17 de dezembro de 2022

Bolsa internet pode ser instrumento poderoso de combate à pobreza

Projeto de equipe de Lula é bom começo, mas deveria ser mais ambicioso

Marta Arretche

Professora titular do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap)

Fabio Senne

Doutor em ciência política pela USP, é coordenador de pesquisas TIC do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação


[Resumo] Proposta de grupo de trabalho de Lula de baratear o acesso de famílias de baixa renda à internet pode ter efeito positivo no combate à desigualdade e na geração de renda, avaliam pesquisadores. Uma inclusão digital efetiva, contudo, demandará projetos mais ambiciosos, que promovam também capacitação da população, e oportunidade de uso de equipamentos e de velocidade de dados adequados.

*

A equipe de Lula anunciou proposta de criação de uma bolsa para apoiar o acesso à internet entre os inscritos no Cadastro Único do governo federal. A sinalização do grupo de trabalho recoloca na agenda um aspecto ainda pouco explorado no campo das políticas sociais: o acesso à internet pode ser um instrumento para enfrentar a pobreza e promover a inclusão social?

A resposta é sim. Há um número crescente de evidências indicando que as tecnologias digitais desempenham um papel crítico em programas de inclusão social. A concessão de bolsas é um auspicioso começo, mas a promoção da inclusão digital pode e deve ser ainda mais ambiciosa.

O combate às desigualdades digitais exige políticas que avancem para além do provimento de acesso, promovendo oportunidades de uso da rede e a formação de habilidades digitais no conjunto da população.

Vista aérea da divisa entre Paraisópolis e Morumbi, em São Paulo - Gabriel Cabral/Folhapress

O enfrentamento das desigualdades digitais está no centro das agendas globais de desenvolvimento, como a Agenda 2030 da ONU. Mais recentemente, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, deu início a um debate para a criação de um pacto global para promover os benefícios e mitigar os riscos da transformação digital ("Global Digital Compact"), iniciativa que reconhece a necessidade de conectar todas as pessoas e escolas à internet.

A agenda foi exponenciada pela experiência com a pandemia da Covid-19, que produziu intensa aceleração nos processos de digitalização da vida econômica e social. As pesquisas na área demonstraram uma migração na realização de serviços públicos e transações financeiras para o ambiente online.

No Brasil, a adoção, sem precedentes, de aplicativos para a solicitação e movimentação do auxílio emergencial foi um exemplo marcante de uso de tecnologias digitais na política de assistência social, mas também das desigualdades e limitações que estas podem produzir.

Se é certo que houve avanços na direção da expansão da digitalização, as desigualdades digitais permanecem restringindo o aproveitamento equitativo de oportunidades online. Uma conectividade precária também afeta a realização de atividades essenciais, tais como o acesso a oportunidades de emprego e renda, teletrabalho, ensino remoto e telemedicina, para não mencionar programas de governo.

A associação entre a falta de internet e a pobreza no Brasil é conhecida. Não é possível, contudo, determinar com certeza a direção da causalidade, se a pobreza dificulta o acesso à internet ou se a falta de acesso gera pobreza. O fato é que os dois fenômenos se reforçam mutuamente.

O elevado número de usuários de internet no Brasil mascara enorme desigualdade. A rápida expansão do acesso nos últimos 20 anos beneficiou os estratos de maior renda e escolaridade. O avanço da rede também foi tardio em áreas que concentram a população em situação de pobreza, como é o caso das áreas rurais e das regiões Norte e Nordeste.

Do ponto de vista do uso, temos ainda uma "elite digital", com acesso a computador e banda larga fixa, e usuários de "segunda classe", que dependem do uso do celular e com pacotes de dados limitados. Atualmente, um acesso significativo à internet está menos presente entre os idosos, indivíduos de baixa renda e de baixa escolaridade, bem como entre mulheres negras.

A popularização, e quase universalização, dos telefones celulares é simultaneamente uma boa e uma má notícia. A pesquisa recente no campo indica uma contribuição significativa do acesso à internet para a manutenção de patamares de renda entre populações mais vulneráveis.

Na crise econômica iniciada em 2015, a maior resiliência frente à pobreza entre aqueles que puderam fazer uso da internet ocorreu especialmente na renda do trabalho, o que indica que a conexão pode ter impacto relevante no acesso a fontes de renda, em um mercado caracterizado por alta informalidade. Em períodos de crise econômica, a combinação de medidas de estímulo à conectividade, associadas a programas de combate à pobreza e de transferência de renda, pode ser uma trilha promissora.

Por outro lado, quando o telefone celular é o único dispositivo para o acesso à rede (realidade vivenciada por 89% dos usuários das classes D e E, segundo a pesquisa TIC Domicílios do CGI.br), os usuários ficam impedidos de realizar atividades mais sofisticadas, incluindo o preenchimento de formulários, a emissão de documentos e outras transações eletrônicas.

Na prática, embora o telefone celular permita que trabalhadores informais e prestadores de serviço se conectem com clientes via aplicativos de mensagens instantâneas, esses usuários possuem menos recursos para um uso pleno das tecnologias digitais, o que é central em um debate público marcado pela desinformação.

A popularização do celular e dos aplicativos de mensagens no Brasil (o envio de mensagens instantâneas é atividade realizada por 93% dos usuários) contrasta com uma inserção ainda tímida da internet no mundo do trabalho (36%) e para a realização de transações financeiras (46%). Há muito a ser feito nessa área.

Por essa razão, para que a conectividade seja significativa para o aproveitamento de oportunidades online, é crucial verificar a frequência e a autonomia no uso da internet, por meio de um dispositivo apropriado e de uma conexão com velocidade e quantidade de dados suficientes. Sem isso, a internet tem efeito limitado no acesso dos mais pobres a programas de governo e oportunidades de trabalho e renda.

Assim, posicionar a inclusão digital no centro da produção das políticas de transferência de renda e combate à pobreza pode afetar positivamente os resultados de tais estratégias, contribuindo para romper um ciclo perverso de manutenção ou mesmo de reforço das desigualdades.

Nos últimos anos, propostas de subsídios específicos para custear a internet de beneficiários de programas sociais fizeram parte do debate público. No contexto da pandemia, propostas legislativas sobre o tema voltaram a emergir (como é o caso do PL 4.242/2020, apresentado no Senado Federal).

Com a crise sanitária, o debate foi ainda mais intenso no campo da educação, com a aprovação de medidas para o fornecimento de pacotes de dados e dispositivos para professores e estudantes (é o caso da lei 14.172/2021, que dispõe sobre a garantia de acesso à internet, com fins educacionais, a alunos e a professores da educação básica pública).

No contexto atual, parece inevitável atribuir ao acesso à internet o mesmo status de outros bens coletivos como energia elétrica, água e esgoto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...