10 de dezembro de 2022

Fascistas ucranianos treinados pelos militares do Canadá. Agora estão alegando “desinformação russa”.

Um relatório da Universidade George Washington revela que as Forças Armadas canadenses treinaram um grupo ucraniano de extrema-direita. Apesar da corroboração de seus próprios documentos internos, os militares canadenses estão chamando o relatório de "desinformação russa".

Alex Cosh

Um grupo de homens uniformizados posa para uma foto postada no Telegram do grupo neonazista Centuria. (GUG)

Tradução / Em 2021, um relatório publicado pela Universidade George Washington (GWU) revelou que membros de um grupo de extrema direita ucraniano, a Ordem Militar do Centurião, se gabavam na internet de receber treinamento da OTAN na Academia Nacional do Exército Hetman Petro Sahaidachny. Mesmo com documentos revelando que os oficiais das Forças Armadas Canadenses (CAF) admitiram inicialmente que o relatório era confiável, os militares canadenses agora tentam afirmar – sem provas – que o relatório continha fotos “manipuladas” para sustentar a “desinformação russa”.

Na melhor das hipóteses, o fato de a CAF ter feito esta acusação sem provas ou mesmo exemplos específicos sugere que os militares não levam a questão a sério. Na pior das hipóteses, sinaliza uma tentativa cínica de explorar um clima confuso de informação para desviar um olhar das operações militares do Canadá. Em ambos os casos, a alegação da CAF sobre o relatório tentar jogar, sem fundamento, a reputação dos pesquisadores e jornalistas – e sua segurança pessoal – na lata do lixo.

Treinando nazistas

Orelatório da GWU, publicado em setembro de 2021, documenta os membros do Centurião promovendo o nacionalismo branco, fazendo saudações nazistas e elogiando os membros da SS. Em um post do Telegram em 2020, o grupo declarou que seu objetivo era “alcançar as mais altas patentes dentro das Forças Armadas [da Ucrânia]” e “exercer influência significativa dentro da estrutura das Forças Armadas”. O grupo também está ligado ao famoso movimento de extrema direita ucraniano, Azov. Em 2021, o Centurião se orgulhava de ter criado laços com “colegas estrangeiros de países como França, Reino Unido, Canadá, EUA, Alemanha e Polônia”. O relatório da GWU provocou uma polêmica interna no ano passado, mas a CAF acabou negando ter treinado o grupo – sem fornecer nenhum detalhe.

Entretanto, documentos internos que obtive recentemente através de um pedido de Liberdade de Informação (FOI) mostram que os oficiais da CAF admitiram no momento da publicação original do relatório que acreditavam que ele era confiável. Os documentos revelam que o relatório foi referido como uma “questão permanente”, e não foi considerado como parte de uma “campanha de operações de informação russa”.

As autoridades falaram da necessidade de desenvolver uma “postura” de alerta para evitar que o relatório e outros como ele fossem usados para desacreditar a Operação Unifier, o programa de treinamento de US$ 890 milhões do Canadá na Ucrânia (agora operando no Reino Unido). Longe de expressar preocupação com as revelações do relatório, os oficiais pareciam estar preocupados em monitorar e gerenciar qualquer repercussão na mídia. A equipe montou um “processo de escuta nas redes sociais” para verificar se a história tinha “algum tipo de reação”.

O relatório da GWU afirma que os novos recrutas na academia de treinamento não foram selecionados por terem opiniões extremistas. Nos documentos obtidos através da FOI, o coronel Robert Foster, um membro do attaché militar canadense na Ucrânia, contesta isso, mas admite internamente que o processo de seleção “pode não ser tão extenso quanto parece”. Os documentos do FOI também sugeriram que o Ministério da Defesa da Ucrânia lançou uma “inspeção oficial” das conclusões do relatório. Mas no mês passado, a CAF me disse em um e-mail que não tinha recebido nenhuma correspondência escrita sobre essa inspeção desde o início da invasão da Rússia.

As Forças Armadas do Canadá e a extrema direita ucraniana

Orelatório da GWU não foi a primeira prova de que a CAF está ligada à extrema direita ucraniana. Segundo o Ottawa Citizen, os oficiais militares canadenses se reuniram com membros do regimento neonazista Azov em 2018 e foram treinados por eles. A CAF não denunciou a unidade, mas temia que os repórteres divulgassem a reunião. Em abril deste ano, a Rádio Canadá e o CTV News forneceram mais provas mostrando que a CAF havia treinado membros das forças armadas da Ucrânia que eram membros de vários grupos de extrema direita.

Em resposta às minhas perguntas sobre suas comunicações internas a respeito do relatório da GWU, a CAF alegou em uma declaração por e-mail que o relatório continha fotos “do Facebook” que foram “manipuladas” para apoiar uma campanha de “desinformação russa”, citando uma conclusão transmitida a eles pelo Ministério da Defesa da Ucrânia. O fato da CAF ter feito esta afirmação somente quando solicitada a responder perguntas sobre suas comunicações internas – e não através de um comunicado à imprensa – tem a aparência de uma manobra defensiva, não de uma avaliação claramente pensada do relatório.

Os militares canadenses admitiram que não sabiam quais fotos foram supostamente alteradas e não forneceram nenhuma evidência para sustentar seu argumento e, ao invés disso, transferiram a responsabilidade para o Ministério da Defesa ucraniano, que não respondeu aos meus pedidos de mais informações. Além disso, a CAF não poderia dizer se acreditavam que as fotos supostamente editadas desacreditaram o relatório como um todo.

Além da incapacidade de dizer quais fotos foram supostamente alteradas, a alegação da CAF de desinformação é problemática por uma série de razões. Primeiro, o próprio relatório da GWU reconheceu que o Centurião provavelmente tinha alterado digitalmente algumas fotos antes de publicá-las nas redes sociais. Em todos os casos, essas suspeitas de alterações não invalidam o relatório – as imagens continham imagens nazistas antes e depois das alterações (o que significa que as imagens eram igualmente condenáveis com ou sem as edições). Em segundo lugar, a denúncia não se baseou apenas nas fotos do Facebook. Além de se referir a imagens, gravuras, vídeos e textos tirados de outras plataformas das redes sociais, o relatório também documentou informações pertinentes da mídia ucraniana e outras publicações e documentos digitais.

O autor do relatório da GWU, Oleksiy Kuzmenko, ficou chocado com a afirmação vaga e infundada da CAF. Ele nunca foi contactado nem pela CAF nem pelo Ministério da Defesa ucraniano, e disse estar preparado para explorar opções jurídicas para defender seu trabalho contra acusações infundadas feitas por qualquer governo. Ele também notou que recebeu ameaças de morte anteriormente por causa de seu trabalho cobrindo a extrema direita da Ucrânia e está preocupado com a possibilidade de agressões físicas por pessoas enganadas ou encorajadas por acusações “irresponsáveis” por parte dos governos do Canadá e da Ucrânia.

O relatório da GWU é ainda mais preocupante à luz de um relatório recente que revelou que a CAF tem seus próprios problemas internos com o nacionalismo branco. Tanto em suas negociações com os parceiros da coalizão quanto em cada um de seus três ramos, a CAF parece estar com uma profunda necessidade de fazer uma faxina.

Alavancando o Bogeyman de Putin

As circunstâncias em que a CAF fez esta afirmação sobre o relatório da GWU também é inquestionavelmente conveniente para os militares. Vladimir Putin iniciou a brutal invasão da Ucrânia por parte da Rússia com base na narrativa de que o Estado ucraniano está tomado por fascistas e precisava ser “desnazificado”. Assim, é compreensível que os jornalistas tenham tomado um cuidado especial para não dar razão à linha do Kremlin.

Entretanto, enquanto alguns ainda conseguiram reconhecer a existência de grupos fascistas na Ucrânia que exercem uma influência maior em relação ao seu tamanho, outros simplesmente minimizam ou negam completamente os fatos sobre eles. Isto vem em meio a uma politização perturbadora do conceito de “desinformação”, que alguns meios de comunicação dominantes, estudos acadêmicos e instituições estatais têm usado para confundir falsidades empíricas com opiniões contrárias e fatos inconvenientes. Qualquer referência às preocupações com a extrema direita da Ucrânia, diz a narrativa, simplesmente ajuda Putin.

Embora eu não tenha evidências que o Departamento de Defesa Nacional do Canadá tenha deliberadamente atrasado a liberação das comunicações internas que solicitei, é importante notar que os documentos demoraram mais de um ano para serem disponibilizados. Além disso, eles só foram liberados após eu ter apresentado uma queixa ao comissário de informação do Canadá. O atraso acabou significando que os documentos vieram à tona numa época em que qualquer preocupação pública sobre fascistas na Ucrânia havia sido eclipsada por um clima de informação no qual quaisquer fatos complicando narrativas dominantes sobre a guerra foram prontamente descartados como propaganda russa.

O que é claro é que a CAF prefere que todos nós esqueçamos o relatório da GWU e outros como ele. Mas os jornalistas canadenses e a sociedade civil não podem permitir que isso aconteça. É impossível saber como e quando a guerra na Ucrânia vai terminar. Mas dado o fato de que o Canadá ampliou recentemente a Operação Unifier, parece provável que a CAF esteja procurando desempenhar algum papel no futuro pós-guerra do país. As questões levantadas pelo relatório da GWU e outras como ele deveriam estar na frente de todos os debates públicos sobre quaisquer operações futuras de treinamento conduzidas pelo Canadá dentro da Ucrânia.

Colaborador

Alex Cosh é o editor-chefe do Maple. Ele mora em Tiskwat, no território tradicional do povo Tla'amin.

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