13 de dezembro de 2022

Uma condenação que não surpreende a ninguém

A justiça é uma classe privilegiada na Argentina, propensa ao nepotismo, isenta de impostos e beneficiária de pensões excessivas. Tal conformação é incompatível com uma democracia digna de tal denominação. Precisamos de um Judiciário não vitalício, eletivo e com mais participação popular.

Daniel Campione

Jacobin

Cristina Fernández de Kirchner cumprimenta os manifestantes da janela de seu escritório. (Foto: Telam)

O Tribunal Oral Federal nº 2 condenou a vice-presidente argentina Cristina Fernández de Kirchner a seis anos de prisão e inabilitação especial perpétua para o exercício de cargo público pelo crime de administração fraudulenta em detrimento da administração pública. A oposição de direita e a grande mídia aplaudiram a decisão, que qualificaram de "histórica" ​​e caracterizaram como um "passo muito importante" para defender as instituições.

O judiciário: por que e para quê?

Para entender uma das fontes que alimentaram esse resultado, é preciso atentar para o papel que se pensou para o Judiciário, desde a antiguidade. Referimo-nos sobretudo ao seu caráter “contramajoritário”. Foi concebido desde o século XVIII como um órgão não eleito, adequado para a correção de "excessos" ou "desvios" que pudessem ser cometidos pelos poderes submetidos ao voto popular. Desvios que se pretendem neutralizar por um órgão de decisão cuja não dependência das maiorias decorre de uma sólida ligação com as forças conservadoras da sociedade.

Se acrescentarmos o seu caráter vitalício, que só pode ser contrariado com a árdua realização de um julgamento político, fica claro que o império da soberania popular pára às portas dos tribunais.

Frequentemente se argumenta que o caráter de “contramaioria” atua a favor da garantia de proteção especial para minorias vulneráveis. Em muitos casos, e evidentemente em nosso país, os sujeitos da tutela jurisdicional são, sem dúvida, minorias. Mas não os fracos, e sim os mais fortes. E difícil de quebrar de qualquer maneira.

E há a chamada “independência” judicial, que na visão mais comum é definida apenas perante os poderes executivo e legislativo. E isso enquanto os que ocupam os outros dois poderes do Estado não merecerem total confiança das classes dominantes.

A chamada "justiça" na Argentina é um patrimônio cheio de privilégios, propenso ao nepotismo, isento de imposto de renda, beneficiário de aposentadorias excessivas... Tal concepção e prática institucional emana uma decisão como a que se tornou conhecida esta semana.

Para além de apelos éticos ou propostas de reformas parciais, o que cabe é constatar ativamente a incompatibilidade dessa conformação judicial com uma democracia digna dessa denominação. É necessária uma procuração não vitalícia. E eleitos por instâncias com menos componentes corporativos e maior participação popular.

Eles votam, nós vetamos

O aspecto mais grave da sentença proferida é a sua finalidade proscritiva. O objetivo é definir junto às autoridades judiciárias quem pode ser candidato e quem não pode por meio do "desabilitação" em caráter perpétuo. Não por um veredicto desfavorável nas urnas, mas pelo majestoso poder de um núcleo de juízes com evidentes vínculos com os principais promotores da crítica "republicana" à sua pessoa e ao seu governo.

O contexto não ajuda. A presença de juízes, funcionários públicos, agentes de inteligência e dois altos executivos do grupo Clarín em um encontro furtivo na fazenda de um empresário altamente questionado lança um novo insulto não apenas à imparcialidade judicial, mas também ao respeito às leis que supostamente defendem.

Embora não diretamente relacionado com a trama do caso “Vialidad”, o espetáculo de “ilustres” magistrados judiciais em promiscuidade com empresários da mídia e autoridades políticas, permitindo-se financiar uma viagem - e, pior ainda, tentando disfarçar a natureza de um presente (um crime) que poderia ter sido toda a jornada - oferece uma imagem terrível.

Além do efeito protelatório que os sucessivos recursos disponíveis podem proporcionar, o que a audiência oral está dizendo é que Cristina Fernández de Kirchner deve ser excluída da vida política. E enquanto houver recursos pendentes, a aposta será no seu descrédito, que como condenada, deve sua permanência em liberdade à morosidade dos trâmites en curso.

A "justiça" parece aspirar a uma crescente judicialização da atividade política. Talvez até a distopia funesta do "governo dos juízes". E para isso conta com a necessária cumplicidade das lideranças políticas. Diante de qualquer controvérsia com certa gravidade, ela é respondida não com um debate mais ou menos de frente com os cidadãos, mas com um processo ou reclamação perante os juízes. E isso diz respeito tanto à atual oposição quanto ao atual partido no poder.

De intenções e responsabilidades

A decisão é dirigida contra a capacidade mobilizadora do peronismo. E o temor de uma “radicalização” que possa trazer o retorno de traços “populistas” ao governo, ainda que as condições econômicas e a vontade da direção não pareçam propícias a tal deriva.

A Frente de Todos proferiu uma condenação unânime da decisão judicial. O que não apaga o passado não tão distante em que o atual ministro da Economia manifestou publicamente sua aspiração de prender as principais figuras do kirchnerismo.

A corrupção existiu e existe. A manipulação deste julgamento e o manifesto viés do tribunal e dos promotores não isentam automaticamente Cristina Fernández ou os demais réus da possibilidade de terem participado na prática de atos ilícitos. O que acontece é que o princípio da inocência estabelece que a culpa tem que ser provada, não pode ser presumida. O arguido não pode ser forçado a provar a sua inocência.

Outro debate é o da responsabilidade política de quem esteve à frente do aparelho de Estado por oito anos, ainda que não tenha se envolvido diretamente em determinadas ações ou omissões. Daí tomar como provado que ela era a autora dos crimes há um distanciamento. Deveria ser óbvio, o nível legal é diferente do político.

O que não merece ser validado é a afirmação de que a ação persecutória e proscritiva é prova indireta do caráter "nacional e popular" da atual gestão governamental. A justiça não age contra as políticas atuais. Alinham-se com o Fundo Monetário Internacional e com parte das coordenadas do programa permanente do grande capital, com a “austeridade fiscal” em primeiro lugar. Sua ação é de caráter preventivo, caso no futuro o peronismo “volte aos velhos tempos” com políticas que preservem um pouco os trabalhadores e os pobres.

O que o poder do capital busca, cada vez com maior esforço, é fortalecer as diversas instâncias que possam “corrigir” expressões da vontade popular que não lhe sejam inteiramente favoráveis. Ou que entronizam figuras políticas que não inspiram total confiança. O judiciário é apenas um desses mecanismos e pode atuar tanto como protagonista de ações antidemocráticas, quanto como suporte ou endosso de outras instâncias. A vantagem oferecida por sua legitimidade no conhecimento jurídico e sua reivindicação de "independência" é diminuída, mas não destruída, pela evidência de desigualdade e falta de adesão aos procedimentos.

O que ganha clareza é a predominância dos "poderes permanentes" em relação aos eletivos. E o recado é inequívoco: nenhuma instância de poder sujeita a votação e prazo de validade deve se autonomizar dos verdadeiramente poderosos, sob pena de ser por eles assediada e até mesmo destituída. E, se possível, "apagado" para sempre da cena pública. O tecido “democrático” está cada vez mais afastado dos desejos e intenções dos eleitores e os elementos do “governo pelo povo” estão em permanente declínio.

***

En Argentina asistimos a la consumación de un atentado contra la voluntad popular: una condena a quien sigue siendo la dirigente de mayor popularidad en el país. Con pruebas menos que endebles y una explícita carga proscriptiva. El alegato del fiscal Diego Luciani, sobrecargado de histrionismo para disimular su fragilidad, constituyó el anuncio de lo que vendría. Junto con su actuación, el fallido atentado contra la vida de Cristina Fernández (que solo una mirada interesada puede atribuir a un grupo de «loquitos») y la condena por un tribunal oral con insólitas cercanías con el expresidente Mauricio Macri forman una serie que sería ridícula si no tuviera una carga siniestra.

La movilización, la disputa en la calle, la creatividad orientada hacia diversas formas de poder popular pueden ser el principal contrapeso frente a quienes aspiran a que la política se dirima en ámbitos cerrados, al amparo de cualquier presencia indiscreta. Pero el quizás improvisado renunciamiento de la vicepresidenta a postularse para cualquier cargo parece apuntar en sentido contrario. De hacerse efectivo, dejaría a sus partidarios al margen de la posibilidad de elegirla. Y, de rebote, concuerda con el propósito de quienes la juzgaron o impulsaron esa decisión.

Para quienes aspiran a sostener su independencia tanto respecto a la oposición de derecha como frente al gobierno, el camino es cuestionar las decisiones de la mal llamada «Justicia» con atención al diseño elitista y clasista de todas las instancias judiciales. Las víctimas de sentencias injustas son muchas y están diseminadas por todo el país. La gran mayoría no pertenece a las élites sino al amplísimo campo social afectado por la explotación y la pobreza.

Colaborador

Professor de Teoria do Estado na Universidade de Buenos Aires. Autor de vários livros, entre os quais Leer Gramsci (Ediciones Continente, 2007), Orígenes estatales del peronismo (Miño y Dávila, 2007) e Guerra Civil Española: Argentina y los argentinos (Luxemburg, 2018).

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