16 de novembro de 2021

Nova biografia de Lula põe Lava Jato em segundo plano e revê origens do PT

Livro de Fernando Morais diz que PF instalou grampo em apartamento do ex-presidente em 2016

Ricardo Balthazar

Folha de S.Paulo

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva carregado por apoiadores no dia em que se entregou à Polícia Federal e foi preso. Ricardo Stuckert/Instituto Lula (7 de abril de 2018)

Em abril de 2019, conversando com um carcereiro na cela em que ficou preso em Curitiba, Luiz Inácio Lula da Silva usou dois palavrões para se referir ao processo judicial que o colocou na cadeia, disse que sua condenação era absurda e chamou seus acusadores de canalhas e covardes.

Reproduzido pelo jornalista Fernando Morais em sua aguardada biografia do ex-presidente, cujo primeiro volume chega às livrarias nesta terça (16), o diálogo é a única passagem dos 17 capítulos da obra que menciona o tríplex de Guarujá, o apartamento no centro do caso que levou Lula à prisão.

O livro reconstitui em detalhes o período de 580 dias que o líder petista passou em Curitiba e revê sua trajetória da infância pobre às greves dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo e à fundação do PT, mas deixa em segundo plano as acusações feitas pela Operação Lava Jato contra ele.

Homem de barba e cabelos brancos, vestido com camiseta azul escuro, carregado nos ombros de apoiadores e cercado de militantes e bandeiras vermelhas. Homem de barba e cabelos brancos, vestido com camiseta azul escuro, carregado nos ombros de apoiadores e cercado de militantes e bandeiras vermelhas.

Ao narrar os dias que antecederam a prisão, o jornalista limita-se a reproduzir um trecho do discurso que Lula fez na frente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC antes de se entregar à Polícia Federal, quando refutou as acusações mais uma vez dizendo que o apartamento nunca foi seu.

Além disso, há apenas uma descrição sucinta do caso do tríplex e de outras duas ações da Lava Jato num apêndice do livro, em que Morais analisa o tratamento dado pelos principais veículos de comunicação ao ex-presidente nos últimos anos e critica a cobertura das investigações sobre corrupção.

"Essas referências me pareceram suficientes para o leitor entender o que motivou a prisão", diz o jornalista, ao explicar as opções que fez ao escrever a biografia. "As acusações contra ele foram todas derrubadas e o mais importante para mim é contar coisas que eu pude ver de perto e que a imprensa não deu."


Lula foi condenado pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro em três instâncias do Judiciário por causa do apartamento em Guarujá, que a empreiteira OAS afirmou ter reformado para ele. A condenação o impediu de disputar as eleições de 2018, quando o presidente Jair Bolsonaro foi eleito.

No início deste ano, o Supremo Tribunal Federal anulou essa ação e outras três movidas contra o petista, após concluir que o ex-juiz Sergio Moro foi parcial na condução dos processos. Desde então, Lula se livrou de mais de uma dezena de ações, sem que se discutisse o mérito das acusações.

A sucessão de vitórias abriu caminho para uma campanha de reconstrução da imagem do líder petista, que se prepara para disputar sua sexta eleição presidencial em 2022. Documentos do PT o descrevem como vítima de injustiças e minimizam os casos de corrupção descobertos no seu governo.

Revelações da nova biografia reforçam a ideia de que o ex-presidente foi alvo de perseguição. Morais diz que, em março de 2016, ao realizar buscas no apartamento de Lula em São Bernardo do Campo, a Polícia Federal instalou embaixo do sofá da sala um discreto microfone para escutas clandestinas.

Segundo o jornalista, um dos seguranças do petista encontrou o dispositivo numa varredura realizada poucas horas depois da saída dos agentes. Os advogados de Lula nunca questionaram as autoridades sobre o grampo porque não tinham provas para vinculá-lo à ação policial, afirma Morais.

Ele diz também que a PF usou câmeras secretas para monitorar o que acontecia dentro do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC nos dias em que Lula se concentrou ali com apoiadores antes de se entregar. Segundo Morais, uma delegada mostrou a um dirigente do PT as imagens captadas pelas câmeras.

Autor de biografias celebradas como a da militante comunista Olga Benário Prestes e a do magnata das comunicações Assis Chateaubriand, o jornalista trabalhou dez anos no livro sobre Lula. Os dois se conheceram durante as greves do ABC na década de 1970, quando Morais era deputado estadual.

Ele calcula ter realizado 170 horas de entrevistas com o ex-presidente. Algumas das principais conversas ocorreram em hotéis e jatinhos, durante viagens de Lula para palestras no exterior. Morais acompanhou o petista em 18 viagens e testemunhou sobre elas num dos processos da Lava Jato.

O jornalista estava no Instituto Lula quando Moro decretou a prisão do ex-presidente e acompanhou a concentração no sindicato até a hora em que ele se entregou. Morais também teve acesso a uma centena das milhares de cartas escritas pelo petista na cadeia, das quais o livro reproduz uma dúzia.

Na mais significativa, enviada a assessores quando o Superior Tribunal de Justiça confirmou sua condenação no caso do tríplex, o ex-presidente expressa ceticismo sobre suas chances nos tribunais. "A minha prisão é Política", escreveu. "Só sai daqui com Política e não com ações Jurídicas."

O livro ainda transcreve boa parte do depoimento que Lula prestou à polícia durante a greve dos metalúrgicos de 1980, quando os dirigentes do sindicato de São Bernardo do Campo foram presos por 31 dias sem mandado judicial, com base na antiga Lei de Segurança Nacional.

Ao rever a atuação de Lula no sindicalismo e nas articulações para criação do PT, o jornalista mostra a metamorfose que ele sofreu nos anos finais da ditadura militar. "Foi quando o peão avesso à política e inimigo de comunistas se politizou e se transformou ele mesmo numa liderança política", diz Morais.

O volume termina com as duas primeiras incursões eleitorais de Lula. Em 1982, ele se candidatou a governador de São Paulo e terminou em quarto lugar. Em 1986, aconselhado pelo cubano Fidel Castro a seguir na política, disputou uma cadeira de deputado federal e recebeu votação recorde.

Ao tratar da campanha de 2018, o livro revela que o ex-presidente ficou contrariado com a estratégia adotada pelo ex-prefeito Fernando Haddad, que assumiu a candidatura petista após a renúncia de Lula e chegou a abandonar a cor vermelha do partido ao buscar alianças no segundo turno da disputa.

Apesar da proximidade com o biografado, Morais afirma que o petista não teve acesso antecipado ao livro. "Ele não sabe como começa nem como termina", diz o jornalista. Um exemplar foi enviado a Lula há poucos dias, antes que ele embarcasse para o giro que decidiu fazer pela Europa nesta semana.

O segundo e último volume da obra só deverá ser publicado em 2023. Ele tratará dos dois mandatos de Lula como presidente da República e do governo da sucessora que ele escolheu, Dilma Rousseff, até a deflagração da Lava Jato e a crise que levou à deposição da presidente no seu segundo mandato.

LULA: VOLUME 1

Preço R$ 74,90 (448 págs.)

Autor Fernando Morais

Editora Companhia das Letras

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