1 de agosto de 1971

Lukács sobre sua vida e obra

György Lukács

Perry Anderson

New Left Review

NLR I/68 • JULY/AUG 1971

Tradução / Os eventos recentes na Europa colocaram novamente o problema da relação entre socialismo e democracia. Quais são, em sua opinião, as diferenças fundamentais entre democracia burguesa e a democracia socialista revolucionária?

A democracia burguesa foi estabelecida com a Constituição Francesa de 1793, sua maior e mais radical expressão. Seu ativo constituinte é a divisão do homem no cytoain da vida pública e no bourgeois da vida privada, o primeiro com direitos políticos universais, de acordo com a expressão de diferentes interesses econômicos particulares. A divisão é fundamental para a democracia burguesa que historicamente determinou o fenômeno. Sua reflexão filosófica é encontrada em Sade. É interessante que escritores como Adorno tenham lidado com Sade como um reflexo da Constituição de 1793. 

A ideia chave, tanto para uma reflexão como para outra, é que o homem é objeto para o homem e a racionalidade egoísta é a essência da sociedade humana. Agora, e óbvio que qualquer tentativa de recriar no socialismo que historicamente excedeu esta forma de democracia é uma regressão e um anacronismo. Isto não quer dizer, contudo, que as aspirações a uma democracia socialista devem ser endereçadas em uma ótica administrativa. O problema da democracia socialista é um problema real que ainda não foi resolvido, como deve ser: material e idealmente. Deixe-me dar um exemplo. Guevara foi um homem como uma representação heroica dos ideais Jacobinos. Seus ideais impregnaram sua vida e a modelaram totalmente. Ele não foi o primeiro caso dentro do movimento revolucionário. Levine na Alemanha ou Otto Korvin aqui na Hungria viveram e agiram da mesma maneira. Nós devemos ter um grande respeito por nobreza humana deste tipo. Mas o idealismo deles não é socialismo do dia a dia, o qual deve ter uma base material e baseado na construção de uma nova economia. Mas eu devo adiantar que o desenvolvimento econômico por si só nunca produzirá socialismo. A doutrina de Khrushchev, para a qual o socialismo triunfaria globalmente quando os padrões de vida da URRS ultrapassassem aqueles dos EU, estava completamente enganada. O problema deveria ser colocado em um lugar radicalmente oposto. Você pode formular-se assim: O socialismo é o primeiro treinamento na história econômica que não produz espontaneamente o seu “homem econômico” correspondente. Isto é porque é um treinamento de transição, um interlúdio de transição do capitalismo para o comunismo. Agora, como uma economia socialista não produz e reproduz espontaneamente o homem correspondente a ela, como a sociedade capitalista gera seu homo economicus, que é a divisão citoyen/bourgeois de 1793 e de Sade, a principal função da democracia socialista é a educação dos seus membros para o socialismo. Esta função não tem precedente similar na democracia burguesa. Claramente, o que hoje seria necessário é reviver os sovietes, o sistema de democracia socialista que surge sempre que você tem uma revolução proletária: a Comuna de Paris em 1871, a Revolução Russa de 1905 e assim como a Revolução de Outubro. Mas pode acontecer do dia pra noite... O problema é que os trabalhadores aqui são indiferentes: inicialmente eles não acreditam em nada.

Discontinuity in History

Um problema a esse respeito concerne à emergência histórica de mudanças necessárias. No debate filosófico recente aqui temos tido muita discussão sobre a continuidade e descontinuidade na história. E tenho definitivamente me expressado pela descontinuidade. Você já conhece a tese conservadora de De Toqcqueville e Taine segundo os quais a Revolução Francesa de maneira alguma foi uma mudança na história francesa, porque deu continuidade à tradição de Estados franceses centralizados, a qual foi dominante sob o “antigo regime” com Luis XIV e foi acentuado por Napoleão e em seguida pelo Segundo Império. Esta visão da história, dentro do movimento revolucionário, foi decisivamente rejeitada por Lenin. Ele nunca apresentou qualquer mudança fundamental e novos inícios como uma simples continuação de tendências e antigos progressos. Por exemplo, quando ele anunciou a nova política econômica, nunca alegou que este era o desenvolvimento ou a coroação da guerra comunista. Lenin deixou claro que a economia de guerra comunista era um erro, contudo, compreensível, dadas as circunstâncias do momento e que a NEP era uma correção daquele erro e uma nova correção de curso. Este método leninista foi abandonado pelo stalinismo, o qual sempre tentou apresentar mudanças políticas – até mesmo as mais importantes – como a consequência lógica de melhoramentos da linha precedente. Stalinismo é toda a história do socialismo como um contínuo e ordenado desenvolvimento; nunca admitindo descontinuidade. Hoje, este problema é vital como nunca, especialmente para endereçar a sobrevivência do stalinismo. A continuidade com o passado deve ser enfatizada dentro da perspectiva de melhoramentos ou, do contrário, o caminho do progresso deve consistir em um ruptura profunda com o stalinismo? Eu acredito que a ruptura completa é necessária. Para o problema da descontinuidade na história, para mim, parece importante.

Como você julga seus escritos filosóficos dos anos vinte hoje? Qual é a relação deles com o seu trabalho atual?

Nos anos vinte, Korsch, Gramsci e eu tentamos, cada um à sua maneira, lidar com o problema da necessidade social e sua interpretação mecanicista, o legado da Segunda Internacional. Nós legamos o problema, mas nenhum de nós – nem mesmo Gramsci, que era, talvez, o melhor entre nós, conseguiu resolvê-la. Nós estávamos errados e seria um erro hoje nos alçar a reviver os trabalhos daquela época como se fossem válidos hoje. No ocidente existe uma tendência a erigir uma “heresia clássica”, mas nós não precisamos hoje. Os anos vinte são uma era pretérita; o que nos concerne são os problemas dos anos sessenta. Eu estou trabalhando em uma ontologia do ser social que, eu espero, resolverá o problema que eu enfrentei de maneira errada no meu trabalho preliminar, especialmente em História e Consciência de Classe. Meu novo trabalho foca na relação entre liberdade e necessidade, ou, como eu me expresso, entre casualidade e teleologia. Tradicionalmente, filósofos tem sempre baseado seus sistemas em um ou outro dos dois polos; ou tem negado a necessidade ou a liberdade humana, Minha intenção é de apresentar a inter-relação ontológica dos dois termos, e rejeitar o ultimato – ao qual filósofos tem recorrido para representar o homem. O conceito de trabalho é a pedra angular da minha análise, porque o trabalho não é biologicamente determinado. Se um leão ataca um antílope, seu comportamento é determinado por uma necessidade biológica e apenas por isso. Mas o homem primitivo está em frente a uma pilha de pedras, ele precisa escolher entre uma delas, tendo como critério qual será mais adequada para ser usada como ferramenta; ele escolhe entre alternativas. O termo alternativas é fundamental para o conceito de trabalho humano, o qual é, então, sempre teleológico – ele emprega propósito, o qual é resultado de uma escolha. Desta maneira expressa-se a liberdade humana. Mas a liberdade existe apensas objetiva e fisicamente, nas forças motrizes que obedecem as leis da causalidade do universo material. A teleologia do trabalho é então sempre coordenada com a causalidade física, e de fato, o resultado de qualquer outro trabalho individual é um tempo da causalidade física para a posição teleológica (Setzung) do que qualquer outra individual. Fé na teleologia da natureza é teologia, e fé em uma teleologia na história é infundada. Mas existe uma teleologia em cada trabalho humano, intrinsecamente inserida na causalidade do mundo físico. Esta posição, que é o núcleo do qual se desenvolve meu trabalho atual, excede a oposição clássica entre necessidade e liberdade. Mas eu quero enfatizar que não estou tentando construir um sistema compreensivo. O título do meu trabalho – que já está pronto, apesar de eu estar revisando o primeiro capítulo – é para uma ontologia do ser social e não A ontologia do ser social. Perceba a diferença. A tarefa na qual estou envolvido vai requerer um esforço coletivo de muitos pensadores para seu real desenvolvimento. Mas eu espero que isto mostre os fundações ontológicas do socialismo da vida cotidiana que eu mencionei antes.

Radical English Culture

A Inglaterra é o único grande país europeu sem uma tradição filosófica marxista nativa. Você tem escrito extensivamente sobre um dos momentos da sua história cultural, o trabalho de Walter Scott; mas como você vê o desenvolvimento amplo da história política e intelectual britânica e suas relações com a cultura europeia do Iluminismo?

A história britânica tem sido vítima do que Marx chamou de desenvolvimento desigual. O radicalismo da revolução de Cromwell e então a revolução de 1688, e seu sucesso em assegurar relações capitalistas entre cidade e país, tornou-se uma razão de atraso na Inglaterra. Eu penso que a sua revista tem sublinhado bastante a importância histórica da agricultura capitalista na Inglaterra e seus consequências paradoxais para o desenvolvimento inglês subsequente. Isto pode ser visto claramente em um desenvolvimento cultural inglês. O domínio do empirismo como uma ideologia da burguesia nasceu depois de 1688, mas alcançou extraordinário poder posteriormente, mudando a história da filosofia e da arte anteriores. Peque Bacon, por exemplo, ele foi um grande balizador, muito mais que Locke, que mais tarde deu à burguesia o que importa. Mas sua importância foi completamente apagada do empirismo inglês, e hoje se você quer estudar o que Bacon foi para o empirismo, você deve antes estudar o que o empirismo incluiu de Bacon, o que é sensivelmente diferente. Marx foi um grande admirador de Bacon, como é sabido. A mesma coisa aconteceu com outro grande pensador inglês, Mandeville. Ele foi o sucessor de Hobber, mas a burguesia inglesa negligenciou isto totalmente. Ao invés disso descobriu que Marx o cita em Teorias do Mais-Valor. Esta cultura inglesa radical do passado foi obscurecida e ignorada. No seu lugar, Eliot e outros preferiram e exageraram a importância atribuída aos poetas metafísicos – Women, etc. – os quais são muito menos importantes para o desenvolvimento e a história da cultura humana. Outro episódio detector é o destino de Scott. Eu escrevi sobre a importância de Scott no meu livro O romance histórico, você notará que é o primeiro novelista que entendeu que o homem é modificado pela história. Esta foi uma descoberta extraordinária e foi imediatamente perseguida por grandes escritores europeus tais como Pushkin na Russia, Manzoni na Itália e Balzac na França. Todos perceberam a importância de Scott e aprenderam com ele. O curioso, contudo, é que na Inglaterra Scott não tem seguidores. Foi muito pouco entendido e foi esquecido. Esta tem, portanto, sido uma fratura em todo o desenvolvimento da cultura inglesa, a qual é muito visível nos escritores radicais subsequentes como Shaw. Shaw não tem raízes na cultura inglesa do passado, porque a cultura inglesa do século dezenove foi amputada da sua história radical precedente. Esta é a grande fraqueza de Shaw.

Hoje, intelectuais britânicos não apenas tem de importar do marxismo exterior, mas eles tem de construir uma nova história da sua cultura: esta é uma tarefa essencial que apenas eles podem realizar. Eu escrevi sobre Scott, e Ágnes Heller sobre Shakespeare, mas são os britânicos que essencialmente tem de descobrir a Inglaterra. Até mesmo na Hungria tem circulados vários boatos sobre nosso “caráter nacional”, como vocês na Inglaterra. A verdadeira história sobre a sua cultura destruirá estas interpretações enganosas. O que talvez seja ajudado pela profundidade da crise econômica e financeira inglesa, produzida por um desenvolvimento desigual que eu mencionei antes. Wilson é indubitavelmente um dos mais astutos políticos oportunistas burgueses, ainda assim seu governo tem sido um total e desastroso fracasso. Este também é um sinal da profundidade da crise e inextricabilidade inglesa.

Como você vê hoje seus primeiros trabalhos e critica literária, especialmente Teoria do romance? Qual foi sua relevância histórica?

Teoria do Romance foi a expressão do meu desespero durante a primeira guerra mundial. Quando a guerra estourou, eu disse que Alemanha e Austria-Hungria teriam provavelmente derrotado a Rússia e destruído o czarismo, o que seria bom. França e Inglaterra teriam provavelmente derrotado Alemanha e Áustria-Hungria e derrotado os Hohenzollern e os Habsburg, o que seria bom. Mas quem defenderia a cultura inglesa e francesa? Meu desespero não encontrou resposta para esta questão, e este era o pano de fundo da Teoria do Romance. Naturalmente outubro deu uma resposta. A revolução russa foi a resposta mundial-histórica para o dilema: prevenir o triunfo da burguesia francesa e inglesa, o que eu temia. Mas eu devo dizer que Teoria do romance, com todas suas falhas, ele previu o colapso de uma cultura que analisou. Ele entendeu a necessidade de uma mudança revolucionária.

Weber

Na época você era você era amigo de Max Weber. Como julgá-lo agora? O colega dele, Sombart, eventualmente virou um nazista; as crenças de Weber, caso ele tivesse vivido, teriam feito ele se reconciliar com o Nacional Socialismo?

Não, nunca. Deve-se entender que Weber foi uma pessoa absolutamente honesta. Ele tinha grande desprezo pelo imperador, por exemplo. Nós frequentemente dizíamos, em particular, que o grande azar da Alemanha era que, diferentemente dos Stuart ou os Bourbons, nenhum dos Hohenzollern foi decapitado. Pode imaginar o quão incomum era um professor alemão dizer coisas assim em 1912. Weber foi bastante diferente de Sombart; ele não fez concessões ao antissemitismo, por exemplo. Deixe-me lhe contar uma história típica do Weber. Uma Universidade alemã pediu para ele que enviasse recomendações para contratação de professores naquela Universidade – estávamos com um outro compromisso próximo. Weber disse, dando três nomes em ordem de mérito. Então ele acrescentou, cada uma das três indicações seria uma excelente escolha – são todos excelentes; mas vocês não escolherão nenhum deles, porque eles são todos judeus. Então eu acrescento uma lista de outros três nomes, nenhum sendo tão bom quanto os outros que mencionei e não há dúvida que você escolherá um deles, porque eles não são judeus. Mas apesar disso, você deve lembrar que Weber foi um firme imperialista, cujo imperialismo era baseado somente na sua crença de acordo com a qual um imperialismo eficiente era necessário e que somente o liberalismo poderia assegurar tal eficiência. Ele era inimigo jurado da revolução de outubro e novembro. Era um acadêmico extraordinário assim como um profundo reacionário. O irracionalismo que começa com Schelling e Schopenhauer tem nele uma das suas maiores expressões.

Como ele reagiu à sua conversão para a Revolução de Outubro?

Acho que ele falou que “para Lukács a mudança deveria ter sido uma profunda transformação de crenças e ideias, enquanto Toller apenas confunde sentimentos”. Mas eu não tive mais contato com ele desde então.

Depois da guerra, você tomou parte na municipalidade húngara como comissário para a educação. Qual é a possível avaliação da experiência da cidade hoje, cinquenta anos depois?

A causa essencial da comuna foi a “Nota Vyx” e a política da Entente dirigida à Hungria. Nesse sentido, a municipalidade é comparável Revolução Russa, onde a questão da guerra foi um peso decisivo no estouro da Revolução de Outubro. Uma vez entrega a Nota Vyx, sua consequência foi a municipalidade. Os social democratas mais tarde nos atacaram pela criação da municipalidade, mas no momento, depois da guerra, não havia chance de manter-se dentro do confinamento do esquema da política burguesa; aquela explosão foi necessária.

The Bolshevik Leaders

Depois da derrota da Comuna, você foi delegado do Terceiro Congresso do Comintern em Moscou. Você encontrou líderes bolcheviques? Que impressão teve?

Veja, você tem que entender que eu era um pequeno membro de uma pequena delegação; eu não era nenhuma figura importante naquele momento, e claro que tive longas conversas com líderes do partido russo. Mesmo assim, eu fui apresentado a Lenin por Lunacharsky. Fascinou-me completamente. Eu também pude vê-lo trabalhando na comissão do congresso, claro. Eu devo dizer que achei obnóxios outros líderes bolcheviques. Trotsky de começo eu não gostei; eu achei ele um poseur. Existe uma passagem nas memórias de Gorky sobre Lenin, encontrando-o após a revolução, reconheceu resultados organizacionais durante a Guerra Civil, diz que Trotsky tem algo de Lassalle. Zinoviev, cujo papel no Comintern eu fui conhecer mais tarde, foi apenas um manipulador político. Minha opinião sobre Bukharin pode ser lida no meu artigo de 1925, acerca do seu marxismo crítico – naquela época era, depois de Stalin, as perguntas teóricas das autoridades russas. Nem mesmo Stalin pode lembrar – como muitos outros comunistas estrangeiros eu não tinha ideia da sua importância para o partido russo. Eu conversei com Radek por um tempo. Ele me contou que o que eu havia escrito sobre as ações de março foi a melhor coisa que havia sido escrita sobre e aprovava totalmente. Depois, claro, mudou de ideia quando o partido condenou a ação de março e então me condenou em público. Diferentemente dos todos os outros, Lenin me causou um forte impressão.

Qual foi sua reação quando Lenin atacou seu artigo sobre a questão do parlamentarismo?

Meu artigo estava completamente errado e eu desisti da minha tese sem hesitação. Mas eu devo acrescentar que eu li Esquerdismo: a doença infantil do comunismo de Lenin antes da crítica dele ao meu artigo e eu me tornei convicto das suas posições sobre o problema da participação parlamentar já lá: tanto que a minha critica ao meu artigo não mudou com o tempo. Eu sabia que estava errado. Lembro o que Lenin disse naquele trabalho, nomeadamente que a burguesia parlamentar era completamente desmantelada no sentido da história do mundo com o nascimento dos órgãos revolucionários do poder proletário, sovietes, mas que isso não significava de maneira alguma que houve um consenso político imediato, porque as massas do ocidente ainda não confiavam nos sovietes. Então os comunistas tiveram de trabalhar tanto dentro como fora dos parlamentos.

Em 1928-29 você propôs o conceito de ditadura democrática dos trabalhadores e camponeses como um objetivo estratégico do Partido Húngaro daquele momento, a famosa “Teses de Blum” para o terceiro congresso do PCU. As teses foram rejeitadas como oportunistas e você foi expulso do comitê central. Como vocês as julga agora?

As Teses de Blum foram minha retaguarda contra o sectarismo do “Terceiro Período”, que alega serem gêmeos democracia e fascismo. Esta linha foi um completo desastre, como você sabe o slogan “classe contra classe” e a expectativa do imediato estabelecimento da ditadura do proletariado. Restaurando e adaptando o slogan de Lenin de 1905 – ditadura democrática dos trabalhadores e camponeses – eu tentei achar um ponto de apoio na linha do Sexto Congresso do Comintern, através do qual eu pudesse trazer o partido Húngaro para uma política realista. Eu não tive sucesso. As Teses de Blum foram condenadas pelo partido, e Béla Kun e sua facção arranjaram minha expulsão do Comitê Central. Eu estava completamente sozinho no partido; deve imaginar que não consegui convencer nem mesmo aqueles dentro do partido que compartilhavam minha posição na batalha contra o sectarismo de Kun. Então eu fiz uma autocrítica das teses. Isto foi absolutamente cínico: eu fui forçado pelas circunstâncias do momento. Eu não mudei de opinião e em verdade eu ainda acho que eu estava certo lá. O período de 1945-48 na Hungria foi a realização concreta da ditadura democrática dos trabalhadores e camponeses que apoiaram em 1929. Depois de 1948, é evidente, o stalinismo criou algo bastante diferente, mas esta é outra história.

Relations with Brecht

Quais eram suas relações com Brecht nos anos trinta e depois da guerra? Como você classificaria a figura dele?

Brecth era um verdadeiro grande poeta, e suas últimas peças – Mãe Coragem, A Boa Pessoa de Szechwan e outras – são excelentes. Evidente, a teoria estética e dramática dele eram bastante confusas e erradas. Eu expliquei isto em O significado corrente do realismo crítico. Mas elas não mudam a qualidade dos seus trabalhos posteriores. Em 1930-31 eu estava em Berlim e trabalhei na União dos Escritores. Na época – metade dos anos trinta, para ser mais exato – Brecht escreveu um artigo contra mim, em defesa do expressionismo. Mas mais tarde, quando eu estava em Moscou, Brecht veio me visitar na sua jornada da Escandinávia para os Estados Unidos – viajou pela União Soviética naquela viagem – e disse: Existem algumas pessoas que estão tentando me colocar contra você, e algumas que estão tentando colocar você contra mim. Vamos fazer um acordo de não nos imiscuir na querela de outros. Por essa razão nós sempre tivemos boas relações, e depois da guerra eu ia para Berlim – frequentemente – e sempre encontrava Brecht, nós tínhamos longas conversas juntos. Eventualmente nossas posições eram bastante próximas. Você sabe, eu fui convidado pela esposa dele para falar no funeral dele. Uma coisa que eu me arrependo é de não ter escrito um ensaio sobre Brecht nos anos quarenta. Eu sempre tive grande respeito por Brecht. Ele era bastante inteligente e tinha uma grande senso de realidade. No que era realmente bastante diferente de Korsh, que sabia bem, é claro. Quando Korsh saiu do partido alemão, cortou todos os laços com o socialismo. Eu sei porque nunca foi possível colaborar no trabalho da União de Escritores na luta antifascista em Berlim no momento – o partido não permitiria isso. Brecht era bastante diferente. Ele sabia que nada poderia ser feito sem a União Soviética, a qual ele permaneceu leal por toda a vida.

Você conheceu Walter Benjamin? Acredita que, se ele tivesse sobrevivido, ele teria tendido a um comprometimento revolucionário com o marxismo?

Não, por um motivo ou outro eu nunca conheci Benjamin. Adorno, contudo eu conheci em Frankfurt em 1930 quando eu estava indo para a União Soviética. Benjamin era extremamente dotado, e penetrou fundo em muitos problemas novos. Ele os explorou de muitos jeitos, mas nunca os encerrava. Eu acredito que seu desenvolvimento, caso ele tivesse sobrevivido, teria sido bastante incerto, apesar da sua amizade com Brecht. Você tem de lembrar que aqueles eram tempo difíceis – os expurgos dos anos trinta e depois a Guerra Fria. Adorno naquele clima se tornou o expoente do “conformismo inconformado”.

Depois da vitória do fascismo na Alemanha, você trabalhou no instituto Marx-Lenin na Rússia com Ryazanov. O que você fez lá?

Quando eu estava em Moscou em 1930 Ryazanov me mostrou os manuscritos que Marx escreveu em 1844 em Paris. Você pode imaginar minha empolgação: ler aqueles manuscritos mudou totalmente minha relação com o marxismo e transformou minhas perspectivas filosóficas. Um acadêmico alemão da União Soviética estava trabalhando nos manuscritos, arranjando para sua publicação. Os ratos haviam atacado os manuscritos e haviam várias partes nas quais letras e até palavras estavam faltando. Graças ao meu conhecimento filosófico, trabalhando com ele, estabelecendo quais eram as letras e as palavras que estavam faltando: frequentemente haviam palavras que começavam, digamos, com “g” e terminavam com “s” e ninguém sabia o que havia no meio. Acho que a elaboração que eventualmente saiu era bastante boa – posso dizer isso porque eu colaborei com a edição. Ryazanov era responsável por esse trabalho e era um ótimo filólogo, não um teórico, mas um grande filólogo. Após a sua remoção, o trabalho no instituto também desapareceu. Eu lembro de ele ter me dito que haviam dez volumes dos manuscritos de Marx para O Capital que nuca haviam sido publicados; Engels, com certeza na sua introdução ao segundo e terceiro volumes disse que eram apenas uma seleção de manuscritos sobre os quais Marx estava trabalhando. Ryazanov organizou a publicação deste material. Mas até agora ainda não apareceu nada.

No início dos anos trinta, é evidente que haviam debates filosóficos na URSS, mas eu compareci neles. Houve um debate no qual o trabalho de Deborin foi criticado, então eu pensei, corretamente, que o propósito daquele criticismo eram apenas para impor a preeminência de Stalin como um filósofo.

Contudo, você participou de debates literários dos anos trinta na União Soviética.

Eu colaborei com a revista Literaturnyj Kritik por seis ou sete anos e trouxe para frente uma luta consistente contra o dogmatismo daqueles anos. Fadeeyev e outros lutaram e ganharam a RAPP na Rússia, mas só porque Averbakh e outros na RAPP eram trotskistas. Depois da vitória deles, eles começaram de desenvolver a forma deles de “rappismo”. Literaturnyj Kritik tem sempre resistido a esta tendência. Eu escrevi muitos artigos para a revista, cada um dos quais tem duas ou três citações de Stalin – o que era uma necessidade intransponível na Rússia no momento – e cada uma das quais era direcionada contra a concepção stalinista de literatura. Seus conteúdos eram sempre dirigidos contra o dogmatismo de Stalin.

Lukács's Political Career

Por dez anos você foi bastante ativo politicamente, de 1919 a 1929 , então abandonou toda atividade política direta. Esta é uma enorme mudança para qualquer marxista convicto. Foi limitado (ou talvez liberto) pela súbita mudança na sua carreira em 1930? Como se liga essa parte da sua vida com a sua juventude? Quais eram suas influências então?

Eu não tenho arrependimentos sobre o fim da minha carreira política. Veja você, eu estava completamente convencido de estar certo nas discussões do partido em 1928-29, nada me fazia mudar de ideia; contudo, eu falhava em convencer o partido da qualidade das minhas ideias. Então eu pensei, apesar de estar com a razão, eu havia sido totalmente derrotado, isso significa que eu não tenho nenhuma habilidade política. Então eu facilmente desisti da prática política, eu decidi que não estava absolutamente preparado. Minha expulsão do Comitê Central do partido húngaro alterou minha crença de que mesmo com a desastrosa e sectarista política do terceiro período, você poderia lutar contra o fascismo dentro das fileiras do movimento comunista. Eu nunca mudei de ideia quanto a isso. Eu sempre pensei que a pior forma de socialismo era melhor do que a melhor forma de capitalismo.

Mais tarde, minha participação no governo Nagy de 1956 não contradisse minha resignação com a atividade política. Não compartilhei a abordagem política geral de Nagy, e quando as pessoas jovens tentaram nos reconciliar assim como antes de outubro, eu respondia: “A distância entre mim e Imre Nagy não é maior do que a distância entre Imre Nagy e mim”. Quando eu fui convidado para ser o Ministro da Cultura em outubro de 1956, isso foi uma questão moral pra mim, não uma questão política, e eu não podia recusar. Quando fomos presos e trancafiados na Romênia, os companheiros dos partidos húngaro e romeno vieram e pediram para que eu expressasse minha opinião sobre as políticas de Nagy, já sabendo dos meus desacordos com elas. Eu falei pra eles: “Quando eu for um homem livre nas ruas de Budapeste e ele também, então eu ficarei feliz em dar minha opinião para vocês sobre ele de uma maneira franca e relaxada. Mas enquanto estivermos aprisionados, minha única relação com ele é de solidariedade”.

Você me perguntou onde estavam meus sentimentos quando eu abandonei a minha carreira política. Eu devi dizer que talvez eu não seja um homem verdadeiramente contemporâneo. Eu posso dizer que nunca experimentei nenhum tipo de complexo ou frustração na minha vida. Então o que isso quer dizer? Eu conheço a literatura do século vinte, e eu li Freud. Mas eu nunca experimentei pessoalmente. Sempre quando eu costumava cometer erros ou tomar direções falsas, eu sempre estive disposto a reconhecer isto, não me custou muito, então pego outros caminhos. Quando eu tinha 15 ou 16 anos eu escrevi romances à maneira de Ibsen e Hauptmann. Quando eu tinha 18 eu os li e os achei desesperançosamente feios. Eu decidi então que jamais seria um escritor e queimei aquelas peças. Não tenho arrependimentos. Aquelas primeiras experiências foram uteis para mim mais tarde, como um crítico; sempre que dizia de um texto que eu queria escrever, então eu percebia que essa era a prova conclusiva da sua feiura, era um critério bastante confiável. Esta foi minha primeira experiência literária. Minhas primeiras influências políticas foram lendo Marx enquanto estudante, e então, a mais importante de todas, a leitura do grande poeta húngaro: Ady. Eu era um menino bastante isolado entre meus contemporâneos, e ler Ady teve um grande impacto em mim. Ele era um revolucionário animado por Hegel, apesar de ele nunca ter aceitado aquele aspecto de Hegel que eu também, desde o começo, sempre recusei: sua Versöhnung mit der Wirklichkeit – que é a reconciliação coma realidade dada. É uma grande fraqueza da cultura inglesa o fato de não haver qualquer familiaridade com Hegel. Até agora tenho mantido minha admiração por ele, e acho que o trabalho que Marx começou – a “materialização” da filosofia de Hegel – deve ser perseguida até mesmo além de Marx. Eu tentei em algumas passagens da minha iminente ontologia. Quando tudo estiver dito e feito, haverão apenas três grandes pensadores no ocidente, incomparáveis com todos os outros: Aristóteles, Hegel e Marx.

7 de janeiro de 1971

Uma carta aberta à minha irmã, senhorita Angela Davis

James Baldwin


January 7, 1971



19 de novembro de 1970

Querida Irmã:

Tradução / Uma pessoa poderia ter esperança de que, a esta hora, a mera visão de correntes sobre a Carne Negra, ou mesmo apenas ver correntes seria uma visão tão intolerável para o povo dos Estados Unidos e traria uma memória tão intolerável que o próprio povo espontaneamente se insurgiria e se livraria dos grilhões. Mas, não, parece que existe um orgulho de suas correntes; agora, mais do que nunca, parece que medem sua segurança por correntes e cadáveres. E então, a Newsweek, defensora civilizada dos indefensáveis, tenta te afogar num mar de lágrimas de crocodilo ("resta ver que tipo de liberação pessoal ela conseguiu") e te põe na capa, acorrentada.

Pareces muito solitária - tão solitária quanto, digamos, a esposa judia enviada num camburão para Dachau, ou tão solitária quanto qualquer um dos teus ancestrais, acorrentados todos juntos em nome de Jesus, enviados para uma terra cristã.

Pois bem. Já que vivemos numa época em que o silêncio não é apenas criminoso, mas suicida, tenho feito tanto barulho quanto posso, aqui na Europa, no rádio e na TV - na verdade, acabei de voltar de uma terra, a Alemanha, que se tornou famosa por uma maioria silenciosa, não faz tanto tempo. Pediram-me para falar sobre o caso da Senhorita Angela Davis, e eu o fiz. Muito provavelmente, um exercício de futilidade, mas não se deve deixar passar uma oportunidade.


Sou mais ou menos uns vinte anos mais velho do que és, sou, portanto, daquela geração sobre a qual George Jackson arrisca dizer que "não há irmãos sadios - nenhum". De modo algum sou capaz de discordar dessa especulação (de toda forma, não sem descer ao que, no momento, seriam sutilezas irrelevantes), pois sei muito bem o que ele quer dizer. Minha própria saúde é certamente bastante precária. Ao considerar-te, e a Huey, a George e (principalmente) a Jonathan Jackson, comecei a compreender o que poderias ter pensado quando falaste dos usos que poderíamos atribuir à experiência do escravo. Parece-me que o que aconteceu, falando uma forma exageradamente simples, é que toda uma geração de pessoas avaliou e absorveu a história dos escravos e, nessa ação tremenda, essas pessoas libertaram-se dela e nunca mais serão vítimas. Isso pode parecer uma coisa estranha, indefensavelmente impertinente e insensível de dizer para uma irmã que está na prisão lutando pela vida – por todas as nossas vidas. No entanto, ouso dizê-lo, pois penso que talvez não me compreenderás mal, e, afinal, não o digo da posição de um espectador.

Estou tentando sugerir que tu – por exemplo – não pareces ser a filha de teu pai da mesma maneira que eu sou o filho de meu pai. No fundo, as expectativas de meu pai e as minhas eram as mesmas, as expectativas de sua geração e da minha eram as mesmas; e nem a imensa diferença em nossas idades nem a mudança do Sul para o Norte conseguiram alterar essas expectativas ou tornar nossas vidas mais viáveis. Pois, de fato, para usar um palavreado brutal daquele tempo, a linguagem interior do desespero, ele era apenas um negro – um trabalhador pregador negro, e eu também. Eu mudei de assunto, mas isso não é mais importante aqui do que o fato de que alguns pobres espanhóis tornam-se ricos toureiros, ou de que alguns garotos negros pobres enriquecem – boxeadores, por exemplo. Isso raramente ou nunca permitiu às pessoas mais do que uma grande catarse emocional, embora eu tampouco pretenda parecer condescendente com isso. Mas quando Cassius Clay tornou-se Muhammad Ali e recusou vestir aquele uniforme (e sacrificou todo aquele dinheiro!), isso causou um impacto muito diferente nas pessoas e teve início uma espécie muito diferente de instrução.


O triunfo americano – no qual sempre esteve implícita a tragédia americana – estava em fazer as pessoas negras desprezarem a si mesmas. Quando eu era pequeno, eu desprezava a mim mesmo; não sabia fazer melhor. E isso significava, embora inconscientemente, ou contra minha vontade, ou com grande dor, que eu também desprezava meu pai. E minha mãe. E meus irmãos. E minhas irmãs. Quando eu estava crescendo, as pessoas negras estavam se matando umas às outras toda noite de sábado na avenida Lenox; e ninguém explicou a elas, ou a mim, que era intencional que elas assim agissem; que elas estavam cercadas onde estavam, como animais, para que não considerassem a si mesmas mais do que animais. Tudo sustentava esse sentido de realidade, nada o negava: e assim, quando chegava a hora de ir trabalhar, uma pessoa já estava pronta para ser tratada como um escravo. Assim uma pessoa estava pronta, quando chegavam os terrores humanos, a se curvar diante de um Deus branco e implorar a Jesus pela salvação – esse mesmo Deus branco que era incapaz de levantar um dedo para fazer um mínimo para te ajudar a pagar um aluguel, incapaz de ser acordado a tempo de te ajudar a salvar as tuas crianças!

É claro que sempre existem mais coisas numa pintura do que pode ser rapidamente visto, e nisso tudo – e apesar disso tudo – gemer e lamentar, observar, calcular, bancar o palhaço, sobreviver e levar a melhor – uma tremenda força estava em gestação, e ela é parte do nosso legado hoje. Mas esse aspecto particular de nossa jornada começa agora a ficar para trás. O segredo está revelado: somos homens!

Mas a articulação franca e aberta desse segredo amedrontou a nação até a morte. Eu queria poder dizer “até a vida”, mas isso é exigir demais de um agregado desorganizado de pessoas deslocadas que ainda estão como gado em seus vagões cantando “Onward Christians Soldiers”. A nação, se os Estados Unidos forem uma nação, não está minimamente preparada para esse dia. Este é o dia que os americanos nunca esperaram ou desejaram ver, não importa o quão piamente declarem sua crença no progresso e na democracia. Essas palavras, agora, em lábios americanos, tornaram-se uma espécie de obscenidade universal: pois esse infelicíssimo povo, fortemente crente na aritmética, nunca esperou ser confrontado pela álgebra de sua história.

Uma maneira de aferir a saúde de uma nação, ou de discernir o que ela realmente considera como seus interesses – ou a que ponto pode ser considerada como uma nação e não como uma coalizão de interesses particulares – é examinar as pessoas que ela elege para representá-la ou protegê-la. Uma olhadela sobre os líderes americanos (ou figuras de ponta) transparece que a América está no limite do caos absoluto, sugerindo também o futuro que os interesses americanos, se não a massa do povo americano, parece desejar consignar aos negros (com efeito, um olhar ao nosso passado mostra isso). É claro que para a massa de nossos compatriotas (nominais), somos todos dispensáveis. E os senhores Nixon, Agnew, Mitchell e Hoover, sem falar, naturalmente, no caso perdido de Em cada coração um pecado, Ronnie Reagan, não hesitarão um instante sequer em levar adiante o que insistem ser a vontade popular.


Mas o que, nos EUA, é a vontade popular? E quem, dos acima mencionados, é o povo? O povo, quem quer que seja, sabe tanto sobre as forças que colocaram os senhores acima citados no poder quanto sabem sobre as forças responsáveis pela matança no Vietnã. A vontade popular, nos EUA, sempre esteve à mercê de uma ignorância não apenas fenomenal, mas também sagrada e sacramente cultivada: o que de melhor pode ser usado por uma economia carnívora que democraticamente mata e vitimiza brancos e Negros igualmente. Mas a maioria dos brancos americanos não ousa admitir isso (embora suspeitem) e esse fato contém um perigo mortal para os Negros e uma tragédia para a nação.

Ou, para dizer de outra maneira, enquanto os americanos brancos refugiarem-se na sua branquitude – enquanto permanecerem incapazes de se livrarem dessa mais monstruosa armadilha – eles permitirão que milhões de pessoas sejam assassinadas em seu nome e serão manipulados por aquilo que pensarão ser uma guerra racial, justificando-a e sendo por ela rendidos. Enquanto sua branquitude interpuser uma distância tão sinistra entre eles mesmos e sua própria experiência e a experiência dos outros, eles nunca se sentirão suficientemente humanos, suficientemente dignos, para se tornarem responsáveis por si mesmos, pelos seus líderes, seu país, suas crianças ou seu destino. Perecerão em seus pecados (conforme dissemos certa vez na nossa igreja negra) – isto é, nas suas ilusões. E isso está acontecendo, nem é preciso dizer, por toda parte à nossa volta.

Apenas um punhado dentre os milhões de pessoas nesse vasto lugar estão cientes de que o destino pretendido para ti, irmã Angela, e para George Jackson, e para os inúmeros prisioneiros nos nossos campos de concentração – pois é o que são – é um destino que está prestes a engolfá-los também. Para as forças que governam este país, as vidas brancas não são mais sagradas do que as Negras, como muitos e muitos estudantes estão descobrindo, conforme provam os cadáveres de americanos brancos no Vietnã. Se o povo americano é incapaz de enfrentar seus líderes eleitos pela redenção de sua própria honra e pelas vidas de seus próprios filhos, nós, os Negros, os que somos as crianças ocidentais mais rejeitadas, podemos esperar muito pouca ajuda nas suas mãos; o que, afinal, não é nada novo. O que os americanos não percebem é que uma guerra entre irmãos, nas mesmas cidades, no mesmo solo, não é uma guerra racial, mas uma guerra civil. Mas a ilusão americana não é tão-só que seus irmãos são todos brancos, mas que os brancos são todos seus irmãos.

Que seja. Não podemos acordar esse dorminhoco, e sabe Deus como tentamos. Temos de fazer o que podemos e fortificar e salvar uns aos outros – não estamos nos afogando numa autodisplicência apática, sentimo-nos suficientemente dignos para enfrentar até mesmo forças inexoráveis para mudar nosso destino e o destino de nossos filhos e a condição do mundo! Sabemos que um homem não é uma coisa e não pode ser posto à mercê das coisas. Sabemos que o ar e a água pertencem a toda a humanidade e não apenas aos industriais. Sabemos que um bebê não vem ao mundo apenas para ser instrumento do lucro de alguém. Sabemos que a democracia não significa a coerção de todos para uma mediocridade letal e, no fim, malvada, mas, sim, a liberdade para que todos possam aspirar ao melhor que há ou que jamais houve em si mesmo. 

Sabemos que nós, os Negros, e não apenas nós, os Negros, fomos e somos vítimas de um sistema cujo único combustível é a ganância, cujo único deus é o lucro. Sabemos que os frutos desse sistema foram a ignorância, o desespero e a morte, e sabemos que o sistema está perdido porque o mundo não pode mais se dar ao luxo dele - se é que na verdade um dia pôde.E sabemos que, para a perpetuação desse sistema, todos nós fomos impiedosamente brutalizados e apenas mentiras nos foram contadas, mentiras sobre nós mesmos e nossos próximos e nosso passado, mentiras sobre o amor, a vida e a morte, de modo que tanto a alma quanto o corpo foram aprisionados no inferno.

A enorme revolução na consciência Negra acontecida na nossa geração, minha querida irmã, significa o começo ou o fim da América. Alguns de nós, brancos e Negros, sabemos como é caro o preço que já foi pago para fazer existir uma nova consciência, um novo povo, uma nação sem precedentes. Se sabemos e nada fazemos, somos piores do que os assassinos pagos em nosso nome.

Se sabemos, então temos de lutar pela tua vida como se fosse a nossa - e ela é - e com nossos próprios corpos tornar intransponível o corredor para a câmara de gás. Pois, se vierem para te buscar de manhã, virão nos buscar à noite.

Portanto: paz.

Irmão James.

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