Desde a captura por setores da extrema direita da indignação que foi às ruas em julho de 2013, ouve-se, aqui e ali, rumores de que a Constituição Federal oculta uma válvula de escape: a intervenção militar constitucional.
A expressão é um oxímoro, um paradoxo. Assim como a “dor que desatina sem doer”, de Camões, ou as “mentiras sinceras”, de Cazuza, a contradição interna de um conceito, quando muito, tem valor apenas na fantasia. Ou no pesadelo.
Não existe intervenção militar constitucional. É preciso reafirmar tantas vezes quanto necessário. E o motivo é simples, pois nossa Carta previu exatamente a quem cabe resolver conflitos sobre a interpretação das suas próprias regras: o Supremo Tribunal Federal.
Em seu artigo 102, diz-se, com todas as letras, que é a principal tarefa do STF promover a guarda da Constituição. Como o ministro Marco Aurélio Mello diz com frequência, entendeu o constituinte por dar ao STF o poder de errar por último. Pode-se até pensar —e há liberdade para isso— que o STF erra ao aplicar essa ou aquela norma constitucional. Mas não se pode admitir que haja alguma autoridade, acima do STF, com poderes legítimos para dizer: não irei cumprir.
Quem equivocadamente defende que as Forças Armadas pairam como juiz soberano, pronto a subjugar o STF se discordar da corte, costuma escorar-se no artigo 142 da Constituição Federal. Em seu trecho final, diz que cabe às Forças Armadas, a pedido de algum dos Poderes, garantir a lei e a ordem.
É sabido e consabido na hermenêutica que não se interpreta por partes. Esse artigo 142 integra a Constituição, é parte dela, e deve ser interpretado em harmonia com os demais, que preveem, expressamente, que o poder emana do povo, que o exerce por seus representantes. Qualquer manual de direito constitucional mostra que isso está consubstanciado no que se chama de Unidade da Constituição. Nenhuma norma constitucional dá às Forças Armadas a missão de exercer um fictício "Poder Moderador".
Mas então, para que serve o tão falado artigo 142?
Simples, para dar suporte às funções atípicas das Forças Armadas. Originalmente pensadas para proteger o país contra incursões externas, podem também cumprir missões ligadas à segurança pública, interna, em determinadas situações.
O tema é devidamente regulado pela lei complementar 97/99 e, nos últimos anos, habituamo-nos a ver as Forças Armadas nesse tipo de missão, chamadas de “Garantia da Lei e da Ordem”. O próprio Ministério da Defesa destaca exemplos desta atuação na Rio + 20, na Copa das Confederações, na Copa do Mundo e na Olimpíada do Rio de Janeiro. Nada mais do que isso. Não há atalho que permita descumprir as decisões soberanas do STF sobre as questões constitucionais.
Mas de onde vem, então, a argumentação dos que defendem essa leitura do artigo 142?
Sem dúvida, da tentativa de ganhar, no replay, uma briga jurídica perdida há décadas: aquela que se travou, na Alemanha do entreguerras, entre Carl Schmitt e Hans Kelsen. Resumidamente, o debate girava em torno de saber quem dava a última palavra na guarda da Constituição: uma corte constitucional ou o presidente.
Para Carl Schmitt, esse poder deveria ser do presidente, que representaria a vontade viva do povo em um certo momento histórico. E essa vontade não podia encontrar qualquer limitação.
Kelsen, de outro lado, entendia a Constituição como um conjunto de regras representando um consenso obtido na fundação do Estado. Esse consenso mínimo haveria de ser preservado e protegido. As normas não poderiam obter legitimidade fora da Constituição.
A história deu razão a Kelsen. As ideias de Carl Schmitt deram amparo ao horror estabelecido na Alemanha nazista, enquanto a reconstrução europeia e mundial, em grande medida, valeu-se da proposta de Kelsen de estabelecer cortes constitucionais estabilizadoras dos sentidos das respectivas Constituições. Afinal, Kelsen fora o mentor-construtor do Tribunal Constitucional da Áustria, no qual, aliás, atuou.
Também no Brasil esse debate se travou. Reportagem desta Folha expôs as discussões da constituinte em torno do artigo 142 e a tentativa de manter aberta uma porta ao autoritarismo.
E ainda que não tenhamos adotado integralmente as sugestões de Kelsen quanto ao controle de constitucionalidade, vez que mantemos a possibilidade de controle difuso pelos demais juízes, é fora de dúvida que, neste ponto, prevaleceu sua visão: a guarda da nossa Constituição cabe ao STF, e não ao presidente da República ou às Forças Armadas.
Sobre os autores
Fernando Neisser
Doutor em direito pela USP, presidente da Comissão de Direito Eleitoral do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo) e sócio de Rubens Naves Santos Jr. Advogados
Lenio Luiz Streck
Doutor em Direito pela UFSC, membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB e advogado sócio de Streck & Trindade Advogados Associados
Marco Aurélio de Carvalho
Advogado especializado em direito público e em direito notarial e de registro
Fernando Neisser
Doutor em direito pela USP, presidente da Comissão de Direito Eleitoral do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo) e sócio de Rubens Naves Santos Jr. Advogados
Lenio Luiz Streck
Doutor em Direito pela UFSC, membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB e advogado sócio de Streck & Trindade Advogados Associados
Marco Aurélio de Carvalho
Advogado especializado em direito público e em direito notarial e de registro
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