, para trás e para adiante, entre a narrativa sobre a caça a uma baleia e uma fábula a respeito da obsessão humana; entre a Oran de Camus e o dilema da escolha humana havia a realidade da vida na França de Vichy entre 1940 e 1944. Leitores de A peste, tanto hoje como em 1947, não estariam errados, portanto, em abordá-lo como uma alegoria sobre os anos da ocupação.

Isso se deve, em parte, ao fato de Camus deixar claro que se trata de uma história sobre "nós". A maior parte da história é contada na terceira pessoa. Mas, espalhado estrategicamente ao longo do texto, há o ocasional "nós", e o "nós" em questão — pelo menos para o público mais imediato de Camus — são os franceses em 1947. A “calamidade” que se abateu sobre os cidadãos da Oran ficcional é aquela que vitimou a França em 1940, com a derrota militar, o abandono da República e o estabelecimento do regime de Vichy sob a tutela alemã. O relato de Camus a propósito da chegada dos ratos ecoava uma visão bastante disseminada sobre a divisão em que se encontrava a própria França em 1940: "Era como se o próprio solo sobre o qual nossas casas estavamconstruídas estivesse sendo expurgado de um excesso de bile, deixando vir à tona furúnculos e abcessos que até então o tinham devorado por dentro". Na França, muitos, a princípio, tinhamcompartilhado da reação inicial do padre Paneloux: "Irmãos, vocês fizeram por merecer". Durante um bom tempo as pessoas não se dão conta do que aconteceu e a vida parece seguir seu curso — "quanto às aparências, nada havia mudado". "A cidade era habitada por pessoas que caminhavam como que adormecidas." Depois, quando a peste já tinha passado, a amnésia se instala — "elas negavam que nós [sic] tínhamos sido aquele povo entorpecido". Tudo isso e muito mais — o mercado negro, o fracasso dos administradores em dar às coisas seu verdadeiro nome e em assumir a liderança moral da nação — descreviam com tamanha precisão o passado recente francês que era impossível não reconhecer as verdadeiras intenções de Camus.

Entretanto, a maior parte dos alvos de Camus não se deixa rotular facilmente, e a alegoria foge ao espírito da retórica moral polarizada, muito comum no período do pós-guerra. Cottard, que se resigna à peste, julgando-a forte demais para ser combatida, e que considera as "equipes sanitárias" uma perda de tempo, é claramente alguém que vem a ser um "colaboracionista" emrelação ao destino da cidade. Ele prospera em meio à nova situação e só tem a perder com a volta aos "velhos tempos". Mas ele é retratado com simpatia, e Tarrou e os outros continuam a manter contato com ele e até a discutir com ele suas ações. Tudo o que pedem, nas palavras de Tarrou, é que ele "tente não espalhar deliberadamente a peste".

No final, Cottard é violentamente espancado pelos cidadãos recém-liberados — um lembrete das punições violentas dirigidas aos supostos colaboradores por ocasião da Libertação, praticadas muitas vezes por homens e mulheres cujo entusiasmo pela vingança violenta os ajudou — e a outros — a esquecer as próprias concessões feitas na época da guerra. A sensibilidade demonstrada por Camus em relação à raiva e ao ressentimento nascidos de um sofrimento genuíno e de uma memória culpada introduz uma nuance de empatia, algo raro entre seus contemporâneos, fazendo com que a história se eleve bem acima das convenções da sua época.

A mesma sensibilidade (e integridade — Camus estava escrevendo com base na sua experiência pessoal) dá forma à representação dos próprios integrantes da resistência. Não por acaso, Grand, o tímido e reprimido funcionário, figura nada inspiradora, é apresentado como a encarnação da verdadeira e pouco heroica resistência. Para Camus, assim como para Rieux, a resistência nada tinha a ver com heroísmo — ou, se tinha, era, então, o heroísmo da bondade. “Pode parecer uma ideia ridícula, mas a única maneira de lutar contra a peste é com a decência.” Unir-se às “equipes sanitárias” não era em si mesmo um ato de grande significação — “não fazer aquilo, ao contrário, teria parecido incrível na época”. Esse ponto é enfatizado seguidamente no romance, como se Camus se preocupasse com a possibilidade de ser mal compreendido: “Quando vemos o sofrimento que isso acarreta”, observa Rieux a certa altura, “é preciso ser louco, cego ou covarde para se resignar à peste”.

A exemplo do narrador, Camus se recusa a “fazer um elogio excessivamente eloquente à determinação e ao heroísmo aos quais atribui um grau apenas moderado de importância”. Isso precisa ser compreendido no contexto. Existiram, é claro, demonstrações de enorme coragem e grande sacrifício na Resistência francesa; muitos homens e mulheres morreram por essa causa. Porém Camus sentia-se pouco à vontade com a ostentação em torno do mito do heroísmo desenvolvido na França do pós-guerra e tinha horror ao tom de superioridade moral com o qual supostos ex-integrantes da Resistência (inclusive alguns de seus famosos colegas intelectuais) mostravam-se condescendentes em relação aos que nada tinham feito. Na visão de Camus, era a inércia, ou a ignorância, que explicava a incapacidade de ação por parte das pessoas. Os Cottard desse mundo eram uma exceção; a maioria das pessoas é melhor do que imaginamos — como diz Tarrou, “só é preciso dar a elas uma oportunidade”.5


Consequentemente, alguns dos intelectuais contemporâneos de Camus não demonstraram particular interesse por A peste. Esperavam dele algum tipo de obra mais “engajada” e acharampoliticamente incorretos as ambiguidades do livro e o tom de tolerância e moderação desiludidas. Simone de Beauvoir, em especial, desaprovou severamente o recurso de Camus a uma praga natural como um substituto para (era o que ela pensava) o fascismo — o procedimento isentava os homens de suas responsabilidades políticas, ela insistia, e se esquivava da história e dos verdadeiros problemas políticos. Em 1955 o crítico literário Roland Barthes chegou a uma conclusão negativa semelhante, acusando Camus de oferecer aos leitores uma “ética antihistórica”. Mesmo hoje essa crítica ocasionalmente vem à tona entre os que se dedicam ao estudo de Camus na academia: ele deixa o fascismo e Vichy escapar à condenação, acusam eles, ao lançar mão da metáfora de uma “peste não ideológica e não humana”.

Comentários como esses são duplamente reveladores. Em primeiro lugar mostram em que medida a história aparentemente simples de Camus se prestava a incompreensões. A alegoria pode ter sido associada à França de Vichy, mas a “peste” transcende os rótulos políticos. Não era o “fascismo” que Camus estava visando — um alvo fácil, afinal, em especial em 1947 —, mas os dogmas, a subserviência e a covardia em todas as suas formas públicas e combinadas. Certamente Tarrou não é nenhum fascista; mas ele insiste em dizer que, nos primeiros tempos, quando concordava com doutrinas que autorizavam o sofrimento de outros em nome de ideais elevados, também era um portador da peste, mesmo enquanto lutava contra ela.

Em segundo lugar, a acusação de que Camus era ambíguo demais em seus juízos, demasiadamente pouco político em suas metáforas, lança luz não sobre as suas fraquezas, mas simsobre suas qualidades. Isso é algo que talvez agora estejamos em melhor situação para compreender do que se encontravam os primeiros leitores de A peste. Graças a Primo Levi e a Václav Havel, adquirimos familiaridade com a “zona cinzenta”. Compreendemos melhor que, emcondições extremas, raramente encontramos categorias simples e reconfortantes de bem e mal, culpado e inocente. Sabemos mais sobre as escolhas e as soluções de compromisso com as quais homens e mulheres são obrigados a lidar em tempos difíceis, e não nos apressamos mais tanto assim em julgar os que procuraram se acomodar em situações impossíveis. Os homens podem vir a fazer a coisa certa a partir de uma combinação de motivos e podem, com a mesma facilidade, cometer atos terríveis com a melhor das intenções — ou sem intenções de tipo algum. Disso não decorre a crença de que as pragas que a humanidade faz desabar sobre si mesma sejam “naturais” ou “inevitáveis”. Porém atribuir responsabilidades por elas — evitando, assim, que voltem a acontecer no futuro — pode não ser uma tarefa tão simples. E com Hannah Arendt fomos apresentados a mais uma complicação: a noção da “banalidade do mal” (uma expressão que o próprio Camus teria tido o cuidado de evitar), a ideia de que crimes inomináveis podem ser cometidos por homens bastante comuns, com consciência limpa.6

Essas noções são agora lugares-comuns do debate moral e histórico. Mas Albert Camus foi o primeiro a chegar a essas questões, recorrendo às suas próprias palavras, com uma perspectiva original e uma intuição que escaparam a quase todos os seus contemporâneos. É isso que eles consideravam tão desconcertante em seus escritos. Camus era um moralista que não hesitava emdistinguir entre o bem e o mal, mas que se abstinha de condenar a fragilidade humana. Ele era umestudioso do “absurdo” que se recusava a se curvar diante da necessidade.7 Era um homempúblico voltado para a ação e que insistia no fato de que todas as questões verdadeiramente importantes se resumiam, em última instância, a atos individuais de generosidade e de bondade. E, como Tarrou, ele acreditava em verdades absolutas e aceitava os limites do possível: “Outros homens farão a história. [...] Tudo o que sei é que nesta terra há pestes e há vítimas — e devemos fazer o possível para nos recusar a ficar do lado da peste”.

Assim, A peste não ensina nenhuma lição. Camus era um moraliste, mas não um moralizador. Ele alegou ter se esforçado muito para não escrever algo “panfletário”, e, na medida em que essa novela não oferece consolo algum a polemistas políticos de nenhuma tendência, pode-se considerar que ele teve sucesso. Mas justamente por esse motivo o livro não apenas sobreviveu às suas origens como uma alegoria a respeito da França ocupada, mas também transcendeu sua era. Ao olharmos para trás e fazermos um sombrio balanço do século XX, podemos ver mais claramente agora que Albert Camus identificou os dilemas centrais de nossa era. Como Hannah Arendt, ele viu que "o problema do mal será a questão fundamental da vida intelectual do pós-guerra na Europa — da mesma forma que a morte se tornou o problema fundamental depois da última guerra".8

Cinquenta anos depois de sua primeira publicação, numa era de satisfação pós-totalitária comas nossas condições e perspectivas, quando intelectuais anunciam o Fim da História e políticos pregam a globalização como um paliativo universal, a frase com que Camus encerra seu grande romance soa mais verdadeira do que nunca, um sino de alarme ecoando na noite da complacência e do esquecimento:

O bacilo da peste nunca morre ou desaparece inteiramente, [...] pode permanecer latente por décadas na mobília ou nas roupas, [...] espera pacientemente em quartos, sótãos, baús, lenços e papéis velhos e [...] talvez chegue o dia em que, para instrução ou desgraça da humanidade, a peste convocará seus ratos e os enviará para morrer em alguma cidade que se mostra satisfeita consigo mesma.

Notas

1. Julien Green, Journal, 20/2/1948, citado por Olivier Todd, Albert Camus: Une vie (Paris: Gallimard, 1996), pp. 419-20.

2. O editor literário Jean Paulhan, ao encontrar Camus em Paris, em janeiro de 1943, observou que ele "sofria" com a impossibilidade de voltar a Argel, para "sua esposa e o seu clima". Jean Paulhan a Raymon Guérin, 6/1/1943, em Paulhan, Choix de lettres, 1937-1945 (Paris: Gallimard, 1992), p. 298.

3. "Nunca fui um filósofo e nunca pretendi ser um." Em "Entretien sur la révolte", Gazette des lettres, 15/2/1952.

4. Em seu romance autobiográfico Le Premier homme, publicado postumamente, Camus escreve sobre o seu pai ter chegado em casa e vomitado, depois de assistir a uma execução pública.

5. É importante observar que foi em Chambon-sur-Ligne, precisamente o mesmo vilarejo nas montanhas em que Camus esteve convalescendo em 1942-3, que a comunidade protestante local se uniu em torno do seu pastor para salvar um grande número de judeus que haviam buscado refúgio entre fazendas e aldeias isoladas, inacessíveis. Esse ato incomum de coragem coletiva, infelizmente raro naqueles dias, oferece um contraponto histórico à narrativa de Camus a respeito de uma escolha moral — e uma confirmação de suas intuições sobre a decência humana. Ver Philip P. Hallie, Lest Innocent Blood Be Shed: The Story of the Village of Le Chambon and How Goodness Happened There (Nova York: Harper and Row, 1979).

6. Ver Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil (Nova York: Viking, 1963). Essa questão é bem exemplificada no estudo realizado por Christopher Browning a respeito dos assassinatos em massa na Frente Oriental na Segunda Guerra: Ordinary Men: Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland (Nova York: Aaron Asher Books, 1992).

7. Numa resenha antiga sobre A náusea, de Jean-Paul Sartre, escrita muito antes que eles se conhecessem, Camus observou: "O erro de certo tipo de escrito é acreditar que, como a vida é horrível, ela é trágica. [...] Anunciar a natureza absurda da existência não pode ser um objetivo, apenas um ponto de partida". Ver Alger Républicain, 20/10/1938.

8. Hannah Arendt, "Nightmare and Flight", Partisan Review, vol. 12, no 2 (1945), republicado em Essays in Understanding, Jerome Kohn, ed. (Nova York: Harcourt Brace, 1994), p. 133.

O capitalismo está nos tornando miseráveis - até mesmo os super-ricos

O capitalismo impõe sofrimento maciço aos pobres e à classe trabalhadora. Mas mesmo os detestáveis super-ricos estão se tornando miseráveis pelas coisas sádicas que a competição do mercado implora que façam ao resto de nós.

Luke Savage


Uma cena de Succession da HBO. (HBO)

Tradução / Na semana passada, o The Guardian publicou uma coluna intitulada: “Eu sou um terapeuta para os super-ricos e eles são tão miseráveis quanto mostra Succession.” Pelo título, o artigo é puro clickbait: um exemplo clássico do tipo de manchete que tende a atrair tráfego em uma economia de mídia social que prospera com a provocação. E, com certeza, foi recebido por um dilúvio muito previsível de comentários que expressam uma mistura de vergonha alheia e falta de simpatia pelos exorbitantes ricos – deixando milhares de tweets florescerem.

Mas o artigo escrito por Clay Cockrell – um psicoterapeuta que por acaso se tornou um especialista no tratamento de indivíduos ultra-ricos e que agora considera Succession, série da HBO, mais perto de um documentário do que de um drama – vale a pena ser lido pelo lampejo de visão que oferece sobre a vida interior dos super-ricos.

Assim como o título sugere, muitos dos clientes de Cockrell acham a felicidade indescritível, apesar da insondável liberdade pessoal e conforto material que vêm da riqueza. Tendo mimado os filhos, alguns lutam para ser pais eficazes. Muitos alegadamente têm problemas para formar relacionamentos não instrumentais ou não transacionais, acham difícil confiar nas pessoas ao seu redor e sentem-se desprovidos de significado ou propósito na vida. A questão do dinheiro em si, por sua vez, é espinhosa e desconfortável, e está claro pelas pesquisas existentes que muitas pessoas ricas experimentam um tipo de ansiedade perpétua por status, em vez da sensação de segurança que se poderia esperar. Como Cockrell escreve:

É difícil falar sobre dinheiro. O dinheiro está envolto em culpa, vergonha e medo. Há uma percepção de que o dinheiro pode imunizá-lo contra problemas de saúde mental quando, na verdade, acredito que a riqueza pode tornar você – e as pessoas mais próximas de você – muito mais suscetíveis a eles.

O que é digno de nota aqui está totalmente separado de como a maioria de nós se sente, corretamente, sobre a extrema riqueza, sem nenhuma necessidade premente de aumentar nossa compaixão com os exorbitantes ricos. Nem é preciso dizer que pessoas com problemas reais sempre merecem mais simpatia do que aqueles que voam em jatos particulares, residem em mansões nababescas ou ocupam o topo das hierarquias gerenciais das grandes corporações. Ser mal pago e explorado é uma experiência muito mais comum do que ser rico e o tributo psicológico que isso acarreta representa uma injustiça maior do que quaisquer patologias que um punhado de proprietários de iates esteja atualmente litigando com a ajuda de terapeutas bem pagos.

Nem, eu acho, que a verdadeira lição seja alguma repetição banal do velho clichê de que a felicidade não pode ser comprada. O que em última análise é impressionante sobre o artigo de Cockrell tem mais a ver com o que sugere sobre a quase impossibilidade de reconciliar a posse de extrema riqueza com impulsos morais ou éticos básicos ou outras características humanas. Algumas pessoas ultra-ricas, é claro, são simplesmente incapazes de ter empatia ou compaixão para começar e, como tal, não sentem nenhum remorso por explorar e manipular o mundo ao seu redor. Em uma estimativa do jornalista Jon Ronson, os casos de psicopatia são 4 vezes maiores entre os CEOs do que entre a população em geral – o que nos dá muitos motivos para acreditar que o mundo enclausurado da elite possui um número desproporcional de Patrick Batemans.

No entanto, mesmo com base nessa estimativa de cair o queixo, ainda estamos falando sobre uma taxa de psicopatia que é inferior a 5%. A grande maioria das pessoas ultra-ricas, então, não são literalmente psicopatas – mesmo que muitos façam regularmente coisas que causam imensos danos, estresse e sofrimento a outras pessoas. Ser extremamente rico é, portanto, pelo menos para alguns, um cabo de guerra psicológico constante. Não é que os ricos sejam oprimidos pelo capitalismo, mas sim que estão envolvidos nele como todo mundo – e, como os maiores beneficiários de nosso sistema econômico hierárquico, eles muitas vezes recebem uma visão panorâmica de suas depredações.

Como disse o Meagan Day na Jacobin em 2017, o capitalismo, em última análise, “força todos, incluindo a classe dominante, a uma posição de dependência e disciplina de mercado”. O resultado, como Vivek Chibber argumenta, é a subordinação moral e ética aos ditames vazios do valor de troca e da competição voraz:

O simples fato de sobreviver à batalha da competitividade força o capitalista a priorizar as qualidades associadas ao “espírito empreendedor”... Qualquer que tenha sido sua socialização anterior, ele rapidamente aprende que terá que se conformar com as regras ligadas ao mercado ou seu estabelecimento será derrubado. É uma propriedade notável da estrutura de classes moderna que faz com que qualquer desvio significativo da lógica da competitividade do mercado apareça como um custo a mais ao capitalista – uma recusa em despejar lama tóxica se manifesta como a perda de participação de mercado para aqueles que o fizerem; o compromisso de usar insumos mais seguros, porém mais caros, aparece como um aumento nos custos unitários e assim por diante. Os capitalistas, portanto, sentem uma enorme pressão para ajustar sua orientação normativa – seus valores, objetivos, ética, etc. – à estrutura social na qual estão inseridos, e não vice-versa... Os códigos morais encorajados são aqueles que ajudam nos resultados financeiros.

A menos que você seja um psicopata, ser extremamente rico muitas vezes envolve necessariamente contorções dolorosas. Na medida em que é possível generalizar sobre um conceito vago e contestado como “natureza humana”, há algo profundamente anormal em explorar e dominar outras pessoas, assim como é profundamente desumano e anti-social que a maioria de seus relacionamentos seja definida pelo dinheiro.

Com a introdução de algo como um imposto sobre a riqueza global, os bilhões não ganhos dos super-ricos poderiam ser redistribuídos para aliviar os encargos reais enfrentados pela vasta maioria explorada sob o capitalismo. Se fosse assim, aqueles que estão na “primeira categoria social” poderiam, consequentemente, passar menos tempo sentados no sofá de um terapeuta.

Sobre o autor

Luke Savage é colunista da Jacobin.

28 de novembro de 2021

Em Copenhague, a esquerda radical acaba de derrotar os sociais-democratas dinamarqueses pela primeira vez na história

As recentes eleições na Dinamarca viram um aumento acentuado na parcela de votos para a Aliança Vermelho-Verde, tornando-a o maior partido em Copenhague. O resultado mostra que os governantes sociais-democratas não podem continuar decepcionando os dinamarqueses que querem medidas contra o clima e o aumento dos aluguéis.

Nathan Akehurst

Line Barfod, the Red-Green mayoral candidate, and political spokesperson for the party Mai Villadsen during a rally for the party. (Enhedslisten / Facebook)

Tradução / A história dominante da esquerda ocidental nos últimos dois anos foi o declínio da marca d’água alta do radicalismo eleitoral pós-crash. Do Syriza ao Podemos, os partidos ficaram aquém de ganhar o poder ou assumir o cargo – ou, no caso recente do Die Linke da Alemanha , retrocederam de posições já fracas. As organizações de esquerda estão lidando simultaneamente com a rápida escalada de crises estruturais da saúde pública ao meio ambiente e à geopolítica, enormes mudanças em seu ambiente operacional e os limites de sua base de apoio atual.

Mas há outra história na Europa, de partidos menores de esquerda em uma ascensão mais silenciosa. Na última eleição da Bélgica, enquanto o anti-imigrante Vlaams Belang subia para se tornar o segundo maior partido da rica Flandres, a região mais pobre da Valônia viu uma onda de votos para o Partido dos Trabalhadores Belga ( PTB ). A primeira-ministra sueca designada Magdalena Andersson exigirá o apoio do Partido de Esquerda para aprovar um orçamento, e o Partido de Esquerda Socialista tem um papel decisivo da mesma forma na Noruega, embora nenhum desses partidos esteja no governo. E neste mês, na Dinamarca, a Aliança Vermelho-Verde (Enhedslisten) – um partido formado por socialistas, comunistas, sindicalistas e ambientalistas – comemorou seus melhores resultados nas eleições municipais.

Uma história importante nas eleições de 16 de novembro na Dinamarca foi uma boa noite para a direita dominante às custas das forças anti-imigrantes de extrema direita. Mas na esquerda, a Aliança Vermelho-Verde continuou sua tendência de flanquear os sociais-democratas, que lideram o governo nacional. No município de Frederiksberg, adjacente à capital, o partido venceu os sociais-democratas de centro-esquerda em mais de 6 por cento.

E embora não tenha garantido uma margem grande o suficiente para ganhar o gabinete do prefeito de Copenhague , abriu novos caminhos ao se tornar o maior partido único da capital dinamarquesa, com 24,6 por cento dos votos. Surpreendentemente, esta foi a primeira vez em mais de um século que os social-democratas não chegaram ao topo da votação. Em ambas as regiões, os social-democratas se aliaram a outros partidos para tirar a esquerda do poder – mas seu controle foi seriamente enfraquecido.

“Isso significa que exercemos o poder de uma forma concreta”, diz o estrategista de Copenhague da Enhedslisten, Jakob Ruggaard. As vitórias de prefeito em nível de conselho e em menor escala colocaram Enhedslisten em posições de influência sobre briefs essenciais que cobrem habitação, clima e infraestrutura na cidade. E, de forma crítica, acrescenta Ruggaard, isso cria uma “maioria verde” no nível das políticas.

Cidade habitável

A moradia e o clima dominaram a batalha eleitoral urbana. Embora Copenhague não tenha a aguda crise imobiliária familiar a cidades como Londres ou Nova York, ela é afetada pelas mesmas tendências gerais – especuladores estrangeiros comprando propriedades, salários estagnados e aluguéis crescentes forçando algumas pessoas a sair e forçando outras a sempre. condições mais precárias e uma sensação crescente de perda de controle.

A Aliança Vermelho-Verde recebeu críticas da centro-esquerda por exigir mais moradias públicas, ao mesmo tempo em que se opõe aos planos de desenvolvimento existentes. Mas o partido de esquerda radical contesta veementemente essa acusação, por sua vez acusando os sociais-democratas de planos de habitação que nada farão para consertar a acessibilidade. Nessa eleição, houve dois pontos de fulgor: uma proposta de moradias caras em terrenos comuns na cidade e uma nova moradia igualmente inacessível em Lynetteholmen, uma ilha artificial planejada. A Enhedslisten definiu a agenda política, propondo um teto de aluguel e regulamentações de aluguel para novas construções, exigindo que 75 por cento das novas moradias sejam acessíveis e respondendo aos protestos em massa em torno dos empreendimentos.

Habitações públicas com aluguel controlado existem em Copenhague, mas em número insuficiente para conter o problema. Enquanto isso, muitas unidades com aluguel controlado foram destinadas à destruição e privatização. Os ativistas da Enhedslisten ainda não têm dados concretos para apoiar a visão de que isso desempenhou um papel significativo na eleição. Mas eles acreditam cautelosamente que uma coalizão de jovens de classe média com mobilidade descendente e abrigados de forma insegura, e urbanos da classe trabalhadora em moradias públicas ameaçadas, alimentou seu aumento nesta eleição.

“Os jovens eleitores estão apavorados”, diz Ruggaard. “Eles querem morar na capital, mas as listas de espera são impossíveis. E as pessoas em moradias com aluguel controlado com quem conversei se sentiram estigmatizadas e isoladas, estereotipadas como vivendo em lugares invadidos pelo crime, pobreza e migração. ”

Batalha de migração

Isso traz outra dimensão à lenta ascensão de Enhedslisten nas eleições parlamentares e locais. Sob sucessivos líderes, incluindo a atual primeira-ministra Mette Fredriksen , os social-democratas se dirigiram fortemente à direita em matéria de imigração e asilo . Mesmo entre os esquerdistas dinamarqueses que rejeitam essa posição por motivos morais, você às vezes ouvirá a visão relutante de que ela pode ter impedido a direita de assumir o poder no curto prazo, mesmo que a cessão do terreno cause mais danos do que benefícios eleitorais a longo prazo . E embora o Enhedslisten seja um partido pró-migrante, há divergências internas sobre se deve priorizar essa questão – e como – em um cenário hostil.

Mas a campanha de Copenhague foi dura com o assunto – atacando as políticas sociais-democratas que veem os refugiados sírios deportados de volta para um país ainda devastado pela guerra e pedindo que Copenhague os acomodasse, enquanto exigia melhores empregos e serviços para os migrantes e os pobres urbanos domésticos. “Não gostaria de ser muito concreto sobre isso nesta fase, mas parece que há uma reação contra os social-democratas por seus movimentos para a direita”, diz Ruggaard, “que tem sido visto como antagônico, como definir o trabalho e o meio -classificar as pessoas nas cidades e além umas contra as outras. ”

A questão dos refugiados sírios ganhou o apoio geral em todo o país, com o governo enfrentando desafios legais de grupos de direitos humanos e manifestações em todo o país. E, recentemente, um barco de patrulha dinamarquês recebeu aplausos por recusar ordens de “empurrar para trás” os refugiados resgatados durante uma operação da Frontex no Egeu. Enquanto isso, há uma batalha política acalorada sobre se os filhos dos dinamarqueses que se juntaram ao Estado Islâmico devem voltar para casa e agora definham em campos sírios.

Outra força radicalizante foi a greve das enfermeiras – um tema comum em toda a Europa e América do Norte, à medida que os trabalhadores da saúde enfrentavam perigo e morte seguidos de pacotes de pagamento lamentáveis ​​durante a pandemia. A inflexibilidade do governo dinamarquês precipitou recentemente uma longa greve de enfermeiras, depois que os resultados das negociações foram rejeitados por membros do sindicato.

Enhedslisten também se juntou a ativistas feministas para destacar a dimensão de igualdade de pagamento do acordo de pagamento e exigir pacotes de pagamento que tragam paridade com profissões médicas dominadas por homens. Os colportores do partido relatam anedoticamente que as enfermeiras e suas famílias que participam das greves selvagens são rotineiramente trocadores de socialdemocratas para Enhedslisten.

Reunindo novos apoiadores

A parte verde da Aliança Vermelha-Verde tem sido igualmente importante no fortalecimento da coalizão de Enhedslisten com ativistas climáticos mais jovens e socialmente conscientes que vêem cada vez mais o partido como a opção mais verde na política dinamarquesa. Para muitos, as batalhas por moradia mencionadas anteriormente eram tanto sobre o direito a um meio ambiente sustentável quanto o direito a moradia acessível. Esses diferentes constituintes dentro da Enhedslisten discordam rotineiramente uns dos outros, mas os estrategistas ficam impressionados com o quão unificadora a campanha foi dentro de um partido onde a dissidência e a crítica interna são comuns.

Até mesmo colocar os rostos dos candidatos em cartazes foi uma etapa polêmica nesta campanha. Mas a decisão foi ajudada pela presença de uma ampla coalizão de candidatos: uma enfermeira, professores, jovens ativistas pelo clima e feministas, no que também era em grande parte uma lista jovem. Line Barfod, o candidato Vermelho-Verde a prefeito, representou ambos os lados da coalizão, como um socialista de longa data profundamente enraizado no movimento trabalhista da Dinamarca, o ex-advogado da comuna autônoma de Copenhague, Christiania, e de 2001 a 2011 membro do Folketing ( parlamento nacional) votou no deputado mais sério entre as linhas partidárias.

Emma Sinclair, ativista da ala jovem do partido, também destaca o papel de mobilizar jovens e estudantes na campanha por meio de um programa de eventos que inclui esmolas matinais de porta em porta em instituições de ensino e noites de pizza em corredores universitários.

“O resultado da eleição é mais do que ousávamos esperar. A mobilização da juventude que construímos em torno desta campanha desempenhou um grande papel nisso e, nos próximos anos, à medida que o movimento se desenvolve, esperamos ser capazes de alcançar os mesmos resultados em toda a Dinamarca. Novos membros vão surgindo, os jovens querem lutar pelo que acreditam e agora, mais do que nunca, podem ver que é possível fazer a diferença ”, comentou.

Se a campanha de Enhedslisten foi positiva, a de seus oponentes foi o oposto. Os social-democratas fizeram uma campanha de terror, “essencialmente acusando Enhedslisten de querer transformar Copenhague na URSS”, de acordo com um ativista Vermelho-Verde. Muitos foram particularmente gratos por esses ataques, acreditando que eles jogaram mal, dado o trabalho existente do partido para construir sua reputação entre os eleitores – o que significa que tal negatividade parecia estar em desacordo com as preocupações dos eleitores e com a realidade política.

“Antigamente, o mainstream definia a agenda e nós a criticávamos”, disse Ruggaard. “Desta vez, definimos a agenda, propusemos um conjunto amplo e detalhado de políticas e eles criticaram nos bastidores”.

É muito cedo para dizer se os resultados de 16 de novembro são indicativos de uma tendência mais ampla, ou mais o resultado de fatores locais contingentes. Nacionalmente, o aumento de 12 por cento do Enhedslisten na participação de votos foi realizado em grande parte por Copenhagen e Frederiksberg. E, de qualquer forma, o partido ainda tem um longo caminho a percorrer antes de implementar grande parte de sua ambiciosa plataforma. Mas demonstra que o centro não pode simplesmente considerar todos que estão à sua esquerda como certos – e que uma política ousada de redistribuição de riqueza e poder pode reunir o apoio popular.

Sobre o autor

Nathan Akehurst is a writer and campaigner working in political communications and advocacy.

27 de novembro de 2021

A história secreta do socialismo marciano de Alexander Bogdanov

Muito antes de escritores como Kim Stanley Robinson usarem a ficção científica para explorar ideias socialistas, o marxista russo Alexander Bogdanov publicou um romance notável sobre o caminho marciano para o socialismo. A Estrela Vermelha de Bogdanov está finalmente recebendo a atenção que merece.

Fred Scharmen

Alexander Bogdanov usou a ficção científica para criar um espelho para nosso próprio mundo, retratando seres inteligentes em Marte e a sociedade socialista altamente avançada que eles criaram. (Getty Images)

Por muitos anos, o revolucionário russo Alexander Bogdanov foi lembrado, por aqueles que se lembravam dele, como uma figura menor na história da Revolução Russa que havia desafiado a liderança de Vladimir Lenin do Partido Bolchevique pré-revolucionário. Não foi até 1984 que seu romance de ficção científica pioneiro de 1908, Estrela Vermelha, foi traduzido para o inglês.

Muito antes do trabalho de Ursula K. Le Guin, Kim Stanley Robinson ou Iain Banks, Bogdanov usou a ficção científica para erguer um espelho para nosso próprio mundo, retratando seres inteligentes em Marte e a sociedade socialista altamente avançada que eles criaram.

Neste trecho de seu livro Space Forces, disponível agora na Verso Books, Fred Scharmen discute os temas extraordinários que Bogdanov explorou em Estrela Vermelha.

Uma cena inicial do romance Estrela Vermelha de Alexander Bogdanov descreve um encontro entre um personagem misterioso e um cientista revolucionário. O cientista é Lenni, um matemático, às vezes cirurgião e militante ativo na primeira das revoluções russas do século XX, em 1905. Lenni foi contatado por Metti, outro cientista, filósofo e crítico social.

O que começa como um aparente convite para se juntar a uma sociedade secreta terrena rapidamente se transforma em uma viagem para fora do planeta. Metti, aprendemos, veio de Marte para encontrar um embaixador humano adequado entre os dois planetas e as sociedades que eles hospedam. Os marcianos no livro reconhecem que o conflito sangrento no qual Lenni e a classe trabalhadora russa estão envolvidos ajudará a levar ao estabelecimento do socialismo.

Metti discute com Lenni a ideia de que os organismos, e de fato as sociedades, tendem a convergir em certas características à medida que evoluem junto com seus mundos. Os marcianos e os humanos terráqueos, ao que parece, não parecem tão diferentes um do outro.

As pessoas de Metti são mais altas e têm olhos maiores, pois se adaptaram à gravidade mais leve de seu planeta e à luz solar mais fraca. Mas, além disso, eles são reconhecíveis entre si como “tipos superiores”, ou seja, organismos que evoluíram para usar e moldar as condições apresentadas por seus mundos em maior grau do que qualquer outro, “aquele que domina o planeta. ”

Assim também acontece com as formas políticas e sociais. O curso da história em Marte, embora menos cheio de conflitos brutais como a revolução que deixaram para trás em São Petersburgo, tende inexoravelmente ao socialismo, assim como o curso da história na Terra.

Lenni, o narrador de Bogdanov, apresenta-se com uma imagem concreta desse isomorfismo – o olho do polvo. Os polvos, cefalópodes marinhos que representam os organismos mais elevados de todo um ramo da evolução, têm olhos invulgarmente semelhantes aos dos animais do nosso ramo, os vertebrados. No entanto, a origem e o desenvolvimento dos olhos dos vertebrados são completamente diferentes.

Conflito em Marte

Essa presunção permite que Bogdanov use seu romance para servir a uma das principais funções da ficção científica e da literatura utópica em geral. Seu Marte é uma oportunidade de criar um exterior a partir do qual examinar os dados que são dados como garantidos na Terra.

Marte está distante no espaço, e é somente graças ao recente desenvolvimento de sistemas avançados de propulsão para fazer a viagem que os marcianos descobriram que a Terra é habitada por criaturas “superiores” como eles. Mas Marte também está distante no tempo, mais adiante em um inevitável caminho teleológico que terminará em uma sociedade melhor e “superior”.

Lenni descobre, com Metti e os outros marcianos que ele conhece quando chegam ao planeta, que os marcianos já estiveram distantes uns dos outros — geograficamente, culturalmente, socialmente e economicamente. Como Metti lhe diz:

Certa vez — ele completou —, povos de diferentes países em Marte não conseguiam se entender. Há muito tempo, no entanto, muitos séculos antes da revolução socialista, todos os vários dialetos aproximaram-se uns dos outros e se fundiram em uma única língua comum. Isso ocorreu livre e espontaneamente.

No entanto, essa convergência de iguais foi seguida pela introdução da hierarquia de classes, que levou à exploração de recursos, seguida pela eventual resolução do conflito através da introdução do socialismo marciano global. A tectônica da história e da sociedade marciana é consequência das próprias relações desse planeta entre suas partes e todos geológicos. Marte, aprendemos, não tem grandes oceanos ou enormes cadeias de montanhas, pois não tem placas tectônicas.

Na Terra, por outro lado, a divisão de todo o planeta em partes componentes criou uma ignorância inicial bem-aventurada; culturas individuais poderiam viver sem preocupação umas com as outras. Mas, eventualmente, à medida que esses povos cresciam e migravam, eles se conheceram e, em vez da semelhança cultural, reforçada pela mesmice de suas terras, encontraram diferenças acentuadas. É essa diferença que levou ao conflito extremo e à guerra que define a história da Terra. Em Marte, em contraste, a unidade na geologia é uma peça com unidade política e social.

Na história que os marcianos do romance apresentam, essa unidade representa uma espécie de fechamento da fronteira marciana. A competição subsequente por recursos recentemente escassos cria novas divisões – desta vez não na paisagem horizontal, mas verticalmente, entre classes e níveis de renda. A crise chega ao auge quando a água começa a acabar e os marcianos iniciam a construção do que teria sido, na época da publicação do Estrela Vermelha, as características mais conhecidas de Marte, seus canais.

Vermelho em abundância

Sua aparente existência foi anunciada em 1877 pelo astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli, e muito se falou da tradução posterior de sua palavra para o que ele havia observado, canali — que poderia significar qualquer tipo de canal, natural ou não — em uma palavra em Inglês que conotava mais diretamente design inteligente: canais. A ideia de um projeto de engenharia que abrangesse um planeta inteiro era humilhante e assustadora para as culturas da Terra, numa época em que a construção de canais no Panamá e Suez já era incrivelmente ambiciosa e ainda mais chocantemente cara.

A suposição popular era de que qualquer cultura inteligente em Marte deveria ser muito mais antiga que a da Terra, a fim de ter alcançado tal coisa. Esta era a base do romance de HG Wells, de 1897, A Guerra dos Mundos, no qual os marcianos tecnologicamente mais avançados invadem a Terra, e da série Barsoom, de Edgar Rice Burroughs, iniciada em 1912, na qual a cultura marciana se tornou decadente e violentamente degradada a níveis quase medievais.

Bogdanov transforma habilmente esses tropos em Estrela Vermelha. Seus canais são outro ressurgimento de conexões horizontais, um novo sistema tectônico que originalmente pretendia recuperar as últimas gotas de um recurso falho, mas cuja construção e despesa difíceis, em vez disso, precipitaram um novo período de infraestrutura compartilhada e recursos compartilhados que levaram a uma era de ouro marciana pós-capitalista.

Na imaginação planetária marciana de Bogdanov, essa era de ouro é uma era regulada por números e estatísticas. Netti, outro dos camaradas marcianos de Lenni, sugere que o fracasso da humanidade até agora em embarcar nesse esforço representa um fracasso das partes em formar um todo:

Isso porque a causa comum da humanidade ainda não é realmente uma causa comum entre vocês. Tornou-se tão fragmentada nas ilusões geradas pela luta entre os homens que parece pertencer a pessoas individuais e não à humanidade como um todo.

Os marcianos aprenderam a usar a ciência da informação e a computação para regular essas relações tectônicas, de modo que cada esforço individual por parte de cada cidadão marciano contribua para o bem maior e para o avanço. A “computação exata do trabalho disponível” organiza todas as conexões possíveis entre o que uma pessoa é capaz e disposta a fazer e o que precisa ser feito, em um sistema não muito diferente dos sistemas de economia de “compartilhamento” e “gig” do início do século XXI, embora com três diferenças importantes.

Em primeiro lugar, não há lucro em Marte; em segundo lugar, todos os bens de consumo são gratuitos; e, finalmente, a participação nessa força de trabalho estatisticamente regulamentada é inteiramente voluntária: as tabelas destinam-se a afetar a distribuição do trabalho. Se quiserem fazer isso, todos devem ser capazes de ver onde há escassez de mão de obra e quão grande ela é.

Supondo que um indivíduo tenha a mesma ou aproximadamente igual aptidão para duas vocações, ele pode então escolher aquela com maior carência. Quanto aos excedentes de mão de obra, os dados exatos sobre eles precisam ser indicados apenas onde tal excedente realmente existe, para que cada trabalhador desse ramo possa levar em consideração tanto o tamanho do excedente quanto sua própria inclinação para mudar de vocação.

Conflito planetário

O humano Lenni descobre que nem tudo é o parece na utopia marciana. Sua sociedade está à beira de uma crise malthusiana, pois os recursos disponíveis não estão crescendo rápido o suficiente para suprir sua crescente população. Mas ainda assim, eles aderem a uma lógica que valoriza a expansão acima de tudo. Como um marciano lhe disse:

Verificar a taxa de natalidade? Ora, isso seria equivalente a capitular aos elementos. Significaria negar o crescimento ilimitado da vida e, inevitavelmente, implicaria em interrompê-lo em um futuro muito próximo.

Os marcianos acreditam em um credo que iguala a existência de cada pequena parte e partícula com a existência da totalidade. “O sentido de cada vida individual”, diz alguém, “desaparecerá junto com essa fé, porque o todo vive em cada um de nós, em cada minúscula célula do grande organismo, e cada um de nós vive no todo. ”

Como observamos acima, Marte é um planeta sem placas tectônicas, e a visão de mundo marciana também é de uma vida social e política cujas costuras são suavizadas, sem falhas. Mas uma vez que os marcianos de Bogdanov descobrem um exterior para sua própria totalidade – a existência de outros planetas próximos com recursos, Vênus e Terra – a diferença reaparece no cenário. E uma vez que eles desenvolvem a capacidade de alcançar esses planetas, na forma da unidade espacial experimental que permitiu à expedição de Metti buscar Lenni, essa diferença inicial entre as partes planetárias leva a um conflito potencial e à ameaça de uma invasão marciana da Terra.

Em seu trabalho Cosmos, codesenvolvido como livro e série de TV, o astrônomo e cientista planetário Carl Sagan frequentemente invoca a imagem de um “oceano cósmico” para dar a suas ideias sobre exploração espacial um quadro metafórico concreto. Como ele comenta no primeiro episódio do programa:

A superfície da Terra é a costa do oceano cósmico. Nesta costa, aprendemos a maior parte do que sabemos. Recentemente, andamos um pouco para fora, talvez na altura do tornozelo, e a água parece convidativa. Alguma parte do nosso ser sabe que é de onde viemos. Desejamos voltar, e podemos, porque o cosmos também está dentro de nós. Somos feitos de material de estrela. Somos uma forma de o cosmos se conhecer.

Existem outras formas de conhecer além da colonização e conquista? Vênus, em Estrela Vermelha, é retratado de uma maneira que seria tão familiar aos leitores da ficção científica do início do século XX quanto os famosos canais de Marte. É um mundo de selva quente, úmido e sufocante, transbordando de energia, recursos e uma vida próspera, hostil e “primitiva”. Quando um personagem palestrando sobre Vênus ouve propostas de dedicar a ciência e a engenharia marcianas para domar essa selva e torná-la produtiva para “formas superiores” de vida, ele as descarta como ingênuas.

O principal proponente marciano de uma invasão da Terra rejeita a ideia de que os marcianos possam ir à Terra e viver pacificamente com os humanos lá. Os terráqueos são violentos e degradados demais para isso, argumenta ele, devido à história de dificuldade e diferença em seu mundo; além disso, a distância entre os dois planetas — social e espacialmente — é muito grande e perigosa. Portanto, invasão e extermínio é a única opção:

Devemos entender essa necessidade e olhá-la diretamente nos olhos, por mais sombrio que possa parecer. Temos apenas duas alternativas: ou paramos o desenvolvimento de nossa civilização, ou destruímos a civilização alienígena na Terra. Não há terceira possibilidade. ... Devemos escolher, e eu digo que temos apenas uma escolha. Uma forma de vida superior não pode ser sacrificada por causa de uma inferior. Entre todas as pessoas na Terra não há nem mesmo alguns milhões que estão conscientemente lutando por um tipo de vida verdadeiramente humano. Por causa desses seres humanos embrionários, não podemos negar o nascimento e o desenvolvimento de dezenas, talvez centenas de milhões de nosso próprio povo, que são humanos em um sentido incomparavelmente mais completo da palavra. Não seremos culpados de crueldade, porque podemos destruí-los com muito menos sofrimento do que eles estão constantemente causando uns aos outros. Existe apenas uma Vida no Universo, e ela será enriquecida em vez de empobrecida se for o nosso socialismo e não a variante terrena distante e semi-bárbara que puder se desenvolver, pois graças à sua evolução ininterrupta e potencial ilimitado, nossa vida é infinitamente mais harmonioso.

Troca direta

Em um importante discurso, Netti, o interesse amoroso marciano do narrador, faz uma repreensão a esses paradigmas de total hierarquia e instrumentalidade. “Essas formas não são idênticas às nossas”, ela insiste. “A história de um ambiente natural diferente e de uma luta diferente se reflete neles; escondem um jogo diferente de forças espontâneas, outras contradições, outras possibilidades de desenvolvimento”.

Para Netti e para Bogdanov, essa diferença é precisamente o ponto:

Eles e sua civilização não são simplesmente inferiores e mais fracos do que a nossa — eles são diferentes. Se os eliminarmos, não os substituiremos no processo de evolução universal, mas apenas preencheremos mecanicamente o vácuo que criamos no mundo das formas de vida.

Há um precedente na sociedade marciana para esse esquema alternativo de valiosa diferença produtiva: para prolongar suas vidas, eles praticam transfusões de sangue mútuas. Estes são realizados não para curar os doentes, mas sim para suavizar as diferenças entre os indivíduos, para que eles possam compartilhar o que há de melhor em cada um, em “trocas regulares de camaradagem de vida”.

Os marcianos de Bogdanov precisam ser renovados pela interação com algo fora de si mesmos, através da transferência de informação, arte, ondas de rádio, padrões de pensamento ou essências corporais. Essas conexões dependem da diferença sem hierarquia, sinalizando um reconhecimento de que partes díspares podem formar um novo todo, mesmo que seja um híbrido, como um ciborgue. Assim, o “caminho para o cosmos conhecer a si mesmo” que Sagan desenvolveu tem tanto a ver com diferença, dificuldade e até acidente quanto com alguma marcha teleológica de progresso.

Bogdanov valorizava a troca direta como uma forma de se envolver com a espontaneidade e a contradição, colocando suas especulações em prática material e corporal: ele experimentou transfusões de sangue reais como médico. Tragicamente, ele foi derrubado por sua fé no poder da “troca de camaradagem”: ele morreu em 1928 depois que um experimento de transfusão o expôs à malária, tuberculose e um tipo sanguíneo incompatível.

Colaborador

Fred Scharmen leciona arquitetura e design urbano na Escola de Arquitetura e Planejamento da Morgan State University. Ele é cofundador do Grupo de Trabalho em Sistemas Adaptativos, uma consultoria de arte e design com sede em Baltimore, Maryland. Seu primeiro livro, Space Settlements, foi publicado em 2019.

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