23 de dezembro de 2022

A luta de libertação da Guiné-Bissau transformou a face da política mundial

Um movimento liderado por Amílcar Cabral lutou contra o domínio português na Guiné-Bissau e conquistou a independência contra todas as probabilidades. Também contribuiu para o fim do domínio dos colonos brancos na África Austral e para a revolução democrática em Portugal.

Rui Lopes, Víctor Barros

Jacobin

Soldados rebeldes ginueanos durante a Guerra de Independência da Guiné-Bissau na África Ocidental, 14 de junho de 1972. (Reg Lancaster / Daily Express / Hulton Archive / Getty Images)

Hoje, os relatórios da mídia ocidental frequentemente apresentam a Guiné-Bissau como um "estado falido" com uma "narco-economia". Esses rótulos depreciativos retiram o país de seu contexto no sistema econômico global e apagam o legado do colonialismo europeu e da Guerra Fria, dando a falsa impressão de que seus problemas são autogerados.

Ao olhar para as dimensões internacionais da história da Guiné-Bissau, podemos contrariar essas visões enganosas e lançar luz sobre uma revolução anti-imperialista que teve um grande impacto muito além deste relativamente pequeno território da África Ocidental. A luta revolucionária lançada pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) não conduziu apenas à independência da própria Guiné-Bissau. Também deu uma contribuição vital para o fim do colonialismo português em toda a África e a queda da ditadura de longa data de Portugal.

Isso, por sua vez, teve consequências decisivas para o surgimento da democracia na Espanha e na África do Sul. Estes dois países com uma população combinada de bem mais de cem milhões de pessoas têm hoje uma dívida considerável para com a Guiné-Bissau, que tem uma população de dois milhões. Marcar a Guiné-Bissau como um "Estado falido" apaga a enorme contribuição que ela deu ao mundo moderno.

Cabral e o PAIGC

Amílcar Cabral foi o líder fundador do PAIGC, que travou uma bem-sucedida guerra de guerrilha contra o domínio português entre 1963 e 1974. Nascido em 1924, Cabral destacou-se como um estudante brilhante e foi um dos poucos africanos a frequentar a universidade em Portugal, onde se formou como engenheiro agrônomo.

As autoridades portuguesas esperavam que homens como Cabral servissem como administradores coloniais juniores, facilitando a exploração de seu próprio povo. Mas ele usou seu tempo em Portugal para estreitar laços com estudantes de outras colônias africanas, como Angola e Moçambique, alguns dos quais viriam a desempenhar papéis de liderança em seus próprios movimentos de independência. Ele também fez contato com as correntes de oposição de esquerda de Portugal, principalmente o Partido Comunista Português.

Ao regressar à Guiné-Bissau, Cabral foi oficialmente contratado para fazer um levantamento agrícola do país para o Estado português. No entanto, ele aproveitou a pesquisa como uma oportunidade para conhecer as condições sociais e geográficas de diferentes regiões - uma base de conhecimento essencial para a luta que se aproximava. Cabral e seus camaradas estabeleceram o PAIGC e, após um massacre de estivadores grevistas pelas forças de segurança portuguesas no porto de Bissau em 1959, eles decidiram que a resistência não violenta não era mais suficiente e começaram a se preparar para uma campanha de guerrilha contra o domínio português.

O momento anti-colonial

As lutas de libertação anticolonial na África e na Ásia moldaram profundamente a história global do século XX. Os movimentos de libertação do Sul Global desempenharam um papel fundamental na emergência de uma nova ordem mundial. Eles também capacitaram os povos colonizados e levaram à ascensão de novos estados pós-coloniais em fóruns internacionais.

Em seus escritos e discursos, Cabral destacou a importância da luta contra a dominação colonial para a política mundial:

A luta popular pela libertação nacional e independência do domínio imperialista tornou-se uma força motriz do progresso da humanidade. Constitui, sem dúvida, uma das características essenciais da história contemporânea.

Embora tenham definido como objetivo a autodeterminação nacional, devemos entender esses movimentos em termos de uma perspectiva global mais inclusiva, levando em consideração todas as conexões e interações que os moldaram nos níveis local, regional e internacional.

O projeto de libertação do PAICG ia além das preocupações nacionalistas. Identificava-se como um partido revolucionário que trabalhava para a criação de uma nova sociedade, a partir da organização de um novo sistema de educação, economia e estrutura de saúde nas chamadas áreas libertadas da Guiné-Bissau (as áreas que já não estavam sob domínio português).

O PAIGC lutava pela independência não de uma, mas de duas colônias: a Guiné-Bissau, no continente africano ocidental, e o arquipélago de Cabo Verde. Cabral argumentou que qualquer projeto de libertação que não abrangesse essas ilhas prejudicaria a luta pela independência da Guiné, uma vez que Portugal e seus aliados poderiam usar Cabo Verde como base de apoio militar para lançar uma contra-ofensiva.

Amílcar Cabral, Fevereiro de 1964. (Wikimedia Commons)

O próprio Cabral nascera na Guiné-Bissau de pais cabo-verdianos. Ele também fundamentou o projeto unitário e binacional do PAIGC em fatores culturais e históricos. Desde o início da colonização portuguesa, a partir de 1462, os colonizadores povoaram Cabo Verde com escravizados da costa africana guineense. Isso significava que seus povos compartilhavam origens comuns.

Na prática, a guerra de independência só ocorreu no território da Guiné-Bissau, pois o PAIGC considerou muito desafiador lançar uma insurgência em Cabo Verde. No entanto, o movimento de libertação também incluiu guerrilheiros cabo-verdianos.

Portugal e o sistema mundial

Desde o início dos anos 1960, o PAIGC fez campanha no cenário internacional contra o colonialismo português, cortejando o apoio de governos e aliados não estatais. A ditadura portuguesa, cujas origens remontam ao fascismo europeu entre guerras, estava agora firmemente integrada no bloco ocidental liderado pelos EUA durante a Guerra Fria, e tinha sido membro fundador da OTAN. Rejeitou sistematicamente quaisquer exigências de independência e travou guerras prolongadas em três das suas colônias africanas: Angola (desde 1961), Guiné-Bissau (desde 1963) e Moçambique (desde 1964).

O PAIGC desenvolveu redes com os movimentos de libertação das outras colônias portuguesas, a FRELIMO de Moçambique e o MPLA em Angola. Também participou de várias iniciativas pan-africanas e do Terceiro Mundo. O partido de Cabral recolheu ajuda material, técnica e diplomática para a sua luta armada enquanto divulgava a sua análise do colonialismo português e do sistema imperialista mais amplo que sustentou as guerras de Portugal.

Ao retratar o colonialismo português apenas como a ponta de um complexo muito maior de dominação econômica e política ocidental, o PAIGC projetou sua causa em um nível global. Denunciou veementemente o crescente investimento de empresas ocidentais nas colônias portuguesas e o fornecimento de material militar e cobertura diplomática à ditadura portuguesa por alguns de seus aliados da OTAN - particularmente Estados Unidos, Reino Unido, França e Alemanha Ocidental.

Essa mensagem tocou os estados da África e do mundo em geral, por meio de fóruns internacionais como a Organização da Unidade Africana, a Organização de Solidariedade dos Povos da Ásia, África e América Latina e o Comitê Especial da ONU sobre Descolonização. Tais discussões ligavam o anticolonialismo a uma crítica mais ampla dos interesses capitalistas.

A arma da teoria

Ao mesmo tempo, Cabral expôs o papel do sistema da Guerra Fria na perpetuação do colonialismo. Ele defendeu uma forma de anti-imperialismo não alinhado que desafiou a divisão geopolítica do mundo e procurou mobilizar possíveis aliados através da “cortina de ferro”.

O PAIGC obteve muito apoio militar e político do bloco soviético e de aliados do Terceiro Mundo - principalmente Cuba, que enviou médicos e soldados para ajudar em sua luta. No entanto, também recebeu ajuda substancial dos governos da Escandinávia e da Holanda, cujas contribuições materiais permitiram o processo de construção do Estado que estava ocorrendo nas áreas libertadas.

Não devemos subestimar o impacto da luta na Guiné-Bissau na sociedade civil ocidental. Muitas foram as redes de solidariedade forjadas na Europa Ocidental e na América do Norte para apoiar a libertação das colônias portuguesas. Uma série de simpatizantes, desde os Panteras Negras dos EUA até ativistas da Nova Esquerda francesa, abraçaram a noção de Cabral de lutas conectadas, que argumentavam que o imperialismo era um inimigo comum dos movimentos de libertação e da classe trabalhadora internacional.

Eles forneceram ao PAIGC assistência política e material, como doações de sangue, assistência médica e material escolar para as áreas libertadas, enquanto divulgavam as atrocidades portuguesas e a cumplicidade de empresas e governos ocidentais. Escritores, jornalistas, realizadores e fotógrafos de vários países viajaram até à Guiné-Bissau e relataram a experiência da população nas zonas libertadas.

A imagem destas regiões governadas pela guerrilha do PAIGC desempenhou um papel vital na legitimação da revolução anticolonial guineense a nível internacional. Numa perspetiva mais ampla, estas iniciativas de solidariedade integraram a luta do PAIGC no movimento emancipatório global da chamada “Longa década de 1960”, ao mesmo tempo que fomentam novas redes e práticas transnacionais de protesto e cooperação.

Cabral tornou-se uma figura inspiradora muito além dos países de língua portuguesa, antes e depois de seu assassinato em janeiro de 1973. De fato, ele continua sendo uma referência para os pensadores anticoloniais até hoje.

Não menos pela forma original como Cabral se envolveu com as ideias marxistas, especialmente no famoso discurso "Arma da Teoria" que proferiu na Conferência Tricontinental de 1966 em Havana, que causou uma impressão favorável no líder cubano Fidel Castro. Muitos de seus escritos e discursos, que tratavam de questões de cultura, raça, colonialismo, agricultura e luta de libertação, foram traduzidos para idiomas como inglês, francês e espanhol.

As ideias heterogêneas e multifacetadas de Cabral basearam-se em suas avaliações em evolução da trilha da libertação e continuam a estimular discussões e reflexões produtivas. Estudiosos e ativistas de várias disciplinas e correntes colocaram suas contribuições intelectuais no contexto de debates sobre a tradição radical negra africana, história pan-africana, pensamento descolonial e política revolucionária, entre outros. Um ensaio recente chegou a reinterpretar seu trabalho científico inicial como agrônomo sob uma luz progressista.

Uma luta internacional

Em 1964, o escritor francês Gérard Chaliand publicou o primeiro livro para o público ocidental sobre a luta na Guiné-Bissau. Depois de uma visita ao país em 1966-67, ele passou a escrever relatos influentes sobre as condições nas áreas libertadas. De acordo com Chaliand, o PAIGC liderou a luta armada mais significativa na África a partir de 1963, com a mobilização militar popular mais estruturada que o continente já havia visto.

Isso não quer dizer que a luta do PAIGC se desenrolou triunfalmente sem tensões internas ou compromissos morais. A guerra de libertação foi difícil, complexa e fragmentada. No entanto, tendo combinado com sucesso o combate armado com uma ampla e ativa abordagem diplomática, o PAIGC conseguiu proclamar unilateralmente a independência da Guiné-Bissau em setembro de 1973, que logo foi reconhecida por mais de quarenta estados.

Esta declaração veio apenas alguns meses após o assassinato do próprio Cabral no estado vizinho da Guiné-Conacri, cujo líder Ahmed Sékou Touré há muito apoiava o PAIGC. As autoridades coloniais portuguesas esperavam claramente que o PAIGC se desintegrasse ou aceitasse um compromisso antes da independência total na ausência de Cabral. Mas seus líderes sobreviventes lançaram uma grande ofensiva logo depois, fazendo uso dos mísseis antiaéreos que Cabral havia obtido recentemente para conter o uso incontestável do poder aéreo de Portugal.

Combinado com as guerras em Angola e Moçambique, o conflito na Guiné-Bissau alimentou o descontentamento interno em Portugal. Muitos oficiais subalternos estavam cansados de lutar o que consideravam uma guerra invencível e começaram a fazer perguntas sobre a ordem política doméstica. Quando um movimento de capitães do exército português deu um golpe contra a ditadura em 25 de abril de 1974, isso se transformou em uma revolução de pleno direito que pôs fim à ditadura de direita mais antiga da Europa. O novo governo de Lisboa logo reconheceu oficialmente a independência de todos os seus territórios na África.

A luta de guerrilha nas florestas e aldeias guineenses fez, portanto, parte do processo mais amplo de descolonização africana, fortalecendo as lutas antirracistas na Rodésia e na África do Sul. Com o fim da presença colonial portuguesa na África Austral, a ditadura dos colonos brancos rodesianos de Ian Smith só poderia durar até o final da década de 1970.

O regime do apartheid na África do Sul resistiu por mais uma década, mas a derrota de seu exército pelas forças cubanas em Angola em 1987-88 soou como o dobre de finados para a supremacia branca na região. Após sua libertação da prisão, Nelson Mandela prestou homenagem ao legado de Cabral.

A Guiné-Bissau também forneceu um gatilho fundamental para o mais importante movimento revolucionário de esquerda na Europa durante a segunda metade do século XX. A queda da ditadura em Portugal acelerou muito a democratização da vizinha Espanha após a morte de Francisco Franco em 1975, pois figuras-chave do regime franquista temiam uma erupção de baixo se não iniciassem um processo de reforma de cima. Um movimento que começou na África conjurou uma dinâmica radical que fluiu do Sul para o Norte e vice-versa.

Legados

Ao conquistar a sua independência, a Guiné-Bissau ainda era um país desesperadamente pobre, que enfrentava os mesmos problemas de pobreza e “subdesenvolvimento” econômico que os seus vizinhos da África Ocidental. Também persistiam tensões entre os líderes do PAIGC da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, onde o partido também assumiu o poder após a independência.

Essas tensões deram origem a um golpe militar em 1980, em que o ex-comandante guerrilheiro João Bernardo “Nino” Vieira depôs o primeiro presidente do país, Luís Cabral, irmão de Amílcar. O PAIGC em Cabo Verde separou-se para formar um partido separado, acabando com as esperanças de unidade. No cenário internacional, as décadas que se seguiram à independência da Guiné-Bissau foram um período cada vez mais sombrio para África, pois as instituições financeiras internacionais usaram a dívida como alavanca para impor o chamado Consenso de Washington.

Não podemos saber quão bem Amílcar Cabral teria lidado com estes desafios políticos e econômicos. Mas não há dúvida de que a perda de um líder tão talentoso às vésperas da independência foi um duro golpe para a Guiné-Bissau. No entanto, aqueles que reduzem a história moderna do país a uma narrativa de “fracasso” obscurecem as lições positivas que podemos tirar de sua história.

A luta pela libertação da Guiné-Bissau mostrou que era possível derrotar um regime que contava com o respaldo das grandes potências imperiais, reunindo apoios de diferentes continentes e subvertendo o que então se percebia como a lógica hegemônica do sistema internacional. Numa época em que assistimos a um perigoso renascimento das velhas fórmulas da Guerra Fria, esse é o tipo de imaginação política de que o mundo tanto precisa.

Colaboradores

Rui Lopes é docente na Birkbeck and Goldsmiths, Universidade de Londres, e investigador no Instituto de História Contemporânea da Universidade NOVA de Lisboa. Foi o investigador principal do projeto de investigação “Amílcar Cabral: Da História Política à Política da Memória” (2016-19).

Víctor Barros é investigador da École des Hautes Études Hispaniques et Ibériques em Madrid e membro do Instituto de História Contemporânea da Universidade NOVA de Lisboa. Foi bolsista do projeto de investigação “Amílcar Cabral: Da História Política à Política da Memória” (2016-19).

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