31 de dezembro de 2022

Discurso de Lula na posse terá críticas à herança de Bolsonaro e defesa pela união do país

Presidente eleito dirá que Brasil está dividido, exaltará a política e pregará combate à fome

Catia Seabra
Julia Chaib
Victoria Azevedo

Folha de S.Paulo

Em seu primeiro discurso como presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, 77, descreverá um cenário de dificuldades econômicas e sociais herdado das mãos de Jair Bolsonaro (PL), sem obrigatoriamente citar o nome de seu antecessor.

Ao tomar posse neste domingo (1º) para seu terceiro mandato presidencial, Lula também falará sobre os desafios à frente do governo, além de pregar a união e a pacificação do país.

A programação da posse prevê dois pronunciamentos: pouco depois das 15h no Congresso Nacional e às 16h45 no parlatório do Palácio do Planalto. Os discursos deverão ter duração de cerca de 15 a 20 minutos cada.

Às vésperas da cerimônia de posse, a redação final dos pronunciamentos estava restrita a poucos colaboradores de Lula, segundo os quais o texto ainda poderá sofrer mudanças. Aliados do presidente apostam na inclusão de seus habituais improvisos, especialmente no parlatório.

O presidente diplomado Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante anúncio de ministros. - Pedro Ladeira -29.dez.2022/Folhapress

Há a possibilidade ainda de Lula dar uma declaração à noite, durante um dos shows do Festival do Futuro na Esplanada dos Ministérios —mas a decisão só será tomada no dia, após avaliação sobre as condições de segurança.

O discurso no Congresso Nacional, que ocorrerá logo após a assinatura do ato que o efetivará no cargo, será voltado a autoridades e terá caráter mais institucional. Lula tem dito em conversas com deputados que não quer cansar a audiência.

Segundo aliados, o presidente pretende exaltar a política como ferramenta para fortalecimento da democracia.

Aos parlamentares e demais autoridades no Congresso deverá seguir mais fielmente o texto redigido e enaltecer o respeito às instituições.

O presidente prometerá previsibilidade na condução da política econômica e reconquista de credibilidade internacional, evocando seus dois mandatos anteriores como prova de sua responsabilidade fiscal.

Ele afirmará ainda que o Brasil vai recuperar suas relações internacionais, o que contribuirá para a economia do país.

Para aliados, a descrição dos problemas deixados por Bolsonaro servirá para fundamentar a promessa de um futuro melhor. Ele deverá condenar, por exemplo, a política armamentista do atual chefe do Executivo para propor a paz.

Lula também deverá citar os níveis de desmatamento para estabelecer como meta a defesa do meio ambiente.

Já no discurso no parlatório, em que simbolicamente ele se dirige aos populares na Praça dos Três Poderes, Lula definirá como prioritária a retirada do Brasil do mapa da fome.

Tanto no Congresso como no parlatório, Lula deverá afirmar que o Brasil voltou a ter fome e que combater a miséria é sua prioridade. Segundo aliados, Lula apontará que a sociedade saiu dividida das eleições e pregará a reconciliação do país.

O petista foi eleito em 30 de novembro, no segundo turno, com 50,9% dos votos válidos contra 49,1% de Bolsonaro, uma diferença de 2,1 milhões de votos.

Desde então, apoiadores de Bolsonaro têm realizado protestos pelo país e inclusive acamparam em frente a quartéis militares questionando o resultado das urnas, em atos antidemocráticos com pedidos de intervenção das Forças Armadas.

O discurso de posse ainda ocorrerá nove dias depois de um bolsonarista armar um explosivo em um caminhão em local próximo ao aeroporto de Brasília. O artefato foi encontrado e desativado pela polícia.

George Washington de Oliveira Sousa, o apoiador que planejou o atentado, disse em depoimento que a ideia era "dar início ao caos" que levaria à "decretação do estado de sítio no país", o que poderia "provocar a intervenção das Forças Armadas".

Diante dos acontecimentos, Lula criticará no Congresso ameaças à democracia e ressaltará a importância da política no processo de reconstrução do país.

O petista entregou 9 dos 37 ministérios a MDB, União Brasil e PSD, partidos de centro que não o apoiaram na eleição. O objetivo foi atraí-los para sua base de apoio no Parlamento.

Tanto em conversas reservadas como publicamente, Lula tem dito não ter "medo de escolher político" para sua equipe.

"Porque sou daqueles que acha que, fora da política, a gente não encontra solução para quase nada neste planeta", afirmou o petista recentemente, numa prévia do discurso que deve adotar na posse.

Segundo aliados, Lula deve dizer nos discursos que começará o mandato com o Brasil em situação econômica e socialmente difícil; também falará sobre os desafios que enfrentará.

Deverá afirmar que o Brasil, no governo Bolsonaro, ficou posicionado como pária no mundo e que isso prejudica o país do ponto de vista econômico.

Um dos principais aspectos do discurso no Parlamento será a avaliação de que o governo dará foco às relações internacionais com vários países e que isso se refletirá em um ambiente favorável à atração de investimentos.

Lula condenará o discurso de ódio e fake news que predominou durante a campanha presidencial.

De acordo com aliados, o discurso será semelhante ao que ele fez quando ganhou a eleição. Naquele dia, Lula afirmou que "não existem dois Brasis" e prometeu trabalhar pela conciliação do país.

O petista não mencionou na ocasião o nome de Bolsonaro e defendeu ainda o retorno à normalidade democrática e a volta de políticas de combate à desigualdade social. Ele também colocou o combate à fome como prioridade.

30 de dezembro de 2022

Jake Xerxes Fussell faz música folk realista para tempos difíceis

As canções folclóricas americanas registram uma história de opressão e muitas vezes alimentam o fogo do protesto. A música do artista folk Jake Xerxes Fussell se esforça para sustentar essas tradições musicais da classe trabalhadora enquanto as reinterpreta para a era moderna.

Chandler Dandridge


Jake Xerxes Fussell. (Jake Xerxes Fussell / Facebook)

Lead Belly está morto. Bob Dylan mora em Malibu. O Gaslight Cafe agora é um lounge de coquetéis artesanais. Não importa - ainda há música folk a ser encontrada na cidade de Nova York.

Em Red Hook, em um ângulo agudo entre o Battery Tunnel e a Brooklyn-Queens Expressway, você encontrará o Jalopy Theatre. Parcialmente financiado por fundos públicos, ocupa três andares orgulhosos como o principal teatro e escola de música tradicional da cidade de Nova York. Eu vim ao Jalopy para conhecer o artista aclamado pela crítica que está ajudando a carregar a tocha da música tradicional para uma nova geração.

Jake Xerxes Fussell me cumprimenta com um sorriso alegre, parecendo St. Nick depois de fazer a barba. Seu chapéu tem o nome do rio Eno, a via navegável que atravessa Durham, Carolina do Norte, onde o georgiano nativo vive agora. Na maioria das vezes, especialmente quando ele está no palco, a aba inclinada do chapéu cobre seus olhos. Mas de vez em quando, Jake joga o boné para trás para revelar um olhar brilhante e firme, devoto como um batista.

Mas a dúvida é a sombra de toda devoção. “Não está totalmente claro na minha cabeça o que eu faço”, ele me diz no apartamento em cima do Jalopy. “Procuro minimizar a preciosidade com que abordo o assunto. Mas também para ter algum senso de reverência ou respeito pelas fontes. Então esse é um equilíbrio engraçado.”

Mais tarde naquela noite de terça-feira em seu show esgotado um pouco mais ao norte no Brooklyn, Jake cantou sobre as condições de trabalho em barcos rebocadores, pêssegos crescendo em vinhas de batata-doce, cuidano de gado e o júbilo perverso de se casar novamente na segunda-feira depois de perder sua esposa em uma noite de sexta-feira. Cada um dos quatro álbuns de Fussell contém uma música sobre um moinho ou uma mina. Ele canta sobre a Carolina do Sul, o Arkansas, a Flórida e a Geórgia, traçando trilhos como uma ferrovia atravessando o sul dos Estados Unidos.

Certamente esses sujeitos classificam a música de Fussell como música folclórica. Mas o que exatamente é música folclórica? Poderíamos citar Llewyn Davis, dos irmãos Coen, que disse: “Se nunca foi novo e nunca envelhece, é uma canção folclórica”. Também podemos consultar o filósofo alemão do final do século XVIII, Johann Gottfried Herder, que cunhou o termo folk e viu cada folk distinto como sendo ligado por língua, geografia e unidades culturais comuns. Uma canção folclórica, para Herder, seria uma canção criada por um desses grupos e representaria o espírito daquela comunidade e as tradições que a produziram.

Em nossa era pós-industrial, a ideia de comunidades isoladas ligadas por suas próprias tradições é estranha e anacrônica. Na história americana, nosso povo costumava ser meeiro, marinheiro, trabalhador rural, mineiro, ferroviário, trabalhadora doméstica e outros membros de uma classe trabalhadora distintamente americana. Nossas canções folclóricas catalogavam uma história de opressão e muitas vezes alimentavam o fogo do protesto. Sustentar essas tradições musicais arcaicas da classe trabalhadora na sociedade alienada de hoje requer, paradoxalmente, uma imaginação avançada e voltada para o futuro.

Romanceando o povo

No favorito da multidão "The River St. John", Jake canta:

I've got fresh fish this morning, ladies
They are gilded with gold
And you may find a diamond in their mouths
They are just from the River St. Johns, St. Johns
They are just from the River St. Johns

"Isso veio de uma gravação de campo de um cara reencenando sua memória de infância de peixeiros na Carolina do Sul", Jake me diz. “Foi gravado no final dos anos 30 para o WPA”, significando a Works Progress Administration, um programa de obras públicas do New Deal. “Foi intitulado 'Fishmongers Cry', apenas um grito de rua acapella. Há toda uma tradição de vendedores que vendem coisas assim.”

Então Fussell sentou-se ao piano para encontrar alguma música para colocar o choro. Eventualmente, ele estava escolhendo a melodia em uma Fender Telecaster mais velha do que ele, seu som característico. Cada novo verso é pontuado por um forte acorde maior, mas quando o vendedor cita a origem do peixe, Jake está cantando sobre um acorde menor abandonado. Porque quão alegre é realmente o grito de um homem vendendo peixe em um dia de trinta graus nas úmidas Sandhills da Carolina do Sul?

Uma tradição na qual Fussell não está interessado é a de “namorar o povo”. Ele compartilha sua admiração pelo grande folclorista americano Ralph Rinzler, que disse que a “idealização da pastoral só pode existir quando há uma elite urbana ou classe privilegiada que é separada do campesinato idealizado por educação, posição social e recursos econômicos.” Naturalmente existe também uma separação entre o folk e o músico moderno que interpreta a sua música tradicional. Fussell fica pensativo sempre que nossa conversa se volta para a questão da autenticidade, o que acontece com frequência.

Ele minimiza sua boa-fé, mas Fussell trata seu ofício honestamente. Ele é filho de uma professora e curadora de um museu, e sua casa estava cheia de amigos folcloristas locais e regionais quando Jake estava chegando. Músicos tradicionais em turnê ou gravadores de campo recém-saídos de uma viagem ao Alabama para capturar alguma tradição local em fita paravam para jantar.

“É parte do motivo pelo qual não estou interessado em namorar o povo”, diz Jake. “Eu cresci em meio a pessoas que eram músicos tradicionais, mas faziam parte de seu mundo atual. Eles não faziam parte de nenhum tipo de sociedade pastoral e isolada que fosse envolta em âmbar.”

Um desses músicos tradicionais foi a icônica blueswoman da Geórgia, Precious Bryant. Ela não tinha carteira de motorista e, quando adolescente, Jake a levava para suas apresentações. Precious se encantou com o jovem músico, ensinando-o a tocar violão com o sabor do Piemonte, agora sinônimo da própria execução de Fussell.

“Ela me ensinou enquanto usava agasalhos em sua casa móvel”, diz ele. “De certa forma, parece que estou verificando minha própria autenticidade ou algo assim, mas o que estou dizendo é que ela fazia parte do mundo atual.”

O estilo do sul

O apartamento no topo do Jalopy Theatre é ocupado pelo músico folk nativo de Greenwich Village e diretor do Brooklyn Folk Festival, Eli Smith. Guitarras, rabecas, banjos, bandolins, banjolins, todos os instrumentos de cordas da orquestra folclórica adornam as paredes dos apartamentos. Acabamos na cozinha, onde o que parece ser o primeiro gravador de bobina a bobina já feito fica com um álbum inacabado ainda no deck para a gravadora Jalopy, que Eli codirige.

“Se você está em Nova York, precisa comer um pão ázimo autêntico”, diz Eli, encontrando espaço no balcão para um pedaço de queijo e uma caixa de pizza cheia de pão sem fermento.

Jake fica com Eli sempre que se apresenta na cidade de Nova York. A amizade deles foi forjada enquanto trabalhavam em uma loja de discos em San Francisco no início da infância. Como um bom e velho sulista como Fussell foi parar lá? Um conto antigo: “Segui uma garota até São Francisco”, diz ele.

Depois que a aventura acabou, Jake se estabeleceu com sua irmã em Oxford, Mississippi, uma cidade imersa em uma tradição folclórica sulista mais literária do que musical. “Eu realmente não consegui encontrar meu pessoal lá”, diz ele, “musicalmente falando”. Por fim, ele acabou se formando em Estudos do Sul na universidade local, onde pesquisou a música de violino esquecida dos Choctaw, um povo indígena do sudeste.

Foi morando no oeste que Fussell se interessou por seu próprio sulismo, porque “todo mundo comentava sobre meu sotaque, que eu realmente não acho que tenho”. Ele diz isso com um sotaque tão sulista que acho que deve estar brincando comigo, mas não está.

Em viagens de Oxford para Memphis, Jake aprendeu a música da região montanhosa do Mississippi com seus progenitores. Ele se juntou e começou a se apresentar com o reverendo John Wilkins, filho do lendário cantor de blues gospel, reverendo Robert Wilkins. Ele também tinha uma residência semanal onde aprimorou sua própria voz e cantou seu tom de música folk em um bar barulhento para universitários desinteressados. Levaria anos para que sua música encontrasse um público mais amplo e atento, mas eventualmente o faria.

Trajes folclóricos

O matzo é realmente excelente. A conversa no apartamento passa de Woody Guthrie ao Kingston Trio até os dias atuais.

“Revivalizações folk sempre acontecem em crise”, diz Eli. “Os anos 1930, os anos 60 e até agora. Durante as crises, as pessoas procuram algo autêntico e reconfortante.”

Com as questões da luta trabalhista e dos direitos civis ocupando o centro do palco pós-pandemia, parece que estamos circulando pela canção da luta social.

“Quero dizer, olhe para o álbum de Taylor Swift alguns anos atrás,” diz Jake. “Chamava-se Folclore.”

“Ela roubou nossa hashtag!” diz Eli, rindo.

“Na verdade, eu meio que gostei desse disco”, confessa Jake.

Eu também gosto do disco, e digo isso. A música do álbum tem pouco a ver com tradições folclóricas, mas o título e a marca do álbum são inspirados em algo folk. Sugiro que Swift está fazendo o que Rinzler alertou contra: abstrair e romantizar o conceito de folk.

Eli, o mais radical dos dois soldados da música folk, vem em defesa de Swift, concordando que há alguma influência folk genuína em sua música. “Quero dizer, tudo é tradicional de alguma forma”, diz ele, encolhendo os ombros.

Mas certamente, eu digo, não há como negar que o que Jake e Eli estão fazendo é marcadamente diferente de artistas que usam folk como uma fantasia. Jake não tem tanta certeza. “Acho que todos os músicos precisam ter um truque”, diz ele. “Também há uma grande tradição nisso. Todo mundo apresenta algo. E, de certa forma, também estou usando uma fantasia.”

“Woody Guthrie não estava trabalhando na ferrovia”, digo.

"Isso mesmo", diz Jake. “Existe uma certa distância entre mim e algumas das tradições das quais me baseio ou nas quais me inspiro. E talvez isso seja problemático em algum nível, provavelmente é. Mas sinto que a arte é cheia de problemas.”

Acho que Jake está se vendendo a descoberto. Sua música é mais artística e socialmente consciente do que, perdoe-me, a de Swift. Como a de Guthrie, pode ser entendida como música de protesto, mas o protesto é muito mais sutil. Pergunto sobre “Washington”, a música de encerramento do mais novo álbum de Jake. É uma balada suave e fúnebre, com apenas um verso da letra repetida várias vezes:

General Washington,
noblest of men,
his house, his horse,
his cherry tree,
and him.

A letra foi extraída de um tapete pendurado do final do século XIX que Jake viu em um livro de estampas têxteis. “Ele tinha esse tipo de representação engraçada de Washington. E tinha aquele pequeno verso costurado nele. Mas pensei, como vou cantar sobre o General Washington? Nunca fui uma pessoa patriota e não admiro muito George Washington. Certamente não penso nele como o mais nobre dos homens.

E como um coro voltamos à questão da autenticidade.

“Então, para mim”, diz ele, “muito gira em torno dessa coisa da cerejeira, que sabemos ser um mito para começar. É uma narrativa que você conta quando criança quando cresce neste país. E é sobre mentir. Mas é mentira. Então, para mim, tornou-se uma música sobre as mentiras que herdamos e contamos sobre este país e sua grandeza”.

O Barão Ladrão moderno

Jake me convida para acompanhá-lo em algumas tarefas de preparação. Ele abre espaço em sua minivan. O que eu esperava? Um vagão? Cavalo e carroça? Mas a minivan é a expressão autêntica de sua vida atual: em Durham, ele e sua companheira estão criando um filho pequeno.

Faz apenas alguns anos que Jake conseguiu largar seu emprego em uma das lojas de eletrodomésticos e móveis usados da Habitat for Humanity. Embora seu primeiro disco tenha sido lançado em 2015, foi o terceiro, o álbum Out of Sight de 2019, que promoveu Jake ao status de artista em tempo integral e músico profissional. E sua gravação de 2021, Good and Green Again, foi ainda melhor.

Percorremos algumas ruas de superfície. À nossa direita, cobrindo uma cerca de arame, um enorme anúncio de um uísque artesanal diz: “Das minas de Rosendale aos alambiques de Red Hook”.

Nossa conversa se volta para o barão ladrão do dia: Spotify.

“Essa coisa do Spotify é um absurdo”, diz ele, falando sobre a exploração dos artistas pelo streamer. “Acho que quanto mais transparência e quanto mais francos forem os artistas e outras pessoas da indústria, mais as coisas vão mudar. Não é um debate filosófico realmente sofisticado. Há um número e deve ser alterado até esse número. E então os artistas realmente ganhariam essa quantia. Jake apóia a campanha do Sindicato de Músicos e Trabalhadores Aliados, um sindicato iniciante que busca criar um programa padronizado de direitos autorais de streaming de música. A campanha conta com o apoio da deputada Rashida Tlaib, que pretende encaminhar ao Congresso uma resolução sobre o tema.

Paramos no apartamento do gerente de Jake para pegar mais duas caixas de mercadorias. A minivan já está repleta de caixas fechadas de mercadorias Fussellian para serem vendidas na próxima turnê. Ele tem discos e CDs - a forma tradicional de apoiar um artista - e camisetas e pôsteres. Pergunto a Jake sobre “cortes de mercadoria”, um termo que nunca ouvi, mas vi no dia anterior em seu Instagram.

“Muitos dos locais maiores e alguns locais menores terão uma parte de suas vendas de produtos. Sem qualquer motivo real, é apenas uma prática padrão. E pode ser de 10 a 35 por cento.”

Isso parece um imposto incrível para impor aos artistas.

“Seria uma coisa se os artistas recebessem uma parte das vendas do bar”, continua ele, “mas você não. As quantias que eles estão recebendo dos cortes de produtos em comparação com o que o local recebe em qualquer noite é realmente uma troca para eles. Mas para um artista tentando seguir em frente é muito dinheiro.”

Estacionamos do lado de fora do local e andamos um ou dois quarteirões para pegar uma bebida. Acabamos em um bar gay mal iluminado chamado Macri Park, onde somos os únicos clientes. Alguns funcionários estão digitando em laptops do outro lado do bar, planejando um evento para o fim de semana. Pedimos duas cervejas: clara para ele, gengibre para mim.

“A pergunta na cabeça de todos,” eu digo, “é o que há com o nome Xerxes?”

Jake ri. "Essa é a pergunta na mente de todos?"

É o verdadeiro nome do meio de Jake. “Recebi o nome de um dos amigos de meus pais, o ceramista georgiano Dorris Xerxes Gordy.” Jake continua me contando sobre como ele se inscreveu no Ancestry.com para investigar mais este assunto. Acontece que Xerxes era um nome muito popular no Sul na virada do século XX.

Com nossas cervejas meio vazias, Jake inicia uma conversa com a bartender Molly sobre a atitude igualitária de RuPaul em relação às taxas de licenciamento - entre shows de drag ao vivo, o bar também exibe RuPaul's Drag Race. Os olhos de Jake se desviam para um pequeno palco triangular, adequado para um, em um canto do bar. Suspeito que ele esteja pensando nos artistas, seus termos e condições, como o local os apoia e como eles se sustentam.

Pergunto a ele sobre suas maiores ambições, já que seus álbuns estão se saindo cada vez melhor a cada lançamento, e ele fez mais turnês por este país este ano do que em qualquer outro.

“Gostaria de ter uma residência mensal em algum lugar de Durham”, diz ele.

Amplificação complicada

Quando chego ao clube mais tarde, a banda de abertura Joanna Sternberg está no meio de um set excelente. O lugar está lotado, transbordando para o pequeno saguão. Pergunto ao engenheiro de som se posso sentar na varanda com ele. Eu me empoleiro em uma cadeira quebrada e pairo sobre a sala como um corvo.

Jake aparece por trás da cortina vermelha, com uma Telecaster desgastada na mão. Ele é recebido com aplausos e vivas. Ele conecta sua guitarra, toca um acorde rápido para verificar o som e começa a dedilhar “Jump for Joy”, a faixa de abertura de seu segundo disco, What in the Natural World. Depois de indicar animadamente que reconhecem a música, a multidão fica quieta.

O amplificador de Jake começa a estalar inesperadamente. Ele não consegue tolerar isso e pergunta à multidão se tudo bem se ele fizer uma pequena pausa para resolver o problema. O engenheiro de som corre para o palco. Depois de alguns ajustes malsucedidos, ele substitui o clássico Fender Deluxe Reverb de Jake por um amplificador de casa inferior, proveniente de algum lugar nas entranhas dos bastidores.

Jake começa “Jump for Joy” novamente e você nunca saberia que não era por meio de sua amplificação preferida. Para Fussell, o equipamento parece secundário. Na verdade, quando não está tocando seu Fender Telecaster colecionável, ele o carrega da mesma forma que o resto de nós carregaria uma sacola de compras. Muitos músicos, especialmente na era de hoje, obtêm seu poder de suas guitarras, pedais ou amplificadores. Mas para Jake, claramente há algo mais profundo em ação.

Com sua voz sonora e estrondosa, que mostra seu sotaque sulista, ele cativa a multidão por noventa minutos. Eles torcem alto depois de cada música, ao que ele responde suavemente: “Obrigado a todos”. Às vezes, ele menciona de onde aprendeu a música: um colega georgiano lhe ensinou esta, ele aprendeu aquela no cancioneiro de alguma família e assim por diante. Mas quando ele fica muito desconfortável em apregoar sua própria autenticidade, ele inverte a fórmula. “Essa aprendi no campo”, diz ele, depois de cantar uma música sobre cowboys. "Psych! Nunca nem andei a cavalo."

A multidão está concentrada, extasiada. Apenas um punhado de pessoas pega seus telefones para gravar e enviar sua música favorita para suas histórias no Instagram. E até para eles parece que quinze segundos são suficientes, que seu instinto lhes diz que a verdadeira história está no clube esta noite.

Banjo versus bail

Alguns dias depois, lembro-me da declaração de Eli sobre as pessoas que procuram algo significativo e autêntico em tempos de crise. É assim que comparo minha experiência no clube naquela noite com o desespero de acordar para ler as notícias do presidente Biden bloqueando greves ferroviárias ou do Congresso votando quase US $ 900 bilhões em gastos com defesa enquanto as pessoas lutam para pagar assistência médica?

Eu mando uma mensagem para Jake, procurando consolo do compositor, para perguntar se a música é a resposta.

“Não tenho muita confiança na capacidade da música de mudar as coisas em um nível material”, diz ele. “A música como ferramenta política funciona quando você percebe que é apenas uma projeção de um ideal e não uma ferramenta literal com resultados. Se eu estivesse na prisão, a última coisa que eu gostaria que alguém trouxesse para me tirar de lá seria um banjo. Prefiro ter um advogado e algum dinheiro para fiança.

Não é o consolo que eu esperava. Ele continua: “A música é apenas uma parte de uma conversa que reflete a cultura e a cultura está mudando o tempo todo e repetidamente se dobrando sobre si mesma de maneiras engraçadas”.

Como em uma canção folclórica sem idade, haverá outro verso, outra chance de derrotar os magnatas das ferrovias e acabar com guerras sem sentido. Enquanto isso, temos a sorte de ter músicos folk para falar sobre a luta e nos lembrar de que lado estamos.

Colaborador

Chandler Dandridge é um psicoterapeuta e educador americano. Seus interesses clínicos giram em torno do vício, da ansiedade e da exploração de formas criativas de melhorar a saúde mental pública.

A economia deve melhorar em 2023? Sim

Elevação de gastos sociais combaterá pobreza e desigualdade

João Prates Romero

Professor de economia do Cedeplar-UFMG (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais)


O ano de 2023 marca a retomada de um modelo de desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo, substituindo o modelo de crescimento predatório e excludente do governo Jair Bolsonaro (PL). O crescimento do PIB será um pouco menor em 2023, mas alicerçado em bases qualitativamente superiores, que permitirão maior crescimento futuro.

As reformas tributária e do teto de gastos, prioritárias segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, terão impacto significativo na economia. A simplificação tributária melhorará o ambiente de negócios e, por reduzir custos, motivará a produção industrial. Aprimoramentos na tributação da renda, com taxação de dividendos e ajuste de faixas, distribuirão renda do topo para a base, elevando o consumo. A nova regra de gastos possibilitará aliar responsabilidade fiscal e provisão de serviços públicos essenciais ao permitir certo crescimento real do gasto. O novo regramento recolocará a dívida em trajetória sustentável, contribuindo para a redução dos juros.

O futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante coletiva de imprensa no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), em Brasília - Pedro Ladeira - 13.dez.22/Folhapress

A PEC da Transição é peça-chave para o ajuste de rota em 2023. Ela libera recursos para recompor gastos com o Bolsa Família, saúde e educação, e para retomar investimentos em infraestrutura, ciência, tecnologia e proteção ambiental.

A elevação dos gastos sociais impulsionará a economia ao mesmo tempo que combaterá a pobreza e a desigualdade. Estimativas de Fernando Gaiger Silveira (Ipea), José Roberto Afonso (Ibre-FGV) e outros mostram que a provisão de serviços públicos em saúde e educação gera redução expressiva da desigualdade. Além disso, saúde e educação elevam a produtividade.

Retomar níveis adequados de investimento em infraestrutura, ciência e tecnologia é crucial para elevar a produtividade e o emprego. Nos últimos seis anos, o investimento em infraestrutura tem sido insuficiente para repor a depreciação. Infraestrutura deteriorada significa maior custo país, menor incentivo ao investimento privado e menor competitividade externa. Na ciência e tecnologia, o quadro é ainda pior: o dispêndio atual se encontra em nível próximo ao de 15 anos atrás. Ciência e tecnologia são cruciais para o desenvolvimento, pois elevam a produtividade e o bem-estar social. Afinal, foi a ciência, via Butantan, Fiocruz e tantas outras instituições, que nos salvou da pandemia.

A destruição ambiental em curso no Brasil, por sua vez, aumenta os eventos climáticos extremos, como secas e inundações, afetando negativamente a infraestrutura e a produção agrícola. A retomada dos gastos com fiscalização ambiental atrai investimentos externos, contribui para reverter a mudança climática e reduz as perdas que ela causa.

A inflação, que vem caindo nos últimos meses, dificilmente será afetada pelos gastos liberados pela PEC. A economia brasileira ainda está com desemprego de 8% e 40% de informalidade, o que permite que a oferta acomode algum aumento da demanda. A inflação em 2021 e 2022 decorreu, sobretudo, dos maiores preços de combustíveis e alimentos, devido à desorganização da oferta global causada pela pandemia e pela guerra da Ucrânia. Com a queda recente do preço do petróleo e a desaceleração dos países avançados, espera-se que a tendência de queda da inflação continue em 2023. Isso permitirá uma gradual redução dos juros, estimulando a economia e melhorando a trajetória da dívida.

É inegável que o desafio é grande, mas há motivos de sobra para otimismo com o novo modelo de desenvolvimento da economia brasileira.

Bolsonaro sai pela porta dos fundos e arrisca vácuo político

Em live patética, ex-presidente em atividade tenta se desvincular de extremistas que insuflou

Igor Gielow

Folha de S.Paulo

Para quem esperava um Götterdämerung, um crepúsculo dos deuses wagneriano, o ocaso da Presidência de Jair Bolsonaro (PL) chegou ao fim formal nesta sexta (29) com um sussurro algo patético.

Na forma de uma lacrimosa live, Bolsonaro encerrou dois meses de mutismo para entregar um pacote de platitudes e lamentos. Não chegou a questionar as urnas como de costume, moderando sua agressividade talvez em vista dos dois dias de foro privilegiado que tem pela frente.

Bolsonaro durante sua live de despedida na biblioteca do Palácio da Alvorada - Jair Bolsonaro no Facebook

Nem tampouco admitiu a derrota para Luiz Inácio Lula da Silva (PT), embora o tenha feito de forma tácita ao admitir que o sol nascerá no dia 1º como sempre. Titubeante, não apagou o efeito que sua reclusão final no Palácio da Alvorada potencialmente causou no movimento que o levou ao poder no pleito de 2018.

Segundo um político que o visitou na clausura na semana retrasada, Bolsonaro parecia um personagem de tragédia farsesca: na penumbra, quase catatônico, murmurando sem parar que "vamos vencer".

Emulava, diz esse interlocutor, as ideias que os generais palacianos remanescentes lhe sopravam desde que perdeu a eleição. Sim, continua o relato, a ilusão de que as Forças Armadas iriam aderir a um levante popular bolsonarista foi mantida como hipótese de trabalho desse grupo.

Daí o silêncio cúmplice da escalada terrorista dos antes folclóricos personagens acampados em frente a quartéis pelo Brasil. Novamente, talvez de olho nos riscos judiciais, decidiu condenar na live a tentativa de atentado em Brasília quase duas semanas após o ocorrido.

De forma inédita na República, Bolsonaro optou por ser um ex-presidente em atividade nos dois meses remanescentes de seu mandato. Com efeito, a transição lulista tratou de negociar limites orçamentários com o Congresso e Flávio Dino age como ministro da Justiça que de fato só será a partir da semana que vem.

Desde que o capitão italiano Francesco Schettino abandonou o navio Costa Concordia em 2012 não se via algo parecido, com a diferença de que não houve quem gritasse "Vada a bordo, cazzo!". Na live, tentou jogar a culpa na imprensa: teria ficado quieto porque se falasse algo, "seria um escândalo". E, diz, "trabalhei".

Deu as caras publicamente em palanques militares e junto a seguidores no Alvorada. Ensaiou alguma articulação, participando de um jantar do PL, mas só. Nem sequer comunicou ao vice, o senador eleito Hamilton Mourão (Republicanos-RS), que quer deixar a faixa presidencial em alguma gaveta para Lula achar.

A opção pelo mutismo, uma forma de se desvincular da violência eventual que irromper em seu nome reforçada pela live final, e a fuga anunciada para o refúgio do ídolo Donald Trump na Flórida, contudo deverá apresentar sua conta.

Em frente do Comando Militar do Sudeste, na nobre região do Ibirapuera em São Paulo, manifestantes há mais de 50 dias frequentando a "alameda do golpe", como um feliz vendedor de churrasquinho instalado nas proximidades apelidou, dão a chave da questão.

Um deles, um senhor de cerca de 70 anos que mora na vizinhança e se identifica como Pedro, diz que passa lá todos os dias "porque as Forças Armadas irão salvar o Brasil de Lula". Como? "Impedindo a posse, claro". E qual a indicação disso? "Eu sei."

A origem de sua crença é um dos grupos de WhatsApp em que recebe notícias, por assim dizer, do desenvolvimento da situação política. Mas Pedro está irritado. "Aqui [aponta para o celular] diz que o Bolsonaro vai comandar a resistência dos Estados Unidos, mas acho que ele tinha de ter feito algo aqui. Longe, vai perder", afirma.

Pedro não está sozinho. Segundo o Datafolha, nada menos que 25% dos eleitores brasileiros se definem hoje como bolsonaristas. E há o contingente adicional que leva aos 49,1% de eleitores de Bolsonaro em 30 de outubro, muitos por simples ojeriza a Lula.

Mesmo depurando esse grupo amplo, é muita gente. Somando aos 25% aqueles que disseram ao Datafolha estarem mais próximos do bolsonarismo do que do centro ou do petismo, 7% dos ouvidos, chega-se a um respeitável terço do eleitorado que parece disposto a seguir nessa faixa de frequência.

Sem governar, manteve a aprovação no nível que havia chegado, recorde para seu mandato, na campanha. O Datafolha a aferiu em 39%, enquanto 37% o reprovam. É o pior índice para um presidente de primeira viagem, mas melhor do que qualquer outro número que obteve em seus quatro anos.

É uma aposta na nostalgia sebastianista, mas o espaço que deixa abre caminho para a ascensão de novas lideranças que capturem não só suas viúvas, mas também aquela fatia de descontentes com a chegada de Lula ao poder que não se veem como radicais de extrema direita.

Os nomes estão decantados, o novo governador paulista Tarcísio de Freitas (Republicanos) à frente. Pela gravidade do cargo, ele estreia na grande política já presidenciável, com um articulador político de peso por trás, Gilberto Kassab (PSD).

Não é por acaso que ele já se diz alguém próximo do presidente, mas não bolsonarista. Resta, por óbvio, saber se dará conta do recado, mas a casa arrumada nas contas deixadas pelos tucanos e a carteira de obras para inaugurar nos próximos dois anos facilitarão sua vida. Se isso será suficiente para abocanhar o eleitorado do ex-chefe, é uma questão em aberto.

Assim, salvo a materialização do golpe militar esperado pelo senhor Pedro sob a garoa no Ibirapuera, Bolsonaro fez questão de usar a porta dos fundos em sua despedida.

29 de dezembro de 2022

Lula fecha lista ministerial com espaço ampliado para MDB, PSD e União Brasil

Presidente eleito anuncia 16 ministros de seu futuro governo; parte da União Brasil diz não se considerar base

Julia Chaib, Renato Machado, Victoria Azevedo, Danielle Brant, Marianna Holanda, João Gabriel e Catia Seabra


O presidente eleito e diplomado Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou na manhã desta quinta-feira (29) os nomes de 16 novos ministros e, assim, concluiu a equipe do primeiro escalão de governo para começar o seu terceiro mandato no Palácio do Planalto.

Lula oficializou o retorno da deputada federal Marina Silva (Rede-AC) ao Ministério da Meio Ambiente e a acomodação da neoaliada Simone Tebet (MDB-MS) na pasta do Planejamento.

Além disso, na última leva de anúncios de ministros, cedeu 9 ministérios para partidos de centro em busca de governabilidade. MDB e PSD indicaram três ministros cada um para o futuro governo. Já a União Brasil —partido do ex-juiz Sergio Moro— terá dois representantes no ministério.

Esse número pode subir para três, caso o governador do Amapá, Waldez Góes (PDT), migre para a União Brasil. Ele vai integrar o governo em uma cota do ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) e, por enquanto, vai apenas se licenciar do PDT.

Petista participa de cerimônia de encerramento das atividades do gabinete de transição, antes do Natal - Pedro Ladeira/Folhapress

O petista concluiu o desenho do seu futuro governo com 37 ministérios.

A terceira e última leva dos anúncios de ministros só aconteceu após o fim das negociações com os partidos que farão parte do governo de coalizão.

As tratativas foram encerradas apenas às vésperas do anúncio, com Lula ainda recebendo lideranças partidárias em seu hotel algumas horas antes de seguir para o Centro Cultural Banco do Brasil.

"Temos conversado e, depois de muitos ajustes, nós terminamos de montar o primeiro escalão do governo. Não menos importante, a partir da posse, a gente vai começar a discutir o segundo escalão, os cargos do governo federal em cada estado, para que a gente possa dentro de pouco tempo estar tendo todas as informações para fazer a máquina funcionar", afirmou.

Todos os ministros indicados, os novos e os já conhecidos, estavam presentes no anúncio. Lula fez questão de estar cercado pelas mulheres que vão compor o governo -- após as críticas feitas no primeiro anúncio, quando apenas ministros homens foram escalados.

Além de algumas siglas que compuseram a coligação que o elegeu, Lula cedeu ministérios para o PSD de Gilberto Kassab, para o MDB -- para clãs aliados da região Nordeste -- e para indicações da União Brasil, resultado da fusão do PSL e do DEM, partido fez oposição ferrenha nos seus dois primeiros mandatos e agora abriga o seu maior desafeto, o ex-juiz Sergio Moro, que o condenou à prisão.

Além de Simone Tebet, que emedebistas buscaram deixar claro que pertence à cota pessoal de Lula, o petista anunciou nesta quinta-feira (29) os nomes de Renan Filho para o Ministério dos Transportes e Jader Barbalho Filho para Cidades.

O PSD terá três ministérios: o senador Alexandre Silveira (PSD-MG) ficará com a pasta das Minas e Energia; Carlos Fávaro (PSD-MT) será ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e o deputado André de Paula (PSD-PE) ficará com a Pesca.

Integrantes da União Brasil também indicaram nomes para três ministérios. Lula anunciou a deputada Daniela do Waguinho (União Brasil-RJ), como ministra do Turismo e o deputado Juscelino Filho (União Brasil-MA), como chefe das Comunicações.

A indicação de Juscelino é colocada na conta do senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), que também apontou o governador do Amapá Waldez Góes (PDT) para a Integração Nacional. Alcolumbre também consultou os consórcios de governadores do Nordeste e da Amazônia para realizar a indicação.

Góes se licenciará do PDT enquanto for ministro. O governador comunicou a Lupi essa situação, mas disse que continuará filiado. Aliados de Alcolumbre afirmam que o senador tentará convencê-lo a ir para a União Brasil no ano que vem.

Apesar das indicações, o presidente da União Brasil, Luciano Bivar (PE), diz que a legenda será independente ao governo, já que tem em seus quadros nomes de oposição a Lula. Outra parte do partido, porém, se considera base de apoio de Lula.

Além disso, Bivar tem reclamado internamente que as indicações não partiram da cúpula da União Brasil, mas sim de filiados. O partido viveu um racha interno e o nome de Elmar Nascimento, que estava cotado para a Integração Nacional foi rifado por resistência no PT e também de correligionários.

Lula também anunciou o presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, como ministro da Previdência, outro nome que já ocupou pasta em governos anteriores do PT. Ele se reuniu com Lula na manhã desta quinta-feira (29), no hotel em que o petista está hospedado em Brasília, algumas horas antes do anúncio.

Outros dois petistas também foram anunciados para o terceiro governo de Lula. Os deputados federais Paulo Teixeira (PT-SP) e Paulo Pimenta (PT-RS) serão respectivamente ministros do Desenvolvimento Agrário e da Secretaria Especial de Comunicação.

Lula também anunciou a ex-jogadora de vôlei Ana Moser como ministra dos Esportes, o general Gonçalves Dias, conhecido como GDias, como chefe do Gabinete de Segurança Institucional, e a deputada federal eleita Sônia Guajajara (PSOL-SP) como ministra dos Povos Indígenas.

Dessa forma, Lula vai começar seu governo com ministros de oito partidos, além do próprio PT. Terão representantes na Esplanada dos Ministérios o PSB, do vice-presidente Geraldo Alckmin, Rede, PC do B, PSOL, PDT, MDB, PSD e a União Brasil.

Por outro lado, ficaram de fora do governo partidos que integraram a coligação que elegeu Lula. Não terão ministérios Solidariedade, Agir, Avante e Pros. O PV integra uma federação com o PT e PC do B, mas esperava uma pasta exclusiva para a sigla, considerando que os comunistas obtiveram.

Por que os Twitter Files são de fato importantes

Tem havido a tentação, à esquerda, de ignorar as revelações sobre o sistema de censura interna do Twitter que têm surgido do chamado projeto Twitter Files. Mas isso seria um erro: as notícias são importantes e os detalhes alarmantes.

Branko Marcetic

Jacobin

Os Twitter Files nos dão uma visão sem precedentes dos bastidores do funcionamento do opaco regime de censura do Twitter. (Tayfun Coskun / Agência Anadolu via Getty Images)

Tradução / Os chamados Twitter Files, que começaram a ser divulgados no início de dezembro passado, têm gerado muito mais discussão sobre as metacontrovérsias em torno da sua divulgação que sobre os “ficheiros” em si: controvérsias sobre quem os divulgou, quem os noticiou e a maneira como o fizeram ou as desnorteadas crenças políticas de alguns dos envolvidos no noticiamento. É uma pena, porque, apesar de falhas importantes, a história dos Twitter Files é uma importante e consequente peça de reportagem a que todos - especialmente à esquerda - deveriam prestar atenção.

Não nos equivocamos: ainda que algumas críticas sobre o projeto, feitas à esquerda do centro político, tenham certamente mérito, isso não significa que as revelações não sejam importantes, ou que a veracidade das informações contidas nos ficheiros seja, de alguma forma, ameaçada pela inclinação política de alguns dos que as noticiaram. Os Twitter Files permitem-nos espreitar pela cortina que cobre as maquinações do opaco regime de censura do Twitter e expôr em grande detalhe a corrente e secreta aliança entre as grandes multinacionais de redes sociais e o aparelho de segurança nacional dos Estados Unidos.

O FBI E A CIA ESTÃO PROFUNDAMENTE ENREDADOS

As mais importantes revelações são, provavelmente, as que dizem respeito ao crescente emaranhar entre o Twitter e outras empresas de tecnologia com as agências de informações e as forças de autoridade, algo que já conhecíamos, mas que neste caso é revelado em maior detalhe.

Os ficheiros confirmam algo que só antes se conseguiu saber na consequência de um processo judicial: que o Twitter e outros executivos de empresas de tecnologia tinham, regularmente, reuniões mensais ou semanais, não só com o FBI e a sua Foreign Influence Task Foce (FITF) - divisão de contra-espionagem formada por oito pessoas e criadas para combater campanhas estrangeiras de desinformação -, mas com praticamente qualquer agência de segurança americana à face da Terra. Além do FBI, incluem-se também o Departamento de Segurança Interna (DHS), o gabinete do Diretor da Inteligência Nacional (ODNI), governos estaduais com o da Califórnia, os Departamentos de Justiça e de Estado e até a Agência de Segurança Nacional (NSA), que pediu para ser incluída num canal de Signal especial, criado durante o período eleitoral para permitir às agências governamentais “alimentar” informação às empresas de redes sociais, ou “à indústria”.

O FBI e um rol de outras agências de segurança estão metidas até aos joelhos nas decisões sobre aquilo que o Twitter e outras empresas decidem censurar.

Uma dessas agências era a OAG, “Outra Agência Governamental”, algo que tanto os e-mails do Twitter como antigos agentes confirmam tratar-se da CIA. Matt Taibbi escreve que a CIA estava “quase sempre” presente nas recorrentes reuniões da FITF com todas as empresas tecnológicas que se possam imaginar. Longe de apenas ficar a ouvir, a CIA era uma participante ativa, regularmente abrindo as reuniões da FITF com um briefing, de acordo com Taibbi, e partilhando informações, através do FBI da FITF, com uma lista alargada de firmas, incluindo até a Wikimedia, “para desenvolver potenciais linhas de investigação”. Num e-mail, o então líder do departamento de privacidade e segurança do Twitter, Yoel Roth, clarificou que considerava que dar informação ao FBI era o mesmo que dar informação à “comunidade de inteligência” por procuração.

A relação era profunda. O Twitter empregava tantos ex-funcionários do FBI que, de acordo com Michael Shellenberger, um dos repórteres conservadores que teve acesso aos ficheiros, estes tinham o seu próprio canal privado de Slack. Até criaram um “diagrama de tradução FBI-Twitter”, uma cábula que permitia aos alunos do FBI traduzir gírias da agência para o seu equivalente no Twitter (“BLUF” [“bottom-line up front” - “a conclusão primeiro”] no FBI era o equivalente a TL;DR [“too long; didn’t read” - “demasiado longo; não li”] no Twitter, por exemplo.)

Nas vésperas das eleições presidenciais, o FBI deu aos executivos do Twitter autorizações de segurança temporárias e partilhou informação confidencial com as empresas de tecnologia, sublinhando que não havia “quaisquer impedimentos” a essas partilhas. Uma plataforma especial chamada Teleporter foi criada para deixar o FBI enviar os seus relatórios para o Twitter, algo semelhante a um portal especial que, sabemos agora, o FBI usa para requerer a supressão de certos conteúdos no Facebook. A certo ponto, Elvi Chan, do FBI, chegou a pedir ao Twitter que lhe fornecesse “qualquer informação de localização associada” a uma lista de contas marcadas por espalharem desinformação eleitoral.

O resultado foi um dilúvio de requerimentos censórios por parte do FBI. A agência, reporta Taibbi, enviou “listas de centenas de contas problemáticas” aos executivos do Twitter, por vezes tão grandes que vinham na forma de folhas de Excel, e “milhares de relatórios maioritariamente domésticos”, apesar de a FITF ter sido feita para se focar influências estrangeira.

O significado desta fuga de informação deveria ser óbvio. Muitos, de vistas curtas, descartaram a primeira divulgação dos Twitter Files sobre a censura ultrajante do Twitter ao New York Post, alegando que esta censura não nos deveria preocupar, já que o governo não estava envolvido. A premissa está errada, mas, mesmo que a aceitássemos, o facto é que o FBI e um rol de outras agências de segurança estão metidas até aos joelhos nas decisões sobre aquilo que o Twitter e outras empresas decidem censurar.

Também se levantaram questões sobre o papel de agências como a CIA e a NSA. É suposto serem serviços de espionagem virados para o estrangeiro, impedidos, pelo menos nominalmente, de virar os seus poderes contra os cidadãos norte-americanos, e ainda assim aqui estão elas claramente a tomar partido, em diferentes níveis, em operações domésticas.

Finalmente, para qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento da história distante e recente da CIA e do FBI, o facto de terem um papel importante na decisões sobre aquilo que as firmas de redes sociais escolhem censurar deve ser perturbador. Por exemplo, o FBI é uma agência que rotulou internamente manifestantes contra a brutalidade policial de “extremistas identitários negros” para os espiar e que tem um longo currículo no que diz respeito a assediar jovens muçulmanos desfavorecidos com esquemas predatórios de entrapment.

O TWITTER ADMITIU QUE AS CONTAS DE “INFLUÊNCIA ESTRANGEIRA” TINHAM POUCO EFEITO, MAS O FBI PRESSIONOU PARA QUE MAIS FOSSE FEITO

Ainda que esta promiscuidade seja alarmante, o que é abundantemente claro nestes documentos é que o fenómeno que estas agências deveriam estar a combater - desinformação estrangeira - não o é. Num hábito que se tornou familiar durante a “guerra ao terrorismo”, quando se vê desprovido de ameaças reais, o FBI ou as procura desesperadamente ou, por vezes, inventa-as. E pressionou funcionários do Twitter a fazer o mesmo.

Os e-mails sugerem inadvertidamente que os esforços de desinformação de genuínas contas russas eram marginais e ineficazes. Ao descrever as contas russas que foram purgadas do Twitter antes das eleições de 2022, um e-mail interno relata dados decepcionantes: 345 estavam inativas, e as dez que estavam ativas “tinham pouco alcance e poucos seguidores”.

Na verdade, muita da suposta atividade suspeita não tinha nada que ver com inimigos governamentais. O FBI transmitiu suspeitas e artigos noticiosos que alegavam que sinistras forças estrangeiras estariam por detrás dos protestos causados pelo assassinato de George Floyd, da existência de afroamericanos pró-Trump e de várias contas suspeitas, apenas para depois lhes ser dito que a sua origem era doméstica. Um analista “não encontrou qualquer ligação à Rússia'', disseram, tal como um outro funcionário que levou a cabo uma confirmação dessa informação. “Posso trocar umas ideias com [censurado], ver se podemos ir mais fundo e tentar encontrar uma ligação mais forte”, ofereceu-se o analista.

Como sugere essa frase, o FBI não tinha vergonha em fazer notar o seu descontentamento quando o Twitter falhava em encontrar essas ameaças estrangeiras, nem em pressionar os funcionários da rede social a procurar melhor. Em julho de 2020, o FBI enviou ao Twitter um longo questionário exigindo uma explicação para a sua conclusão de que “não observou muita atividade recente de contas oficiais de propaganda na sua plataforma”, e incluiu uma lista de estudos cujas conclusões estariam “em profundo contraste com a vossa própria análise”.

O FBI também pressionou o Twitter a relaxar os seus padrões de privacidade e a entregar mais dados de utilizadores. Perguntou a executivos se poderiam rever os termos de serviço.

Roth, “perplexo”, comentou que as perguntas se pareciam “mais com algo que receberiam de um comité do Congresso que do FBI” e declarou que não estava “confortável” com a implicação de “media controlado pelo Estado” que carregavam. Noutro e-mail, um executivo diz que não analisou uma conta chamada InfoBRICS - já que o governo russo é, abertamente, um membro dessa organização económica -, mas fez notar que “a nossa janela de oportunidade está a fechar-se, dado que os parceiros governamentais estão a tornar-se mais agressivos na atribuição”.

O FBI também pressionou o Twitter a relaxar os seus padrões de privacidade e a entregar mais dados de utilizadores. Perguntou a executivos se poderiam rever os termos de serviço, para que permitissem às agências governamentais recolher mais facilmente dados de fontes abertas (disseram que não) e se partilhariam informações de contas que usavam VPN, usados para dissimular atividade online (também disseram que não).

“Temos visto um esforço sustentado (mesmo se descoordenado) da parte da comunidade de informações para nos levar a partilhar mais informações e alterar as nossas políticas de API”, escreveu o diretor de política pública Carlos Monje em janeiro de 2020. “Investigam e pressionam onde quer que podem (inclusive influenciando funcionários do Congresso). Devemos manter-nos unidos contra estes esforços.”

Isto aconteceu até, pelo menos, agosto de 2022, quando um executivo avisou que o FBI ia aproveitar uma reunião para “convencer-nos a produzir mais requerimentos urgentes de divulgação”, requerimentos que permitem ao FBI ter acesso a dados sem mandado judicial. Num telefonema de preparação da reunião, o FBI “enfatizou repetidamente que o Twitter tinha um nível baixo de complacência em comparação com outras plataformas” e que planeava trazer estatísticas para prová-lo.

Quando não estava a pressionar o Twitter para encontrar provas de ameaças estrangeiras, o FBI preocupava-se com sátira rasa, por falta de ter mais o que fazer. Muitas das contas marcadas e até suspensas por desinformação eleitoral eram contas com poucos seguidores a fazer a mesma piada foleira que dizia às pessoas para irem votar no dia errado, sem qualquer engajamento, uma tendência que apanhou contas alinhadas com o Partido Democrático tanto quanto as outras. O FBI apenas “fazia pesquisas por violações [dos termos de serviço]”, escreveu um executivo legal. Até um antigo conselheiro legal do FBI que se tornou advogado do Twitter achou “estranho estarem a procurar por violações às nossas políticas”.

E não era só o FBI. “A equipa de Biden não estava muito satisfeita com a abordagem de aplicação das diretivas do Twitter, sendo que queriam que mais contas fossem suspensas”, escreveu o diretor de política pública do Twitter, em dezembro passado. “Por causa deste descontentamento, pediram-nos que nos juntássemos a várias outras reuniões. Estavam muito irritados”. A Casa Branca em particular pressionou o Twitter a banir Alex Berenson, antigo repórter do New York Times que espalhou informações dúbias sobre a covid-19 e as vacinas durante a pandemia.

O facto de Berenson espalhar disparates não torna esta revelação menos perturbadora: aceitar este precedente é aceitar que qualquer futura Casa Branca pode pressionar o Twitter ou qualquer outra empresa de redes sociais para que remova uma conta se decidir estar a espalhar desinformação.

O TWITTER CENSUROU PROPAGANDA ESTRANGEIRA ROTULADA PELOS EUA ENQUANTO IGNORAVA A VERSÃO DOMÉSTICA

Havia um profundo contraste entre os tratamentos que o FBI dava a contas tidas como propaganda estrangeira, ou mesmo só contas estrangeiras estatais, e a contas norte-americanas equivalentes, às quais era dado um livre trânsito.

Relatórios de informações marcaram dezenas de vídeos do YouTube e publicações alegadamente ligadas a fábricas de trolls russas que “espalhavam narrativas predominantemente anti-ucranianas”, listaram mais um milhar de contas que determinaram estar “ligadas aos regimes de [Nicolás] Maduro (VEN) & [Miguel Mario] Díaz-Canel (CUB)” e que “propagavam hashtags anti-Bolsonaro/pró-Lula”.

O Twitter, que é suposto ser uma “praça pública global”, está a ser usado como ferramenta geopolítica ao serviço dos interesses de política externa de um governo.

Entretanto, há provas de que o Twitter tratava a propaganda ligada ao governo dos EUA de maneira muito diferente. A partir do material encontrado nos Twitter Files, Lee Fang, do Intercept, descobriu que o Twitter isentou da censura várias contas a pedido de Washington. Contas que o Pentágono usava para tentar moldar a opinião pública em países como Iraque e Síria, incluindo meios de comunicação criados pelo governo. A empresa deixou-as operar livremente durante anos na plataforma, mesmo depois de o Pentágono esconder a sua ligação a essas contas, tal como o FBI acusou a Rússia de fazer.

O Comando Central dos EUA pediu ao Twitter, via e-mail, para pôr numa “lista branca” certas contas de língua árabe, possivelmente marcadas como sendo bots, que “nós usamos para amplificar certas mensagens” e que “tinham um considerável número de seguidores e que esperamos conseguir recuperar”. Uma dessas contas, já desativada, promovia a invasão saudita do Iémen, apoiada pelos EUA, e pintava os ataques de drones norte-americanos como “precisos”, nunca matando civis, apenas terroristas.

Por outras palavras, a crescente aliança entre o Twitter e o aparato estatal de segurança não traz à tona apenas questões de censura política. Também sugere que o website que é suposto ser uma “praça pública global” está a ser usado como ferramenta geopolítica ao serviço dos interesses de política externa de um governo.

O TWITTER TEM MUITAS MANEIRAS DE SUPRIMIR OS SEUS UTILIZADORES - E AS REGRAS DE ATUAÇÃO SÃO INCONSISTENTES E AD HOC

Finalmente, essa tranche de documentação mostra que, mesmo sem pressão governamental, os executivos do Twitter tinham o hábito de saltar por cima das próprias regras e dos procedimentos estabelecidos para censurar aquilo que consideravam desinformação.

Através de “filtros de visibilidade”, o Twitter, afinal, tem uma variedade de ferramentas que pode usar para “suprimir aquilo que as pessoas vêem, em diferentes níveis”, disse um funcionário a Bari Weiss, sem que haja uma suspensão ou expulsão. Contas individuais usadas por Weiss como exemplos mostram coisas como “lista negra das trends”, “lista negra de busca” e “não amplificar”, todas categorias feitas para tornar mais difícil aos utilizadores procurar e descobrir certas contas.

Weiss estava, previsivelmente, focada em contas de direita para provar a sua tese, mas dado que a equipa responsável por esta função “lidava com cerca de 200 casos por dia”, de acordo com Weiss, é bastante possível que haja exemplos de esquerda que os repórteres não se deram ao trabalho de procurar.

A “moderação de conteúdo” do Twitter esteve muitas vezes longe de ser equilibrada e previsível - como uma política de ação deve ser -, sendo em vez disso frequentemente decidida na base de um capricho.

Tal como com a história do computador de Hunter Biden, os executivos do Twitter pareciam estar ativamente à procura de justificações para censurar aquilo que queriam ver censurado de qualquer forma. Roth disse a um colega que o Twitter “usou uma tecnicalidade na aplicação de medidas contra o spam para resolver um problema criado pelo facto de o departamento de Segurança não aplicar as suas políticas”.

No processo, os executivos do Twitter parecem andar a gerar criativas reinterpretações das políticas existentes, ou simplesmente a inventar novas regras em cima do joelho. A decisão de banir Donald Trump, por exemplo, aconteceu apenas um dia depois de a empresa criar um novo sistema de “cinco faltas” para suspensões permanentes - e depois de Roth ter notado que Trump ainda só tinha cometido quatro. Um funcionário chamou-lhe “uma decisão única, ad hoc”.

Não foi o único exemplo de um funcionário do Twitter a chamar um ato de censura de “decisão única”. Para levar a cabo a expulsão de Trump, Roth também clarificou que “neste caso específico, estamos a mudar a nossa política de abordagem ao interesse público para a conta [de Trump]”, a política da firma de inspeções de interesse público, a qual designa especificamente “tweets de oficiais eleitos e governamentais”.

Por diversas vezes, os tweets de Trump marcados como problemáticos acabaram por se revelar, estritamente falando, factualmente corretos, ou assumidos como não violando quaisquer normas, com o líder da equipa legal do Teitter, Vijaya Gadde, a sugerir que se interpretassem os últimos como “incitamento codificado à violência”. Sem uma “política firme que servisse de base para ação” sobre a conta do ator James Wood, depois deste ter tweetado que o Twitter estava a “suprimir” a conta de Trump, a empresa decidiu “dar-lhe duro em futuras violações com bases mais fortes”.

Por outro lado, o Twitter foi brando com tweets vindos de contas anti-Trump que afirmavam que Trump e a juíza do Supremo Tribunal Amy Coney Barrett roubariam as eleições. Num dos casos, Roth interferiu diretamente para que o Twitter revertesse a decisão de pôr um aviso num tweet de um antigo advogado de Barack Obama, Eric Holder, que dizia ser “demasiado tarde para usar os correios” para votar e incitava as pessoas a ir votar presencialmente, enquanto acusava o Supremo Tribunal de tentar “tirar os direitos mais valiosos” às pessoas. (A propósito, minar “as funções críticas de outras instituições democráticas, como os tribunais”, era um dos tipos de desinformação que a DHS designou como prioridade a combater).

Nada disto absolve as vozes tóxicas de direita das suas muitas alegações duvidosas sobre as eleições de 2020. Aliás, mostra-nos a natureza inerentemente subjetiva de decidir o que é ou não desinformação, e como isso torna o processo inevitavelmente inconsistente e moldado pelos vieses de quem quer que seja que os está a aplicar - e que pode não ter estima por valores liberais ou inclinações políticas pró-democráticas. Mais do que isso, mostra que a “moderação de conteúdo” do Twitter esteve muitas vezes longe de ser equilibrada e previsível - como uma política de ação deve ser -, sendo em vez disso frequentemente decidida na base de um capricho.

SEM RAZÃO PARA DESCANSAR

Muitos têm sido lestos a ignorar tudo isto porque os exemplos ilustrativos desta censura têm sido de pessoas genuinamente repugnantes ou politicamente antipáticas.

A repressão política, se lhe for permitido ganhar um ponto de apoio, começa sempre nas franjas do que é aceitável, expandindo-se depois, devagar, para calar vozes dissidentes mas legítimas e que nunca deveria ter atingido. É por isto que liberais e esquerdistas denunciaram ferozmente uma panóplia de abusos da “guerra ao terrorismo” que em primeiro lugar serviam para atingir terroristas - não porque concordassem com os terroristas, mas porque entendiam que esses poderes podiam ser facilmente abusados e usados contra outros.

(Taibbi notou, em resposta a uma pergunta minha no Callin, que “contas palestinianas são normalmente o ‘canário na mina de carvão’ para novas técnicas de moderação e censura”, mas acrescentou que não estavam no primeiro conjunto de dados que investigou. “Espero que, quando conseguirmos ter um olhar mais global sobre as coisas, possamos começar a investigar isso”, disse.)

Se Taibbi e outros desenterrarem ou não resmas de casos de censura de contas de esquerda, muitas coisas podem mudar nos próximos anos que tornarão o status quo mais perigoso para a esquerda: o Twitter pode começar a contratar conservadores; pode sobrecorrigir-se quando confrontado com críticas da direita, ou sucumbir à pressão do FBI; as agências de segurança nacional podem embarcar numa repressão mais feroz sobre a esquerda; um republicano pode voltar à Casa Branca; um Congresso republicano pode seguir o exemplo dos democratas e pressionar as empresas de tecnologia a censurar aquilo que os conservadores consideram discurso perigoso. Só para nomear algumas possibilidades. A melhor defesa é começarmo-nos a opor a estas tendências já, antes que seja demasiado tarde.

Colaborador

Branko Marcetic é redator da Jacobin e autor de Yesterday's Man: The Case Against Joe Biden. Ele mora em Chicago, Illinois.

Hoje, lembramos as mulheres que libertaram a Iugoslávia do fascismo

Oitenta anos atrás, a Frente Feminina Antifascista da Iugoslávia foi fundada para ajudar a resistir às potências do Eixo e seus colaboradores locais. As mulheres da classe trabalhadora desempenharam um papel decisivo na luta contra o fascismo - e reivindicaram seu lugar na construção de uma nova sociedade socialista.

Ankica Čakardić

Jacobin

Mulheres que lutaram na Segunda Guerra Mundial contra os nazistas na Iugoslávia treinando na base aliada na Itália, 1944. (Keystone / Getty Images)

Rajka Baković e Zdenka Baković foram revolucionárisas croatas e membros do movimento de resistência antifascista. Elas foram mortos em Zagreb, no Estado Independente da Croácia (NDH), fantoche nazista, em 1941. Rajka tinha 21 anos e Zdenka, 24.

Desde o início da Segunda Guerra Mundial, essas irmãs Baković usaram a banca de jornais de sua família em Zagreb como um centro importante para conectar os membros da resistência. Elas deixavam pacotes ou cartas para marcar reuniões, e o estande servia como ponto de abastecimento para a Liga dos Comunistas da Croácia. Como Zdenka falava alemão fluentemente e ordenava regularmente a imprensa nesse idioma, também rapidamente se tornou um ponto de encontro para oficiais alemães. Forneceu uma camuflagem ideal e uma maneira de espionar as forças de ocupação. Mas o trabalho das irmãs Baković não passou despercebido. Depois que um mensageiro do comitê local da Liga dos Comunistas na Dalmácia foi capturado e torturado, ele revelou para onde estava levando as cartas.

Durante a noite de 20 de dezembro de 1941, o Serviço de Vigilância Ustaša (UNS) prendeu Rajka e Zdenka e as torturou por cinco dias. Apesar das severas surras que sofreram, as irmãs não traíram ninguém. Em 24 de dezembro de 1941, Rajka foi transportada para um hospital. Em 25 de dezembro, Zdenka, em um momento de desespero ao ver que Rajka não estava, se livrou de seus guardas e se jogou do quarto andar do quartel-general da UNS, onde morreu. Rajka morreu devido aos ferimentos graves em 29 de dezembro de 1941. Nos anos do pós-guerra, ela foi homenageada como a heroína do povo da Iugoslávia.

Frente Feminina Antifascista

Apenas um ano após a morte das irmãs Baković, a Frente Feminina Antifascista da Iugoslávia (AFŽJ) foi oficialmente fundada. Embora a organização fosse nova, seu surgimento seguiu o trabalho contínuo dos vários movimentos de resistência feminina já existentes na Iugoslávia. Em 6 de dezembro de 1942, a primeira conferência do AFŽJ ocorreu em Bosanski Petrovac (Bósnia e Herzegovina), resultando no estabelecimento de conselhos federais nas repúblicas socialistas iugoslavas. Enquanto os delegados da Macedônia e da Eslovênia não conseguiram passar pelas linhas inimigas a tempo, a conferência contou com a presença de 166 delegados de toda a Iugoslávia, buscando dedicar todos os recursos disponíveis à luta de libertação do povo em andamento. AFŽJ logo se tornou um dos maiores movimentos revolucionários de massa de mulheres na região iugoslava e além. A título de ilustração, no final de 1942, só a AFŽJ croata já reunia cerca de duzentas e cinquenta mil mulheres.

Ao lutar contra o fascismo em nome de um futuro socialista, o AFŽJ estava simultaneamente desafiando as ideias conservadoras sobre as mulheres e seu papel na sociedade. Trabalhou continuamente para lançar as bases para o desenvolvimento de políticas emancipatórias feministas - e vinculá-las à organização mais ampla da sociedade. Na década de 1980, a Iugoslávia se posicionaria internacionalmente como um dos estados pioneiros a decidir a forma e o ritmo de importantes discussões das Nações Unidas que se enquadravam no termo genérico "a questão da mulher".

Após a dissolução do Reino da Iugoslávia em 6 de abril de 1941 e a subsequente Guerra dos Doze Dias, a maior parte da atual Croácia, Bósnia e Herzegovina foi transformada no Estado Independente da Croácia fantoche nazista. A Eslovênia foi ocupada pelos alemães, a Dalmácia e Montenegro pelos italianos, enquanto a Sérvia e a Macedônia caíram sob o controle de húngaros, alemães e búlgaros. Foi nessa época que o Partido Comunista da Iugoslávia convocou todas as forças e nações progressistas para iniciar um levante armado.

As mulheres da Iugoslávia juntaram-se a esta luta sem demora, formando uma frente ampla e unida de trabalhadores, camponeses e outros civis. Essas mulheres participaram do movimento de resistência, reuniram armas, forneceram apoio médico, organizaram a publicação e distribuição de panfletos e textos antifascistas, ajudaram os combatentes presos em sua fuga, reuniram novos recrutas para as forças partidárias e organizaram desvios.

Partimos do exemplo heróico das irmãs Baković. Mas também houve inúmeras outras: Kata Dumbović, morta em ação enquanto tentava libertar seus companheiros do campo de concentração Ustaša em Kerestinec; o esquadrão feminino que sabotou a principal agência dos correios em Zagreb; mulheres que protestaram contra o confisco de alimentos em Split; ajudantes femininas que faziam trabalhos de caridade no hospital de Karlovac; e outros membros da resistência como Anka Butorac, Nada Dimić, Ljubica Gerovac, Dragica Končar e muitos outros.

Reproduzindo a luta

Deve-se enfatizar que muitas mulheres estiveram ativamente engajadas em combate durante a Luta Popular de Libertação (Narodnooslobodilačka borba). Eles se juntaram às unidades do Exército Popular de Libertação como soldados, oficiais, bombardeiros, comissários políticos e médicos. Nada Cazi relata que havia mais de cem mil lutadoras na Luta Popular de Libertação. Um em cada quatro morreu em combate e cerca de quarenta mil ficaram feridos. Mais de trezentos mil receberam ordens de mérito pela proteção de seus povos. No total, cerca de seiscentas e vinte mil mulheres foram vítimas do regime de terror fascista, perfazendo mais de um terço de todas as perdas humanas que a Iugoslávia sofreu durante a Segunda Guerra Mundial.

No entanto, enquanto faziam tudo isso durante a Luta Popular de Libertação, as mulheres também eram responsáveis pela maior parte do trabalho reprodutivo social, incluindo a obtenção de provisões de guerra, assistência médica aos feridos e crianças, organização de medidas contra a pandemia de tifo, bem como a obtenção de medicamentos, roupas e artigos sanitários. Sob o lema “Nem um grão de cereal para o ocupante, nem uma polegada de terra abandonada”, as mulheres criaram brigadas de trabalhadores que ajudaram durante a colheita.

Um dos exemplos mais notáveis foi a ação de trabalho das mulheres na bacia do Požega que em uma única noite colheu grãos suficientes para encher trezentos vagões de trem. Outra foi a ação no vale do rio Raša, em que mulheres guerrilheiras se reuniram durante a noite, munidas apenas de tesouras, e conseguiram colher e roubar setecentos quintais de grãos debaixo do nariz do inimigo.

Então, vamos afirmar o óbvio - o trabalho reprodutivo social das mulheres foi a espinha dorsal da Luta Popular de Libertação. Sem este tipo de trabalho, a vitória sobre o fascismo não teria sido possível. O fato histórico de que as mulheres não eram apenas ativas no combate ao lado de seus camaradas masculinos, mas ao mesmo tempo organizavam toda a reprodução social da vida cotidiana, tem sido ignorado. Mas isso é totalmente injustificado. As mulheres derramaram seu sangue na luta contra o fascismo, tanto na linha de frente quanto nos bastidores.

Fascismo, produto do capitalismo

O fascismo não é uma questão do passado. É uma ameaça permanente, ainda tentando alcançar a luz do dia. Seu núcleo não mudou, mas explora a natureza das crises econômicas e sociais de hoje para encontrar novas formas de se expressar. Desta forma, os movimentos modernos de direita alternativa e radical ganharam confiança para libertar o fascismo das algemas do passado, para recrutar aliados contemporâneos e impor sua fúria odiosa na agenda política. Diante dessa ameaça, o fascismo deve ser cuidadosamente estudado e rastreado em todas as suas formas e expressões, para que possamos estar um passo à frente dele e prontamente cortá-lo pela raiz.

Como enfatizou a marxista alemã Clara Zetkin, o fascismo é o produto final do capitalismo e é fomentado por graves crises sociais e políticas: “O fascismo está enraizado, de fato, na dissolução da economia capitalista e do estado burguês”. Apenas nos últimos quinze anos, o capitalismo passou por várias reviravoltas brutais: a crise financeira de 2007-8, a pandemia do COVID-19, a atual inflação crescente, bem como as crises climáticas e de refugiados. Para piorar, há a recente instabilidade política no Leste Europeu, aliada às tensões dos blocos imperialistas que reforçam o fosso entre o centro global e sua periferia.

Os períodos que se seguem às crises socioeconômicas representam perigosos terrenos férteis para a ascensão de movimentos fascistas. Tais movimentos identificam essas crises, mas ao invés de colocar a responsabilidade por elas no sistema capitalista, procuram bodes expiatórios. Os suspeitos de sempre são esquerdistas, feministas, pessoas LGBTQ, refugiados, pessoas de cor, muçulmanos, judeus, ciganos ou qualquer pessoa considerada “suspeita” nacionalmente.

Diante do aprofundamento das dificuldades sociais – e do despertar de velhas e novas tendências reacionárias, de direita e fascistas – temos que fazer a pergunta: quem vai combatê-los? A resposta deve ser clara e sem remorso. A responsabilidade da resistência terá de recair sobre todos os que estão unidos pelo interesse de proteger os oprimidos e os explorados, hoje como ontem.

Em 1958, quinze anos após a primeira conferência da Frente Antifascista Feminina em Bosanski Petrovac, a Aliança das Organizações Femininas da Croácia realizou um plenário. A presidente do conselho, Marija Šoljan, fez um discurso na ocasião, no qual proclamou em voz alta: “Camaradas, continuamos trabalhando”. Poderíamos acrescentar: "...o mais rápido possível, porque nosso tempo está acabando."

Colaboradora

Ankica Čakardić é professora assistente de filosofia social na Universidade de Zagreb. Ela é autora de Specters of Transition: A Social History of Capitalism e Like a Clap of Thunder: Three Essays on Rosa Luxemburg.

"Neste momento, o mais importante é harmonizar política fiscal e monetária", diz futuro ministro da Fazenda

Futuro ministro da Fazenda defendeu reindustrialização com tecnologia de ponta e ambientalmente sustentável e prometeu diversidade na equipe

Miriam Leitão


Fernando Haddad, futuro ministro da Fazenda - Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

Em longa entrevista ao GLOBO, o futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, diz que teve com o presidente Lula “um diálogo maduro”, elogia a senadora Simone Tebet, defende a reindustrialização com tecnologia de ponta e ambientalmente sustentável e promete diversidade na equipe.

A sua equipe foi criticada, inclusive por mim, de ser muito homogênea. Do ponto de vista do pensamento econômico. Outro tipo de homogeneidade, exceto a PGFN, os outros são todos homens brancos, quase todos paulistas.

Hoje (ontem) eu anuncio duas mulheres, uma negra e uma branca para a minha assessoria direta. Tatiana (Rosito) uma diplomata, morou dez anos na China e uma procuradora que vai ser acompanhar os atos normativos que eu assino ( Fernanda Santiago). A procuradora acompanhará todos os atos normativos que eu assino. Então, todos os homens brancos que você citou receberam orientação de compor suas equipes com a maior pluralidade possível.

Por que que o senhor mesmo não seguiu isso?

Eu não terminei de montar a equipe ainda. Tinha uma mulher, agora tem mais duas. São três mulheres. Eu sei que a adjunta do Tesouro será mulher. Acabei de receber o currículo dela, que já está escolhida pelo Rogério Ceron. E todos os secretários estão orientados nessa mesma direção.

A equipe, quando estiver formada, vai passar por esse crivo, e nós podemos melhorar ao longo do tempo. A largada vai ser boa, mas isso não significa que nós vamos nos acomodar.

E sobre a ideia do pensamento homogêneo?

O que não pode ser homogêneo é o governo. Então, nós já temos o Alckmin no Desenvolvimento, que tem um tipo de pensamento. No Planejamento haverá uma visão de economia diferente da que foi defendida durante a eleição, mas foi uma aliança de segundo turno. Mas há diferenças na equipe.

Não consigo pensar em duas pessoas que pensam mais diferente do que o Guilherme Melo e o Bernard Appy, por exemplo. São pessoas muito diferentes. O Rogério Ceron e o Galípolo.

O Appy vai ficar com uma função específica, a reforma tributária. O Guilherme Melo está na formulação na Secretaria de Política Econômica.

Primeiro, tem um ministro. Eu sou uma pessoa que estudei economia, escrevi sobre economia. Então, lá tem ministro economista. Eu não sou economista de profissão, mas sou de formação. O segundo é um presidente da República, que é quem já governou este país por oito anos com um jeito que eu concordo na economia. Eu concordo com a maneira do Lula conduzir o processo, política e economicamente falando.

E, terceiro, que eu não trabalho com esses compartimentos. Eu não vou inaugurar uma forma de trabalho. A minha equipe trabalha em uma mesa, toda em uma mesa. Cada um tem as suas tarefas específicas, mas as decisões, o rumo das coisas, são tomadas em um colegiado. Um vai dar palpite na área do outro porque a gente opera de forma colegiada, todo mundo remando para o mesmo lado.

Simone Tebet, a futura ministra do Planejamento, se cercou de liberais na campanha. Como é que essas divergências serão tratadas se ela for confirmada ministra?

O presidente fez uma reunião conosco na terça-feira, às 15h, durante uma hora e meia. Simone tem minha simpatia pessoal é uma pessoa transparente, que vai colocar, somar e refletir junto. E ela falou que em mais de 90% da agenda ela e eu chegaríamos à mesma conclusão. E, naquilo que porventura houver divergências, há uma instância de arbitragem, que é a Presidência da República. Nós vamos estar juntos no Conselho Monetário Nacional, na Camex, em tantas instâncias colegiadas.

Eu não acredito muito em cartilha, principalmente na política econômica. É diferente escrever um artigo para revista especializada, um exercício intelectual. Outra coisa é quando você tem que tomar decisões, às vezes em 24 horas.

Quem tem uma postura dogmática em relação a uma escola de pensamento e não sai daquele quadrado nem quando as evidências demonstram, tem pouca sensibilidade. Não tenho nada contra a escola de pensamento econômico, transito por todas.

Um governo é uma coisa complexa, levar uma política econômica à frente é uma coisa complexa. Orientar expectativas é uma coisa complexa. Por isso que o cargo de ministro, muitas vezes, compete a uma pessoa que tem, além de um conhecimento técnico, uma visão política do processo.

Nós fizemos uma nota técnica, mostrando que as despesas não subiriam como proporção do PIB e isso ajudou a convergir na aprovação da PEC. Chegamos a um denominador comum que deu até 366 votos.

Como o governo está entendendo o papel do Ministério do Planejamento?

A nossa tese, minha e de Rui Costa, com o presidente acabou fazendo desaparecer a Secretaria de Assuntos Estratégicos. As funções serão executadas pelo Ministério do Planejamento, porque tudo o que ele não fazia era planejar que tem que ter uma visão de médio e longo prazo. Pensar na infraestrutura e na logística do país, nos setores econômicos de ponta no Brasil podem ser favorecidos com investimentos públicos.

Vai fazer um review do orçamento, checar o que está produzindo efeitos concretos e benéficos para a população. Não se pode ter medo de rever programas, não pode ter medo de redesenhar programas. Tem que usar mais o Ipea, tem que usar mais o IBGE, Dataprev, Data SUS. Nós temos um manancial de micro dados. Hoje, a nossa microeconometria é boa. Nós podemos usar a inteligência disponível para fazer uma revisão.

Então a ideia é fazer uma revisão de programas para saber a sua eficiência? Rever gasto por gasto para saber da eficiência ou não?

Essa é uma atribuição do Planejamento, que eu espero que prospere. Fazer um pente fino em todos os planos.

O FIES deixou um grande déficit. O objetivo era bom, mas ele deixou um déficit muito grande.

Quando eu era ministro, eu tinha feito um planejamento de um FIES com o fundo garantidor para 150 mil contratos. Por que que ele avançou com esse número? Eu não estava mais no Ministério da Educação. Mas, cá entre nós, 150 mil contratos são pouco para o Brasil.

A sua relação com a Marina é sabidamente boa, mas suas decisões serão impactadas pelas ideias dela?

Marina nos disse que a agenda teria que nos trazer um padrão de desenvolvimento completamente novo. No Brasil, as fontes de energia novas, como o hidrogênio, a eólica, têm um potencial é incrível. Se for reindustrializar o país, não pode ser nos velhos moldes dos anos 70, 80. A gente tem que pensar em fronteira, que é onde a gente pode ter alguma vantagem. A indústria automobilística tem que fazer carro elétrico, ônibus elétrico. A questão do hidrogênio verde. O Brasil pode desenvolver um padrão de desenvolvimento novo e, na minha opinião, só é possível a partir de uma visão ambiental.

O que o governo está pensando em fazer na Eletrobras?

Eu não participei desse debate ainda.

Há ideia de acabar com a paridade de preços internacional na Petrobras?

Isso não foi discutido com a equipe. Foi falado na campanha, mas tem que ver qual é o modelo. Certamente, esse é um assunto de primeira hora do governo por conta da questão tributária.

E o fundo de estabilização para preços?

Isso é uma discussão que estava no Congresso, né? Então, a área econômica evidentemente vai participar da discussão e a gente precisa estar bem calçado tecnicamente para opinar.

Na privatização da Eletrobras foi colocado o jabuti das térmicas. Isso será revisto?

Acho que é unânime entre os entendidos que o modelo foi mal feito. Não vi ninguém falar “isso aqui está ótimo”. Mas, no calor da discussão, pensaram “é melhor vender assim mesmo do que não vender”. O que é um erro.

A empresa foi vendida por R$ 30 bilhões, e gastaram o dinheiro em 15 dias num processo eleitoral pra comprar voto. Isso me dói a alma porque eu sei o trabalho que deu pra muitas gerações construir essa empresa.

Por que mudar a lei das estatais?

Aquela iniciativa foi da Câmara, não partiu do governo de transmissão. Eu testemunhei o presidente perguntando o que tinha acontecido, porque ele ficou contrariado com a maneira como aconteceu. Chegaram a tentar vincular aquela mudança ao anúncio do Mercadante como presidente do BNDES, o que é uma falácia porque o Mercadante poderia ser presidente do banco com a velha lei. É uma história que ainda está por ser esclarecida, na minha opinião.

Qual sua impressão da lei?

Ela tem dispositivos muito genéricos e isso não é bom.

O que está por trás da discussão da lei das estatais é o temor de ocupação política das diretorias das empresas?

A maioria dos condenados por corrupção, eram [funcionários] de carreira das empresas estatais, né? Eu sei que é importante blindar. Não estou negando que seja importante, mas é muito importante a governança corporativa, um bom compliance.

Bolsonaro atropelou a governança da Petrobras inúmeras vezes. Vocês vão respeitar o estatuto da empresa?

Isso que eu me referia. Um compliance bom é uma garantia maior que tudo, porque é o dia a dia da empresa. Então, os critérios são importantes, mas eles não dispensam um bom compliance. Então, preservar um compliance de qualidade é muito importante. Pra mim, é mais importante ou tão importante do que os critérios de escolha.

A economia está desacelerando. O que o Ministério da Fazenda vai fazer para evitar esse ambiente?

A economia foi desorganizada com fins eleitorais. Agora os agentes esperam do próximo governo as sinalizações corretas pra saber em que barco nós estamos. A impressão que eu tenho é que nós temos uma oportunidade. Que está desacelerando, está.

Teve uma pequena mexida nas projeções de crescimento para melhor o ano que vem. Pessoal estava trabalhando com 0,5% e agora está trabalhando com 0,9%. Nós vamos mirar mais de 1%. Isso não significa que não possamos corrigir rumo. Nós vamos tomar medidas e vamos observar a reação.

Por isso que eu usei a figura do timoneiro. Ele faz um movimento, mas, se de repente ver uma onda, ele sabe aonde ele quer chegar.

Há a ideia de que aumento do gasto público, gera um aumento do consumo, que gera um crescimento, que aumenta a arrecadação e resolve o problema do déficit público. Você acha que esse é o círculo?

Em que circunstância? Em alguns momentos estímulo fiscal é importante ou não? Nesse momento, o mais importante é harmonizar a política fiscal e a monetária pra ter uma política econômica consistente. A política fiscal expansionista é sempre errada? Não, quando você está numa depressão ela não é. Muita gente critica o presidente Lula pela reação à crise de 2008, e eu aplaudo. Naquelas circunstâncias, eu faria a mesma coisa.

Quando a economia virou, em 2010, ela continuou expansionista.

Na época, houve uma mudança estrutural. O cenário internacional mudou. Era a hora de fazer também uma mudança estrutural interna, mas se avaliou que aquela crise estava se dissipando. E não estava se dissipando...

Não é o Lula dois que contradiz o Lula um. O Lula dois enfrentou virtuosamente um cenário desconhecido à época. Não se sabia a dimensão do problema. A partir de 2010, você cresce 7,5% e começa a mudar estruturalmente a economia. O ciclo de commodities acaba depois de 2012, então aquela maneira de entender a economia tinha que ter sido alterada junto. Então há críticas a desonerações...

Toda vez que se pergunta a alguém do PT sobre crítica ao governo Dilma, a crítica admitida é às desonerações. Mas houve outros erros não? Esses erros levaram à recessão e inflação.

Vários itens se conjugaram de maneira inoportuna. A administração de preços, tarifa de ônibus nas capitais, a maneira como nós compramos a agenda da Fiesp em relação ao preço da energia, a chamada agenda Fiesp. Quase uma fraude aquilo, né? Aceitamos quase acriticamente.

E administração de preços de combustíveis?

Administração de preços em geral. Discutimos até tarifa de uma cidade. Então, ali foi uma conjugação de medidas que produziram um efeito ruim. Mas houve também uma responsabilidade compartilhada com a oposição, que começou a aprovar, segundo o senador Tasso Jereissati, pautas-bomba pra criar o ambiente do impeachment.

O presidente Lula foi eleito pra resolver uma crise que começou em 2013. As pessoas que têm compromisso com a liberdade, com a democracia, com a justiça social, devem colocar um pouco sua diferença de lado e fazer o que precisa ser feito pra evitar esse desastre que aconteceu, que é o governo que se encerra.

Mas houve também uma responsabilidade compartilhada com a oposição, que começou a aprovar, segundo o senador Tasso Jereissati, pautas- bomba pra criar o ambiente do impeachment. O presidente Lula foi eleito pra resolver uma crise que começou em 2013. Não por outra razão, naquele ano, quando eu vi a crise da minha janela, eu era prefeito, me aproximei do Alckmin naquele momento.

Se a economia errar, todo esse edifício democrático pode ficar comprometido. Há risco de estarmos apenas adiando a morte da democracia?

Tenho total consciência das responsabilidades desse governo com essa agenda. Me sinto bem cercado, pelo presidente Lula, vice-presidente Alckmin no Desenvolvimento, uma equipe econômica que sabe das suas responsabilidades. Mas isso não significa que a gente não possa errar. Nenhum de nós é teimoso. Nós vamos testar hipóteses.

A gente tem uma crise instalada produzida pelo processo eleitoral em que um governo desesperado fez o que fez. Nós precisamos agora sair desse cenário turbulento que foi criado e vamos sair dessa tempestade.

A Caixa jogou quase R$ 10 bi nas mãos de beneficiários do Bolsa Família. Como isso será resolvido e como será o Desenrola?

Assim que eu tiver o anúncio das presidentes do BB e da Caixa, isso faz parte do pacote do primeiro trimestre. Isso é uma das bandeiras da campanha, a gente precisa resolver esse problema. Se houvesse a redução dos benefícios a Caixa estaria quebrada.

A reforma tributária será a proposta da Câmara ou do Senado?

Os dois projetos têm por base o trabalho que foi feito pelo Instituto do qual o Appy fazia parte. E ele passou anos da vida deles dedicados exclusivamente a isso. Eu não quero criar uma disputa entre Câmara e Senado porque é ruim até porque começou pela Câmara. A do Senado está mais adiantada. Eu acredito que o dual tenha mais chance. Fala-se muito não em alíquota única, pelo menos não na largada.

Nós vamos sentar com cada uma das casas pra estabelecer qual que é o rito. O objetivo é o sucesso, né? Vamos compartilhar o o sucesso. Há uma chance real de avançar a reforma tributária.

COAF voltando pra Fazenda, tudo bem?

Aquilo ali teve mais a ver com o filho do Bolsonaro do que com uma visão técnica, né? A COAF não é só banco, a COAF é combate à corrupção, uma porção de coisas. Por exemplo, a quadrilha que foi desbaratada lá no Teatro Municipal de São Paulo, só foi desbaratada por causa do COAF. O COAF sempre foi da Fazenda.

Atualização da faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física foi promessa de campanha. Quando ocorrerá?

Não cheguei lá ainda.

Haverá a criação do imposto sobre dividendos?

A partir de abril, vou dar andamento às reformas estruturais, começando por regras fiscais e reforma tributária. Que parte da reforma tributária? Impostos indiretos. Essas perguntas dizem respeito a impostos diretos. Não tratarei disso no primeiro momento.

Você falou em subestimação de receita. Será que há mesmo?

Por incrível que pareça, a receita de 2023 está abaixo da receita de 2022. A economia cresceu em 2022. Não vai ter deflação, vai ter menos inflação. Tem gente projetando entre R$ 30 bi e 120 bilhões de subestimação.

A inflação diminuiu por várias razões, uma parte por causa dessas desonerações. E o cenário de inflação, há o temor de que ela volte a subir?

Diminuiu porque 13,75% de juros é o maior juro real do mundo. Nós estamos com mais de 6% de juros real. É o dobro do segundo maior.

Mas só por causa dos juros ou teve uma interferência nos preços diretamente?

Teve a parte política, política eleitoreira, vamos chamar assim. Teve a parte eleitoreira, que foi arrebentar com os estados. Nunca se viu, no meio do ano, um presidente fazer (isso). Tomou bilhões dos governadores para fazer populismo. Nem é populismo, isso é eleitoralismo mesmo. Então, ele tem esse efeito, mas tem o efeito da política monetária.

Então a sua previsão é que a inflação vai permanecer mais baixa? Não vai voltar a subir?

O que interessa para a inflação é o seguinte: o cenário projetado. Ela pode ter, num momento ou outro... A curva de médio prazo da inflação é, na minha opinião, decrescente.

Um cenário benigno, então?

Eu acredito que sim. Não sei, tem choque externo. Tem sempre que ficar de olho no que está acontecendo no mundo. A inflação no mundo está muito alta. A inflação americana está acima de 7% (ao ano) ainda, apesar da pancada de juros que eles deram. E a inflação europeia maior ainda, embora com juros menores que nos Estados Unidos.

O juro na Europa está menor com uma inflação maior. O juro nos Estados Unidos está alto e com uma inflação mais alta. Nos dois casos, os juros negativos. O juro nominal é inferior...

Eu sei disso. Mas subindo rápido.

Subindo, mas ainda menor. E, no Brasil, estamos com um juro real que é o maior do mundo hoje. Isso aqui não é juízo de valor, não. Só estou dizendo o que é real.

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