19 de novembro de 2021

Como o misticismo e a pseudociência se tornaram centrais para o nazismo

Idéias sobrenaturais estavam se difundindo na virada do século 20, especialmente na Alemanha. Mas na crise social que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, as ideias esotéricas e pseudocientíficas tornaram-se uma poderosa ferramenta de mobilização nazista, dirigida a demonizar os judeus e a esquerda.

Uma entrevista com
Eric Kurlander

Entrevistado por
Ondřej Bělíček

Jacobin

Adolf Hitler com Herr Lutze, seu chefe de gabinete, durante uma revisão das tropas de assalto em Berlim para marcar o terceiro aniversário da ascensão de Hitler ao poder. (©Hulton-Deutsch Collection / Corbis via Getty Images)

Tradução / No fim do século XIX, a Europa industrializada era o epicentro daquilo que Max Weber denominou de “desencantamento do mundo”. Práticas religiosas tradicionais vinham sendo desafiadas pelas forças da modernidade, com a Igreja incomodada com o avanço do Iluminismo, ciência e secularismo.

Entretanto, geralmente a famosa citação Weber omite a segunda parte de sua tese – que o mundo estava se encantando também por algo novo. Novos tipos de doutrinas esotéricas, religiosas e fronteiras emergiam como alternativas aparentemente modernas à religião e à ciência tradicional.

Isso incluía a antroposofia (uma variação austro-alemã sobre a doutrina esotérica da teosofia, que combinavam elementos da espiritualidade oriental com cristianismo, filosofia ocidental e ciência natural); ariosofia (uma versão mais explicitamente racialista e eugenista da teosofia), a Teoria do Gelo Mundial (uma teoria “acientífica” que insiste que o gelo é a substância básica por trás de todos os processos tanto cósmicos como geológicos e evolutivos da terra), astrologia e parapsicologia (o estudo dos fenômenos psíquicos e paranormais). Essa tendência incluiu também religiões alternativas, New Age, homeopatia, folclore e um interesse renovado pelo hinduísmo e budismo.

Em seu livro Hitler’s Monsters, Eric Kurlander analisa a específica influência de ideias sobrenaturais que tiveram ascensão e as consequências da ideologia nazista. Ele argumenta que a invocação e apropriação de crenças populares esotéricas, pseudocientíficas e religiosas ajudaram o partido de Adolf Hitler a atrair apoiadores, desumanizar seus inimigos e perseguir suas ambições imperiais e raciais. Porém – como diz o historiador a Ondřej Bělíček –, essas ideias também se enraizaram em um contexto sociopolítico particular – que se reproduz, se não na mesma escala, também em nosso próprio presente.

OB

No fim do século XIX, desenvolveu-se um forte movimento dedicado a ideias sobrenaturais, doutrinas esotéricas, espiritualismo e ocultismo. O que esse movimento na Alemanha e na Áustria teve de diferente, em comparação a outros lugares onde essas tendências também floresceram?

EK

A singularidade é dupla. Por um lado, o investimento naquilo que eu chamo de “imaginário sobrenatural” na Alemanha e na Áustria tinha uma influência maior. Não se tratava só de um aspecto discreto do dia a dia, tal qual quando você vai à igreja ou uma sessão espírita no domingo. Foi algo integrado à política e às teorias sociais de forma muito mais direta e onipresente. Muitas dessas figuras esotéricas passaram a delinear conclusões políticas baseadas nessas crenças.

Isso, por exemplo, ocorreu também na França e no Reino Unido, ainda que não na mesma medida. Por outro lado, o teor do imaginário sobrenatural, em que existiam muitos movimentos como teosofia, astrologia e assim por diante, também era bem mais racial-folclórico na Alemanha e na Áustria que na França ou Reino Unido.

Havia muitas pessoas falando sobre diferentes raças no século XIX, não só na Alemanha e na Áustria. Entretanto, quando se olha para a forma como tais doutrinas esotéricas e anti-científicas foram implantadas na esfera pública, a raça e o antissemitismo foram, ao que parece, mais proeminentes em comparação com a França, Reino Unido e até mesmo os Estados Unidos, que tinham seus próprios grupos esotéricos, como os “camisas prateadas” da KKK e William Pelley.

Em suma, a raça faz parte também da língua oficial da ciência e da reforma social no Reino Unido, França e Estados Unidos, mas não estava no centro das práticas científicas e ocultas; e tais práticas, inversamente, não desemprenharam um papel central nas ideologias ou teorias de direita na política ou na sociedade.

OB

Você também menciona que o folclore alemão, a mitologia, a religião indo-ariana e as teorias racistas frequentemente eram parte do sistema escolar alemão. Você menciona especificamente a influência que o professor Leopold Pötsch tinha no jovem Hitler. Isso também foi uma particularidade nacional?

EK

Isso chega ao conceito de ciência alternativa. Todos falavam sobre Charles Darwin e o declínio civilizacional do Ocidente, a ascensão de raças não brancas – tudo o que fazia parte das discussões científicas naturais e sociais da segunda metade do século XIX. Até mesmo progressistas liberais e socialistas utilizavam o conceito de raça naquele momento, que não seria aceito hoje.

Se você fosse à escola na França ou nos Estados Unidos nas décadas de 1880 e 1890, ouviria teorias sobre a superioridade racial de alguns grupos sobre outros, e teorias da história que tendiam a idealizar os homens brancos ou de seu país de uma forma muito nacionalista. A diferença é que, na Alemanha e na Áustria, a mitologia nórdica e o folclore se misturaram com esse chamado pensamento “científico” sobre raça, politizado e, então, integrado à pedagogia. Isso ocorreu não apenas nas escolas, mas na literatura popular e científica.

OB

Muitas das principais personalidades de movimentos sobrenaturais na República de Weimar, na Alemanha, depois se tornaram proeminentes nazistas. De alguma maneira, os partidos no entreguerras trabalharam politicamente com a crença do sobrenatural ou isso foi específico dos nazistas?

EK

Sem dúvida, existam alguns indivíduos nos partidos de centro esquerda interessados ​​em astrologia e mitologia alemã, mas, de modo geral, eles não os integraram em suas ideias políticas e sua propaganda. Se você fosse membro dos dois partidos liberais, dos social-democratas ou dos comunistas, seria improvável que você invocasse as imagens de vampiros e o diabo, lobisomens ou bruxas, para descrever seus oponentes políticos ou a si próprio. Nem você falaria frequentemente sobre suásticas ou antigos sóis negros ou runas como símbolo da raça ariana ou nórdica.

Só que não apenas os nazistas invocavam essa iconografia. Existiam grupos paramilitares famosos de toda sorte que recorriam a esses tipos de símbolos, que organizavam festivais de solstício e falavam em restaurar o Império Alemão e reassentar os europeus ocidentais com “camponeses guerreiros”.

Os partidos de centro esquerda alemães, como na maior parte dos países, almejavam certamente argumentar a respeito do que fazer com finanças, tributos e educação, mas os partidos de centro direita eram tão propensos a invocar propaganda emocional ligada a teorias baseadas em raça sobre a superioridade germânica e o perigo quase sobre-humano dos monstruosos judeus e bolcheviques, de uma forma difícil de se engajar racional ou empiricamente. Como argumentaria com alguém que apela ao caráter loiro e de olhos azuis quase míticos do povo alemão e diz que seu país foi colonizado por uma cabala de bolchevistas judaicos, maçons e raças inferiores?

Nem todos os alemães acreditavam nessas coisas: muitos – talvez até mesmo a maioria – não acreditava. E se recorde que apenas um terço deles votou em Hitler. Os nazistas nunca tiveram mais de 37% dos votos, apesar da crise vinda da Grande Depressão e outros fatores. Porém, as pessoas que votavam nazistas parecem ter sido desproporcionalmente inseridas no imaginário sobrenatural.

OB

Suponho que, depois da guerra perdida em 1918 e da Grande Depressão, essas ideias sobrenaturais devem ter se espalhado entre toda a população alemã. É possível afirmar qual tipo de pessoa tendia a apoiar essas ideias?

EK

A história, a sociologia e a ciência política nos mostraram que, enquanto os nazistas apelaram ao número substancial de alemães de todas as demografias, católicos e trabalhadores tendiam a não votar tanto nos nazistas. Por outro lado, os protestantes de classe média baixa ou de origem sociológica no meio rural votavam desproporcionalmente no partido de Hitler. Ao observar o modo como funciona o imaginário sobrenatural, é aquilo não aparece de forma proeminente nos socialistas urbanos e no meio social dos trabalhadores.

Não é que as classes trabalhadoras alemãs fossem imunes às ideias sobrenaturais – se a ciência oculta, a pseudociência ou a religião alternativa. De certo, alguns membros da classe trabalhadora liam seus horóscopos ou acreditavam em aspectos do paranormal. Só que, por variadas razões, as classes trabalhadoras eram, em geral, mais isoladas das consequências políticas dessas ideias graças ao caráter do meio urbano e proletário – poderosamente à esquerda e, de fato, muitas vezes suavemente marxista.

Além da força dessa cultura proletária, o próprio interesse socioeconômico dos trabalhadores e sua típica filiação partidária com os social-democratas ou os comunistas, temos uma ênfase intelectual da teoria marxista em explicações materialistas sobre a realidade sociopolítica. Por tais razões, era bastante difícil para os partidos não marxistas e ideologias não materialistas penetrarem nas classes trabalhadoras alemãs, sobretudo entre os habilidosos trabalhadores em áreas urbanas, que se mostraram nitidamente resistentes à política conservadora, clerical e, em menor grau, fascista no período entreguerras.

Mesmo entre o eleitorado com uma maior propensão ao pensamento não materialista, baseado na fé, como os católicos rurais e de cidades pequenas, a força do meio social e religioso católico – reforçado por décadas de perseguição protestante – isolou os católicos devotos de formas alternativas de pensamento sobrenatural, assim como os radicais-nacionalistas, partidos desproporcionalmente protestantes, como o Partido Nacionalista do Povo Alemão e os nazistas.

Essas ideias parecem ter sido mais populares entre os alemães de classe média que talvez não fossem mais devotos católicos ou protestantes, mas que ainda se interessaram em religiões alternativas, esoterismo meio cristão meio pagão e outras ideias sobrenaturais. Essas tendências esotéricas também parecem nitidamente ter se originado na Alemanha, especialmente onde a política é objeto de preocupação – o que parece ser outra diferença entre o jeito como essas doutrinas se espalham e como o “imaginário sobrenatural” funcionava na França, Reino Unido, Estados Unidos, por exemplo, em comparação com a Alemanha e a Áustria.

Nos países anteriores, parece que as mulheres participavam desses movimentos tanto quanto os homens, certamente como seguidoras, mas também, muitas vezes, como lideranças. Na Alemanha e na Áustria, propagando o esoterismo, a pseudociência e o paganismo folclórico pareciam ser um empreendimento quase exclusivamente masculino.

Você nota isso no movimento nazista, que era também muito masculino. Eram principalmente homens brancos que não foram particularmente educados em termos de conhecimento científico, mas tinham certa educação universitária. Trabalhadores de colarinho branco, pequenos empresários, engenheiros, esses são os tipos de pessoas que tornaram essas ideias mais interessantes. Um perfil demográfico similar ao daqueles que gostam de assistir shows sobre “alienígenas” ou relíquias perdidas ou soldados mortos-vivos do Himmler no History Channel hoje em dia. São as pessoas que têm algum tipo de educação, alguns conhecimentos sobre história, mas estão abertos a argumentos pseudocientíficos e baseados na fé.

OB

De várias maneiras, isso se assemelha aos grupos de pessoas de hoje que creem em teorias de conspiração, como QAnon, movimento antivacina e etc.. Como os intelectuais, cientistas e autoridades reagiram a essa tendência pseudocientífica naquela época?

EK

Muitas figuras líderes de centro esquerda ou liberais observaram esse investimento nada saudável no pensamento sobrenatural, baseado na fé, e afirmaram: “aqui está um fenômeno que é anticiência, irracional e preocupado com o pensamento mágico, a história alternativa e a religião mágica, e parece estar ajudando as forças antidemocráticas de extrema direita. Precisamos ter cuidado com isso”.

Na imprensa, Bertolt Brecht e alguns socialistas zombaram dos nazistas por flertarem com essas ideias. Eles acharam chocante que os alemães acreditassem nos apelos emocionais de Hitler e Goebbels – em alguns casos escritos por Hanns Heinz Ewers, um escritor de terror famoso por romances sobre vampiros, cientistas loucos e adoradores de diabo e, depois, um propagandista nazista. Não compreendiam como algum partido poderia chegar ao poder sendo algo equivalente contemporâneo de Stephen King ou Clive Barker na promoção de sua causa. Alguns apoiadores dos partidos liberais, que perderam muitos mais de seus eleitores para os partidos conservadores e de extrema direita que os social-democratas ou os comunistas, estavam realmente prontos para botar a culpa de seu fracasso político no comportamento irracional dos alemães.

Alfred Rosenberg, o ideólogo nazista, assumiu que muitas pessoas votaram nos nazistas porque estavam interessadas no oculto. O influente filósofo político conservador Carl Schmitt notou um investimento generalizado no que ele chamou de “romantismo político”. Então, com o declínio do centro liberal, os únicos partidos políticos que poderiam se opor aos nazistas eram os partidos de esquerda, mas eles falavam uma linguagem totalmente diferente e eram incapazes de competir com os nazistas nos termos do apelo emocional ao nacionalismo e ao renascimento folclórico, fundamentados no “desejo de mito dos alemães” e desejo de transcender as crises políticas e econômicas e as divisões sociais do período entreguerras.

OB

E quanto ao próprio Hitler? Você poderia descrever qual era sua relação com ideias sobrenaturais, ocultismo ou pseudociência?

EK

Hitler foi perfeitamente emblemático como um típico membro do Partido Nazista – ou, de certo, líder nazista – a esse respeito. Ele não era tão envolvido em ideias sobrenaturais, por exemplo, tal qual Himmler, Hess ou Alfred Rosenberg. Sempre foi mais cético quanto às teorias sobrenaturais mais amplas sendo usadas de forma muito proeminente como parte da propaganda nazista. Ele, todavia, ainda as elaborou, e sua retórica foi misturada com argumentos pseudocientíficos, a invocação da mitologia e o apelo às emoções. Ainda que não comprasse todas as doutrinas de raça esotérica que alguns de seus colegas fizeram, ele entendeu sua importância para o Partido Nazista e empregou essa linguagem.

No meu livro Hitler’s Monsters, menciono a famosa citação de Hitler em Mein Kampf alertando o Partido Nazista a não se tornar lar de “acadêmicos errantes envolvidos em bearskins”. Lembrando do xamã do QAnon com pele de animal que invadiu o prédio do Capitólio norte-americano em janeiro de 2021, esse comentário obscuro de Hitler parece bem mais relevante. Como Donald Trump ou Marine Le Pen, que se afastaram publicamente dos “xamãs do QAnon” em suas fileiras, Hitler estava preocupado se o Partido Nazista pudesse perder apoio entre os eleitores da classe média tradicional.

Mesmo se Hitler publicamente tentasse divulgar nazistas de grupos religiosos esotéricos e pagãos, como a Sociedade Thule e o folclore “errante dos estudiosos em bearskins”, ele, porém, reconheceu que seus apoiadores estavam atraídos por ideias sobrenaturais e teorias de conspiração para dar sentido a um mundo cada vez mais complexo e ameaçador.

OB

Qual foi a relação dos nazistas com ideias sobrenaturais depois que Hitler chegou ao poder? Você menciona que era perigoso para o Partido Nazista deixar crescerem o movimento sobrenatural e o ocultismo, pois temiam que pudesse sair de seu controle.

EK

Não é que eles rejeitaram o raciocínio sobrenatural. Eles estavam com medo especificamente de grupos ocultos que representassem um obstáculo sectário a uma “comunidade racial” unificada liderada pelo o Partido Nazista. Essas doutrinas e associações ocultas, como a teosofia, a ariosofia, o movimento da antroposofia de Rudolf Steiner, e outros grupos folclóricos e messiânicos – que tiveram seus próprios rituais, tradições secretas e, acima de tudo, seus próprios “Führer” – foram vistas pelos nazistas como sectárias. Isso significava que eles detinham sua própria identidade sociocultural e, potencialmente, uma ideologia em competição com o nazismo.

Portanto, muitos estudiosos apontam a repressão ao ocultismo durante o Terceiro Reich – equivocadamente, em minha visão, dizendo “olha, os nazistas odiavam o ocultismo”. Só que eles não odiavam. Eles tentaram controlar certos tipos de ocultismo e outros grupos “sectários” por várias razões, da mesma maneira que tentaram controlar a religião, os programas sociais, mulheres, trabalhadores, camponeses ou industriais. A propensão natural deles como um regime fascista era tentar controlar as coisas e fazer com que todo mundo “trabalhasse para o Führer”, mas isso não significa que eles rejeitassem o völkisch esotérico ou religioso ou o pensamento pseudocientífico.

Então, sua hostilidade aos ocultistas não era do mesmo tipo que aquela que envolvia atitudes nazistas em relação aos socialistas ou comunistas ou, de certo, aos judeus. Eles reiteradamente aceitaram no partido ex-líderes ocultistas, desde que parassem de tentar manter organizações esotéricas-folclóricas separadas, como a Sociedade Thule ou a Werewolf Bund ou a Tannenburg Bund.

Os nazistas estiveram também divididos sobre o que era “ocultismo científico” e o que era o ocultismo popular para ganhar dinheiro. O vice de Hitler, Rudolf Hess, os membros do Ministério da Educação do Reich, Himmler, a SS e até o Ministério de Propaganda de Goebbels trabalharam para diferenciar as doutrinas ocultistas e as ideias e indivíduos “científicos” alternativos ou, ao menos, pragmaticamente úteis daquilo que chamavam de ocultismo de Boulevard popular ou “judaico”, como Erik Hannusen – que, eles diziam, apenas roubava o dinheiro das pessoas.

Assim, os nazistas vigiavam e periodicamente prendiam ou interrogam os ocultistas que supostamente faziam dinheiro minando o “esclarecimento público”. Contudo, para Himmler, Hess, Walther Darré, e outros líderes nazistas, os ocultistas científicos “reais” e cientistas alternativos ainda podiam averiguar se o raio de Thor era mágico ou se a posição das estrelas e da lua promovia a agricultura orgânica.

Esses “cientistas” foram patrocinados por vários ministérios nazistas e especialmente pela SS de Himmler. Então, eles seletivamente rejeitavam algumas ideias e indivíduos ocultistas como não sérios e anticientíficos, mas também estavam dispostos a legitimá-los e até mesmo empregá-los quando eram simpáticos à doutrina esotérica e alternativa particular ou à crença völkisch religiosa. O conceito duvidoso da Teoria do Gelo do Mundo parecia reforçar a ideia de uma raça ariana antiga e sugerir o questionamento da “física judaica” da mesma maneira a lei relatividade e a mecânica quântica. Daí o porquê de tanto Himmler como Hitler tê-la patrocinado.

OB

Você menciona que a imaginação sobrenatural “propiciou um espaço ideológico e discursivo em que era possível desumanizar, marginalizar os inimigos dos nazistas e transformá-los em monstros”. Você poderia elaborar como funcionou isso?

EK

Quando você sai do reino da ciência moderna, como a biologia e a física, começa a operar no reino do “imaginário sobrenatural”, onde tudo é possível ou justificável, visto que passa a misturar a biologia com esoterismo, história e arqueologia com folclore e mitologia, pode transformar os judeus asquenazes de um povo parcialmente europeu que compartilharam com alemães uma ancestralidade da Europa Central e Oriental, em monstros biológicos totalmente alienígenas, com tendências cruéis e sobre-humanas, por trás de tudo de malévolo ocorrido na história.

O imaginário sobrenatural, que mistura a ciência e o ocultismo, a história e a mitologia, permitiu também que os nazistas escolhessem as características que gostariam de atribuir ao inimigo deles, comparando-os a vampiros, zumbis, diabos e demônios. Também permitiu a eles que atribuísse certas características superiores aos alemães, delineadas, muitas vezes, de forma idêntica da mitologia ou da ciência alternativa.

Em seu último esforço para criar uma divisão partidária na elite no fim de 1944, eles invocaram os nomes de lobisomens, do folclore germânico. Apesar de os lobisomens serem considerados heróis trágicos ou nobres possivelmente ligados à horda de Odin ou aos berserkers nórdicos, eles eram na França seres amaldiçoados ligados ao satanismo e à feitiçaria. No folclore alemão, os lobisomens eram, portanto, heróis trágicos, ligados enfim ao sangue e ao solo; criaturas que defenderiam suas florestas e terra contra os intrusos eslavos. Por outro lado, os vampiros não eram figuras românticas trágicas nem mesmo heróis, como foram retratados na França ou no Reino Unido, mas parasitas orientais degenerados ligados aos judeus e aos povos eslavos, que estavam tentando minar a pureza do sangue alemão.

Folclore, mitologia, teorias sobre alienígenas, Teoria do Gelo Mundial, gigantes de gelo, deuses e monstros foram usados para justificar por que os alemães teriam o direito de invadir o Leste Europeu e subjugar ou destruir raças inferiores e o chamado “judaico-bolchevismo”.

O pensamento sobrenatural tinha um efeito multiplicador sobre as políticas violentas já existentes na eugenia dessa época, abusadas em tantos outros países, incluindo o Reino Unido, a Suécia ou os Estados Unidos, mas nunca em uma extensão desenfreada. O ingrediente “secreto” aqui, argumento eu, era o pensamento “sobrenatural”.

OB

Que influência o imaginário sobrenatural teve sobre o esforço de guerra dos nazistas?

EK

Em primeiro lugar, o imaginário sobrenatural influenciou as visões geopolíticas dos nazistas, que manipularam a arqueologia, o folclore e a mitologia para fins de política externa. Himmler e Rosenberg desenvolveram os argumentos – com base, em larga medida, em folclore, mitologia e ciência alternativa – de que, há milhares de anos, as pessoas nórdicas eram a civilização dominante na Europa e que eles tinham o direito de reivindicar esse status. Arqueologia ruim, o uso seletivo de biologia e da antropologia e a mitologia alimentou várias ideias a respeito da Europa Oriental e por que os alemães teriam direito, tais quais cavaleiros teutônicos medievais, de (re)conquistar o Leste.

O pensamento sobrenatural não era o único fator na determinação da política nazista, mas certamente reforçou as relações racistas e imperialistas dos nazistas em relação aos europeus orientais. Sim, em algum momento durante a guerra, os nazistas negociaram acordos com os ucranianos e os Estados bálticos por razões pragmáticas, mas, em última instância, eles tinham esse gigantesco complexo de pensamento sobrenatural subjacente às suas concepções de raça e espaço. Isso ajudou a justificar, por exemplo, a deslocar os poloneses para fora de suas casas e botar alemães em seu lugar ou enviar os judeus para os campos de concentração.

O imaginário sobrenatural estava também diretamente ligado a experimentos de eugenia durante o Holocausto. Um dos piores médicos nazistas, Sigmund Rascher, era filho de um dos mais célebres antroposofistas, Hanns Rascher. Você tem esse importante médico muito aberto a essa ideia de raça e espaço – que acompanha Ernst Schaefer na expedição ao Tibet de Himmler para descobrir as antigas origens da raça ariana – e mais tarde está disposto a fazer experiências em seres humanos para testar suas teorias pseudocientíficas e de Himmler.

Quando você toma o nível de ingenuidade científica e de confiança que os alemães tinham nos anos 1930 e o mistura com um regime imerso no pensamento sobrenatural, liderado por Hitler e Himmler, que não tinham experiência em ciência natural, que eram autodidatas, que liam folclore e mitologia e sonhavam com espaçonaves, e propicia a plataforma de uma guerra terrível onde a violência massiva já se tornava aceitável, isso é bastante perigoso. Junto à eugenia, isso tudo compôs o combustível desses experimentos horríveis e até mesmo do Holocausto.

OB

Parece que os alemães que acreditavam no imaginário sobrenatural realmente achavam que os eslavos eram vampiros, os judeus vermes e os soviéticos basicamente monstros.

EK

Eu não posso dizer a você que milhões de soldados em campo de batalha realmente viam judeus como monstros sobre-humanos; muitos alemães tinham amigos e cônjuges judeus antes e depois do Terceiro Reich. Entretanto, os nazistas certamente usaram o imaginário sobrenatural para desumanizar judeus, eslavos e bolcheviques e transformá-los em um inimigo desumano. Alguns alemães étnicos relataram terem sido atacados, confessamente durante o trauma da guerra, por “bebedores de sangue” eslavos.

A questão é: como isso aconteceu? Meu argumento é que não era somente a ciência da biologia ou imperialismo ou capitalismo industrial ou a violência em massa e o trauma da “guerra total” – todos esses fatores eram importantes –, mas também o imaginário sobrenatural nazista. O quanto alguém acredita de fato nas várias doutrinas, contos e ideias que constituíam esse imaginário dependia da pessoa. Às vezes, todavia, parece que alguns nazistas realmente acreditavam que havia outras espécies e raças – em particular, os judeus, que eram simplesmente monstros desumanos, literal ou figurativamente, e que tinham que ser eliminados para que a civilização “ariana” sobrevivesse.

Sobre o entrevistado

Eric Kurlander é professor de história na Universidade Stetson.

Sobre o entrevistador

Ondřej Bělíček é editor do A2larm.cz.

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