30 de setembro de 2020

Andrés Arauz se recusa a permitir que os neoliberais enterrem a revolução cidadã do Equador

Após uma campanha prolongada de perseguição judicial, o governo cada vez mais impopular de Lenín Moreno impediu o ex-presidente Rafael Correa de concorrer nas eleições de fevereiro. Mas o economista radical e candidato à presidência, Andrés Arauz, está avançando com sua tentativa de continuar a Revolução Cidadã de Correa - desafiando as iniciativas para impedir a esquerda de se candidatar.

Denis Rogatyuk


O renomado economista e candidato à presidência Andrés Arauz. (UNCTAD/Flickr)


Em 8 de setembro, o tribunal nacional do Equador decidiu manter uma decisão no “Caso de Subornos” contra o ex-presidente Rafael Correa - efetivamente impedindo-o de se candidatar à vice-presidência na eleição de fevereiro. Andrés Arauz, economista e ex-ministro de seu governo, continuará a liderar a chapa presidencial da coalizão “União pela Esperança” (Unión Por La Esperanza, UNES), enquanto o renomado jornalista Carlos Rabascall foi escolhido para substituir Correa como seu candidato a vice-presidente.

Este não foi o único ataque à "Revolução Cidadã" encabeçada por Correa. Em 16 de setembro, o partido Fuerza Compromiso Social (FCS), usado como a principal plataforma eleitoral por Correa e seus aliados desde o início de 2019, foi definitivamente cancelado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) do país, juntamente com dois partidos menores.

Isso deixa o Centro Democrático (CD) como o único partido registrado a patrocinar os candidatos da Revolução Cidadã. E assim que Arauz e Rabascall lançaram a nova chapa, uma nova ameaça para bloquear suas candidaturas emergiu da CNE. Isso gerou uma mobilização em massa de organizações de esquerda e progressistas em frente à sede dos órgãos eleitorais em Quito em 29 de setembro.

A decisão contra Correa é mais uma escalada da campanha político-judicial do governo autoritário do Equador, que tem como alvo o ex-presidente e seus aliados desde que o país voltou ao neoliberalismo sob a presidência de Lenín Moreno.

Em 8 de abril, a Corte Nacional de Justiça do Equador condenou Correa e seu ex-vice-presidente Jorge Glas a oito anos de prisão, ao mesmo tempo em que tentava impedi-los de ocupar cargos públicos pelos próximos 25 anos. A equipe jurídica de Correa, chefiada por Fausto Jarrín, apelou dessa decisão alegando que o caso carecia de provas substanciais ou do devido processo legal - sem mencionar suas óbvias motivações políticas. Mas o recurso foi rejeitado, em uma decisão que veio em velocidade recorde.

Perseguido

A acusação, chefiada pela Procuradora-Geral Diana Salazar, alegou repetidamente que o ex-presidente operou uma “rede de corrupção” durante o seu último mandato de 2013-17. De acordo com Salazar, o então partido Alianza PAIS de Correa serviu como organização de fachada para receber subornos de até US $ 7,8 milhões de empresas privadas como a notória gigante da construção brasileira Odebrecht.

A única prova material suposta era de US $ 6.000 que Correa pegou emprestado do fundo presidencial e depois pagou de volta. Antes dessa sentença, no entanto, Correa já enfrentou vinte e cinco outras acusações motivadas politicamente, que vão desde suborno a corrupção e até sequestro.

Assim como o caso de Lula da Silva no Brasil, Correa foi vítima de uma campanha de “lawfare” - ação judicial armada para fins políticos. Seu objetivo é prejudicar a integridade do ex-presidente e de outros líderes históricos da Revolução Cidadã por meio de perseguição judicial motivada politicamente, ao mesmo tempo em que mancha seu legado de prosperidade econômica, redução da pobreza e solidariedade entre as nações do Sul Global.

Correa não foi o único líder histórico da Revolução Cidadã a enfrentar perseguições políticas. Seu ex-vice-presidente Jorge Glas está na prisão desde outubro de 2017, após um caso semelhante de supostamente receber propina da Odebrecht.

Paola Pabón, a prefeita de Pichincha; o ex-deputado Virgilio Hernández; e Christian González, um ativista de base da organização Bulla Zurda, foram todos presos após apoiarem o levante de outubro de 2019 contra o regime de Moreno. Enquanto isso, Gabriela Rivadeneira, ex-presidente da Assembleia Nacional; Ricardo Patiño, o ex-ministro das Relações Exteriores; e Sofia Espin, ex-integrante da Assembleia Constituinte, foram obrigadas a buscar asilo no México.

Um perfeito estranho

À primeira vista, Andrés Arauz parece ser uma escolha estranha para liderar a Revolução Cidadã no novo governo. O economista de 35 anos estava conduzindo pesquisas para sua tese de doutorado na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), enquanto trabalhava no Centro de Política Econômica e Pesquisa (CEPR), com sede em Washington, onde se tornou particularmente vocal sobre a necessidade de utilizar Direitos Especiais de Saque (SDRs) como meio de financiar uma recuperação econômica livre de dívidas em todo o Sul Global. Ele também atuou anteriormente como ministro do conhecimento e talento humano do país durante os últimos anos do governo de Correa.

No entanto, Arauz sem dúvida representa “a nova guarda” da Revolução Cidadã — alguém cuja formação e experiência política foram moldados pelos sucessos e lutas do governo de Correa, e que permaneceu leal à revolução apesar da perseguição política em massa e repressão conduzida contra eles.

Ele foi rapidamente nomeado o “perfeito estranho” (el perfecto desconocido) pela mídia e seus aliados, devido à sua relativa obscuridade no cenário político do país contrastada com seu conhecimento e experiência na esfera econômica. De certa forma, isso se assemelha à experiência do próprio Correa durante sua primeira eleição em 2006.

Quatorze anos atrás, o Equador também enfrentou uma crise socioeconômica após a implementação das reformas neoliberais do presidente Lucio Gutiérrez, outro líder equatoriano eleito com uma plataforma de esquerda, apenas para trair completamente suas promessas de campanha. Da mesma forma, Correa era um jovem economista relativamente desconhecido que ganhou destaque como ministro das Finanças no governo de Alfredo Palacio, sucessor de Gutiérrez, e fez campanha com a plataforma de desfazer a austeridade e as políticas neoliberais de seus antecessores.

Por outro lado, Carlos Rabascall traz um elemento diferente para a chapa eleitoral da UNES. Jornalista e um dos rostos mais proeminentes do canal de televisão pública Equador TV ao longo de 2007-2017, também foi diretor do Desenvolvimento Institucional da Secretaria Nacional de Desenvolvimento Administrativo (SENDA) e membro do Conselho Nacional de Modernização (CONAM ). Ele representa o elemento institucional da Revolução Cidadã — o novo Estado construído durante esses dez anos de governo após a devastação causada pelo neoliberalismo.

No entanto, Arauz e Rabascall enfrentam uma batalha difícil não apenas contra o atual governo de Moreno, mas também contra uma série de outros doze candidatos em todo o espectro político. Entre eles está Guillermo Lasso, um dos banqueiros corporativos mais notórios do país e candidato perene da direita, mais uma vez concorrendo às eleições, desta vez recebendo o apoio do direitista Partido Social Cristão que tradicionalmente domina a metrópole costeira de Guayaquil.

Yaku Pérez, prefeito da província de Azuay, foi escolhido como candidato do partido Pachakutik — o braço político da coalizão da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), que tradicionalmente se opõe à Revolução Cidadã e também apoiou a candidatura de Lasso durante as eleições de 2017. A maioria dos outros candidatos são provenientes de pequenos partidos de direita, centro e outros partidos de esquerda que provavelmente atuarão como spoilers para Arauz e Rabascall.

Moreno vs Correa

Ao longo de seus dez anos como presidente, Correa se tornou um dos líderes mais populares da história do país. Isso porque ele conseguiu trazer estabilidade política, crescimento econômico e redução da desigualdade, bem como a introdução de uma nova constituição que reconheceu o caráter plurinacional e indígena do país. Além disso, ele construiu um estado que poderia garantir uma vida digna com acesso a saúde, educação, empregos com salários dignos e muito mais.

A bem-sucedida renegociação de Correa de mais de US$ 2 bilhões em dívidas com o Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2008-9, a expulsão da presença militar dos EUA da região costeira de Manta, a integração do país na União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e a defesa de Julian Assange trouxeram reconhecimento, respeito e prestígio à nação andina em todo o mundo.

Ao longo desse tempo, Correa se acostumou a ataques ininterruptos da notoriamente decadente imprensa privada do Equador e da oposição de direita alinhada com os EUA, que nunca deixou de rotular seu governo como uma “ditadura”. Seu governo foi alvo de várias manifestações de massa e protestos organizados pela oposição de direita contra sua proposta de políticas de aumento de impostos para os ultrarricos em 2015.

O ex-presidente até sobreviveu a uma tentativa de golpe em 30 de setembro de 2010, após um motim da polícia que recebeu amplo apoio e cobertura favorável de algumas das maiores empresas privadas de mídia e canais de TV do país.

A série de terremotos no país durante fevereiro e março de 2016 foi o teste mais sério para seu governo. Com mais de seiscentas vítimas, danos maciços sofridos nas províncias costeiras e suas infraestruturas, bem como um custo econômico de mais de US$ 3 bilhões, a tarefa de reconstruir o país recaiu sobre os ombros da Revolução Cidadã durante um período de preços baixíssimos do petróleo bruto (o principal produto de exportação do país e uma importante fonte de receita do governo).

Como alternativa à austeridade ou ao empréstimo do FMI, o governo de Correa usou um crédito de US$ 2 bilhões do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento para investir na reconstrução da infraestrutura e do setor social do país, bem como na introdução de novas fontes de riqueza e renda impostos sobre os setores ricos da sociedade.

Em contraste, o regime de Moreno enfrentou uma série de crises sociais e econômicas autoinfligidas desde sua virada contra a política da Revolução Cidadã. Anteriormente atuando como vice-presidente de Correa durante seus dois primeiros mandatos no governo, a eleição de Lenín Moreno pretendia marcar a continuidade do projeto iniciado por Correa.

Em vez disso, poucos meses depois de sua presidência, ele começou a fazer alianças políticas com as tradicionais forças políticas de direita do país, bem como a manipular várias instituições legais do estado equatoriano, desmantelando gradualmente o setor público e os projetos sociais iniciados pelo governo de Correa.

O nível total de gastos sociais também foi gradualmente reduzido desde 2017, com os setores de educação e saúde sendo os mais afetados. O maior dano ao setor público do país foi infligido após a assinatura de um novo pacote de dívida de US$ 4,2 bilhões com o FMI em março de 2019.

Mais de dez mil trabalhadores foram demitidos em preparação para o pacote de reformas da instituição financeira, entre eles entre 2.500 e 3.500 funcionários do setor de saúde. Mais importante, mais de trezentos funcionários que trabalhavam no controle e tratamento de pandemias também foram despedidos - quase exatamente um ano antes do início da pandemia de COVID-19.

Enquanto isso, as estruturas do estado foram esvaziadas com a eliminação de treze das quarenta instituições até abril de 2019, bem como $ 2 bilhões em cortes e austeridade por meio da eliminação, privatização e fusão de várias empresas estatais e entidades públicas. Como resultado dessas políticas, o nível de pobreza estrutural aumentou de 23,1% em junho de 2017 para 25,5% em junho de 2019.

Alguns economistas projetaram que a pobreza estrutural chegará a 30% até o final do ano se as novas medidas econômicas forem aprovadas. A pobreza extrema também aumentou de 8,4% para 9,5% durante o mesmo período.

E enquanto os equatorianos estão ficando mais pobres, o escândalo “INA Papers” revelou que Moreno havia escondido contas bancárias no Panamá e em Belize. O governo de Correa implementou anteriormente uma lei que proibia funcionários públicos de manter quaisquer ativos financeiros em paraísos fiscais estrangeiros como esses dois países.

A proposta de eliminação dos subsídios aos combustíveis e a redução planejada dos salários do setor público em 1º de outubro de 2019 foram a faísca que acendeu a revolta liderada pelos indígenas durante aquele mês, também conhecida como Revolución de los zánganos (a reference to Moreno dismissing large swaths of the population as “zánganos”, a word meaning both drones, as in bees, and layabouts).

A ferocidade da repressão contra os protestos em massa mostrou ao mundo pela primeira vez a extensão do autoritarismo do regime de Moreno. Após doze dias de protestos, com mais de mil feridos e pelo menos oito trabalhadores mortos pela polícia em todo o país, o regime de Moreno desistiu de implementar os subsídios aos combustíveis propostos.

Apesar dessa vitória dos movimentos populares, as políticas econômicas neoliberais continuaram bem em 2020 e não foram interrompidas com a chegada da pandemia do COVID-19. Mais de $ 324 milhões foram transferidos para as mãos de detentores de dívida externa, apesar da evidente necessidade de investimento urgente em medidas de contenção do COVID-19, enquanto outros $ 1,4 bilhão foram planejados para serem eliminados como parte da “otimização e redução” do estado.

Sem surpresa, a gestão da pandemia pelo governo de Moreno foi considerada uma das piores do mundo. As investigações em abril de 2020 alegaram que o número de infectados e mortos superou em muito os números oficiais, enquanto o número total de infectados atingiu 122.000 em meados de setembro.

A diferença entre os governos de Rafael Correa e Lenín Moreno não poderia demonstrar com mais clareza aonde os rumos do socialismo e do neoliberalismo acabam levando. Também mostra que a campanha do lawfare contra Rafael Correa nada mais é do que uma última tentativa da elite econômica e política do país de impedir o retorno da Revolução Cidadã.

Apesar de não poder participar da eleição de fevereiro, não há dúvida de que Correa e os outros líderes históricos da revolução continuarão a desempenhar um papel enorme na campanha. Mas a Revolução Cidadã também será liderada por uma nova geração - representada por jovens líderes como Andrés Arauz.

Colaborador

Denis Rogatyuk é jornalista do El Ciudadano, escritor, colaborador e pesquisador com várias publicações, incluindo Jacobin, Tribune, Le Vent Se Leve, Senso Comune, GrayZone e outros.

29 de setembro de 2020

O Congresso de Baku de 1920 soou como uma convocação para o fim do Império

Um século atrás, neste mês, o novo governo soviético convocou revolucionários anticoloniais de toda a Ásia para uma reunião em Baku. O Congresso de Baku provou ser um divisor de águas na luta contra a dominação colonial europeia e a ascensão do Sul Global.

John Riddell

Jacobin

O Congresso de Baku, Azerbaijão, 1920. (Hulton Archive / Getty Images)


Tradução / Em Baku, no Azerbaijão, há cem anos neste mês, uma assembléia sem precedentes de ativistas anticoloniais proclamou o advento de uma luta global pela liberdade colonial. Cerca de 2.050 participantes, provenientes de trinta e sete povos na sua maioria asiáticos e muçulmanos, aprovaram o apelo a uma “guerra santa” para a libertação dos povos do Oriente em setembro de 1920.

Mesmo hoje, décadas depois que a maioria das colônias alcançou pelo menos a soberania formal, o chamado de Baku ressoa em um mundo abalado pelas crescentes lutas contra o racismo e a supremacia branca.

Convocação do Oriente

O Congresso de Baku foi convocado pela Internacional Comunista, ou Comintern, um ano após sua formação, exatamente quando o equilíbrio político na Europa estava começando a mudar contra os apoiadores do Comintern. Nas palavras do historiador E. H. Carr, o evento de Baku significou “chamar o Oriente para restabelecer o equilíbrio do Ocidente”. E, de fato, o impacto histórico mais duradouro do comunismo durante o século passado foi o impulso que deu aos movimentos de libertação anticoloniais.

A Segunda Internacional ou Internacional Socialista, formada em 1889, pouco havia feito nessa área. É verdade que em princípio se opôs ao colonialismo, mas essa condenação estava longe de ser unânime. Em seu congresso de 1907, esta posição foi sustentada apenas por uma margem mínima, por 127 a 108 votos. Além disso, muitos líderes do movimento socialista, então baseados principalmente na Europa, viam o objetivo de libertar as colônias como uma obrigação a ser cumprida apenas mais tarde, por um futuro governo socialista.

Enquanto isso, durante a Primeira Guerra Mundial, vários partidos socialistas europeus apoiaram os esforços de guerra de seus respectivos governos capitalistas, envolvendo ainda mais esses partidos na defesa dos impérios coloniais. Durante esse período, os movimentos populares nascentes nas colônias geralmente exigiam apenas uma medida de autonomia, em vez de independência total. A revolução russa de 1917, no entanto, tomou um curso diferente, que rapidamente ganhou amplo respeito no exterior.

De Paris a Baku

Na época da revolução, os grupos étnicos minoritários constituíam a maioria da população da Rússia. Os povos muçulmanos asiáticos representaram um sexto do total, habitando vastos territórios afetados pelo colonialismo colonial russo. Quando um governo liderado pelos bolcheviques baseado em sovietes (conselhos) de trabalhadores, soldados e camponeses assumiu o poder em novembro de 1917, um de seus primeiros decretos foi garantir a esses povos minoritários “a livre autodeterminação até e incluindo o direito de secessão.”

Outro apelo soviético inicial prometia aos trabalhadores e agricultores muçulmanos que "doravante suas crenças e costumes, suas instituições nacionais e culturais serão declaradas livres e invioláveis". Essas medidas conquistaram amplo apoio internacional, principalmente entre ativistas nas colônias. Quando a Conferência de Paz de Paris em 1919 rejeitou categoricamente a ideia de autodeterminação dos povos colonizados, isso estimulou os defensores dos direitos coloniais a abraçar o objetivo da independência total.

Depois que os partidários da velha ordem lançaram uma guerra contra o governo soviético, auxiliados por contingentes armados dos Estados Unidos e outras potências aliadas, o regime soviético reuniu apoio maciço entre as vítimas do colonialismo czarista. No final de 1919, cerca de 250.000 trabalhadores de origem muçulmana estavam servindo na frente decisiva da Ásia Central no Sexto Exército Soviético, constituindo quase metade de seu efetivo.

No final de 1919, as forças soviéticas foram vitoriosas nas principais frentes da guerra civil. Os exércitos britânicos que haviam penetrado no Irã, Azerbaijão, Afeganistão e o atual Turcomenistão estavam recuando para bases na Palestina, Iraque e Índia. Nos primeiros meses de 1920, os exércitos soviéticos se aproximaram das fronteiras do Irã, Afeganistão e China. Os povos asiáticos da ex-Rússia czarista formaram muitas repúblicas soviéticas autônomas.

“Construtores de uma nova vida”

O tempo parecia propício para uma aliança de forças pró-soviéticas com movimentos de libertação colonial além das fronteiras soviéticas. A iniciativa partiu da Internacional Comunista, partido mundial da revolução socialista lançado em Moscou em março de 1919.

O Comintern via os povos colonizados não apenas como vítimas do império, mas como agentes de libertação social. O líder bolchevique Vladimir Ilyich Ulyanov (Lenin) apresentou essa visão em novembro de 1919 em um congresso de comunistas do Oriente.

Tendo sido anteriormente apenas "objetos da política imperialista internacional, existindo apenas como material para fertilizar a cultura e a civilização capitalistas", os povos do Oriente iriam agora, previu Lenin, "ascender como participantes independentes, como construtores de uma nova vida". A luta mundial pelo socialismo seria impulsionada por “uma luta de todas as colônias e países oprimidos pelo imperialismo”.

O Segundo Congresso Mundial do Comintern, realizado em Moscou durante três semanas de julho a agosto de 1920, apresentou uma discussão completa sobre a libertação colonial e nacional. Adotou dois conjuntos de teses, um elaborado por Lenin e outro pelo revolucionário indiano Manabendra Nath Roy, e propôs uma aliança de movimentos revolucionários dos trabalhadores com movimentos "nacional-revolucionários" em países coloniais e semicoloniais.

Uma peregrinação revolucionária

Pouco antes do Segundo Congresso do Comintern, em 29 de junho de 1920, o Comintern apelou às “massas populares escravizadas do Irã, Armênia e Turquia” para se reunirem em Baku em agosto, junto com delegados da Ásia Soviética, Índia e além. De acordo com o presidente do Comintern, Grigory Zinoviev, o encontro de Baku serviria como “o complemento, a segunda parte” do congresso mundial recém-concluído.

A convocação para o Congresso de Baku, assinada por duas dezenas de líderes operários revolucionários da Europa e dos Estados Unidos, declarava:

Anteriormente, você viajava por desertos para visitar lugares sagrados. Agora caminhe por montanhas e rios, por florestas e desertos, para se encontrar e discutir como se libertar das cadeias da servidão, para se unir em uma aliança cordial, para viver em igualdade, liberdade e fraternidade. .. que seu congresso traga força e fé para milhões e milhões de escravos em todo o mundo. Que isso lhes inspire confiança em seu poder. Que ele possa trazer mais perto o dia do triunfo final e da libertação.

As celebrações do congresso foram organizadas nas comunidades asiáticas da Rússia e os delegados foram escolhidos. Eles viajaram para Baku ao longo de ligações ferroviárias através de territórios que ainda não estavam totalmente livres de bandos armados anti-soviéticos. Os passageiros às vezes desembarcavam de seu trem para coletar lenha para alimentar a fornalha da locomotiva.

Em uma ocasião, um ataque da Guarda Branca cortou a linha ferroviária, deixando um trem que transportava a maioria dos delegados europeus para o Congresso de Baku temporariamente encalhado. Quatro delegados foram mortos no caminho, dois deles metralhados por um avião de guerra britânico durante uma viagem de barco.

Completando a Jornada

Estima-se que 2.050 participantes chegaram a Baku para o congresso. Cerca de 90% vieram de povos racializados - um contraste marcante com todas as reuniões socialistas anteriores, que tinham uma composição predominantemente europeia.

Entre os delegados asiáticos, cerca de 40% vieram de fora do território soviético, principalmente do Irã, Turquia e Cáucaso. Oito chineses e três coreanos registrados - provavelmente trabalhadores imigrantes na Rússia. Os quatorze delegados da Índia britânica haviam literalmente completado a jornada pelas montanhas e desertos conjurados na convocação do congresso: a pé até Cabul, através das montanhas Hindu Kush e depois por terra até Tashkent e além.

Durante a convocação do congresso, em 31 de agosto, os comunistas de Baku os saudaram com as seguintes palavras: “Um novo mundo está despertando para a vida e para a luta: o mundo das nacionalidades oprimidas ... do Oriente”.

O congresso, que durou oito dias, foi sem precedentes em tamanho e abrangência. Dois mil participantes, a maioria deles iniciantes na atividade política, falando mais de duas dezenas de línguas, debateram e tomaram decisões em plenárias sem, é claro, amplificação eletrônica ou equipamento de tradução.

O desafio logístico era assustador. O domínio soviético havia sido estabelecido no Azerbaijão apenas quatro meses antes. A cidade estava empobrecida e desorganizada por muitos anos de guerra e a comida era escassa. Ainda assim, foram fornecidas as refeições e o espaço para dormir. Encontrou-se tempo para apresentações culturais variadas, que ainda podem ser vistas em um documentário elaborado pela equipe de filmagem do congresso.

Quebrando barreiras

Em meio à confusão inevitável das sessões plenárias, as muitas reclamações que se gritaram - devidamente registradas nas atas oficiais - tratavam principalmente de inadequações de tradução. A necessidade de tradução era ainda mais sentida porque as línguas asiáticas haviam sido sufocadas sob o domínio czarista. Em contraste, no Congresso de Baku, embora o russo fosse a principal língua de trabalho, as sessões ressoaram com traduções para muitas das três dezenas de línguas faladas pelos delegados.

Cada discurso foi seguido por uma pausa para traduções. Dadas as muitas línguas em uso, este procedimento causou confusão e atrasos, e eventualmente a tradução do pódio foi limitada a três línguas. Mesmo assim, os tradutores não treinados usaram métodos amplamente variados - às vezes dando apenas breves resumos, às vezes demorando muito mais do que o orador original.

Os riscos resultantes foram transmitidos em uma anedota passada pelo famoso socialista norte-americano e delegado do congresso John Reed, provocando um delegado britânico (provavelmente Thomas Quelch):

De acordo com Reed, as observações tímidas e hesitantes do delegado britânico foram traduzidas por Peter Petrov com tanto entusiasmo e tal espírito de invenção que o salão logo explodiu com aplausos e gritos de "Abaixo o imperialismo britânico!" enquanto espadas e rifles eram brandidos no ar. O consternado delegado britânico protestou: “Tenho certeza de que nunca disse nada parecido. Exijo uma tradução adequada.”

A principal proposta do congresso - construir uma aliança militante para expulsar o imperialismo britânico - foi prenunciada na teleconferência e evocou um acordo geral. A agenda do congresso foi estruturada por relatórios apresentando o caráter social da revolução necessária para atingir esse objetivo, com forte ênfase na reforma agrária, direitos nacionais e a formação de conselhos de trabalhadores e camponeses.

Pontos de contenção

De acordo com o relatório de credenciais, dois terços dos presentes pertenciam ou simpatizavam com o movimento comunista. Claramente, a resposta dos delegados “não partidários” restantes, com perspectivas políticas diversas, seria decisiva para o resultado da conferência.

O presidium do congresso, portanto, organizou esses delegados em uma fração especial “não partidária”, cujas repetidas sessões separadas foram marcadas por não pouca controvérsia. De acordo com o relato subsequente de Zinoviev, a fração não partidária acabou sendo muito maior do que as reuniões paralelas "comunistas" do caucus, e incluía uma minoria rebelde cujos membros "na verdade pertenciam a partidos burgueses".

Um desses políticos burgueses, Enver Pasha, era bastante proeminente. Líder da revolução "Young Turk" de 1908, Enver mais tarde liderou a Turquia otomana na Primeira Guerra Mundial e foi cúmplice do massacre de armênios durante a guerra na Turquia.

Enver acabara de aparecer em Moscou, onde declarou seu apoio ao regime soviético. Ele então foi a Baku e solicitou o direito de falar no congresso. Isso foi rejeitado, mas a declaração escrita de Enver foi lida. Enver então se manteve ocupado à margem do congresso promovendo atividades anti-soviéticas na Ásia Central.

O congresso também ouviu İbrahim Tali Öngören, representando o movimento nacionalista revolucionário na Turquia liderado por Mustapha Kemal (Atatürk). Apesar de sua hostilidade ao comunismo soviético, o movimento kemalista estava recebendo ajuda soviética em sua luta para expulsar as forças de ocupação britânicas, gregas e francesas do país.

O congresso adotou uma resolução apoiando a luta “nacional-revolucionária” na Turquia, mas insistiu que esse movimento deveria combater não apenas a dominação estrangeira, mas também a opressão de classe dentro da sociedade turca. A declaração exortou os camponeses e trabalhadores turcos a "se unirem em organizações independentes para levar a causa da emancipação até o fim".

Desentendimentos entre os quarenta e um delegados judeus a respeito da colonização sionista na Palestina encontraram expressão em três documentos de posição, dois a favor e um contra.

Libertação Feminina

Uma discordância persistente surgiu sobre o papel das 53 mulheres delegadas presentes no congresso. A luta das mulheres pela libertação foi abordada em várias sessões do congresso. Ainda assim, o papel ativo das delegadas do sexo feminino despertou objeções de alguns delegados cujas sociedades ainda praticavam, em graus variados, o isolamento das mulheres. A proposta de eleger três mulheres para o Comitê Presidente despertou fortes objeções de muitos participantes não partidários.

O debate na fração não partidária continuou por vários dias. No sexto dia de sessões, o presidente pediu ao congresso que incluísse três mulheres em seu comitê dirigente: Bulach Tatu, do Daguestão; Najiye Hanum, da Turquia; e Khaver Shabanova-Karayeva, do Azerbaijão, das quais as duas últimas discursaram no congresso.

Os procedimentos neste ponto diziam:

"Sim Sim." Aplausos, elevando-se à ovação. ... Cadeira: “Viva a emancipação das mulheres do Oriente!” Vivos aplausos. Gritos de “Viva!” Todos estão de pé. Ovação. Uma declaração sobre a luta de libertação das mulheres do Oriente foi lida no congresso.

A resolução das diferenças sobre o papel das mulheres refletiu uma convergência de revolucionários influenciados por crenças religiosas tradicionais e aqueles com uma visão marxista. Um participante do congresso, Babayev, expressou esse processo em um comentário feito informalmente mais de meio século após a reunião de Baku:

Quando veio o chamado para a oração, [Babayev] achou natural deixar de lado sua arma durante as devoções, depois do que ele "voltaria para defender com nosso sangue a conferência e a revolução". Inspirado pela "declaração de guerra santa contra o inimigo da revolução", explicou ele, "milhares de pessoas, convencidas de que não havia contradição entre ser bolchevique e muçulmano, juntaram-se às fileiras bolcheviques".

Abusos de Poder

Um desafio ainda mais explosivo veio de Tashpolad Narbutabekov, presidente do caucus de delegados não comunistas, que atacou duramente as práticas chauvinistas de alguns funcionários soviéticos na Ásia Central. Turar Ryskulov apresentou um longo protesto argumentando o caso contra esses abusos, assinado por vinte e um delegados da Ásia Central, Cáucaso, Irã e Índia.

Os indignados revolucionários do Turquestão receberam uma boa medida de satisfação. Poucos dias depois, Zinoviev falou em seu apoio. Após o encerramento do congresso, vinte e sete delegados viajaram a Moscou e apresentaram suas queixas ao Bureau Político do Partido Comunista.

Lenin ajudou a formar uma decisão abordando suas queixas e tomando medidas corretivas. Este é o único caso conhecido em que uma iniciativa minoritária em uma reunião do Comintern garantiu uma alteração nas políticas internas soviéticas.

Furacão de propaganda

Em seu resumo do congresso, Zinoviev propôs uma reformulação significativa das palavras finais do Manifesto Comunista: “Trabalhadores de todas as terras e povos oprimidos de todo o mundo, uni-vos!” A declaração final do Congresso de Baku exortou os povos do Oriente a:

Avante como um em uma guerra santa contra os conquistadores britânicos! ... esta é uma guerra santa para libertar os povos do Oriente; para acabar com a divisão da humanidade em povos opressores e povos oprimidos; e alcançar a igualdade completa de todos os povos e raças, qualquer que seja a língua que falem, qualquer que seja a cor da pele e qualquer que seja a religião que professem.

Quando o congresso foi encerrado, ele criou um Conselho de Propaganda e Ação contínuo, que organizou o que o governo britânico chamou de "verdadeiro furacão de propaganda, intriga e conspiração contra os interesses britânicos": livros, panfletos, educadores e organizadores apresentando a mensagem de Baku em muitas terras e línguas.

As forças britânicas logo concluíram sua retirada da Ásia Central, enquanto governos pró-soviéticos se enraizavam em terras que se estendiam do Cáucaso, passando pelos Urais, até o Oceano Pacífico. Fora dos territórios soviéticos, no entanto, a década de 1920 viu uma reconsolidação temporária dos antigos impérios coloniais.

O legado de Baku

A ascensão do stalinismo na Rússia soviética afastou o Comintern do curso estabelecido em Baku. Entre 1935 e sua dissolução em 1943, o Comintern não era mais um partidário consistente da libertação colonial imediata. Dentro da própria União Soviética, sob o governo de Josef Stalin, a repressão assassina derrubou a maioria dos líderes originais do Comintern.

Entre os vitimados em expurgos tramados estavam os palestrantes da Ásia no Congresso de Baku que estavam ao alcance de Stalin e cujo destino é conhecido: Tashpolad Narbutabekov, Turar Ryskolov, Jalalutdin Korkmasov, Dadash Buniatzadeh (todos mortos) e Khaver Shabanova-Karayeva (preso). Ainda assim, a influência do Congresso de Baku sobreviveu no movimento anticolonialista e antiimperialista global mais amplo, que viveu de sucesso em sucesso após a Segunda Guerra Mundial.

Durante as últimas décadas, com a soberania formal amplamente alcançada, as potências imperiais implantaram novos meios de dominação: guerras, ataques de drones, sanções, subversão e tratados comerciais opressores. Enquanto isso, as lutas anti-colonialistas e anti-racistas estão em ascensão nos velhos centros imperialistas. Neste novo contexto, o espírito do Congresso de Baku continua a encontrar uma expressão vigorosa.

Sobre o autor

John Riddell has edited and translated eight annotated volumes of documents from the early Communist International. They include an edition of the Baku Congress proceedings, To See the Dawn (Pathfinder Press, 1983). He lives in Toronto.

28 de setembro de 2020

Teoria Crítica do pós-guerra: uma glaciação teórica

À medida que a crise do capitalismo se desdobra, a necessidade de alternativas é cada vez mais sentida. A luta entre os movimentos radicais e as forças da reação é impiedosa. Nos últimos vinte e cinco anos, intelectuais radicais em todo o mundo produziram ideias importantes e inovadoras. O esforço para transformar o mundo sem cair nas armadilhas catastróficas do passado tem sido um elemento comum que une essas novas abordagens.

Razmig Keucheyan



Tradução / Qual é a relação da teoria com a história e a sociedade? Em The Left Hemisphere: Mapping Critical Theory Today, Razmig Keucheyan não apenas resume áreas inteiras da teoria crítica do pós-guerra, ele também tenta fornecer uma base sociológica para os desenvolvimentos e divergências, o que motiva determinados teóricos a enfatizar uma questão ou outra. Keucheyan pergunta: Como a intelectualidade de esquerda se desenvolveu em um momento de despolitização e alienação da classe trabalhadora?

Por uma geografia da Teoria Crítica

Em Considerações sobre o marxismo ocidental Perry Anderson mostrou que a derrota da Revolução Alemã nos anos 1918-23 provocou uma mutação significativa no marxismo. Os marxistas da geração clássica tinham duas características principais. Primeiramente, eram historiadores, economistas, sociólogos – isto é, preocupados com as ciências empíricas. Suas publicações eram, principalmente, conjunturais e focadas na atualidade política do momento. Em segundo lugar, eles eram líderes de partidos – isto é, estrategistas enfrentando problemas políticos reais. Carl Schmitt afirmou certa vez que um dos eventos mais importantes da era moderna foi a leitura por Lênin de Clausewitz. A ideia subjacente era a de que ser um intelectual marxista no início do século XX era encontrar-se na vanguarda da organização da classe trabalhadora de seu país. Na verdade, a própria noção de ‘intelectual marxista’ fazia pouco sentido, sendo o substantivo ‘marxista’ autossuficiente.

Essas duas características eram fortemente associadas. É porque eles eram estrategistas políticos que esses pensadores precisavam do conhecimento empírico para tomar decisões. Essa é a famosa “análise concreta de situações concretas” a que se referia Lenin. Por outro lado, seu papel de estrategista nutria suas reflexões com conhecimento empírico de primeira mão. Como escreveu Lenin em 30 de novembro de 1917 em seu posfácio para Estado e Revolução, “é mais agradável e útil atravessar a ‘experiência da revolução’ do que escrever sobre ela”. Nessa fase da história Marxista, a ‘experiência’ e a ‘escrita’ sobre a revolução estavam indissociavelmente ligadas.

O marxismo ‘ocidental’ do período subsequente nasceu do apagamento das relações entre intelectuais/líderes e organizações da classe trabalhadora que existiam no Marxismo clássico. Em meados dos anos 1920, organizações de trabalhadores eram derrotadas por todos os lados. O fracasso da Revolução Alemã de 1923, cujo resultado era tido como crucial para o futuro do movimento dos trabalhadores, deu sinal de parada para as esperanças de qualquer derrubada imediata do capitalismo. O declínio que se instaurou levou o estabelecimento de um novo tipo de relação entre intelectuais/líderes e organizações da classe trabalhadora. Gramsci, Korsch e Lukács foram os primeiros representantes dessa nova configuração. Com Adorno, Sartre, Althusser, Della Volpe, Marcuse e outros, os Marxistas que dominaram os anos 1924-68 possuíam características distintas àquelas daqueles do período precedente. De início, eles não tinham mais relações orgânicas com os movimentos trabalhistas e, em particular, com os partidos Comunistas. Eles não possuíam mais posições de liderança. Nos casos em que eram membros de partidos Comunistas (Althusser, Lukács, Della Volpe), suas relações eram complexas. Formas de ‘companheirismo de viagem’ podem ser observadas, como exemplifica o caso de Sartre na França. Mas uma distância irredutível entre intelectuais e partido persistia. E isso não se atribui necessariamente aos próprios intelectuais: lideranças de partidos Comunistas frequentemente desconfiavam deles.

A ruptura entre intelectuais e organizações da classe trabalhadora, característica ao Marxismo Ocidental, tinha uma causa significativa e uma significativa consequência. A causa era a construção, a partir dos anos 1920, de um Marxismo ortodoxo que representava a doutrina oficial da URSS e seus partidos fraternos. O período clássico do Marxismo foi de intensos debates sobre, em particular, o caráter do imperialismo, a questão nacional, a relação entre o social e o político, e o capital financeiro. A partir da segunda metade dos anos 1920, o Marxismo se fossilizou. Isso colocou os intelectuais em uma posição estruturalmente difícil, pois qualquer inovação no domínio intelectual lhes era, assim, negada. Isso foi uma razão importante para a distância que agora os separava dos partidos da classe trabalhadora. Ela os confrontou com a alternativa entre manter sua aliança ou manter sua distância. Com o tempo, a separação apenas aumentou, sobretudo porque outros fatores a agravaram, como a crescente profissionalização ou academização da atividade intelectual, que tendia a distanciar os intelectuais da política.

Uma consequência notável desta nova configuração foi que os marxistas ocidentais, diferentemente daqueles do período anterior, desenvolveram formas abstratas de conhecimento. Eles eram, na maior parte, filósofos e, frequentemente, estetas ou epistemólogos. Assim como a prática da ciência empírica se atrelou ao fato de que os Marxistas do período clássico tinham papéis de liderança em organizações trabalhistas, o distanciamento de tais papeis promoveu um ‘voo em direção à abstração’. Os Marxistas agora produziam conhecimento hermético, inacessível aos trabalhadores comuns, sobre campos sem qualquer relação direta com a estratégia política. Nesse sentido, o Marxismo Ocidental era não-Clausewitziano.

O caso do Marxismo Ocidental ilustra a forma com a qual desenvolvimentos históricos podem influenciar o conteúdo do pensamento que aspira a fazer história. Mais precisamente, ele demonstra a forma com a qual o tipo de acontecimento que é a derrota política influencia o curso da teoria que o sofreu. O fracasso da revolução Alemã, argumenta Anderson, levou a uma ruptura persistente ruptura entre os partidos Comunistas e os intelectuais revolucionários. Amputando os últimos da tomada de decisões políticas, essa ruptura levou-lhes a produzir análises que eram progressivamente abstratas e menos úteis estrategicamente. O traço interessante do argumento de Anderson é que ele explica de forma convincente a propriedade do conteúdo da doutrina (abstração) por uma propriedade de suas condições sociais de produção.

Partindo disso, a questão agora é determinar a relação entre a derrota sofrida pelos movimentos políticos da segunda metade dos anos 1970 e as teorias críticas atuais. Em outras palavras, ela consiste em examinar a forma com a qual as doutrinas críticas dos anos 1960 e 1970 se ‘mutaram’ em contato com a derrota, ao ponte de dar origem às teorias críticas que emergiram durante os anos 1990. Pode a derrota da segunda metade dos anos 1970 ser comparada com aquela sofrida pelos movimentos dos trabalhadores do começo dos anos 1920? Seus efeitos em doutrinas críticas têm sido similares àqueles experimentados pelo Marxismo depois dos anos 1920 e, em particular, ao “voo em direção à abstração” que lhe é característica?

De uma glaciação à outra

As teorias críticas de hoje são herdeiras do Marxismo Ocidental. Naturalmente, elas não foram influenciadas apenas por ele, pois são o produto de múltiplas conexões, algumas delas alheias ao Marxismo. Tal, por exemplo, é o caso do Nietzscheanismo Francês, particularmente as obras de Foucault e Deleuze. Mas uma das origens principais das novas teorias críticas pode ser encontrada no Marxismo Ocidental, cuja história está intimamente ligada àquela da New Left.

A análise de Anderson demonstra que a distância significativa separando intelectuais críticos das organizações da classe trabalhadora tem um impacto decisivo no tipo de teoria que eles desenvolvem. Quando esses intelectuais são membros das organizações em questão e, a fortiori, quando eles são seus líderes, as limitações da atividade política são claramente visíveis em suas publicações. Elas são significativamente menores quando esse laço se enfraquece, como é o caso do Marxismo Ocidental. Por exemplo, ser um membro do Partido Operário Social-Democrata Russo no começo do século XX envolvia tipos diferentes de obstáculos do que ser parte do comitê científico da ATTAC. No segundo caso, o intelectual em questão tem bastante tempo para seguir uma carreira acadêmica fora de seu engajamento político – algo incompatível com a associação a uma organização da classe trabalhadora na Russia do começo do século XX ou em outro lugar. Obviamente, a academia também mudou – mais precisamente, se massificou – consideravelmente desde a era do Marxismo clássico; e isso tem um impacto na trajetória potencial de intelectuais críticos. Acadêmicos pertenciam a uma categoria social restrita na Europa do final do século XIX. Hoje, eles estão muito mais difundidos, o que influencia de forma manifesta a trajetória intelectual e social dos produtores de teoria. Para entender as novas teorias críticas, é crucial compreender o caráter das associações entre os intelectuais que as elaboram e as organizações do momento. No capítulo 3 proporemos uma tipologia de intelectuais críticos contemporâneos para tratar dessa questão.

Existe uma geografia do pensamento – nessa instância, do pensamento crítico. O Marxismo Clássico era essencialmente produzido por pensadores da Europa Central e do Leste. A stalinização daquela parte do continente vetou desenvolvimentos subsequentes e empurrou o centro de gravidade do Marxismo em direção à Europa Ocidental. Esse é o espaço social no qual a produção intelectual crítica se instalou por meio século. Durante os anos 1980, como resultado da recessão da crítica teórica e política no continente, mas também por causa da atividade dinâmica de polos intelectuais como as revistas New Left Review, Semiotext(e), Telos, New German Critique, Theory and Society e Critical Inquiry, a fonte de crítica gradualmente se deslocou para o mundo Anglo-americano. Teorias críticas vieram se ser mais vigorosas onde anteriormente não eram. Enquanto as antigas regiões de produção continuavam a gerar e exportar autores importantes – basta pensar em Alain Badiou, Jacques Rancière, Toni Negri ou Giorgio Agamben – uma mudança fundamental se deu nos últimos trinta anos, o que está tendendo a relocar a produção de teorias críticas a novas regiões.

É preciso dizer que o clima intelectual deteriorou marcadamente para a Esquerda radical na Europa Ocidental, especialmente na França e na Itália – as terras escolhidas do Marxismo Ocidental – a partir da segunda metade dos anos 1970. Como foi indicado, o Marxismo Ocidental sucedeu o Marxismo clássico quando a glaciação Stalinista atingiu a Europa Central e do Leste. Ainda que diferente em muitos aspectos, uma analogia pode ser estabelecida entre os efeitos dessa glaciação e o que o historiador Michael Scott Christofferson chamou de ‘momento antitotalitário’ na França. A partir da segunda metade dos anos 1970, a França – mas isso também vale para os países vizinhos, especialmente aqueles onde o movimento trabalhador era poderoso – assistiu a uma ofensiva ideológica de larga escala, a qual, em um terreno diferente, acompanhou o avanço do neoliberalismo com a eleição de Thatcher e Reagan, seguidos por aquela de François Mitterand quem, apesar de seu pedigree ‘socialista’, aplicou receitas neoliberais sem remorso. Os movimentos nascidos na segunda metade dos anos 1950 estavam estagnando. O choque inicial do petróleo, em 1972, anunciou tempos economicamente e socialmente difíceis, com o primeiro aumento significativo da taxa de desemprego. O Programa Comum da Esquerda, assinado em 1972 e unindo os partidos Comunista e Socialista, fez a chegada da Esquerda ao poder algo concebível, mas no processo dirigindo sua atividade em direção às instituições, com isso arrancando ela de parte de sua anterior vitalidade.

No front intelectual, The Gulag Archipelago apareceu em tradução francesa em 1974. O hype da mídia em torno de Solzhenitsyn e de outros dissidentes do leste europeu era considerável. Eles não eram defendidos apenas por intelectuais conservadores. Na França, em 1977, uma recepção organizada em homenagem a dissidentes soviéticos reuniu Sartre, Foucault e Deleuze. Outros intelectuais críticos famosos, como Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, atingidos pelo hino ‘anti-totalitário’, o último dedicando um livro entitulado Un homme em trop para Solzhenitsyn. É verdade que do Socialisme ou barbarie de 1950 foi uma das primeiras revistas a desenvolver uma crítica sistemática do Stalinismo. O ‘consenso anti-totalitário’ que reinava na França a partir da segunda metade dos anos 1970 se estendeu de Castoriadis, via Tel Quel e Maurice Clavel, para Raymond Aron (obviamente com nuances significativas). Do outro lado do palco, jovens ‘iniciantes’ no campo intelectual da época – os ‘novos filósofos’ – fizeram do ‘anti-totalitarismo’ seu negócio. Mil novecentos e setenta e sete – que escolhemos como o ponto de início do período histórico tratado neste capítulo – testemunhou sua consagração pela mídia. Naquele ano, André Glucksmann e Bernard Henri Lévy publicaram Les maitres penseurs e La Barbarie à visage humain, respectuvamente.

A tese dos ‘novos filósofos’ era de que qualquer projeto de transformação da sociedade levaria ao ‘totalitarismo’’ – isto é, a regimes baseados no genocídio em massa em que o Estado subjuga todo o corpo social. A acusação de ‘totalitarismo’ foi dirigida não apenas à URSS e aos países do ‘socialismo real’, mas a todo o movimento dos trabalhadores. O empreendimento revisionista de François Furet na historiografia da Revolução Francesa, e sua subsequente análise da ‘paixão comunista’ no século XX, apoiava-se em uma ideia análoga. Durante os anos 1970, alguns ‘novos filósofos’ – muitos dos quais saíram da mesma organização Maoista, a Gauche prolétarienne – retinham algum radicalismo político. Em The Master Thinkers, Glucksmann contrapunha os plebeus ao Estado (totalitário), em acentos libertários que não seriam repudiados pelos autais defensores da ‘multitude’, o que explica de certa forma o apoio que recebeu de Foucault naquela época. Com o passar dos anos, porém, esses pensadores gradualmente se deslocaram para a defesa dos ‘direitos humanos’, das intervenções humanitárias, do liberalismo e da economia de mercado.

No coração da ‘nova filosofia’ havia um argumento sobre teoria. Ele era derivado do pensamento conservador Europeu tradicional, especialmente de Edmund Burke. Glucksmann o encapsulava da seguinte maneira: “Teorizar é terrorizar”. Burke atribuía as consequências catastróficas da Revolução Francesa (o Terror) ao ‘espírito especulativo’ dos filósofos insuficientemente atentivos à complexidade da realidade e a imperfeição da natureza humana. De acordo com Burke, as revoluções são o produto de intelectuais prestes a dar mais importância para as ideias do que para os fatos que passaram pelo ‘teste do tempo’. Em uma via similar, Glucksmann e seus colegas criticavam a tendência na história do pensamento ocidental que alegava compreender a realidade em sua ‘totalidade’ e, nessa base, procurava alterá-la – uma tendência que se remete a Platão e que, via Leibniz e Hegel, gerou Marx e o Marxismo. Karl Popper, é interessante notar, desenvolveu uma tese similar nos anos 1940, em particular em The Open Society and Its Enemies. Como é sabido, Popper é um dos santos patronos do neoliberalismo e seu argumento figura proeminentemente em seu corpus doutrinal até hoje. A assimilação de ‘teorização’ ao ‘terror’ é baseada no seguinte silogismo: entender a realidade em sua totalidade leva ao desejo de subjugá-la; essa ambição inevitavelmente leva ao Gulag. Nessas condições podemos ver por que teorias críticas desertaram seu continente de origem em busca de climas mais favoráveis.

O sucesso dos ‘novos filósofos’ pode ser visto como sintomático. Ele diz muito sobre as mudanças que ocorreram no campo político e intelectual de nosso tempo. Esses foram os anos da renúncia do radicalismo de 1968, do ‘fim das ideologias’, e da substituição dos intelectuais por ‘experts’. A criação, por Alain Minc, Furet, Pierre Rosanvallon e outros em 1982 da Fundação Saint-Simon, a qual (nas palavras de Pierre Nova) reuniu ‘pessoas que têm ideias com pessoas que têm recursos’, simboliza a emergência de um conhecimento do social supostamente livre de ideologia. The End of Ideology, do sociólogo americano Daniel Bell, data de 1960, mas foi apenas durante os anos 80 que esse leitmotif chegou à França e encontrou expressão em todas as áreas da existência social. Na esfera cultural, Jack Lang e Jean-François Bizot – o fundador da Actuel e da Radio Nova – elencam Maio de 68 como uma revolução fracassada mas um festival bem sucedido. No domínio econômico, Bernard Tapie, futuro ministro sob Mitterand, propagandeou a empresa como o campo de todo tipo de criatividade. Na esfera intelectual, o jornal Le Débat, editado por Nora e Marcel Gauchet, publicou sua primeira edição em 1980; em um artigo entitulado “Que peuvent les intelectuels?” Nora aconselhava os últimos a se confinarem em suas áreas de competência e parar de intervir na política.

A atmosfera dos anos 1980 deve ser relacionada às mudanças de ‘infraestrutura’ que afetaram as sociedades industriais depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Uma das mudanças principais foi a importância assumida pela mídia na vida intelectual. Os ‘novos filósofos’ foram a primeira corrente filosófica televisionada. Certamente, Sartre e Foucault também apareciam em entrevistas gravadas naquela época, mas eles teriam existido, assim como suas obras, na ausência da televisão. O mesmo não é verdade para Lévy e Glucksmann. Em vários sentidos, os ‘novos filósofos’ eram produtos da mídia, suas obras – assim como símbolos reconhecíveis como camisas brancas, penteados rebeldes, postura ‘dissidente’ – eram concebidas com as limitações da televisão em mente. A intrusão da mídia no campo intelectual abruptamente alterou as condições de produção de teorias críticas. Ela é um elemento adicional para explicar o clima hostil que se criou na França a partir dos fins dos anos 1970. Assim, um dos países onde teorias críticas mais tinham prosperado no período anterior – com contribuições de Althusser, Lefebvre, Foucault, Deleuze, Bordieu, Barthes e Lyotard em particular – viu sua tradição intelectual minguar. Alguns desses autores continuaram produzindo trabalhos importantes durante os anos 1980. Mille Plateaux de Deleuze e Guatarri apareceu em 1980, Le Différend de Lyotard em 1983, e L’Usage des plaisirs de Foucault em 1984. Mas o pensamento crítico francês perdeu a capacidade de inovação que outrora possuíra. Uma glaciação teórica se instaurou, da qual, em alguns sentidos, ainda temos de emergir.

O fenômeno dos ‘novos filósofos’ é decerto tipicamente francês, especialmente porque o perfil sociológico de seus protagonistas está intimamente atrelado ao sistema francês de reprodução das elites. Mas a tendência geral de abandono das ideias de 1968, notável a partir da segunda metade dos anos 1970, é internacionalmente visível, mesmo que ele assuma formas diferentes em cada país. Um caso fascinante, que ainda espera por um estudo aprofundado, é o do italiano Lucio Colletti. Colletti foi um dos filósofos Marxistas mais inovadores dos anos 1960 e 70. Membro do Partido Comunista Italiano desde 1950, ele decidiu deixá-lo na ocasião da insurreição de Budapeste em 1956, que (como vimos) foi a ocasião para diversos intelectuais romperem com o movimento Comunista (ainda que ele não tivesse oficializado sua partida até 1964). Ele se tornou progressivamente crítico do Stalinismo. Assim como Althusser na França (com quem ele correspondia e por quem tinha grande consideração), e sob a influência de seu mestre Galvano Della Volpe, Colletti defendeu a ideia de que o rompimento realizado por Marx com Hegel era mais profundo do que comumente se pensava. Essa tese é desenvolvida, em particular, em Marxism and Hegel, um de seus trabalhos mais conhecidos. Outro de seus trabalhos influentes foi From Rousseau to Lenin, que atesta a importância do materialismo de Lenin para seu pensamento.

A partir de meados da década de 1970, Colletti mostrou-se cada vez mais crítico do Marxismo e, especialmente, do Marxismo Ocidental, do qual ele era um dos representantes e teóricos chefe. Em uma entrevista publicada naquela época, falando com um tom pessimista que prenunciava sua subsequente evolução, ele declarou:“O Marxismo só poderá ser revivido se livros como Marxismo e Hegel não forem mais publicados, e, em vez disso, livros como Capital Financeiro de Hilferding e A acumulação do capital de Rosa Luxemburgo – ou até mesmo Imperialismo de Lenin, que foi um panfleto popular – forem escritos outra vez. Em suma, ou o Marxismo tem a capacidade – eu certamente não tenho – de produzir naquele nível, ou ele sobreviverá apenas como uma deficiência de alguns poucos professores universitários. Mas, nesse caso, ele estará bem e verdadeiramente morto, e os professores podem muito bem inventar um novo nome para seu clero.”

De acordo com Colletti, ou o Marxismo é bem-sucedido em reconciliar teoria e prática, e assim reparar a ruptura provocada pelo fracasso da revolução Alemã à qual nos referimos, ou ele não existe mais como Marxismo. Para ele, o ‘Marxismo Ocidental’ era, portanto, uma impossibilidade lógica. Nos anos 1980, Colletti se deslocou para o Partido Socialista Italiano, dirigido, naquela época, por Bettino Craxi, cujo grau de corrupção cresceu vertiginosamente com o passar dos anos. Nos anos 1990, em uma virada trágica à direita, ele aderiu ao Forza Italia, partido recentemente criado por Silvio Berlusconi, e tornou-se senador pelo partido em 1996. Na ocasião da morte de Colletti, em 2001, Berlusconi saudou a coragem que ele demonstrou ao rejeitar a ideologia Comunista e relembrou de suas atividades e seu papel no Forza Italia.

Do outro lado do mundo, uma evolução similar caracterizou os ‘Gramscianos argentinos’. As ideias de Gramsci entraram rapidamente em circulação na Argentina, em virtude da proximidade cultural entre ela e a Itália, mas também porque seus conceitos eram particularmente úteis para explicar o altamente original e tipicamente argentino fenômeno político do Peronismo (por exemplo, a noção de ‘revolução passiva’). Um grupo de jovens intelectuais provenientes do Partido Comunista Argentino, liderados por José Aricó e Juan Carlos Portantiero, fundaram a revista Pasado y Presente em 1963, aludindo a uma série de fragmentos dos Cadernos do Cárcere que portam esse título. Interessantemente, dez anos antes (1952), uma revista de mesmo nome Past and Present, foi criada no Reino Unido no entorno de historiadores marxistas como Eric Hobsbawn, Christopher Hill e Rodney Hilton. Assim como viria a acontecer com os revolucionários latino-americanos daqueles anos, os Gramscianos argentinos foram influenciados pela Revolução Cubana (1959), a hibridização da obra de Gramsci e aquele evento provocaram desenvolvimentos teóricos de grande fertilidade. Naquela época, a revista também serviu como interface entre a Argentina e o mundo, traduzindo e publicando autores como Fanon, Bettelheim, Mao, Guevara, Sartre e representantes da Escola de Frankfurt.

No começo dos anos 1970, quando a luta de classes passou por uma virada violenta na Argentina, Aricò e seu grupo se deslocaram em direção à esquerda Peronista revolucionária, particularmente para as guerrilhas Montoneras, que eram uma espécie de síntese de Perón e Guevara. A revista procurou refletir questões estratégicas enfrentadas pelo movimento revolucionário, no que dizia respeito às condições da luta armada, do imperialismo e o caráter das classes dominantes argentinas. Com o golpe de Estado de 1976, Aricò foi forçado a se exilar no México, assim como muitos Marxistas latino-americanos de sua geração. A partir disso, sua trajetória, assim como a de seus colegas, consistiu em um deslocamento gradual em direção ao centro. Para começar, eles proclamaram seu apoio à ofensiva argentina nas guerras Malvinas em 1982. Alguns deles, incluindo o filósofo Emilio de Ipola, teriam uma visão retrospectiva bastante crítica sobre isso. Defensores ardentes de Felipe Gonzales e do PSOE espanhol nos anos 80, eles terminaram defendendo o primeiro presidente democraticamente eleito após a queda da ditadura argentina, o radical (de centro-direita) Raúl Alfonsín. Eles foram parte do grupo especial de conselheiros do último; o grupo era conhecido como ‘Grupo Esmeralda’ e teorizava a ideia de ‘pacto democrático’. Seu apoio a Alfonsin se estendeu à adoção do que era, de certa forma, uma atitude ambígua em relação às odiosas Leyes de Obediencia y Punto Final anistiando os crimes da ditadura, que o Presidente Nestor Kirchner iria abrogar na primeira década dos anos 2000.

Podemos multiplicar o número de exemplos de deslocamentos de intelectuais para a direita. A virada neoliberal da China promovida por Deng Xiaoping nos fins dos anos 1980 teve um impacto marcante no pensamento crítico chinês, levando à apropriação (ou reapropriação) da tradição liberal ocidental por setores significativos da intelligentsia, e a adaptação dos debates sobre a teoria da justiça de John Rawls. Outro caso similar é aquele dos neo-conservadores norte-americanos – dentre eles Irving Kristol, frequentemente apresentado como o ‘padrinho do neo-conservadorismo’ – que surgiu da esquerda não-stalinista. Um documento instrutivo em relação a isso é ‘Memoirs of a Trotskyst’ publicado por Kristol no New York Times.

Novamente, não é questão de afirmar que esses autores ou essas correntes são idênticos. Os novos filósofos, Colletti e os Gramscianos Argentinos são intelectuais de calibre muito diferente; Marxistas inovadores como Colletti e Aricò não podem, obviamente, ser colocados no mesmo nível de impostores como Lévy. Suas trajetórias intelectuais são profundamente explicadas pelos contextos nacionais em que ocorreram. Ao mesmo tempo, eles também são a expressão de um movimento para a direita de antigos intelectuais revolucionários que pode ser identificado em uma escala internacional.

A conclusão a ser tirada disso é a de que a segunda metade dos anos 1970 e os anos 1980 foram um período de mudanças abruptas na geografia do pensamento crítico. Foi nesse momento que as coordenadas políticas e intelectuais de um novo período foram gradualmente fixadas.

Fascismo. Fascização. Antifascismo.

Em todo o mundo, dos Estados Unidos ao Brasil, à Índia, Itália e Hungria, a questão do fascismo ganhou destaque. Não apenas pelo avanço - ou vitórias eleitorais - de organizações de extrema direita, mas também por inegáveis ​​pressões autoritárias e aceleração das políticas de destruição dos direitos dos trabalhadores, aliadas à ascensão de nacionalismos identitários e processos de radicalização / legitimação do racismo.

Essa dinâmica tem sido particularmente visível na França nos últimos anos: pense no endurecimento da repressão policial e judicial (contra migrantes, distritos de imigração e mobilizações sociais), na natureza sistemática (e sistematicamente impune) da violência policial e a própria impossibilidade do poder de reconhecer sua existência, ou da banalização midiática e política da islamofobia, até o cume mais alto do Estado como podemos observar com a atual pseudo-debate sobre "separatismo".

Autor de La possibilité du fascisme: France, la trajectoire du désastre (La Découverte, 2018), Ugo Palheta oferece neste artigo elementos de reflexão sobre o fascismo (ontem e hoje), sobre os processos de fascismo e sobre o necessário antifascismo, esperando que isso possa contribuir para um entendimento comum das batalhas presentes e futuras.

Ugo Palheta



Do fascismo

Tradução / O fascismo pode ser classicamente definido como uma ideologia, um movimento e um regime. Designa assim em primeiro lugar um projeto político de "regeneração" de uma comunidade imaginária - em geral a nação[1] - que supõe uma vasta operação de purificação, ou seja, a destruição de tudo que, do ponto de vista fascista, obstruiria essa homogeneidade fantasmada, dificultaria sua unidade quimérica, distanciaria de sua essência imaginária e dissolveria sua identidade profunda.

Como movimento, o fascismo está crescendo e conquistando uma ampla audiência, apresentando-se como uma força capaz de desafiar o "sistema", mas também de restaurar a "lei e a ordem"; é esta dimensão profundamente contraditória de revolta reacionária, uma mistura explosiva de falsa subversão e ultraconservadorismo, que permite seduzir camadas sociais cujas aspirações e interesses são fundamentalmente antagônicos.

Quando o fascismo consegue conquistar o poder e se transformar em regime ou mais precisamente em estado de exceção, ele sempre tende a perpetuar a ordem social, apesar de suas reivindicações "antissistema" e às vezes até "revolucionárias".

Esta definição permite estabelecer uma continuidade entre o fascismo histórico, o do período entre guerras e o que aqui chamaremos de neofascismo, ou seja, o fascismo de nossos tempos. Como veremos mais adiante, afirmar tal continuidade não implica em ser cego às diferenças de contextos.

Crise de hegemonia

Se sua suposta ascensão ocorre em um cenário de crise estrutural do capitalismo, instabilidade econômica, frustrações populares, aprofundamento dos antagonismos sociais (de classe, raça e gênero) e pânico de identidade, o fascismo não entra na ordem do dia apenas quando a crise política atinge um nível de intensidade que se torna intransponível no quadro das formas estabelecidas de dominação política, ou seja, quando não é mais possível à classe dominante assegurar a estabilidade da ordem social e política através dos meios ordinários associados à democracia liberal e pela simples renovação de seu pessoal político.

Isso é o que Gramsci nomeou crise de hegemonia (ou "crise orgânica"), cujo componente central é a crescente incapacidade da burguesia de impor sua dominação política pela fabricação de um consentimento majoritário à ordem das coisas, isto é, sem um aumento significativo no grau de coerção física. Na medida em que o elemento fundamental que caracteriza esta crise não é o surgimento impetuoso das lutas populares, e muito menos um levante que criaria profundas fissuras no Estado capitalista, este tipo de crise política não pode ser caracterizada como crise revolucionária, ainda que a crise de hegemonia possa, em certas condições, conduzir a uma situação de tipo revolucionário ou pré-revolucionário.

Tal incapacidade decorre, em particular, de um enfraquecimento dos laços entre representantes e representados, ou, mais precisamente, das mediações entre o poder político e os cidadãos. No caso do neofascismo, esse enfraquecimento se reflete no declínio das organizações tradicionais de massa (partidos políticos, sindicatos, associações), sem as quais a "sociedade civil" é pouco mais que um slogan eleitoral (pensemos nas famosas "personalidades da sociedade civi"), promove a atomização dos indivíduos e assim os condena à impotência, disponibilizando-os para novos afetos políticos, novas formas de adesão e novos modos de ação. Ora esse enfraquecimento, que torna a formação de milícias de massa em grande parte supérflua para os neofascistas, é o próprio produto das políticas burguesas e da crise social que eles não podem deixar de engendrar.

No caso do fascismo de nosso tempo (neofascismo), é óbvio que são os efeitos cumulativos das políticas seguidas desde os anos 1980, como parte da resposta "neoliberal" das burguesias ocidentais à onda revolucionária dos anos 1968, que tiveram sucesso em todos os lugares - em proporções diversas, dependendo do país - a formas mais ou menos agudas de crise política (aumento dos níveis de abstenção, desintegração gradual ou colapso repentino de partidos no poder, etc.), criando as condições para uma dinâmica fascista.

Ao lançar uma ofensiva contra o movimento operário organizado, ao romper metodicamente todos os alicerces do “compromisso social” do pós-guerra, que dependia de uma certa relação entre as classes (uma burguesia relativamente enfraquecida e uma classe trabalhadora organizada e mobilizada), a classe dominante se tornou gradualmente incapaz de construir um bloco social composto e hegemônico. Acrescente-se a isso a forte instabilidade da economia mundial e as dificuldades enfrentadas pelas economias nacionais, que enfraquecem profunda e duramente o crédito que as populações podem dar às classes dominantes e sua confiança no sistema econômico.

Na medida em que a ofensiva neoliberal tornou mais difícil a mobilização no local de trabalho - especialmente na forma de greve – ao enfraquecer os sindicatos e aumentar a precariedade, esse descontentamento tende cada vez mais a se expressar em outros lugares e de diferentes formas:

  • A abstenção eleitoral crescente em todos os lugares (mesmo que às vezes seja reduzida quando uma determinada eleição é mais polarizada) e atingindo níveis muitas vezes nunca vistos antes;
  • Um declínio - progressivo ou brutal - por parte importante dos partidos institucionais dominantes (ou o surgimento dentro deles de novos movimentos e figuras, como o Tea Party e Trump, no caso do Partido Republicano nos Estados Unidos);
  • O surgimento de novos movimentos políticos ou a ascensão de forças outrora marginais;
  • A eclosão de movimentos sociais que se desenvolvem fora dos quadros tradicionais, ou seja, essencialmente fora do movimento operário organizado (o que não quer dizer sem nenhum vínculo com a esquerda política e os sindicatos).

Os neofascistas conseguem, em certos contextos nacionais, integrar-se em vastos movimentos sociais (Brasil) ou provocar eles próprios mobilizações de massa (Índia); acontece também que suas ideias permeiam certas franjas desses movimentos. No entanto, isso geralmente não é suficiente para que as organizações neofascistas se transformem em movimentos militantes de massa, pelo menos nesta fase, e as lutas extraparlamentares tendem mais para ideias de emancipação social e política (anticapitalismo, antirracismo, feminismo, etc.) do que para o neofascismo. Embora carecendo de coesão estratégica e de um horizonte político comum, às vezes até de demandas unificadas, essas mobilizações geralmente apontam para o objetivo de ruptura com a ordem social e existem concretamente a possibilidade de uma bifurcação emancipatória.

Em todos os casos, a ordem política está profundamente desestabilizada. É evidentemente neste tipo de situação que os movimentos fascistas podem aparecer - em diferentes grupos sociais e por razões contraditórias- tanto como uma resposta essencialmente eleitoral (nesta fase pelo menos) ao declínio da capacidade hegemônica das classes dominantes, quanto como uma alternativa ao jogo político tradicional.

Crise da alternativa

Ao contrário da ideia comum (em parte da esquerda), o fascismo não é uma simples resposta desesperada da burguesia a uma ameaça revolucionária iminente, mas a expressão de uma crise de alternativa à ordem existente e de uma derrota das forças contra-hegemônicas. Se é verdade que os fascistas mobilizam o medo (real ou não) da esquerda e dos movimentos sociais, é na verdade a incapacidade da classe explorada (proletariado) e dos grupos oprimidos de se constituírem como sujeitos políticos revolucionários e de se engajarem em uma experiência de transformação social (mesmo limitada) o que permite que a extrema direita apareça como alternativa política e ganhe o apoio de grupos sociais muito diversos.

Na situação atual, como durante os anos entre as guerras, enfrentar o perigo fascista não significa apenas liderar lutas defensivas contra o endurecimento autoritário, as políticas anti-imigração, o desenvolvimento de ideias racistas, etc., mas também (e mais profundamente) que os explorados e oprimidos consigam se unificar politicamente em torno de um projeto de ruptura com a ordem social e aproveitar a oportunidade apresentada pela crise de hegemonia.
Os dois momentos da dinâmica fascista

No primeiro estágio de seu acúmulo de forças, o fascismo busca dar uma aparência subversiva à sua propaganda e se apresentar como uma revolta contra a ordem existente. Ele o faz desafiando tanto os representantes políticos tradicionais das classes dominantes(de direita) como das classes dominadas (de esquerda), sendo todos culpados de contribuir para a desintegração demográfica e cultural da "Nação" (concebida de forma fantásmica, como um essência mais ou menos imutável): os primeiros favoreceriam o "globalismo de cima" (nas palavras de Marine Le Pen), o das finanças “cosmopolitas” ou "apátridas" (com as conotações antissemitas que inevitavelmente carregam tais expressões), enquanto o segundo alimentaria o "globalismo de baixo", o dos migrantes e das minorias raciais (com toda a gama de xenofobia tradicional inerente à extrema direita).

Fazendo da "Nação" a solução para os crimes - crise econômica, desemprego, "insegurança", etc. - invariavelmente atribuídos ao que é por ele considerado estrangeiro (em particular tudo o que tenha a ver direta ou indiretamente com a imigração), o fascismo afirma ser uma força “antissistema” e constituir uma "terceira via", nem direita nem esquerda, nem capitalismo nem socialismo. A falência da direita e as traições da esquerda credibilizam o ideal fascista de uma dissolução das divisões políticas e antagonismos sociais em uma "Nação" que é finalmente "regenerada" porque é politicamente unificada (na realidade colocada sob o controle de fascistas), ideologicamente unânime (ou seja, privada de qualquer meio de expressar publicamente qualquer forma de protesto) e etno-racialmente "purificada", em outras palavras, libertadas de grupos considerados intrinsecamente "estranhos" e "inassimiláveis", "inferiores" e "perigosos".

O fato é que, em um segundo momento, ocorre o que se poderia chamar de seu momento “plebeu” ou “antiburguês” (personagem ao qual o fascismo nunca renuncia completamente, pelo menos na fala e que é uma de suas especificidades), os líderes fascistas aspiram a forjar uma aliança com representantes da burguesia – geralmente por meio da mediação de partidos ou líderes políticos burgueses – para selar seu acesso ao poder, usar o Estado a seu favor (para fins políticos, mas também para enriquecimento pessoal, como todas as experiências fascistas têm mostrado e regularmente ilustrado por condenações judiciais de representantes de extrema direita por desvio de fundos públicos), enquanto prometia ao capital a aniquilação de toda oposição. Das pretensões iniciais a uma “terceira via” nada resta, o fascismo nada propõe senão fazer o capitalismo funcionar sob o regime da tirania.

Fascismo e a crise das relações opressivas

A crise da ordem social também se apresenta como uma crise das relações opressoras, uma dimensão que é particularmente aguda no caso do fascismo contemporâneo (neofascismo). A perpetuação da dominação branca e da opressão das mulheres, bem como das minorias de gênero, é de fato desestabilizada ou mesmo ameaçada pelo aumento em escala global, muito desigual segundo o país, DOS movimentos antirracistas, feministas e LGBTQI.

Organizando-se coletivamente, revoltando-se respectivamente contra a ordem racista e heteropatriarcal, falando com sua própria voz, os não-brancos, as mulheres e as minorias de gênero tornam-se cada vez mais sujeitos políticos autônomos (o que em nada impede divisões, principalmente se faltar uma força política capaz de unificar os grupos subalternos).

Em resposta, este processo não pode deixar de despertar radicalizações racistas e machistas que se desdobram em várias formas e direções, mas encontram sua plena coerência política no projeto fascista. Isso de fato articula a representação delirante de uma reviravolta em curso ou já ocorrendo nas relações de dominação (com essas mitologias variadas de “dominação judaica”, “grande substituição”, “colonização reversa”, “racismo anti-branco”, “feminização da sociedade”, etc.) à vontade fanática de grupos opressores de manter, custe o que custar, o seu domínio.

Se as extremas direitas se opõem em todos os lugares aos movimentos e discursos feministas, se nunca rompe com uma concepção essencialista dos papéis de gênero, pode às vezes, dependendo das necessidades políticas e dos contextos nacionais, adotar uma retórica de defesa dos direitos das mulheres e das minorias sexuais. Eles então chegam a silenciar algumas de suas posições tradicionais (proibição do aborto, criminalização da homossexualidade, etc.), e a enriquecer com novos tons o leque do discurso nacionalista: isso fará dos "estrangeiros"[2] os responsáveis ​​pela violência sofrida por mulheres e homossexuais. O nacionalismo feminino e o homo nacionalismo tornam assim possível atingir novos segmentos do eleitorado, ganhar respeitabilidade política e, no processo, desviar qualquer crítica sistêmica ao heteropatriarcado.

Fascismo, natureza e crise ambiental

A crise da ordem existente não é simplesmente econômica, social e política. Também se apresenta, em particular por causa das mudanças climáticas atuais, como uma crise ambiental.

O neofascismo aparece atualmente dividido pelos fenômenos mórbidos associados ao Capitaloceno. Grande parte dos movimentos, ideólogos e líderes neofascistas minimizam o aquecimento global, ou mesmo o negam abertamente, defendendo uma intensificação do extrativismo (carbo-fascismo). Por outro lado, certas correntes que podem ser qualificadas como ecofascistas afirmam constituir uma resposta à crise ambiental, mas fazem pouco mais do que reviver e compor como “ecologia” as velhas ideologias reacionárias da ordem natural, ainda associadas a ideias de desempenhos e hierarquias tradicionais (de gênero em particular), mas também de comunidades orgânicas fechadas, em nome da “pureza racial” ou a pretexto de “incompatibilidade de culturas”. Da mesma forma, costumam utilizar a suposta urgência do desastre para apelarem por soluções ultra-autoritárias (eco-ditaduras) e racistas (seu neo-malthusianismo quase sempre justifica, segundo eles, uma repressão crescente aos migrantes e uma interdição quase total da imigração).Se os últimos permanecem em grande parte minoritários, quando comparados aos primeiros e não formam correntes políticas de massa, suas ideias se desenvolvem inegavelmente e chegam a permear o senso comum neofascista, de modo que emerge uma ecologia de identidade como campo ambiental da luta para os antifascistas. Essa clivagem também se refere a uma tensão intrínseca ao fascismo “clássico”, entre um hipermodernismo que exalta a grande indústria e a tecnologia como marcadores e alavancas do poder nacional (econômico e militar), e um antimodernismo que idealiza a terra e a natureza como centros de valores autênticos com os quais a Nação deve se reconectar para encontrar sua essência.

Fascismo e ordem social

Se o fascismo quer aparecer como uma alternativa à ordem existente (e consegue pelo menos em parte), se muitas vezes chega a se apresentar como uma “revolução” (nacional), não é simplesmente a roda sobressalente do estado atual das coisas, mas o meio de remover toda oposição ao capitalismo ecocida, racial e patriarcal; em outras palavras, uma autêntica contrarrevolução.

A menos que tomemos em consideração a sua palavra – e assim validemos – as suas pretensões de estar do lado dos “pequenos” ou dos “sem posição”, de mobilizar o “povo” e de constituir um programa de transformação social que lhe seja favorável, ou para adotar uma definição puramente formal / institucional do conceito de “revolução”, tornado simplesmente sinônimo de mudança de regime, o fascismo não pode ser descrito como “revolucionário”: ao contrário, toda a sua ideologia e toda a sua prática de poder tende à consolidação e ao reforço, por métodos criminosos, das relações de exploração e opressão. Mais profundamente, o projeto fascista intensifica essas relações, para produzir um corpo social extremamente hierárquico (perspectiva de classe e gênero), padronizado, (do ponto de vista das sexualidades e identidades de gênero) e homogeneizado (do ponto de vista étnico-racial). O aprisionamento e o crime em massa (genocídio) não são consequências fortuitas, mas um potencial inerente ao fascismo.

Fascismo e movimentos sociais

O fascismo mantém uma relação ambivalente com os movimentos sociais. Na medida em que seu sucesso depende de sua capacidade de aparecer como uma força “antissistema”, ele não pode se contentar com uma oposição frontal aos movimentos de protesto e às esquerdas. Assim, os fascismos – “clássicos” ou atuais – não cessam de tomar emprestada parte de sua retórica desses movimentos para conformar uma poderosa síntese política e cultural.

Para tanto, três táticas principais são empregadas:

  • A recuperação parcial de elementos do discurso crítico e programático, mas privados de qualquer dimensão sistêmica e de qualquer objetivo revolucionário. O capitalismo, por exemplo, não é criticado em seus fundamentos, ou seja, na medida em que se baseia numa relação de exploração (capital / trabalho), pressupõe a propriedade privada dos meios de produção e também uma coordenação pelo mercado, mas apenas em seu caráter globalizado ou financeirizado (o que permite, como dissemos acima, jogar com os velhos tons antissemitas do clássico discurso fascista, que ainda tem seu apelo entre certas franjas da população). É compreensível, deste ponto de vista, que as críticas ao livre comércio, e ainda mais o apelo ao “protecionismo”, tenham todas as chances, se não estiverem coerentemente vinculadas ao objetivo de ruptura com capitalismo, para fortalecer ideologicamente a extrema direita.
  • O desvio da retórica da esquerda e dos movimentos sociais para torná-la uma arma contra os “estrangeiros”, isto é, contra as minorias raciais. Esta é a lógica do femo-nacionalismo e do homo nacionalismo mencionados acima, mas também da defesa “nacionalista” do secularismo: embora a extrema direita tenha se oposto ao longo de sua história aos direitos das mulheres e LGBTQI ou ao princípio do secularismo, algumas de suas correntes (em particular, a atual liderança do Front National/Régénération Nationale franceses) agora afirmam ser melhores defensores, o que no último caso supôs uma redefinição completado secularismo.
  • Ou a inversão da crítica feminista ou antirracista, ao afirmar que os oprimidos se tornaram os opressores. Portanto, um ideólogo no processo de aceleração da fascização poderia recentemente afirmar o seguinte “Estamos em um regime comunitário anti-branco e racialista, em outras palavras, um apartheid reverso” (Michel Onfray, filósofo de sucesso mediático). Da mesma forma, vemos regularmente Eric Zemmour ou Alain Soral (promotores do neofascismo) afirmarem que os homens são agora dominados pelas mulheres e, portanto, impedidos de realizar sua essência dominante. Este tipo de discurso é a melhor forma de apelar, sem o dizer explicitamente, a uma operação supremacista de “reconquista”, ou seja, de afirmação branca ou masculina.

Fascismo e democracia liberal

Os regimes liberais e fascistas não se opõem como a democracia e a dominação se oporiam. Em ambos os casos, obtém-se a submissão de proletários, mulheres e minorias, relações entrelaçadas de exploração e dominação são implantadas e perpetuadas e toda uma série de violências inevitavelmente e estruturalmente associadas a essas relações; em ambos os casos, a ditadura do capital sobre a sociedade continua. São, na realidade, duas formas distintas de dominação política burguesa, ou seja, dois métodos diferentes pelos quais se consegue subjugar os grupos subordinados e impedi-los de realizar uma transformação revolucionária.

A mudança para métodos fascistas é sempre precedida por um conjunto de renúncias, pela própria classe dominante, a certas dimensões fundamentais da democracia liberal. As arenas parlamentares são cada vez mais marginalizadas e contornadas, à medida que o poder legislativo é assumido pelo executivo e os métodos de governo se tornam cada vez mais autoritários (decretos-leis, portarias, etc.). Mas esta fase de transição entre a democracia liberal e o fascismo exige, acima de tudo, a limitação crescente das liberdades de organização, reunião e expressão, ou mesmo do direito de greve.

É sem muita difusão que ocorre o endurecimento autoritário, que cada vez mais faz repousar o poder político no apoio e na lealdade dos aparatos repressivos do Estado, arrastando-o para uma espiral antidemocrática. Assim, sobrevém uma rede de segurança cada vez mais rígida nos bairros de classe trabalhadora e de imigração; manifestações proibidas, prevenidas ou severamente reprimidas; detenções preventivas e arbitrárias; julgamentos expeditos de manifestantes e uso crescente de sentenças de prisão; demissões cada vez mais frequentes de grevistas; redução do escopo e das possibilidades de atuação sindical, etc.

Dizer que a oposição entre a democracia liberal e o fascismo reside nas formas políticas de dominação burguesa não significa que o antifascismo, os movimentos sociais e a esquerda devam ser indiferentes ao declínio das liberdades públicas e dos direitos democráticos. Defender essas liberdades e direitos não é semear a ilusão de um Estado ou de uma república concebidos como árbitro neutro dos antagonismos sociais. É defender uma das principais conquistas das classes populares durante os séculos XIX e XX, a saber, o direito dos explorados e oprimidos de se organizarem e se mobilizarem para defender as suas condições de trabalho e de vida. Trata-se da base essencial para o desenvolvimento de uma consciência de classe, feminista e antirracista. Mas também se afirma como alternativa à desdemocratização que o neoliberalismo traz em seu próprio projeto.

O fascismo atua especificamente pelo esmagamento de toda forma de contestação, que seja revolucionária ou reformista, radical ou moderada, global ou parcial. Em todo lugar em que o fascismo se torna prática de poder, ou seja, regime político, nada ou quase mais resta em alguns anos e mesmo em alguns meses, da esquerda política, do movimento sindical ou ainda das formas de organização das minorias, ou seja, de toda forma estável e cristalizada de resistência.

Lá onde o regime liberal tende a enganar os subalternos ao cooptar uma parte de seus representantes e incorporando algumas de suas organizações na forma de coalizão (como participantes minoritário, sem voz ativa) ou de negociações (o pretenso “diálogo social” no qual os sindicatos ou associações desempenham o papel de pretexto) ou mesmo ao integrarem algumas de suas reivindicações, o fascismo pretende destruir toda forma de organização não assimilável ao Estado fascista e a eliminar a própria aspiração de organização coletiva fora dos quadros das organizações fascistas ou próximas. O fascismo se apresenta como a forma política que promove a destruição quase completa da capacidade de autodefesa dos subalternos – ou sua redução a formas de resistência moleculares, passivas ou clandestinas.

É necessário notar, entretanto, que nesta obra de destruição, o fascismo não pode obter a passividade de grande parte do corpo social unicamente por métodos repressivos ou por discursos dirigidos tal ou qual bode expiatório. Ele não consegue estabilizar seu domínio senão satisfazendo os interesses materiais imediatos de alguns grupos (trabalhadores desempregados, pequenos empregadores empobrecidos, funcionários etc.), ao menos aqueles que, no interior desses grupos, são reconhecidos pelos fascistas como “verdadeiros nacionais”. Num contexto de abandono das classes populares pela esquerda, não se deve subestimar a força de atração de um discurso que promete reservar empregos e ajudas sociais a estes pretensos “verdadeiros nacionais” (que, nunca se dirá suficientemente, que na visão fascista não são definidos por um critério jurídico de nacionalidade, mas por um critério de origem, portanto etno-racial).

Fascismo, “povo” e ação de massa

Se o fascismo é às vezes descrito falsamente como “revolucionário” devido a seus apelos ao “povo” ou porque interviria pela ação das “massas”, em uma analogia superficial com o movimento operário, é porque são misturadas coisas muito diferentes sob as denominações “povo” e “ação”.

O “povo”, como o entendem os fascistas, não designa um grupo que compartilha de certas condições de existência (no sentido em que a sociologia fala de classes populares), nem de uma comunidade politica que inclui todas e todos unidos por uma vontade comum de pertenecimento, mas sim uma comunidade etno-racial fixada uma vez por todas, reunindo aquelas e aqueles que procederiam “daqui mesmo” (que o critério de pertencimento ao “povo” seja pseudo-biológico ou pseudo-cultural). Isto equivale na realidade na um corpo social desprovido de inimigos (o “partido do estrangeiro”, como dizem Drumont e Zemour, propagandistas fascistas, o primeiro dos fins do século XIX ao século XX e o segundo, atual).

No que diz respeito à ação propriamente fascista, ela oscila idealmente entre a expedição punitiva executada por grupos armados (bandos não estatais ou setores dos aparelhos do Estado autonomizados ou em vias de sê-lo)[3], a marcha de tipo militar ou o plebiscito eleitoral.

Se a primeira atinge as lutas sociais e mais globalmente os subalternos (trabalhadoras e trabalhadores grevistas/os minorias étnico-raciais, mulheres em luta etc.), afim de desmoralizar o adversário e de limpar o terreno para a implantação fascista, a segunda tem por objetivo produzir um efeito simbólico e psicológico de massa, para mobilizar as afeições em favor do chefe, do movimento ou do regime, enquanto que a terceira visa ratificar passivamente por um conjunto de indivíduos atomizados a vontade do chefe ou do movimento.

Se o fascismo apela efetivamente às massas, não é para estimular sua ação autônoma a partir de interesses específicos (política de classe) favorizando por exemplo formas de democracia direta onde se discutiria e agiria coletivamente, mas para apoiar os chefes fascistas e dar-lhes um argumento de peso nas negociações com a burguesia para o acesso ao poder. A participação popular nos movimentos fascistas – e mais ainda nos regimes – é em sua maior parte comandada pela cúpula para seus objetivos e em suas formas e supõe a deferência mais absoluta em relação àqueles que seriam destinados pela sua natureza a comandar.

São encontradas, entretanto, formas de mobilização pela base no primeiro momento do fascismo, pelos ramos plebeus que fornecem suas tropas de choque ao levarem a sério suas promessas antiburguesas e seu pseudo anticapitalismo. Quando, entretanto, a crise política se acentua e que a aliança entre os fascistas e a burguesia é efetivada, as tensões aparecem entre esta burguesia e a direção do movimento fascista. Esta última procurará sempre se desembaraçar da direção destas milícias[4], enquanto procura canalizá-las integrando-as ao Estado fascista em construção.

Na realidade, no que diz respeito à ação, o fascismo nunca ofereceu às massas senão a escolha entre a obediência, passiva ou ruidosa, aos chefes fascistas e o Manganello[5], a repressão, indo com frequência nos regimes fascistas até a tortura e o assassinato, inclusive de alguns de seus mais fervorosos partidários.

Uma contra-revolução póstuma e preventiva.

O fascismo é uma contra-revolução « póstuma et preventiva[6].Póstuma na medida em que se nutre do fracasso da esquerda política e dos movimentos sociais a se alçarem à situação histórica, a se constituírem em solução à crise política e a iniciarem uma experiência de transformação revolucionária. Preventiva, porque visa destruir adiantadamente tudo o que poderia nutrir e preparar uma futura experiência revolucionária: organizações explicitamente revolucionárias, mas também movimentos antirracistas, feministas e LGBTQI, lugares de vida auto-gestionários, jornalismo independente etc., ou seja, a menor forma de contestação da ordem das coisas.
Fascismo, neofascismo e violência

É inegável que a violência extra-estatal sob a forma de organizações paramilitares de massa desempenhou um papel importante, embora sem dúvida superestimado, na ascensão dos fascistas – o que os distingue de outros movimentos reacionários que não procuraram organizar militarmente as massas. Ocorre que, ao menos no momento atual, a grande maioria dos movimentos neofascistas não se constrói à partir do acionamento de milícias de massa e não dispõe de tais milícias (com a exceção do BJP indiano e, em menor grau, em termos de implantação de massa, do Jobbik húngaro e da Aurora Dourada na Grécia).

Há diferentes hipóteses para explicar porque os neofascistas não conseguem ou não querem construir tais milícias:

  • A deslegitimização da violência política, particularmente nas sociedades ocidentais, que levaria à marginalidade eleitoral os partidos políticos que constituíssem estruturas paramilitares;
  • A ausência de uma experiência equivalente à Primeira Guerra mundial, em termos de brutalização das populações, ou seja, o hábito do exercício da violência, que disponibilizaria para os fascistas massas de homens dispostos a se inscreverem numa perspectiva de exercício da violência através das milícias fascistas armadas;
  • O enfraquecimento da capacidade dos movimentos operários de estruturar, organizar e fiscalizar, sindical e politicamente, as classes populares, o que faz com que os fascistas de nosso tempo não tenham mais diante de si um adversário que realmente seria imprescindível quebrar pela força para se imporem, o que exigiria um aparato de violência em massa;
  • O fato de os Estados serem muito mais poderosos hoje e possuírem instrumentos de vigilância e repressão de uma sofisticação incomparável a dos Estados do período entre guerras, e assim os fascistas atuais podem sentir que a violência do Estado é suficiente para aniquilar, fisicamente, se necessário, qualquer forma de oposição;
  • Finalmente, o caráter estrategicamente crucial para os neofascistas se distinguirem das formas mais visíveis de continuidade com o fascismo histórico e, em particular, com essa dimensão da violência extra-estatal. É preciso lembrar, sob esse ponto de vista, que o “Front National” foi criado em 1972 na França a partir de uma estratégia de respeitabilização desenvolvida e implementada pelos líderes da “Nova Ordem”, uma organização inegavelmente neofascista.

Essas hipóteses nos permitem insistir no fato de que a constituição de milícias de massa foi tornada necessária e possível para os movimentos fascistas no contexto muito particular do período entre guerras.

Mas nem a constituição de bandos armados, nem mesmo o uso da violência política, constituem a peculiaridade do fascismo, seja como movimento ou como regime: não que não estejam presentes centralmente, mas outros movimentos e outros regimes, não pertencentes à constelação do fascismo, recorreram à violência para ganhar ou manter o poder, às vezes matando dezenas de milhares de oponentes (sem falar no uso legítimo da violência pelos movimentos de libertação).

Dimensão mais visível do fascismo clássico, as milícias extra estatais são, na realidade, um elemento subordinado à estratégia das lideranças fascistas, que as utilizam taticamente de acordo com as demandas impostas pelo desenvolvimento de suas organizações e pela conquista legal do poder político, que supõem, desde o período entre guerras, e ainda mais hoje, parecer um tanto respeitável, mantendo as formas mais visíveis de violência à distância. A força dos movimentos fascistas ou neofascistas é então medida por sua capacidade de lidar – conforme a situação histórica – com táticas legais e violentas, "guerra de posição" e "guerra de movimento", usando as categorias de Gramsci.

O processo de fascitização

A vitória do fascismo é o produto conjunto de uma radicalização de setores inteiros da classe dominante, por medo de que a situação política lhes escape, e de um entrincheiramento social do movimento, das ideias e dos afetos fascistas. Ao contrário de uma representação comum, bem adequada para absolver as classes dominantes e as democracias liberais de suas responsabilidades na ascensão dos fascistas ao poder, os movimentos fascistas não conquistam o poder político como uma força armada apreende uma cidadela, por uma ação puramente externa a tomar, como um ataque militar. Se geralmente conseguem obter o poder por meios legais, o que não quer dizer sem derramamento de sangue, é porque essa conquista é preparada por todo um período histórico que pode ser referido pela expressão de fascização.

É apenas ao final deste processo que o fascismo pode surgir – obviamente hoje sem dizer seu nome, e disfarçando seu projeto, dado o opróbrio universal que envolveu as palavras “fascismo” e “fascista” desde 1945, tanto como uma (falsa) alternativa para vários setores da população e como uma solução (real) para uma classe dominante politicamente pressionada. É então que, de um movimento essencialmente pequeno-burguês, pode tornar-se um verdadeiro movimento de massas, interclassista, ainda que o seu cerne sociológico, que o sustenta, continue a ser a pequena burguesia: pequenos trabalhadores independentes, profissões liberais, executivos médios.

Formas de fascitização

A fascização se expressa de múltiplas maneiras, à través de uma ampla variedade de “sintomas mórbidos” (para usar a expressão de Gramsci novamente), mas dois vetores principais podem ser destacados: o endurecimento autoritário do Estado e a ascensão do racismo. Se a primeira evidentemente tem como principal campo de expressão os aparatos repressivos do Estado (com este ator específico de fascização constituído pelos sindicatos de policiais), não devemos esquecer a responsabilidade primária dos líderes políticos, no caso francês de Sarkozy e Hortefeux a Macron e Castaner via Hollande e Valls (PS). E se a violência policial faz parte da longa história do Estado e da polícia, é a crise da hegemonia, ou seja, o enfraquecimento político da burguesia, que a torna cada vez mais dependente de sua polícia, o que aumenta a força, mas também a autonomia, desta última[7]: o Ministro do Interior não tende mais a conduzir e controlar a polícia, mas a defendê-la a todo custo, aumentando seus recursos etc.

A ascensão do racismo também combina a longa história do Estado francês, um antigo poder imperial no qual a opressão colonial e racial ocupou – e continua ocupando – um lugar central, e a curta história do campo político. Diante da crise de hegemonia, a extrema direita e setores da direita – no entendimento de que essas forças políticas representam distintas frações de classe – têm o projeto de solidificar um bloco branco, capaz de trazer uma forma de compromisso social para uma base étnico-racial, por uma política de despejo sistemático de não-brancos ou, em outras palavras, de preferência racial. Além disso, ao enfatizar constantemente o perigo que os migrantes e as mulheres muçulmanas representariam para a ordem pública, mas também para a integridade cultural da “Nação”, essas forças justificam a licença concedida às forças policiais nos bairros de imigração e contra as mulheres migrantes, o aumento da repressão aos movimentos sociais, em uma palavra, o autoritarismo estatal. Assim, podemos falar, nas palavras do escritor e líder negro Aimé Césaire –de um enselvajamento, processo de selvageria – da classe dominante, que aparece acima de tudo através de práticas e dispositivos de repressão dirigidos primeiro contra as minorias étnico-raciais e depois contra as mobilizações sociais (coletes amarelos, sindicatos, antirracistas, antifascistas, ambientalistas, etc.). Mas a selvageria também está surgindo, cada vez mais comum, na forma de declarações públicas (imagine o que é dito em privado …): Pensamos neste ex-ministro da Educação Nacional e intelectual onipresente da mídia, neste caso Luc Ferry, conclamando a polícia a “usar suas armas” contra os coletes amarelos; pense neste enxame de ideólogos, Zemmour sendo apenas a árvore que esconde a floresta, que fez da mídia e da islamofobia editorial uma indústria florescente.

O que significa a fascitização do Estado

A fascização do Estado não deve, portanto, em caso algum, ser reduzida, especialmente na primeira fase que antecede a conquista do poder político pelos fascistas, à integração ou ao surgimento de elementos fascistas reconhecidos como tais nos aparelhos de manutenção da ordem (polícia, exército, justiça, prisões). Pelo contrário, funciona como uma dialética entre as transformações endógenas desses aparatos, fruto de escolhas políticas feitas pelos partidos burgueses ao longo de quase três décadas (todas orientadas para a construção de um “Estado penal” sobre as cinzas do “Estado social », para usar as categorias de Loïc Wacquant), e poder político – principalmente eleitoral e ideológico nesta fase – da extrema direita organizada.

Para simplificar, o fascínio da polícia não se expressa e não pode ser explicado principalmente pela presença de militantes fascistas dentro dela, ou pelo fato de que os policiais votam maciçamente na extrema direita (na França e em outros lugares), mas pelo seu fortalecimento e empoderamento (em particular dos setores responsáveis ​​pelas tarefas mais brutais de manutenção da ordem, nos distritos de imigração, contra as mulheres migrantes e, secundariamente, nas mobilizações). Em outras palavras, a polícia está cada vez mais se emancipando do poder político e da lei, ou seja, de qualquer forma de controle externo (sem falar de um controle popular indetectável).

A polícia, portanto, não se torna fascista em seu funcionamento, unicamente porque teria sido gradualmente devorada pelas organizações fascistas. Pelo contrário, é porque todo o seu funcionamento se torna fascisado – obviamente em graus diversos conforme o setor – que é tão fácil para a extrema direita disseminar suas ideias dentro dela e se enraizar. Isso é particularmente visível pelo fato de não termos testemunhado nos últimos anos uma progressão na força policial do sindicato diretamente ligada à extrema direita organizada (France Police-Policiais indignados), mas um duplo processo: o surgimento de mobilizações facciosas vindas da base (mas cobertas pela cúpula, no sentido de que não estavam sujeitas a quaisquer sanções administrativas); e a radicalização de direita dos principais sindicatos da polícia (Aliança e Unidade de Polícia do SGP-FO).

Um processo contraditório e instável

O processo de fascização é eminentemente contraditório, pois decorre em primeiro lugar da crise de hegemonia e do endurecimento dos confrontos sociais, e, portanto, é altamente instável. Esta não é de forma alguma uma estrada real para o movimento fascista.

A classe dominante pode, de fato, ter sucesso em certas circunstâncias históricas em provocar o surgimento de novos representantes políticos, em integrar certas demandas dos subordinados e, assim, construir as condições para um novo compromisso social (que permite não ter que ceder o poder político aos fascistas, a fim de manter seu poder econômico)[VIII].No entanto, é improvável que as classes dominantes sejam levadas, no contexto atual, a aceitar novos compromissos sociais sem uma sequência de lutas de alta intensidade que imponham um novo equilíbrio de poder menos desfavorável às classes populares.

Se o processo de fascização não termina necessariamente no fascismo, é também porque o movimento fascista, assim como as classes dominantes, enfrenta a esquerda política e os movimentos sociais. O sucesso dos fascistas depende em última instância da capacidade – ou ao contrário da impotência – dos subordinados de investir vitoriosamente todos os campos da luta política, de se constituírem como sujeito político autônomo e de imporem uma alternativa revolucionária.

Após uma vitória eleitoral dos fascistas: três cenários

Se a conquista do poder político pelos fascistas – geralmente por meios legais, repitamos – é uma vitória crucial para eles, não é a última palavra na história. Um período de luta começa necessariamente no dia seguinte a esta vitória que pode suceder – dependendo do equilíbrio político e social do poder, das lutas travadas ou não, conforme sejam vitoriosas ou derrotadas:

  • seja para a construção de uma ditadura fascista ou policial militar (quando os movimentos populares sofrem uma derrota histórica e a burguesia está politicamente muito enfraquecida ou dividida);
  • seja para a normalização burguesa (quando o movimento fascista é muito fraco para construir um poder político alternativo e há uma resposta popular importante, mas não suficiente para ir além de uma vitória defensiva);
  • seja em uma sequência revolucionária (quando o movimento popular é forte o suficiente para reunir importantes forças sociais e políticas em torno dele e se envolver em um confronto com as forças burguesas e o movimento fascista).

Do antifascismo hoje

Se o antifascismo aparece, antes de mais nada, como uma reação ao desenvolvimento do fascismo, portanto uma ação defensiva ou de autodefesa (popular, antirracista, feminista), não pode, entretanto, ser reduzido a um combate corpo a corpo com grupos fascistas; e ainda mais porque as táticas de construir movimentos fascistas em nosso tempo dão menos espaço à violência em massa – exceto sem dúvida na Índia, como dissemos acima – do que no caso do fascismo “clássico”. (ver tese 15). O antifascismo faz da luta política contra os movimentos de extrema direita um eixo central de sua luta, mas também deve se dar a tarefa de promover a ação comum dos subordinados e de deter o processo de fascização, ou seja, de minar as condições políticas e ideológicas em que esses movimentos podem prosperar, criar raízes e crescer, destruindo tudo o que promove a disseminação do veneno fascista no corpo social. No entanto, se levarmos a sério esta dupla vocação do antifascismo, então ela deve ser concebida, não como uma luta monotemática contra a extrema direita organizada, que funcionaria independentemente de outras lutas (sindicais, anti-capitalistas, feminista, antirracista, ambientalista, etc.), mas como o reverso defensivo da luta pela emancipação social e política, ou do que Daniel Bensaïd chamou de política dos oprimidos.

Evidentemente, não se trata de condicionar a constituição de uma frente antifascista à adesão a um programa político completo e preciso, o que significaria, na realidade, renunciar a qualquer perspectiva unitária, já que então se trataria de cada força impor seus próprios projetos políticos e estratégicos aos outros. Seria ainda mais inapropriado exigir daqueles que aspiram a lutar aqui e agora contra o fascismo ou a dinâmica da fascização mencionada acima, que apresentem patentes de militância revolucionária. No entanto, o antifascismo não pode ter como única bússola a oposição às organizações de extrema-direita se aspira realmente a derrotar não só essas organizações, mas também e sobretudo as ideias e afetos fascistas que se propagam e se enraízam bem além. Ele não pode deixar de fazer a ligação entre a luta antifascista, a necessidade de ruptura com o capitalismo racial, patriarcal e ecocida, e o objetivo de outra sociedade (que chamaremos aqui de ecosocialista).

O caso é complexo, porque não basta ao antifascismo afirmar seu feminismo ou seu antirracismo, criticar o neoliberalismo ou clamar pela defesa do “secularismo”, para revelar o caráter reacionário do neofascismo. Na medida em que a extrema direita se apropriou de pelo menos parte do discurso antineoliberal, tende cada vez mais a adotar uma retórica de defesa dos direitos das mulheres, usa um pseudo-antirracismo de defesa de “brancos” e se situa como protetor do secularismo, o antifascismo não pode se contentar com fórmulas vagas sobre o assunto. Deve obrigatoriamente especificar o conteúdo político de seu feminismo e seu antirracismo, ou mesmo explicar o que deve ser entendido por “laicidade”, sob pena de deixar pontos cegos nos quais os neofascistas nunca deixam de se localizar(“Femonacionalismo”, denúncia de “racismo antibranco” ou falsificação / instrumentalização do secularismo), mas também sob pena de ficar atrás dos neoliberais (que têm seu próprio “feminismo”, o do 1%, e seu “antirracismo moral”, geralmente na forma de um apelo à tolerância mútua). Da mesma forma, deve clarificar o horizonte político de sua oposição ao neoliberalismo ou de sua crítica à União Europeia, que não pode ser a de um “bom” capitalismo nacional finalmente regulado.

Além disso, os últimos anos trouxeram à luz a necessidade do antifascismo se envolver plenamente na batalha política – necessariamente unitária – contra a pressão pelo autoritarismo. Que este último fale contra milhares de muçulmanos, arrastados na lama, processados, monitorados, discriminados, desqualificados publicamente, às vezes presos, por serem suspeitos de “radicalização” (portanto constituir um “inimigo da Nação”, real ou potencial), contra os migrantes (privados de direitos e acossados ​​pela polícia), contra os residentes dos bairros de imigração (entrecruzados pelos setores mais fascizados das forças repressivas, que gozam de impunidade quase total), ou contra mobilizações sociais cada vez mais severamente reprimidas pela polícia e pelos tribunais(movimento contra a legislação trabalhista, coletes amarelos, etc.).

Vemos como o desafio, para o antifascismo, não é simplesmente forjar alianças com ativistas de outras causas, o que deixaria cada parceiro inalterado, mas redefinir e enriquecer o antifascismo de perspectivas que surgem nas lutas sindicais, anticapitalistas, antirracistas, feministas ou ambientais, alimentando estas últimas com perspectivas antifascistas. É nesta condição que o antifascismo poderá se renovar e progredir, não como uma luta setorial, um método particular de luta ou uma ideologia abstrata, mas como um senso comum que permeia e envolve todos os movimentos de emancipação.

Notas

[1] A civilização – “branca” ou “europeia” – também pode desempenhar esse papel, assim como a raça (“ariana” na ideologia nazista), mesmo que este último referente tenha se tornado politicamente insustentável, em escala massiva, pelo genocídio dos judeus na Europa.

[2] Categoria altamente expansível por incluir todos aqueles que, tendo ou não a nacionalidade do país, não são considerados nativos genuínos (no caso da França, os chamados “franceses nativos”, “verdadeiros franceses”, etc.). Deste ponto de vista, um imigrante europeu recente – naturalizado ou não – será considerado pela extrema direita como menos estrangeiro, pelo menos se for branco e de cultura cristã, do que um francês nascido na França de pais nascidos na França, mas cujos avós teriam vindo, por exemplo, da Argélia ou do Senegal.

[3] Evoquem-se, no caso francês contemporâneo, as brigadas anti-criminalidade.

[4] Leia-se a Airresistivel ascensão de Arturo Ui de Bertolt Brecht.

[5] Nome dado em italiano au instrumento com o qual se espancava, particularmente os militantes operários ou qualquer pessoas que se opusesse aos fascistas. O manganello e seu uso foram o objeto de uma espécie de culto na Itália fascista.

[6] Retomamos aqui a formula de Angelo Tasca em seu livro clássico Nascimento do fascismo.

[7] O que lhe permite, no caso francês, de visar hoje diretamente as forças políticas (lembremos a manifestação dos sindicatos de policiais diante da sede La France Insoumise, formação política de esquerda, dirigida por Mélanchon) e de manifestar sem autorização, com armas e veículos de serviço, muitas vezes encapuçados, sem qualquer sanção administrativa ou judiciária.

[8] Evoca-se o caso de Roosevelt e do New Deal nos Estados Unidos dos anos 1930, que não permitiram vencer a crise do capitalismo americano (será preciso para tanto aguardar a guerra), mas que suspenderam a dita crise.

Sobre o autor

Ugo Palheta é professor de sociologia na Universidade de Lille. Autor, entre outros livros, de La possibilité du fascisme (La Découverte, Paris, 2018).

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