31 de julho de 2023

O que a China espera conseguir ao receber Henry Kissinger

O centenário ajudou a acabar com o isolamento de Pequim décadas atrás e é um símbolo de esperança para laços saudáveis com Washington

Por Timur Fomenko, um analista político

RT

O presidente da China, Xi Jinping (à direita), fala com o ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, em Pequim, em 20 de julho de 2023 © CNS / AFP

O centenário político teve nos anos 70 do século passado um papel no estabelecimento de relações diplomáticas entre a China e os EUA. A RPC procura contrapor uma estratégia diplomática à escalada de provocação e confrontação empreendida pelos EUA. É nesse sentido que vem convidando a visitarem Pequim diversas personalidades influentes nos EUA. E é um sinal dos tempos que alguém com o currículo de Kissinger possa assumir um papel de moderador relativamente ao poder instalado em Washington.

O antigo Secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, um dos estadistas mais velhos do mundo, com 100 anos, visitou Pequim e reuniu-se com o líder chinês Xi Jinping no início deste mês. Embora o tempo de Kissinger no cargo seja controverso em muitos aspectos, nomeadamente devido a alegações de crimes de guerra em vários países asiáticos, a China tem efectivamente uma opinião positiva sobre ele.

Porquê? Porque Kissinger foi uma das figuras-chave na construção das relações diplomáticas entre os EUA e a China, que se seguiram à visita pioneira de Richard Nixon ao país em 1972 e ao seu encontro com Mao Zedong. Este facto marcou uma das maiores mudanças geopolíticas do século XX, conduzindo à abertura da China e à sua integração na economia mundial. Por este legado, Pequim está extraordinariamente grata a Kissinger e trata-o como um “velho amigo”. Este facto constitui, naturalmente, o pano de fundo entender com precisão a sua actual visita e qual o seu significado político.

O legado de Kissinger abriu caminho a uma relação aberta, estável e de cooperação entre os EUA e a China que durou mais de 40 anos, mas essa era já passou. De facto, a disposição de alguns em Washington é de dificultar e desmantelar este legado, enquadrando o envolvimento dos EUA com a China como um erro que encorajou uma potência hostil. Essa é a mensagem que Mike Pompeo procurou transmitir em 2020, quando era secretário de Estado. Tentando reiniciar a relação EUA-China no sentido de uma nova “época”, Pompeo fez um discurso provocador na biblioteca presidencial de Richard Nixon, na Califórnia, intitulado ‘Communist China and the Free World’s Future’.

Desde a administração Trump, os laços entre os EUA e a China têm vindo constantemente a deteriorar-se, à medida que a competição estratégica nos domínios militar, diplomático e tecnológico se acelerou. A presidência de Biden tem sido indiscutivelmente mais agressiva do que a sua antecessora em algumas das medidas que tomou. Não é de surpreender que os políticos norte-americanos vejam o envolvimento com a China como uma forma de apaziguamento e politicamente desfavorável. Por conseguinte, embora os funcionários falem dos chamados “corrimãos de segurança” (”guardrails”) no diálogo com a China, as suas intenções estratégicas não se alteram, nem fazem quaisquer concessões na diplomacia que prosseguem.

Perante isto, a China está a cortejar Henry Kissinger por uma razão crítica. Ele é um símbolo vivo da relação que Pequim gostaria de ter com Washington e de como os laços diplomáticos deveriam ser. A sua presença em Pequim é uma declaração política. A China está desagradada com as acções dos EUA, mas, em última análise, continua a procurar compromisso, estabilidade, cooperação e abertura nas suas relações, e ninguém representa melhor isso do que o homem com quem tudo começou, que agora acredita que os EUA e a China têm de encontrar uma via de coexistência para evitar o conflito.

Ao fazê-lo, Pequim calcula que é uma perda de tempo tentar estabelecer relações directas com os políticos norte-americanos. A balbúrdia e a paranoia com que tais tentativas são confrontadas são de tal ordem, especialmente ao nível do Congresso, que são prejudiciais seja para quem for.

Em vez disso, utilizou uma estratégia pragmática de se dirigir a indivíduos que acredita poderem promover estabilidade nas relações, convidando-os para visitas altamente publicitadas. Isto inclui homens de negócios e figuras públicas como Tim Cook, Elon Musk e Bill Gates, que visitaram a China nos últimos meses. Estas pessoas são utilizadas para transmitir a mensagem de que a China está aberta e disposta a fazer negócios e que os laços com os EUA não têm de ser como são actualmente. Além disso, estes indivíduos actuam como canais de apoio. Podem não ter poder político directo, mas através das suas redes e laços exercem influência, especialmente quando se trata de lobbying. Kissinger é idoso, mas é um membro muito respeitado da comunidade da política externa.

Apesar da competição geopolítica com os Estados Unidos, a China é sobretudo cautelosa no que respeita a fazer ondas. Está consciente de que a classe política norte-americana não pode ser modificada na sua disposição, mas Pequim procura conter e minimizar a sua influência através da diplomacia, por oposição à confrontação. Dar poder aos falcões de Washington é um dos piores erros estratégicos que a China pode cometer. Assim, é fundamental para os objectivos de Pequim abrandar a “dissociação” e impedir que os EUA ganhem capital político para forçar outros países, tanto na Europa como na Ásia, a aderirem à sua agenda.

Pequim não vê isto como uma corrida de velocidade, mas como uma maratona. Na sua perspectiva, o recurso a Kissinger transmite uma mensagem de esperança e reconciliação, uma perspectiva idealista sobre como devem ser os laços entre os EUA e a China. É claro que não se pode voltar atrás no tempo e estabilidade pode ser tudo o que há a esperar nesta fase.

Enquanto a Itália e a Grécia ardem, os seus líderes ficam obcecados com os imigrantes

Os líderes da União Europeia promovem o medo da imigração enquanto negligenciam as ameaças reais e mortais das alterações climáticas. Toda a região mediterrânica devia colaborar em prol das pessoas deslocadas, contra os gigantes dos combustíveis fósseis e em prol da descarbonização.

Nathan Akehurst

Jacobin

Um homem está pronto para combater as chamas enquanto elas engolfam uma encosta em 27 de julho de 2023, em Apollana, Rodes, Grécia. (Dan Kitwood/Getty Images)

A Europa está a arder. Atingindo quase 43ºC, Roma bateu o seu recorde de calor, estabelecido apenas no ano passado, e alguns hospitais italianos comunicaram que o número de doentes internados atingiu os níveis da pandemia de covid-19. Enviaram-se aviões para Corfu e Rodes para retirar os turistas por causa dos incêndios que assolam as ilhas gregas, enquanto os habitantes locais sofrem as consequências. Até os Alpes estão a atingir os 37ºC. Do outro lado do Mediterrâneo, a Argélia registou a noite mais quente da história de África.

Esta é uma crise global que exige uma liderança global: as temperaturas extremas e as inundações atingiram desde os Estados Unidos até à China, passando pelo Brasil e o subcontinente asiático. As estruturas políticas supranacionais existentes, como a União Europeia (UE), poderiam - e deveriam - estar a liderar a resposta. No entanto, e à medida que a terra racha, as árvores ardem e os abastecimentos se esgotam, a Europa está a olhar na direção errada.

A EUROPA, A VAGA DE CALOR E A FRONTEIRA


Enquanto os avisos de emergência ordenavam aos romanos que se mantivessem em casa durante o dia, a primeira-ministra de extrema-direita, Giorgia Meloni, organizou uma conferência internacional para apelar a uma cooperação urgente entre a Europa e África. Não para enfrentar a crise climática, mas para controlar a migração. Os meios de comunicação social italianos optaram por brincar enquanto Roma ardia literalmente, preferindo relatar a cobertura alarmada de medias estrangeiros em vez do que realmente estava a acontecer.

É comum ouvir os opositores à migração dizerem que temos de nos focar nas pessoas do nosso país em vez de ajudarmos os estrangeiros. No entanto, os Estados europeus mais afetados pelo clima, como a Itália e a Grécia, dedicam mais recursos e tempo político a perseguir, a deter e a atacar pessoas nas suas costas do que a proteger aqueles cujas casas estão a arder. Compare-se, por exemplo, os novos e brilhantes campos de detenção na Grécia com o seu fraco historial de resposta a emergências.

Seria errado, no entanto, atribuir este problema de inação apenas aos Estados fronteiriços da Europa, eles próprios assolados por uma década de crise em que a austeridade imposta pela UE desempenhou um papel importante. Os seus governos argumentam, não sem razão, que os Estados mais ricos do norte da Europa empurram a responsabilidade de resposta a emergências migratórias para os Estados fronteiriços mais pobres. Entretanto, as instituições europeias criticam publicamente os registos de direitos humanos dos Estados fronteiriços (quer sejam membros da UE, quer sejam a Líbia e a Tunísia), ao mesmo tempo que continuam, na prática, a colaborar e até a encorajar abusos.

Para aqueles que sofrem e morrem na fronteira mais letal do mundo, a situação é extrema. Mas, a nível estatístico, a migração está muito longe de ser a crise existencial que é habitualmente apresentada na política europeia. Em comparação, na Colômbia - um país muito mais pobre do que qualquer Estado-membro da UE, e que absorveu milhões de pessoas que pediram asilo nos últimos anos - a migração ainda não tem o perigo mortal da política europeia. De facto, a Europa foi perfeitamente capaz de absorver vários milhões de ucranianos que fugiam da invasão russa no ano passado. A chamada crise migratória sempre foi um problema inventado. Agora, é um problema ainda mais perigoso que retira o foco político da conflagração que ameaça vidas e meios de subsistência em ambos os lados do Mediterrâneo.

As pessoas que procuram segurança são também as primeiras vítimas da emergência climática. Em primeiro lugar, as catástrofes trouxeram novos riscos de deslocação em toda a região euro-mediterrânica - os incêndios florestais a noroeste de Atenas destruíram comunidades residenciais, enquanto os choques climáticos afetaram as pessoas envolvidas em conflitos no Norte de África. Os efeitos climáticos deste ano, seja no sector do turismo grego ou no rendimento das colheitas argelinas, podem contribuir, a longo prazo, para a deslocação de pessoas. As consequências para as pessoas já deslocadas têm sido brutais: na fronteira dos Estados Unidos, estão a ser recuperados corpos de pessoas que sucumbiram à insolação.

Em toda a região euro-mediterrânica, os centros de detenção, os campos de refugiados e os acampamentos informais serão marcados pela escassez e pelos riscos para a saúde, e o sol de um oceano em aquecimento não dará tréguas às pessoas que farão este verão as desesperadas travessias do Mediterrâneo e do Egeu. No entanto, esta emergência é controlável.

Com um esforço coordenado entre países - e a UE estaria fortemente posicionada para desempenhar um papel de liderança - as pessoas poderiam receber todo o apoio para ficarem em casa onde pudessem e para partirem onde tivessem de o fazer. Os recursos podem e devem ser disponibilizados nesta base, incluindo investimentos para proteger os meios de subsistência e a indústria, proporcionar uma ajuda eficaz em caso de catástrofe e facilitar as deslocações para a realojamento a curto e a longo prazo. Estes esforços enquadram-se perfeitamente no projeto de controlar as temperaturas globais nesta década, gerindo simultaneamente os danos existentes.

ESCOLHA DE PRIORIDADES

A política é uma questão de prioridades e as escolhas da Europa têm sido claras. A conferência de Meloni sobre migração, com a presença de vinte países, não passou de velhos chavões sobre a importância da cooperação para o desenvolvimento. Este projeto, designado por "Equipa Europa", é uma estrutura inventada e irresponsável, como salientou um membro do Parlamento Europeu, na qual Meloni está lado a lado com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. As suas intervenções deste verão visaram, antes de mais, a "cooperação" com a Tunísia em matéria de controlo da migração.

Esta é a mesma Tunísia que, nos últimos meses, na sequência do discurso racista do seu presidente contra a "substituição étnica" por migrantes negros, assistiu a numerosos ataques a migrantes, cujas tentativas de fuga resultaram em duzentas mortes no mar num período de dez dias.

O acordo com a Tunísia é a mais recente opção da longa missão da Europa em forçar os Estados da periferia do bloco a atuar como polícia de fronteira. Isto teve consequências brutais: de afogamentos e escravatura na Líbia, ao massacre de Melilla em 2022 na fronteira hispano-marroquina, passando pelo sombrio acordo da UE com o presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan.

Este tipo de controlo fronteiriço "externalizado" é defendido por todos os políticos mainstream - o pacto com a Turquia foi liderado pelo atual candidato de centro-esquerda a primeiro-ministro holandês, Frans Timmermans. É frequentemente enquadrado como uma questão de desenvolvimento. A UE forneceu serviços biométricos aos Estados africanos, aparentemente para o recenseamento eleitoral, mas que, na realidade, constituíram uma base de dados de impressões digitais para o controlo da migração da EU. Financiou também as Forças de Apoio Rápido para impedir a migração no Norte de África, que acumularam um historial abismal em matéria de direitos humanos que está a ser repetido no novo conflito civil do Sudão. Há quase uma década que o controlo da migração, por todos os meios necessários, tem sido a estrela polar da política externa europeia e o seu domínio só tem vindo a piorar.

Mesmo do ponto de vista da segurança da própria Europa, a primazia do controlo da migração na política externa é profundamente prejudicial. Quando Marrocos afrouxou brevemente o seu papel de guarda fronteiriço da Europa, irritado com a perceção de que a política externa espanhola era pouco exigente, houve uma crise humanitária em Ceuta em 2021. Nesse inverno, a Rússia e a Bielorrússia foram acusadas de "transformar numa arma" os fluxos migratórios na fronteira polaca para desestabilizar a Europa. O presidente recentemente reeleito da Turquia, Erdoğan, tentou repetidamente usar o controlo da migração como moeda de troca nos assuntos internacionais.

Num certo sentido, isto fornece às potências europeias uma desculpa para uma inação letal; a miséria na fronteira pode simplesmente ser atribuída a um ator não pertencente à UE (e esta é, de facto, a imagem mais ampla que a política de externalização dá). No entanto, num sentido mais lato, as circunstâncias em que potências rivais ou mais pequenas podem forçar as suas agendas na cena global, manipulando a paranoia europeia sobre fluxos migratórios (mais uma vez, em termos gerais, bastante pequenos), dificilmente são saudáveis para os Estados da UE.

No entanto, o problema não está apenas nas consequências negativas da abordagem atual, mas também nas oportunidades perdidas de uma abordagem diferente. Um mundo em que o principal incentivo por detrás da ação europeia fosse a prevenção do colapso climático - e não impedir as pessoas necessitadas de se deslocarem - permitiria um conjunto diferente e mais construtivo de relações interestatais.

Há incentivos que trabalham contra uma mudança de abordagem. O mais óbvio é que grande parte da direita europeia, tendo presidido a manifestos fracassos internos, não conseguiria ganhar eleições sem alimentar o medo e a paranóia em relação a um alvo externo. Mas não é a extrema-direita que controla efetivamente as lucrativas engrenagens da política internacional europeia. A formação em controlo de fronteiras que a polícia alemã, as empresas privadas de armamento e as agências de desenvolvimento estatal forneceram às forças de segurança sauditas (que têm um historial de disparar sobre pessoas na fronteira) é reveladora da profunda teia de relações envolvidas. A indústria mundial das fronteiras e da vigilância está totalmente enredada nos altos comandos da Europa, e sê-lo-á cada vez mais à medida que o exército fronteiriço europeu Frontex se for expandindo.

Entretanto, como a Friends of the Earth demonstrou, existe um ciclo de feedback de pessoal e agendas entre as indústrias de segurança, degradação da terra e combustíveis fósseis. Na atual crise energética, as grandes companhias petrolíferas voltam a ter os olhos postos no Norte de África - apesar da relação bem documentada entre a extração de combustíveis fósseis, a desestabilização da região e a caótica agenda de política externa da antiga potência colonial França. Muitos interesses empresariais e políticos poderosos beneficiam de uma Europa que se concentra incessantemente num desafio estratégico inventado que lhes permite ganhar dinheiro (o controlo da migração) em detrimento de um desafio real e mortal (as alterações climáticas) cuja resolução poderia ameaçar esses lucros (literais e metafóricos).

O DILEMA DOS PRÓS-EUROPEUS

A Europa tem estado bloqueada numa luta de quase uma década entre os neoliberais mais pró-UE e os direitistas mais críticos, regenerados na era Trump de insurgências conservadoras. A esquerda tem falhado largamente em penetrar e ultrapassar esta divisão. A abordagem da direita é fácil de entender: misturar a paranoia racializada sobre a migração com queixas genuínas sobre a forma como as autoridades da UE trataram os cidadãos mais pobres do próprio bloco, a fim de construir um bloco nacionalista.

É um pouco mais difícil de compreender por que razão tantos europeístas liberais de Bruxelas aderiram a uma estratégia que corre o risco de minar fatalmente o seu projeto. Talvez estejam verdadeiramente empenhados, por razões ideológicas, em vastos controlos fronteiriços externalizados e não discordem fundamentalmente da direita. Talvez sigam a opinião de um antigo conselheiro de Donald Tusk de que flanquear a direita e tranquilizar os eleitores conservadores é a única forma de travar a ascensão da direita. Talvez sejam simplesmente bastante vulneráveis aos lóbis e ao pensamento de grupo. Seja como for, a sua falta de vontade de impedir que a extrema-direita faça da migração a principal questão do dia na Europa ameaça o seu projeto global de uma Europa poderosa como polo independente num mundo multipolar.

Pode discutir-se se isto é desejável, e é certo que a ausência de uma posição comum clara da esquerda sobre o projeto europeu a tem prejudicado um pouco. Mas, independentemente disso, as ambições dos europeístas já estão em terreno instável.

O regresso pós-guerra da Ucrânia às rivalidades internacionais militarizadas deslocou a centralidade da Alemanha na Europa, ao mesmo tempo que mudou as mentalidades de alto nível das estruturas lideradas pela NATO da era da Guerra Fria, aumentando a influência dos EUA. Embora os europeístas no Reino Unido gostem de pintar o Brexit como o colapso de qualquer vestígio da influência global britânica, a Grã-Bretanha pós-Brexit está a conduzir uma diplomacia eficaz na Europa através do seu hawkishness na Ucrânia, que sem dúvida se estenderá à esfera não militar. Mesmo no que diz respeito à migração, o muito apregoado (e preocupante) novo pacto de asilo da UE pouco faz para resolver as questões subjacentes que levaram ao longo debate sobre a sua adoção, ou a fratura existente entre o centro e a periferia da Europa, que uma parte da direita continua a explorar.

Para a extrema-direita europeia, o enfraquecimento da ação climática é paralela ao reforço do controlo da migração no topo da agenda. Nos últimos meses, uma aliança de direita liderada pela Itália de Meloni, mas que representa países de todos os cantos da UE, tem procurado resgatar Bruxelas em relação à migração e obter novos financiamentos para o controlo das fronteiras, com alguns sucessos importantes.

Embora Von der Leyen possa ter sido a arquiteta da expansão das fronteiras europeias, essas mesmas forças, entre as quais o também conservador alemão e líder do Partido Popular Europeu, Manfred Weber, deixaram-na a lutar pelo seu futuro. A ameaça à sua oportunidade de um segundo mandato é tal que Washington parece ter tentado lançar-lhe uma tábua de salvação, oferecendo-se para a apoiar como secretária-geral da NATO. A lição que muitos no centro tiraram das manobras eficazes da direita em relação à migração desde 2015 - que a capitulação repetida era a única resposta - apenas reforçou a posição da direita, e não apenas em relação à migração.

O alvo dos opositores de Von der Leyen é o extenso Pacto Ecológico Europeu e as ações no domínio do clima e da natureza em geral. Grande parte da direita europeia é cética em relação ao clima ou mesmo negacionista. Usando uma linguagem típica da direita, Meloni referiu-se à atual vaga de calor como mau tempo imprevisível, sem ter em conta que era totalmente previsível. Parte da sua raiva deve-se à ambição e ao sucesso das medidas climáticas da UE, como a proibição de novos carros a gasolina e a gasóleo ou a introdução da primeira tarifa de carbono do mundo. Embora a Europa continue a basear-se em soluções de mercado altamente questionáveis para as emissões, as normas que as integram foram, pelo menos, reforçadas.

Mas o contra-ataque também tem sido eficaz. O grupo de Weber infligiu fortes danos à recente lei de restauração da natureza (que acabou por ser aprovada por uma maioria pouco expressiva). O agronegócio desempenhou um papel neste ataque, enquanto os lobistas dos combustíveis fósseis têm estado constantemente na ofensiva. As medidas para reduzir o uso de pesticidas e o "greenwashing" também foram alvo de críticas. Os críticos questionaram se a UE tem acesso ao financiamento necessário para concretizar as suas ambições.

Em suma, alcançar os objetivos climáticos atuais - e expandi-los ou exercer pressão sobre outras potências - exige uma atenção política implacável que não existe atualmente.

O PIVÔ

A imagem que a UE tem de si própria é muito diferente da sua realidade. Os europeístas falam da política que desejam em termos de valores liberais enraizados numa herança de pacificação e cooperação do pós-guerra. Na prática, a UE atua para impor coletes-de-forças fiscais, limites cruéis à circulação de pessoas e - mais recentemente - incubar um militarismo ressurgente, embora ainda dependente do patrocínio dos Estados Unidos. A sua política é fraturada e fragmentada, tanto dentro como entre grupos partidários e Estados-membros.

Mas o único caminho para se sair do atual atoleiro dos europeístas é a realização da sua própria autoimagem - não capitular, mas assumir um enfoque histórico único na resolução do maior desafio que existe. A Europa já tem um discurso climático menos nocivo do que os Estados Unidos. Existe um apoio generalizado à descarbonização e há um historial de realizações no domínio do clima; os atuais choques climáticos são um argumento claro e visceral para a urgência de se fortalecer esta abordagem.

Atualmente, o negacionismo é em grande parte marginal e, embora o greenwashing e as falsas soluções o possam ter substituído em teoria, a maior parte da política europeia está empenhada numa transição. A liderança europeia tem muito em que se basear: precisa apenas de ter a coragem política de afirmar que a abordagem das alterações climáticas e das suas consequências é a prioridade acima de tudo e de pôr efetivamente em prática essa afirmação. Isto significa uma grande viragem da migração para o clima, com tudo o que essa viragem simboliza - do nacionalismo para o internacionalismo, da competição para a cooperação, e que não seja conduzido por interesses instalados que a tenta condicionar.

Comparar a migração com o clima pode parecer arbitrário. Mas a política é muitas vezes um jogo de soma zero. E à medida que o tempo é consumido pelo interminável debate sobre a migração, sempre conduzido em termos que dão poder à direita, a atenção é afastada da diplomacia climática. A UE tem sido um importante líder global (em comparação com a escassa concorrência) em matéria de objetivos climáticos, mas esses resultados não são seguros e há muito, muito mais que pode ser feito.

Esta questão tornou-se evidente por causa de uma emergência mundial sem precedentes. Esta não é, de longe, a primeira chamada de atenção que recebemos, mas é talvez a mais dramática. Três décadas de ações climáticas extremamente insuficientes resultaram em emissões que poderiam ter sido evitadas. Os gigantes dos combustíveis fósseis e os seus aliados trabalharam arduamente para aumentar a procura e a oferta de combustíveis fósseis e encontrar soluções que evitassem a necessidade de uma verdadeira mudança, enquanto a política se concentrou em quimeras.

No dia em que foram publicados novos dados que dizem que julho foi o mês mais quente de que há registo - potencialmente o mais quente dos últimos 120 mil anos - a Shell e a Total anunciaram os lucros do segundo trimestre (com relatórios da Chevron, ExxonMobil e BP a chegarem nos dias seguintes). Mudar de rumo é uma oportunidade para recuperar um rumo numa política que muitas vezes parece não o ter. Não se pode permitir que os acontecimentos deste ano se desvaneçam antes de o ciclo eleitoral recomeçar no próximo ano.

Esta é uma tarefa urgente para os governos de todo o mundo. Na Europa, significa construir uma conceção de solidariedade maior que a própria UE, uma conceção que não lide com África erguendo muros. Em vez disso, deve ver ambos os continentes como parte de uma região partilhada, ligada e não separada pela água, com a sua história recente de derramamento de sangue colonial contrastada por uma história mais longa de interdependência.

Na prática, isto significa tanto uma rápida descarbonização dos países mais ricos como o financiamento de uma transição justa naqueles que não a podem suportar. Significa aplicar os recursos finitos do capital político e da pressão diplomática contra os gigantes do carbono e não contra as pessoas que procuram segurança. Significa usar a transição verde para alcançar a justiça económica e não para simplesmente alargar as relações neocoloniais. Significa um esforço concertado, desde a costa inglesa até às ilhas gregas e ao Sara, para criar defesas contra inundações e secas e medidas de socorro de emergência. Isto no âmbito de instituições euro-mediterrânicas dotadas de recursos suficientes que possam coordenar tanto a resposta a incidentes como o planeamento a longo prazo.

Esta ação a mais longo prazo inclui a salvaguarda dos abastecimentos alimentares e dos recursos de que as pessoas dependem. Inclui também repensar a nossa atitude em relação à migração, apoiando tanto o direito a ficar como o direito a deslocar-se. A maioria das pessoas não quererá abandonar as suas casas, muito menos os seus países, mas a Europa pode canalizar a melhor parte do seu património - a sua contribuição para o desenvolvimento da Convenção relativa aos Refugiados no caos que se seguiu à II Guerra Mundial - para responder às necessidades daqueles que o fazem.

Nada disto é simples. Exigirá um equilíbrio delicado entre paciência e urgência; entre a resolução de problemas complexos e a sua simplificação; e entre a diplomacia e o empenhamento obstinados em todas as tradições políticas. É um processo para comunidades, campanhas e movimentos de base, tanto quanto para políticos e grandes instituições. Mas o momento atual não exige menos do que isso. Este verão de incêndios e inundações pode pressagiar novas catástrofes, escassez de alimentos e ameaças à vida e aos meios de subsistência. Ou pode marcar o momento em que mudámos de rumo.

Colaborador

Nathan Akehurst é um escritor e ativista que trabalha com comunicação e defesa política.

Os países do sul global precisam de uma nova estrutura legal para o alívio da dívida

Os países do Sul Global atualmente buscam alívio da dívida em fóruns como o FMI e o G20, onde os interesses das nações ricas dominam a conversa. As economias de baixa renda precisam de um fórum onde possam colaborar para resolver problemas urgentes, em vez de implorar por ajuda.

Ramya Vijaya e Pooja Rangaprasad

Jacobin

A ministra indiana das finanças, Nirmala Sitharaman (L), com o governador do Reserve Bank of India Shaktikanta Das, fala na coletiva de imprensa do G20 durante as reuniões de primavera do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial em Washington, DC, em 13 de abril de 2023. (Mandel Ngan / AFP via Getty Images)

A Cúpula de Paris, convocada no mês passado pelo presidente francês Emmanuel Macron, não conseguiu avançar muito em sua ambiciosa meta de reorganizar as finanças globais e impulsionar os investimentos climáticos. Um grande obstáculo é a falta de progresso no alívio para quase 60% das economias de baixa renda que se estima estarem próximas dos níveis de sobreendividamento. Sem a reestruturação da dívida, novos investimentos em mitigação climática em locais de maior risco permanecerão impossíveis.

Esta não é a primeira vez que grandes declarações de alívio da dívida e reforma financeira falharam em atender às expectativas. Uma muito elogiada mesa redonda sobre dívida soberana global iniciada pelo G20 e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) no início do ano já se reuniu três vezes sem progresso notável. Não é de admirar: esses fóruns são dominados por países credores. Seus interesses, e os interesses dos credores privados principalmente nesses países, inevitavelmente se concentram em garantir o pagamento dos empréstimos, preservando as margens de lucro. As desigualdades estruturais que criam margens tão grandes e tornam o pagamento da dívida tão oneroso inevitavelmente ficam em segundo plano.

Em essência, os países credores estão mantendo reféns seus homólogos endividados, e os fóruns que supostamente existem para corrigir essa situação são funcionalmente inúteis. Qualquer esforço realista para reequipar as finanças globais só pode ocorrer em um fórum legal global representativo, onde todos os países possam buscar negociações transparentes e justas. Criar esse fórum será uma tarefa enorme. Mas, como a iminente catástrofe climática deixa claro, ela também é necessária e urgente.

A vantagem do credor

As economias em desenvolvimento há muito defendem a necessidade de uma estrutura legal multilateral nas Nações Unidas, onde tenham mais representação e possam fazer um esforço coordenado para reestruturar os pesados ​​ônus da dívida.

Em fóruns como a Cúpula de Paris ou mesmo o G20, tal coordenação é impossível, uma vez que os convites para eles são opacos e ad hoc, e os países devedores são obrigados a defender seus casos de reestruturação um de cada vez sem alavancagem coletiva. Mas apenas agindo em conjunto os países devedores podem mudar a negiacação de uma em que países individuais imploram por prorrogações de empréstimos para outra focada no desequilíbrio na disponibilidade de financiamento para investimentos vitais.

Esse desequilíbrio é grave. Por exemplo, no início da pandemia, as economias desenvolvidas aproveitaram as taxas de juros historicamente baixas para expandir seus empréstimos e apoiar suas economias atingidas pela pandemia. Esses empréstimos e gastos nas economias avançadas superaram em muito os das economias desenvolvidas. Os países em desenvolvimento foram excluídos de tais financiamentos a juros baixos durante a pandemia e também em períodos sem crise.

As agências multilaterais deveriam ajudar nos esforços de desenvolvimento com empréstimos concessionais. Mas eles não fizeram seu trabalho, e declínios de longo prazo nesses empréstimos levaram mais países a depender de investidores privados, emitindo títulos soberanos internacionais. Enquanto isso, os investidores privados conseguiram exigir prêmios muito mais altos para transferir fundos para economias em desenvolvimento devido a suas classificações de crédito mais baixas. As agências de classificação de crédito baseadas principalmente nos Estados Unidos e na Europa tendem a avaliar economias em desenvolvimento muito mais baixas e são rápidas em rebaixá-las desproporcionalmente, como aconteceu durante a crise do COVID. Isso só aumenta ainda mais os custos dos empréstimos para eles.

Da mesma forma, as economias avançadas se beneficiam automaticamente da vantagem da moeda de reserva. As moedas de reserva são aquelas usadas para transações internacionais. O dólar é a principal moeda de reserva, seguido pelo euro e algumas outras moedas de economia avançada. Os investidores naturalmente favorecem investimentos em economias de moeda de reserva, o que deixa as economias de baixa renda para trás.

O reinado do FMI

Os costumes e as tecnologias que fortalecem estruturalmente os países credores fazem parte de um sistema financeiro global distorcido que foi estabelecido após a Segunda Guerra Mundial, na histórica conferência de Bretton Woods em 1944.

Essa conferência, que também foi dominada por interesses americanos e europeus, debateu algumas propostas diferentes para facilitar uma nova era de trocas monetárias globais. O economista britânico John Maynard Keynes temia que a vantagem da moeda de reserva pudesse concentrar os investimentos em alguns países. Ele, portanto, propôs a criação de uma unidade monetária neutra para o comércio global e uma União de Compensação Internacional (ICU) para supervisionar todas as transações globais. Na proposta de Keynes, o ICU imporia uma penalidade aos países que acumulassem superávit excessivo na unidade monetária internacional. Isso forneceria um incentivo para investir o superávit em outros países não superavitários, limitando a extorsão de prêmios que as economias em desenvolvimento agora sofrem de investidores privados.

A conferência de Bretton Woods, no entanto, anulou Keynes e abriu caminho para o dólar como moeda de reserva. Também estabeleceu agências multilaterais como o FMI para fornecer assistência a países que enfrentam instabilidade financeira. Mas, ao contrário da UCI proposta, o FMI não tem mandato para supervisionar todas as transações globais. Ele teve muito pouca capacidade de influenciar os credores privados a reduzir os prêmios e realmente reestruturar a dívida. Um acordo de dívida muito elogiado para a Zâmbia, o primeiro país a deixar de pagar os empréstimos na era pós-COVID, foi coordenado pelo FMI recentemente. O acordo não só levou dois anos para ser negociado, como também não é vinculativo nem mesmo para os credores privados. Limita-se a adiar o reembolso de empréstimos oficiais de outros países, levantando dúvidas sobre a sua eficácia.

O FMI também não demonstrou interesse em promover um ambiente de classificação de crédito mais justo que possibilitaria aos países o acesso a financiamento para necessidades vitais de desenvolvimento. A própria estrutura de sustentabilidade da dívida do FMI apenas avalia a capacidade de pagamento enquanto se concentra na consolidação fiscal ou na capacidade dos governos de limitar seus gastos. É frequentemente criticado por aplicar programas de austeridade para melhorar a capacidade de pagamento sem fazer distinção entre gastos necessários e gastos desnecessários. A estrutura de governança do FMI, onde os Estados Unidos e as nações da UE têm as maiores quotas de votação, também oferece espaço limitado para os países em desenvolvimento fazerem um caso coordenado de financiamento para metas de desenvolvimento sustentável.

Em 2015, a ONU forneceu princípios básicos para um fórum global mais inclusivo para negociações da dívida que vincularia claramente a reestruturação da dívida aos indicadores de direitos humanos e acomodaria gastos essenciais para sustentar os parâmetros básicos de proteção social. As discussões sobre dívidas que não estão ligadas à proteção social são uma falha de longa data. A pandemia deixou clara a necessidade global de investimentos sustentados em infraestrutura de saúde e serviços humanos. O projeto de metas de desenvolvimento sustentável da ONU também enfatizou investimentos globais críticos para eliminar a pobreza extrema e enfrentar as mudanças climáticas.

Um quadro jurídico multilateral mais representativo que possa vincular a reestruturação da dívida aos parâmetros de referência da proteção social é, portanto, a necessidade do momento. Tal estrutura legal também consagraria princípios sobre empréstimos e empréstimos responsáveis, encorajando tanto os países credores quanto os devedores a serem mais disciplinados no financiamento soberano. O foco contínuo em esforços não representativos, como a Cúpula de Paris, só levará a resultados mais decepcionantes. É hora de os países do Sul Global se posicionarem coletivamente contra a própria estrutura de tais fóruns.

Colaboradores

Ramya Vijaya é professora de economia e estudos globais na Stockton University.

Pooja Rangaprasad é o diretor de política de financiamento para o desenvolvimento da Society for International Development.

30 de julho de 2023

Antonio Labriola sabia que o marxismo era uma filosofia da ação

Antonio Labriola desempenhou um papel importante no desenvolvimento do marxismo italiano e inspirou o pensamento de Antonio Gramsci. Labriola sabia que o capitalismo não entraria em colapso por conta própria: somente uma cultura socialista de ativismo poderia criar uma nova sociedade.

Roberto Dainotto


Retrato de Antonio Labriola. (DEA PICTURE LIBRARY / De Agostini Editorial / Getty Images)

O filósofo italiano Antonio Labriola foi uma das figuras-chave no desenvolvimento do marxismo como teoria durante o período após a morte de Karl Marx. Rompendo com o determinismo econômico da Segunda Internacional, Labriola se opôs à redução do marxismo ao que chamou de "uma nova escolástica".

Ao reconsiderar a relação entre base e superestrutura na teoria marxista - rejeitando a ideia de que a primeira determina a última de maneira mecânica - ele desafiou uma compreensão fatalista do marxismo que estava se tornando cada vez mais prevalente entre seus defensores e críticos. Para Labriola, uma crise econômica como a que devastou o sistema bancário da Itália na década de 1890 não poderia, por si só, levar ao colapso do capitalismo.

Por outro lado, Labriola insistia que não poderíamos reduzir o marxismo a uma forma de voluntarismo, pela qual as aspirações ideais de uma classe poderiam inaugurar um novo mundo por pura força de vontade. Para Labriola, a tarefa de alcançar o comunismo significava combinar o trabalho árduo de analisar a totalidade de "todas as condições factuais presentes" com o de "revolucionar cérebros, organizar proletários".

Tendo conquistado a admiração de importantes pensadores marxistas como Karl Kautsky, Georgii Plekhanov e Vladimir Lenin, Labriola caiu em relativa obscuridade após sua morte. Sua abordagem distinta do marxismo merece ser recuperada em nosso tempo, pois descobrimos mais uma vez que um sistema capitalista em crise não entrará em colapso por conta própria. Somente o esforço consciente e o desenvolvimento do que Labriola chamou de "cultura socialista" conseguirão isso.

Filósofo da práxis

Antonio Gramsci tomou emprestado de Labriola a concepção do marxismo como uma "filosofia da práxis". Em seus escritos na prisão, ele lamentou que Labriola agora fosse "muito pouco conhecido fora de um círculo restrito", apenas três décadas após sua morte. Gramsci esperava "colocá-lo de volta em circulação" como uma figura que poderia desafiar uma "dupla revisão" do marxismo:

Por um lado, alguns de seus elementos foram absorvidos por correntes idealistas (Croce, Sorel, Bergson, etc., os pragmáticos, etc.); de outro, os "marxistas oficiais", buscando uma "filosofia" que contivesse o marxismo, encontraram-na nas modernas derivações do materialismo filosófico vulgar. Labriola se distingue de ambos com sua afirmação de que o marxismo é em si uma filosofia independente e original. O trabalho precisa ser feito nessa direção, continuando e desenvolvendo a posição da Labriola.

A compreensão de Labriola do marxismo como "independente" tanto do idealismo quanto do materialismo foi o resultado de seu conhecimento sistemático de ambas as tradições filosóficas. Ele nasceu em 1843 na cidade provincial de Cassino, no sul, filho de um professor. Sua educação começou na Universidade de Nápoles em 1861. Como ele escreveu mais tarde a Friedrich Engels, houve "um renascimento do hegelianismo" em Nápoles naquele ano.

O mentor de Labriola, Bertrando Spaventa, havia sido exilado da cidade em 1849, quando a polícia o pegou "falando 'hegeliano', uma língua mais difícil que o basco", e aparentemente bastante ameaçador para a ordem constituída. Nápoles, naqueles dias, era capital do Reino das Duas Sicílias sob o controle dos Bourbons espanhóis. Em seu desejo de libertar toda a Itália da dominação estrangeira, Spaventa encontrou na obra de Hegel uma filosofia da história na qual o ideal "se manifesta e se realiza como liberdade, e todos os trabalhos da história tendem para esse resultado". No sistema hegeliano, ele havia descoberto "a racionalidade da revolução", como ele disse, para a independência nacional.

Com a conclusão bem-sucedida das Guerras de Independência da Itália em 1861, Spaventa voltou a Nápoles bem a tempo para a matrícula de Labriola, onde poderia mais uma vez dar suas aulas sobre Hegel. Isso envolvia falar com seus alunos sobre uma revolução em desenvolvimento que estava "prestes a destruir todas as desigualdades sociais" na esteira da unificação nacional, de modo que "não haverá mais nobres e plebeus, nem burgueses e proletários, mas apenas o Homem".

Rumo ao marxismo

Embora Labriola sempre se orgulhasse do que chamava de "minha rigorosa educação hegeliana", seu entusiasmo pela revolução nacional de Spaventa durou pouco. Um emprego de escriturário no quartel-general da polícia napolitana, que ele precisava para sustentar seus estudos, mas detestava intensamente, o havia confrontado com a situação das classes populares do país.

A experiência de suas vidas estava muito atrás das promessas da nação italiana independente e do "Estado ético" de Hegel, entendido pela geração de Spaventa como a Aufhebung (transcendência) das desigualdades sociais. A situação era especialmente terrível no Sul, que já estava preso na ansiedade duradoura da pós-unificação da Itália, que tomou o nome de "a Questão do Sul".

Labriola começou a apoiar posições cada vez mais radicais: restrições à propriedade privada; intervenção do Estado na economia; extensão dos direitos de voto; assistência estatal aos pobres e deficientes; apoio a greves e reivindicações sindicais; escolarização popular. Como professor de filosofia moral em Roma desde 1874, ministrou aulas sobre a Revolução Francesa abertas ao público em geral. Isso provocou protestos de organizações estudantis de direita e do conselho acadêmico.

Nesse ínterim, embora nunca desistindo do conceito hegeliano de devir histórico como um processo de antíteses, a atenção de Labriola se voltou para posições filosóficas materialistas. Ele extraiu de Ludwig Feuerbach, Johann Fichte e Baruch Spinoza uma filosofia capaz de interpretar os conflitos materiais e as contradições da realidade social.

Foi somente em Marx, no entanto, que Labriola encontrou uma teoria que superaria as limitações da "filosofia por si mesma" - filosofia que se limita a "interpretar o mundo", como diriam as Teses de Marx sobre Feuerbach, em vez de mudar esse mundo através da unidade de pensamento e práxis. A "conversão" de Labriola ao socialismo começou, ou assim ele escreveu a Engels, "entre 1879 e 1880". Em meados da década de 1880, ele era um colaborador regular de periódicos socialistas nacionais e internacionais, do alemão Leipziger Volkszeitung ao britânico Labour Elector.

Quando o filósofo tcheco Thomas Masaryk declarou a existência de uma "crise dentro do marxismo" em 1898, Labriola tornou-se uma voz alta nos debates que se seguiram, especialmente ao responder aos argumentos de Eduard Bernstein. Em uma série de artigos publicados em forma de livro como Problems of Socialism, Bernstein sentiu a necessidade de "revisar" as previsões marxistas sobre o iminente e inevitável fim do sistema capitalista. Como o capitalismo não estava prestes a desaparecer, argumentou ele, o socialismo deveria propor políticas reformistas em vez de revolucionárias.

Firme em sua convicção de que "o comunismo crítico nunca moralizou, previu [ou] anunciou", Labriola usou sua autoridade para reafirmar a valência revolucionária do marxismo contra "aquele idiota do Bernstein", como o chamava. Em 1892, ele estava entre os promotores do primeiro Partido Socialista Italiano.

Cultura socialista

A relação de Labriola com o novo partido sempre foi crítica: ele certa vez observou que "um partido de críticos, que é o que o partido socialista deveria ser, prospera na crítica e na autocrítica". Tal crítica atingiu o clímax em 1894 durante as insurreições do Fasci Siciliani, as ligas dos trabalhadores camponeses de inspiração socialista.

Em vez de apoiar esses movimentos, o partido concluiu que as condições não estavam maduras para uma revolta e que os camponeses não eram proletários industriais, afinal. Mas onde poderiam ser encontrados trabalhadores industriais na economia predominantemente agrária da Itália da época?

Como os hegelianos napolitanos da década de 1860, argumentou Labriola, os líderes socialistas projetavam suas expectativas idealistas em movimentos reais "como se não estivessem em Nápoles, mas em Berlim". Durante a dura repressão policial decretada pelo governo de Francesco Crispi, Labriola teve dificuldade em conter sua ira: "O partido não quer saber; espera por aquele momento transcendental futuro em que a massa reacionária enfrentará a massa proletária e então bang!"

Para Labriola, esse episódio teve muitas implicações teóricas. Em primeiro lugar, mostrou que o socialismo na Itália tinha que levar em conta a realidade da Questão do Sul e aprender com o Fasci a importância de conseguir uma coordenação estratégica entre a cidade e o campo. Em segundo lugar, não se poderia reduzir o socialismo a uma concepção fatalista da história que significasse esperar por um súbito cataclismo.

Por último, mas não menos importante, era necessário reconsiderar profundamente a relação entre os trabalhadores e o partido - e, por extensão, entre as massas e os intelectuais, ou entre teoria e práxis. Segundo Labriola, o partido não possuía um "catecismo do comunismo" que os trabalhadores deveriam seguir. Em vez disso, eram as próprias massas trabalhadoras que informariam os programas do partido "mudando os modos e cronogramas de ação".

Embora ele nunca tenha abraçado uma visão "espontaneista" da consciência proletária, Labriola insistiu que os intelectuais do partido não poderiam introduzir a ideologia socialista para a classe trabalhadora de fora. Em vez disso, eles deveriam desempenhar o papel de mediadores entre a espontaneidade e a realização do comunismo: "Entre os fenômenos espontâneos e a consciência desenvolvida da revolução proletária existe um elo perdido, que é precisamente a cultura socialista". Labriola dedicou seus três ensaios mais importantes ao desenvolvimento de tal cultura.

A letra e o espírito

Escrito como um prefácio para a tradução italiana de 1895 do Manifesto Comunista, seu ensaio "Em Memória do Manifesto Comunista" defendia a centralidade da cultura socialista. Se o Manifesto era, como observou Labriola, "o trabalho pessoal de Marx e Engels", o próprio movimento comunista era o verdadeiro "autor de uma forma social" que o Manifesto representava. O livro "tem o proletariado como tema".

O Manifesto, "pequeno em tamanho e em estilo tão alheio à insinuação retórica de uma fé ou crença", havia dado substância teórica à "ação política que os comunistas alemães desvendaram no período revolucionário de 1848-50". Por isso mesmo, enfatizou Labriola, seus argumentos-chave "não constituem mais para nós um conjunto de visões práticas" — "apenas registram como uma questão histórica algo que não é mais necessário pensar, já que temos que lidar com a ação política do proletariado que hoje está diante de nós".

Essa não era a maneira de Labriola descartar o Manifesto como um tanto ultrapassado. Pelo contrário, ele a via como a melhor forma de permanecer fiel à sua "medula". Afinal, nem Marx nem Engels "pretendiam dar o código do socialismo, o catecismo do comunismo crítico ou o manual da revolução proletária". A intenção deles era, depois das fantasias do socialismo utópico, dar à luz o "comunismo crítico - este é o seu verdadeiro nome". O Manifesto era "crítico" no sentido de que deveríamos reconhecer suas formulações como provisórias e abertas à ação real do movimento operário, interpretando-o à luz das circunstâncias mutáveis.

Lenin contemplou uma tradução russa deste "trabalho seriamente interessante" no Manifesto, e sua irmã Anne o faria em 1908. Enquanto isso, Labriola estava trabalhando em seu segundo ensaio, "Do Materialismo Histórico: Uma Explicação Preliminar" (1896). Mais uma vez, encontramos aqui a ideia de que o comunismo crítico não é "a visão intelectual de um grande plano ou projeto", mas sim "a teoria objetiva das revoluções sociais". Segundo Labriola, sua teoria é "um plágio das coisas que explica".

No entanto, tal "plágio" não implicava um mero empirismo descritivo ou uma visão contemplativa da realidade. Para esclarecer esse ponto, Labriola abordou o problema da base e da superestrutura:

Para nossa doutrina, o problema não é retraduzir em categorias econômicas todas as complicadas manifestações da história. Trata-se de explicar em última instância (Engels) cada fato histórico por meio da estrutura econômica subjacente (Marx): para isso, é preciso análise, redução e depois mediação e composição.

Isso significava que, dentro da totalidade das relações sociais, a interdependência da base e da superestrutura se desenrola por meio de processos históricos de mediações:

Não há fato histórico que não repita sua origem nas condições da estrutura econômica subjacente; mas não há fato histórico que não seja precedido, acompanhado e seguido por certas formas de consciência.

Podemos recordar aqui uma famosa observação que Marx fez sobre a natureza distintiva do trabalho humano: "O que distingue o pior arquiteto da melhor das abelhas é que o arquiteto cria sua estrutura na imaginação antes de construí-la na realidade". O fato econômico subjacente do trabalho humano e material é sempre inseparável de certas formas de consciência.

Para Labriola, isso significava em termos práticos que teoria sem ação política não passa de especulação ociosa, enquanto ação política sem teoria é apenas o mito da "anarquia espontânea", que sempre corre o risco de transformar grupos rebeldes em "instrumentos automáticos de reação".

O terceiro ensaio de Labriola veio na forma de cartas a Georges Sorel, reunidas sob o título "Discussing Socialism and Philosophy" (1898). Ele conceituou a inter-relação entre teoria e ação em uma fórmula como "a filosofia da práxis", que ele descreve como "a essência do materialismo histórico... a filosofia imanente às coisas sobre as quais filosofa".

A fórmula teve alguns antecedentes na esquerda hegeliana (August von Cieszkowski, Moses Hess), mas Labriola a quis dizer de maneira original. Nem idealismo nem materialismo, nem positivismo nem economicismo, a filosofia da práxis é uma "Lebens-und-Weltanschauung" total, ou "concepção geral da vida e do mundo". É a análise "autocrítica" das mediações históricas que ao mesmo tempo explica e se esforça para transformar a totalidade das relações sociais.

Como tal, articula-se em três domínios:

(a) a esfera da filosofia, como teoria geral da história e práxis do homem em sociedade; (b) a esfera da crítica da economia, como a ciência daquela etapa histórica particular constituída pela sociedade organizada sobre o capital; (c) a esfera da política, como a teoria da organização do movimento operário voltada para a construção do socialismo.

O legado de Labriola

Tendo sido uma presença tão importante e iminente na vida do marxismo italiano e internacional na virada do século XIX, o nome de Labriola quase não é reconhecido hoje. Muitas vezes é confundido com o político socialista Arturo Labriola, de quem tinha uma visão desdenhosa: "não tem nada a ver comigo e nem consegue entender os livros em que escreve bobagens".

Uma das causas do esquecimento de Labriola não foi outra senão seu aluno mais famoso, o filósofo Benedetto Croce - ou "la mia croce", minha punição, como Labriola o chamou. Quando Labriola morreu em 12 de fevereiro de 1904, o Partido Socialista, mantendo-se firme em seu curso revisionista, fez o possível para esquecer seu nome. "Retomaremos os seus escritos nos momentos de ócio que a vida militante permite", concluiu o elogio fúnebre do líder partidário Filippo Turati.

O liberal Croce, por outro lado, estava ansioso para retornar aos escritos de Labriola agora que o autor não podia mais responder. Em seu trabalho Historical Materialism and Marxist Economy, Croce apresentou Labriola como oferecendo "o tratamento mais completo e profundo" do marxismo, antes de continuar argumentando que ele falhou em fornecer ao comunismo uma filosofia coerente. Com Labriola, o marxismo estava "morto", de acordo com Croce - um julgamento que ele pronunciou no papel de "papa secular" da filosofia italiana, como Gramsci o apelidou.

Quando o Partido Comunista Italiano começou a reconstruir uma cultura marxista das ruínas do fascismo no final da década de 1940, ele alegou estar voltando não para Labriola, mas para o "anti-Croce" de Gramsci. É verdade que Gramsci havia de fato "colocado de volta em circulação" alguns dos conceitos de Labriola, desde a necessidade de uma frente unida entre cidade e campo em seus escritos sobre a Questão do Sul, até a ideia do marxismo como uma "filosofia da práxis" e a dialética do "comunismo crítico" como um processo de verificação e falsificação contínua entre teoria e ação.

Atrás desses indicadores, no entanto, o nome de Labriola permaneceu por muito tempo inédito, não sentido, invisível. É apenas no século XXI que o pensamento de Labriola começou a ressurgir, culminando na prestigiosa Edição Nacional de suas obras que está em andamento na Itália.

Enquanto o capitalismo continua escapando dos desastres autoinfligidos das crises financeiras e da exploração sem precedentes de recursos, tanto humanos quanto naturais, o trabalho de um eminente marxista do século XIX parece oportuno. Esse trabalho ainda pode dar uma valiosa contribuição para esclarecer a direção que a teoria, como o "plágio das coisas", deve seguir na organização de um movimento voltado para a construção do socialismo.

Colaborador

Roberto Dainotto é professor de literatura na Duke University. Ele está atualmente trabalhando em uma biografia intelectual de Antonio Labriola.

A longa estagnação do Japão é um estudo de caso para o futuro do capitalismo ocidental

As principais economias capitalistas da Europa e da América do Norte têm apresentado baixas taxas de crescimento econômico e crescimento populacional. O Japão está nessa posição desde a década de 1990, e sua experiência oferece algumas pistas importantes sobre o que o futuro reserva.

Uma entrevista com 
Kristin Surak

Jacobin

O então recém-eleito presidente do Partido Liberal Democrático, Shinzo Abe (segundo da esquerda), cumprimenta seu antecessor e outros candidatos durante uma reunião eleitoral presidencial em Tóquio, Japão, em 20 de setembro de 2006. (Tatsuyuki Tayama / Gamma-Rapho via Getty Images)

Entrevistado por
Daniel Finn

Durante a década de 1980, o Japão parecia que poderia ultrapassar os Estados Unidos para se tornar a maior economia do mundo. Muito antes de voltar sua atenção para a China, Donald Trump pediu que os Estados Unidos se envolvessem em uma guerra comercial com seu adversário japonês.

No entanto, desde que uma bolha imobiliária estourou no início dos anos 90, o Japão se tornou sinônimo de estagnação econômica. Isso não impediu o governante Partido Liberal Democrático (LDP) de manter seu status de partido político mais bem-sucedido no rico mundo capitalista.

Kristin Surak ensina sociologia na London School of Economics. Ela é autora de Making Tea, Making Japan: Cultural Nationalism in Practice e The Golden Passport: Global Mobility for Millionaires. Esta é uma transcrição editada do podcast Long Reads da Jacobin. Você pode escutar a entrevista aqui.

Daniel Finn

Que impacto o colapso da bolha imobiliária no início dos anos 1990 teve na política e na sociedade japonesas?

Kristin Surak

Foi um verdadeiro ponto de virada para o Japão. Para entender o porquê, é importante voltar e ver como o Japão saiu da Segunda Guerra Mundial, quando era um país derrotado e destruído. Muitas vezes é esquecido, por exemplo, que o bombardeio de Tóquio matou mais pessoas do que os ataques com bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Em termos de imóveis e propriedades, grande parte do país foi achatada.

Havia um foco muito forte na produção capitalista e na expansão econômica vinda diretamente da guerra. Na década de 1960, o Japão realmente decolou de uma forma que nenhum outro país conseguiu no mundo até aquele momento. Houve um crescimento anual de 10% na década de 1960, que apenas a China conseguiu igualar nos últimos tempos.

O Japão foi capaz de crescer tão rápido porque era muito barato para exportar. O iene japonês estava atrelado ao dólar americano a uma taxa favorável, de modo que, assim que o Japão aumentou a produção industrial novamente, foi capaz de exportar muito barato e vender muitos produtos para os Estados Unidos em particular.

Com o tempo, isso criaria um enorme superávit em conta corrente com os Estados Unidos, do qual Washington não gostou. Em 1985, o Japão e os Estados Unidos negociaram os Acordos de Plaza, que levaram a uma grande valorização do iene, tornando mais caro para o Japão exportar para os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, com a valorização do iene, os preços da terra começaram a disparar.

A terra estava sendo usada como garantia para empréstimos que impulsionavam essa expansão capitalista, e o resultado era uma situação extraordinariamente precária. Era uma enorme bolha imobiliária em que os terrenos do palácio imperial em Tóquio valiam tanto quanto todo o estado da Califórnia. Os números envolvidos foram simplesmente surpreendentes.

Tudo isso era muito óbvio para os burocratas que dirigiam o show, especialmente no Banco do Japão, e eles tentavam com muito cuidado deixar escapar um pouco do vapor da bolha. Mas assim que eles fizeram isso, a coisa toda simplesmente desmoronou. Isso foi em 1989-90.

A princípio, ninguém tinha certeza do que estava acontecendo, porque o Japão vinha registrando taxas de crescimento fenomenais. Parecia uma enorme potência que potencialmente ultrapassaria os Estados Unidos. Mas depois de alguns anos de taxas de crescimento zero na década de 1990, as pessoas começaram a pensar que esta poderia ser uma situação mais permanente do que havíamos previsto.

O colapso da bolha imobiliária produziu muitas empresas zumbis, como eram conhecidas, que tinham dívidas muito maiores do que ativos, mas ao mesmo tempo eram grandes demais para falir. Estas eram algumas das maiores empresas do Japão. As empresas endividadas estavam empregando pessoas e impulsionando o país.

Por um período de quase trinta anos desde o início da década de 1990, o Japão não experimentou inflação. As pessoas a descreveram como uma economia totalmente em coma. Houve um nível muito baixo de crescimento - muito menor do que antes. Notavelmente, o preço de algo em 1990 ainda seria exatamente o mesmo em 2015.

A mudança do crescimento econômico acelerado para a estagnação significou uma forte mudança para o foco nos problemas sociais. Esses problemas foram trazidos à tona por duas grandes crises.

Um deles foi o grande terremoto de Kobe em 1995, que aconteceu em uma parte muito industrializada e urbanizada do Japão, quase prenunciando o que está previsto para acontecer em Tóquio nas próximas décadas. Tóquio teve grandes terremotos regulares no passado, e já faz um tempo desde o último, então está definitivamente em pauta para um na vida da maioria das pessoas.

Em segundo lugar, houve o ataque com gás sarin pelo culto Aum Shinrikyo no metrô de Tóquio em 1995, que matou algumas dezenas de pessoas. Isso era algo que ninguém esperava, naquela que era considerada uma sociedade muito harmoniosa.

Havia outros problemas sociais, como taxas de natalidade muito baixas combinadas com expectativas de vida muito altas. No lugar da conhecida pirâmide demográfica, com muitos jovens e um nível superior muito menor com menos idosos, a estrutura demográfica do Japão parece mais uma coluna, porque há tão poucos jovens e tantos idosos. Isso tem um grande impacto econômico.

Em termos de emprego, é interessante pensar nessas questões em relação ao Ocidente, porque alguns dos problemas que o Japão vem enfrentando nos últimos trinta anos são aqueles que os países ocidentais estão começando a enfrentar agora. As situações não são exatamente as mesmas: por exemplo, há uma inflação massiva no Ocidente agora - mais de 10% em alguns países - enquanto no Japão é apenas cerca de 3,5%. Embora isso seja considerado muito alto para os padrões japoneses, ainda é um número que deixaria as pessoas nos Estados Unidos ou no Reino Unido com muita inveja.

No entanto, certamente há paralelos a serem traçados, pois os países ocidentais enfrentam o desafio de economias de baixo crescimento e as consequências de uma flexibilização monetária maciça. A relação dívida/PIB no Japão é extraordinária - muito maior do que era na Grécia no auge da crise econômica grega. A proporção é atualmente de quase 270%, e as autoridades japonesas continuam imprimindo dinheiro.

A população do Japão está estagnada, o que também estamos vendo hoje nos países ocidentais. Os serviços sociais também estão desmoronando desde a década de 1990. Muitos dos problemas com os quais o Japão vem lidando há algum tempo agora atingem o Ocidente de maneiras muito interessantes.

É importante lembrar, porém, que nada disso gerou tanto protesto social quanto se poderia esperar. Não houve um movimento anticapitalista muito forte ou um movimento pela igualdade de gênero. Há um pouco mais de movimento sobre os direitos dos homossexuais.

As perspectivas de emprego para jovens estão ficando cada vez piores, mas você ainda não vê muitas pessoas saindo às ruas, certamente não em comparação com a convulsão social dos anos 1950 e 1960, quando às vezes você poderia ter um milhão de pessoas naa ruas protestando contra o imperialismo dos EUA, por exemplo. Nesse sentido, o estouro da bolha econômica por volta de 1990 foi um grande ponto de virada, não só economicamente, mas também social e politicamente.

Daniel Finn

Por que você acha que o LDP conseguiu perpetuar sua hegemonia nas últimas três décadas, muito depois do fim do contexto da Guerra Fria que originalmente moldou o partido?

Kristin Surak

De certa forma, se você apenas olhar para quem está no governo, o LDP parece uma potência completa. Está no poder quase continuamente desde 1955, com apenas dois hiatos muito curtos, 1993-94 e 2009-12. Além desses momentos, está no poder há mais de sessenta anos. No entanto, se olharmos por trás dessa fachada, seu domínio do poder é mais frágil do que se poderia esperar. Não conquistou a maioria absoluta dos votos desde 1963. Durante décadas, foi obrigado a governar por meio de várias coalizões. Em sua maioria, governa com o partido Komeito, que é um grupo budista.

Quando olhamos para o poder do LDP, é importante olhar para suas origens, que surgiram de uma configuração particular do pós-guerra, além da interferência dos EUA nos processos democráticos do Japão. Após a Segunda Guerra Mundial, os partidos conservadores e os partidos socialistas estavam basicamente cabeça a cabeça. Os Estados Unidos obviamente viram isso como uma grande ameaça.

Na década de 1950, parecia que os dois principais partidos socialistas seriam capazes de tomar o poder, e isso era uma grande preocupação para os Estados Unidos. Ajudou a forjar uma aliança entre as duas principais organizações conservadoras, o Partido Liberal e o Partido Democrata, em 1955. Jogou muito dinheiro em ambos os partidos para que pusessem em funcionamento suas máquinas eleitorais e lhes permitisse formar uma coalizão e assumir o governo.

O cérebro por trás desse empreendimento foi um homem chamado Nobusuke Kishi, que era o avô de Shinzo Abe e uma importante influência na política de Abe. Como chefe do LDP, Kishi organizou o sistema para canalizar dinheiro do governo para projetos de infraestrutura de forma a levar os principais apoiadores do partido a votar. Em torno disso, ele construiu uma máquina eleitoral de barril de porco, que durou algum tempo.

No entanto, como muitos partidos que estão no poder continuamente, o LDP gradualmente perdeu popularidade e governa em um governo de coalizão há décadas. De certa forma, seu poder hoje deriva em grande parte não da adesão popular ao próprio partido, mas das fragilidades da oposição.

Nenhum dos partidos de oposição no Japão no momento tem mais do que cerca de 15% dos votos. Eles são uma confusão absoluta e não há nenhum desafio real para o LDP vindo de fora. Qualquer desafio veio de dentro do próprio partido.

O principal desafiante é um membro de longa data do LDP que rompeu com o partido, Ichirō Ozawa. Nas duas vezes em que o LDP perdeu o poder, foi por causa de Ozawa ter planejado uma transformação e derrubada do LDP.

Em 1993, que foi a primeira vez que o LDP perdeu o poder, ele obteve um voto de desconfiança no parlamento que dividiu o governo. Houve muita corrupção durante os anos 1970 e 1980 - em uma ocasião, vários milhões de dólares em barras de ouro foram encontrados na casa do primeiro-ministro. As pessoas estavam ficando fartas da corrupção e o voto de desconfiança de Ozawa derrubou o LDP.

Uma desajeitada coalizão de sete partidos assumiu o governo, mas não durou muito. Isso foi seguido por um período de rápida mudança no comando, com os primeiros-ministros mudando quase todos os anos. Essas transformações políticas estavam ligadas à política imperialista dos EUA, bem como às mudanças na economia japonesa e aos movimentos de apoio dentro do LDP.

Alguns pontos se destacam nesta imagem. Uma delas é que a ideologia não é um fator motivador importante na política japonesa. Você encontra partidos de todo o espectro político formando coalizões quando podem.

Outro ponto é que a voz do público não tem sido muito importante para trazer mudanças reais. Não foi o voto popular que derrubou o LDP - foram as maquinações de dentro do partido, com políticos capazes de manipular habilmente as estruturas informais. Ozawa executou essa tarefa com muita habilidade.

Daniel Finn

Qual tem sido a experiência dos partidos de esquerda do Japão, os socialistas e os comunistas, desde o fim da Guerra Fria?

Kristin Surak

A história dos partidos de esquerda do Japão está entre animadora e inspiradora, por um lado, e bastante deprimente, por outro. Embora o Japão tenha sido ocupado pelos Estados Unidos por vários anos após a guerra, os Estados Unidos permitiram que os partidos socialista e comunista ressurgissem da ilegalidade sob o antigo regime, e esses partidos se tornaram muito populares.

O Partido Socialista do Japão (JSP) começou nos primeiros anos do pós-guerra com cerca de um terço do voto popular. Foi durante muito tempo o principal partido da oposição. Gradualmente, sua parcela de votos caiu para cerca de 20%, e uma facção mais centrista se separou durante a década de 1960. Mas o JSP continuou sendo muito importante até a década de 1990, embora estivesse perdendo fôlego.

Nesse ponto, com o fim da Guerra Fria, encontrava-se ideologicamente à deriva e vendeu-se em 1994. Depois que a aliança de sete partidos de oposição que haviam deslocado o LDP se desfez, o LDP e os socialistas formaram uma coalizão de seus próprios. Tomiichi Murayama se tornou o primeiro primeiro-ministro socialista, servindo por cerca de um ano e meio.

Mas essa coalizão foi um suicídio político para o JSP. O LDP tinha quase todas as principais posições do gabinete. O cargo de primeiro-ministro tem sido tradicionalmente bastante fraco, então Murayama poderia fazer muito pouco. Além disso, ele desautorizou praticamente todos os componentes da plataforma tradicional do JSP.

O Artigo IX da constituição pós-guerra do Japão diz que o Japão renuncia para sempre ao direito de guerra. Tem havido muita controvérsia sobre o status das Forças de Autodefesa do Japão, que são bastante grandes porque a economia do Japão é muito grande. Embora não gaste muito mais do que 1% de sua receita com o exército, ainda é uma quantia grande em termos absolutos porque o Japão é um país rico.

Por muitos anos, os socialistas disseram que era inconstitucional o Japão ter um exército. Ao entrar no governo, no entanto, o JSP renunciou à sua postura anterior em relação às Autodefesas. Também mudou de posição ao aceitar o Kimigayo, o hino nacional, e o Hinomaru, a bandeira nacional, ambos muito polêmicos após a guerra, dada a história do imperialismo japonês. O JSP também reverteu sua tradicional oposição à energia nuclear.

Com efeito, durante aquele breve momento de coligação com o LDP, o JSP desistiu de tudo o que o tornava um partido socialista crítico. O partido se esvaziou completamente. O resultado da coalizão foi que o LDP voltou ao poder na próxima eleição. Seu principal oponente acabara de se vender e não havia adversários mais eficazes.

Depois desse ponto, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, o LDP estava no poder com uma agenda política que afirmava o status quo. Os eleitores estavam cada vez mais apáticos porque não havia diferença ideológica entre os principais partidos. O JSP renomeou-se como Partido Social Democrata do Japão e tornou-se uma nulidade eleitoral - agora tem apenas um deputado na Câmara dos Deputados.

Ao mesmo tempo, os comunistas japoneses tiveram um desempenho muito melhor do que os ex-socialistas. Eles têm obtido 7 ou 8 por cento dos votos na maioria das eleições desde o início dos anos 1990 - às vezes bem mais do que isso, especialmente quando as pessoas estão se sentindo muito insatisfeitas com o que o LDP está fazendo. Os comunistas recebem muitos votos de protesto, porque são o único partido no Japão com algum tipo de integridade ideológica.

Durante a Guerra Fria, o Partido Comunista começou apoiando a China contra a União Soviética. Na década de 1970, no entanto, começou a se distanciar de ambos os estados. Tem uma posição muito forte de apoio aos direitos individuais, juntamente com uma forte posição anti-guerra e anti-imperialista. Tem uma base forte em algumas cidades como Kyoto, e entre certas profissões, como professores.

Os comunistas permaneceram fiéis à sua posição contra o imperialismo dos EUA, opondo-se à grande presença militar dos EUA no Japão. Eles apóiam o casamento entre pessoas do mesmo sexo e as proteções do mercado de trabalho. Muita gente acha que o partido teria mais apoio eleitoral do que tem, não fosse a imagem negativa do comunismo que remonta à Guerra Fria. Mas ainda se sai surpreendentemente bem.

Daniel Finn

Que fatores estão por trás da espetacular vitória eleitoral do Partido Democrata em 2009? Por que, no entanto, provou ser um momento tão efêmero na política japonesa?

Kristin Surak

A eleição em 2009 foi a primeira vez que o eleitorado japonês elegeu um partido diferente do LDP para o cargo. O Partido Democrático do Japão (DPJ) saiu do colapso do JSP como o principal partido da oposição na década de 1990. Foi formado pela fusão de vários partidos menores. Seus líderes estavam olhando para o que Bill Clinton e Tony Blair estavam fazendo, apresentando o DPJ como um partido da Terceira Via que seria pró-capitalista e também a favor de algumas proteções sociais. Eles escolheram elementos das plataformas do LDP e do JSP de forma confusa, sem qualquer coerência ideológica ou política. Mas o DPJ conseguiu vencer o que é conhecido como voto urbano flutuante.

Isso se refere a pessoas que se mudaram do campo para grandes áreas urbanas. Eles não têm uma ideologia política clara, mas buscam algo que represente seus pontos de vista, o que pode envolver um sentimento de descontentamento com o establishment. O parceiro de coalizão do LDP, o partido Komeito, costuma receber parte desse voto. Mas o DPJ também conseguiu explorar isso.

Durante a década de 2000, o LDP parecia cada vez mais monótono após a renúncia de seu líder Junichiro Koizumi. Koizumi tinha muito carisma, mas foi seguido por uma série de líderes medíocres que estiveram no comando por mais ou menos um ano. Isso fez com que o DPJ parecesse cada vez mais desejável para os eleitores.

Isso abriu a possibilidade de Ichirō Ozawa, que vimos antes desde o início dos anos 1990, liderar o partido na conquista da câmara alta pela primeira vez. Isso colocou o governo em um impasse, porque o LDP controlava a câmara baixa enquanto o DPJ controlava a superior, então eles não conseguiam aprovar nada.

Em meio a tudo isso, Ozawa esperava finalmente assumir o comando do estado. Mas ele foi derrubado por um escândalo de arrecadação de fundos relativamente pequeno. Ozawa sempre foi uma figura controversa, embora muito experiente.

Yukio Hatoyama foi quem levou o DPJ ao poder com uma vitória esmagadora nas eleições de 2009. Foi a pior derrota que o LDP já sofreu, perdendo três quintos de seu grupo parlamentar. O DPJ obteve uma grande maioria e parecia que estaria navegando com as reformas que queria decretar.

Como primeiro-ministro, Hatoyama queria fazer algumas mudanças importantes em termos de organização da burocracia do Japão e sua política externa. Tradicionalmente, no Japão, os burocratas são responsáveis por grande parte da formulação de políticas, e não os políticos. Hatoyama queria que os políticos conduzissem o processo de formulação de políticas, tornando-o mais sensível aos desejos dos eleitores. Mas os burocratas eram muito poderosos e se irritaram com essa tentativa de minar seu poder.

Hatoyama também queria alcançar mais a Ásia como um equilíbrio para a influência dos EUA. Os Estados Unidos têm uma presença enorme em Okinawa. Esteve inteiramente sob ocupação americana até 1972, e ainda existem grandes bases militares lá. É a área-chave onde você tem um forte movimento social anti-imperialista que está tentando tirar os americanos.

Os Estados Unidos queriam realocar sua principal base militar em Futenma para uma muito maior em Henoko. Os moradores se opuseram a essa ideia por vários motivos, e Hatoyama também se opôs, dizendo que não apoiaria a realocação da base. Isso significava que os Estados Unidos eram contra o DPJ e pressionavam junto com os burocratas que se rebelavam contra a tentativa de limitar seu poder.

Isso deixou o DPJ muito aguerrido. A mídia japonesa também se manifestou fortemente contra Hatoyama, que acabou deixando o cargo após apenas nove meses. Em seu lugar entrou Naoto Kan, que inverteu tudo o que Hatoyama vinha tentando fazer, voltando-se novamente para os Estados Unidos e recolocando a burocracia em seu papel anterior. Na medida em que havia algum tipo de ideologia mantendo o partido unido, ele o vendeu.

Além disso, você teve os desastres combinados de 2011, com o grande terremoto e tsunami em Tohoku e o incidente do reator nuclear em Fukushima. O DPJ não conseguiu lidar com esses desastres, tendo feito muito pouco anteriormente para diferenciá-lo do LDP no cargo. Sofreu uma derrota esmagadora nas eleições de 2012, perdendo quatro quintos de suas cadeiras. O LDP voltou ao poder novamente com Shinzo Abe, que se tornou o primeiro-ministro mais antigo do Japão no pós-guerra.

Daniel Finn

Até que ponto podemos dizer que políticas econômicas neoliberais foram implementadas por sucessivos governos japoneses desde a década de 1990?

Kristin Surak

No geral, acho que algumas das transformações podem vir sob o título de neoliberalismo. Mas se analisarmos as coisas, parece um pouco mais complicado do que conceitos de título como esse podem sugerir.

Desde a crise econômica da década de 1990, o Japão passou por uma desregulamentação em larga escala. Quando ficou claro que a economia estava estagnada, houve um pacote de reformas conhecido como "Big Bang". Isso envolveu a liberalização das finanças, por exemplo, abrindo o câmbio e a gestão de ativos e permitindo mais concorrência estrangeira. No final da década de 1990, as companhias aéreas e as telecomunicações foram desregulamentadas, assim como os mercados de trabalho.

Historicamente, havia uma imagem de emprego vitalício no Japão: se você conseguisse um emprego em uma grande empresa, esperava-se que você ficasse com essa empresa por toda a vida e estava completamente protegido. Você não precisava se preocupar com mais nada, porque seria muito difícil demiti-lo quando você tivesse um contrato de trabalho vitalício.

No entanto, no final da década de 1990, as grandes empresas tentavam se livrar desses contratos vitalícios, reduzindo seu escopo para cerca de 10% da força de trabalho. Hoje, no Japão, cerca de 60% da força de trabalho tem contrato de trabalho por prazo determinado - isto é, trabalho sem futuro garantido.

Havia uma história mais longa por trás de contratos desse tipo, que tradicionalmente se aplicavam a mulheres trabalhadoras. No entanto, a partir do final da década de 1990, cada vez mais homens foram contratados, iniciando sua vida profissional em situação de precariedade. Isso teve um enorme impacto em termos de proteção social, porque o trabalho contratado muitas vezes não vem com as pensões e benefícios de saúde que as pessoas estavam acostumadas a ter.

Também houve um grande aumento na desigualdade, e o Japão é agora um dos países mais desiguais da OCDE. Costumava haver uma ideia de que todos no Japão eram de classe média, mas isso certamente não é mais o caso. A taxa geral de pobreza é agora de cerca de 15%, subindo para aproximadamente um terço dos idosos, que constituem uma grande proporção da população japonesa. Somando-se a toda a desregulamentação, isso afetou muito as pessoas.

A ideia de reverter as provisões de bem-estar também está associada ao neoliberalismo. Se olharmos para as características do bem-estar social no Japão, há algumas características notáveis. Uma delas é que os gastos do Estado nessa área têm sido tradicionalmente bastante baixos. O bem-estar social tem sido amplamente fornecido pelos empregadores, bem como no nível da comunidade ou da família, por meio de fortes redes de apoio social.

Além disso, na medida em que as empresas ou o governo fornecem bem-estar social, eles geralmente o concentram nas pessoas economicamente produtivas. As pessoas que estão empregadas obtêm melhor proteção do bem-estar social, geralmente por meio de programas de pensão empresarial ou seguro de saúde, etc., enquanto os desempregados, aposentados ou viúvos recebem menos proteção.

A rede de previdência social diminuiu à medida que as pessoas se mudaram para empregos mais temporários, porque as pessoas com contratos permanentes recebem melhores pensões, assistência médica, bônus e assim por diante. O Japão tornou-se visivelmente mais dividido e desigual, com mais pessoas ficando para trás durante esse período de desregulamentação.

Mas, voltando à sua pergunta, podemos definir isso como neoliberal? É neoliberal na medida em que é um remendo para tentar salvar o capitalismo. Mas também podemos encontrar outras razões por trás de algumas dessas transformações. Veja a privatização do serviço postal, por exemplo.

O sistema postal do Japão tem sido tradicionalmente o maior banco do mundo. As pessoas podiam depositar suas economias nos correios de todo o país, inclusive nas áreas rurais. Como banco, tornou-se efetivamente um fundo secreto para o LDP que o partido poderia usar para financiar seus projetos de desenvolvimento nacional e alimentar sua política de barril de porco.

Quando Junichiro Koizumi se tornou primeiro-ministro no início dos anos 2000, ele era um verdadeiro estranho dentro do LDP. Ele só foi eleito líder por causa de mudanças na estrutura eleitoral do partido, e muita gente não gostava dele. Sua própria facção dentro do partido era contra a política de barril de porco.

Uma das primeiras coisas que Koizumi fez foi privatizar o sistema postal e tirá-lo do controle do LDP, porque era um caixa dois para as facções internas do partido que se opunham à sua própria tendência. Em outras palavras, podemos ver a privatização do sistema postal como um caso de transformação neoliberal, mas também podemos vê-la como uma forma de manobra dentro do LDP para fortalecer ou diminuir o poder de facções individuais.

Daniel Finn

Como o status das mulheres no Japão hoje se compara ao de outros estados capitalistas altamente desenvolvidos?

Kristin Surak

É bastante patético. Se você olhar para posições de poder ou liderança, as mulheres geralmente ocupam cerca de 10 a 15 por cento dos assentos no parlamento nacional e cerca de 15 por cento dos cargos de negócios e de gestão. Cerca de um terço de todas as grandes empresas do Japão não têm executivas. As metas que eles estabeleceram para aumentar o número de mulheres nessas posições, com o objetivo de chegar a 20%, ainda são muito baixas. Depois da Segunda Guerra Mundial, as mulheres foram retiradas da força de trabalho. Havia muito mais mulheres trabalhando no Japão no início do século XX do que na segunda metade do século. Em parte, isso se deveu ao grande boom econômico, que possibilitou às famílias contar com os ganhos de um chefe de família masculino. Deveu-se também ao declínio da agricultura, porque muitas vezes as mulheres trabalhavam na lavoura.

Entre as décadas de 1950 e 1980, você viu o surgimento do que se convencionou chamar de dona de casa profissional — mulheres cujo principal objetivo era cuidar da casa e garantir que os filhos tivessem um bom desempenho e entrassem nas melhores escolas. A dona de casa profissional também cuidaria dos avós idosos. As mulheres nessa posição governavam o lar e muitas vezes tinham mais controle sobre os gastos domésticos do que o ganha-pão masculino.

Algumas mulheres quiseram desempenhar esse papel e gostaram. Mas não havia muita escolha para muitos outros. O sistema incentivou esse modelo de família de várias maneiras.

Por exemplo, se houvesse uma família nuclear estereotipada e o homem tivesse um emprego com um contrato protegido que incluísse um plano de pensão e seguro de saúde, isso cobriria toda a família. Mas se a esposa do homem começasse a ganhar mais de £ 10.000 por ano, ela sairia desse plano de pensão e teria que encontrar um próprio, que seria inferior.

Em outras palavras, o sistema encorajaria as mulheres a conseguir apenas empregos de meio período nos quais ganhassem menos de £ 10.000 por ano, porque fazia mais sentido econômico permanecer no melhor plano de pensão e seguro de saúde de seus maridos. Havia muitas maneiras pelas quais o sistema tornava mais racional para as mulheres trabalharem em empregos de meio período e não ganharem muito dinheiro enquanto também cuidavam da família.

Obviamente, isso levou a uma grande perda de força de trabalho potencial, em termos econômicos brutos. Na década de 1990, com a desaceleração da economia, foram aprovadas leis para igualdade de oportunidades no emprego. Mas essas leis eram efetivamente inúteis em termos de operação, já que não havia punições reais para as empresas que não colocavam as mulheres em funções específicas.

Tradicionalmente, as empresas colocavam as mulheres nos chamados empregos de colarinho rosa ou em cargos de curto prazo e não as promoviam, porque presumiam que, assim que uma mulher se casasse ou engravidasse, ela largaria o emprego. Muitas vezes, eles pressionavam as mulheres a largar o emprego também nesses momentos.

Daniel Finn

Que políticas o Estado japonês adotou para lidar com a imigração nas últimas décadas?

Kristin Surak

A população japonesa está em declínio há muitos anos, e muitas pessoas perguntam por que as autoridades simplesmente não permitem a entrada de mais imigrantes para lidar com esse declínio. Afinal, é um risco econômico enorme não ter crescimento populacional.

Se olharmos para a história, durante a Segunda Guerra Mundial, especialmente nos anos finais da guerra, houve muita migração de trabalho forçado das áreas ocupadas na Coréia e em Taiwan. Depois da guerra, essas pessoas foram pressionadas a voltar, mas nem todos o fizeram.

Embora tenham perdido a cidadania japonesa, muitos não quiseram voltar para a Coréia ou Taiwan, que eram países muito autoritários na época. Os dois estados coreanos também entraram em guerra a partir de 1950. Você acabou com uma população de ex-súditos coloniais coreanos e taiwaneses vivendo no Japão, que ainda era bem pequena - menos de um milhão de pessoas.

Quando a economia começou a decolar nas décadas de 1960 e 1970, as empresas estavam pedindo mais trabalhadores. Mas, em vez de trazer mais estrangeiros para o Japão, as empresas japonesas foram até os estrangeiros. Muitas empresas mudaram suas operações para o Sudeste Asiático, usando trabalhadores mais baratos para cobrir suas necessidades do mercado de trabalho.

Ocasionalmente, houve algumas iniciativas para trazer trabalhadores de lugares como as Filipinas. No início dos anos 1990, havia um esquema para trazer descendentes de japoneses que viviam na América Latina para o Japão, porque o governo achava que eles seriam fáceis de assimilar. Mesmo assim, os números gerais têm sido muito pequenos. Os estrangeiros ainda representam pouco mais de 2% da população japonesa, o que é minúsculo em comparação com os Estados Unidos, o Reino Unido ou mesmo a Rússia.

Embora o governo filipino esteja tentando fazer lobby no Japão para aceitar mais enfermeiras filipinas, por exemplo, o governo japonês tem relutado muito em fazê-lo, em parte porque o lobby da enfermagem no Japão se opõe a isso. Até certo ponto, permitiu a entrada de trabalhadores migrantes temporários de baixa remuneração na forma de estagiários, mas esses programas também não se expandiram realmente.

Existem alguns esforços para trazer estudantes coreanos e chineses para o país, porque as baixas taxas de natalidade significam que as universidades não têm jovens japoneses suficientes para preencher todas as vagas disponíveis. Existem esquemas para manter os graduados das universidades japonesas no país por alguns anos. Mas é muito difícil se tornar um cidadão japonês, e o Japão ainda é um país fechado em grande parte.

O mesmo vale para os refugiados. Em alguns anos, o Japão aprova apenas algumas dezenas de solicitações de refugiados. Prefere atirar dinheiro ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados em vez de permitir que os refugiados entrem no país.

Daniel Finn

Qual a importância da aliança com Washington para os administradores do Estado japonês no contexto contemporâneo mais amplo do Leste Asiático?

Kristin Surak

Continua sendo fundamental e pode até estar crescendo em importância. Tradicionalmente, os partidos de esquerda eram muito críticos em relação à aliança com os Estados Unidos. Mas você também tinha políticos entre os conservadores dominantes que queriam mais independência dos Estados Unidos. Com a ascensão da China, no entanto, uma forte facção dentro do LDP abraçou Washington de todo o coração.

No início dos anos 2000, Koizumi estava jogando beisebol com George Bush e visitando Graceland, enquanto forjava uma aliança militar mais próxima com os Estados Unidos ao mesmo tempo. Shinzo Abe liderou o Japão no caminho da expansão militar com a aprovação de Washington. Os Estados Unidos querem que o Japão aumente sua força militar sob os auspícios do que chama de "interoperabilidade". Isso significa que o Japão pagará por suas forças armadas, mas se a pressão chegar, os Estados Unidos também podem efetivamente assumir o controle das forças armadas japonesas.

Os Estados Unidos ficariam felizes se o Japão revisasse o Artigo IX da constituição do pós-guerra, e os conservadores japoneses estão ansiosos para estabelecer laços cada vez mais estreitos com Washington enquanto enfrentam a ascensão da China. Essa postura anti-China surgiu fortemente em relação à Parceria Trans-Pacífico. Donald Trump retirou os Estados Unidos desse acordo, mas o Japão ainda está tentando reviver a ideia de um bloco comercial que excluirá a China - idealmente com os Estados Unidos envolvidos, mas sem os Estados Unidos, se necessário.

Daniel Finn

Como você caracterizaria o legado de Abe para seu partido e para a política japonesa em geral?

Kristin Surak

Abe certamente foi um líder político importante - muito mais do que qualquer um poderia imaginar durante sua primeira passagem pelo poder em meados dos anos 2000, quando esteve no poder por cerca de um ano e acabou saindo por causa de problemas gastrointestinais. Ninguém esperava que ele voltasse ao poder, muito menos servir por mais tempo do que qualquer outro primeiro-ministro no pós-guerra.

Mesmo tendo renunciado antes de seu assassinato no ano passado, ele ainda permaneceu um político muito importante, controlando a cena e a maior facção do LDP como o que é conhecido como shogun das sombras. Sua morte, portanto, deixou um grande buraco na política japonesa. Abe acumulou mais poder sob o gabinete do primeiro-ministro do que seus predecessores, garantindo o controle sobre as nomeações burocráticas e colocando seu próprio pessoal em posições-chave. Ele expandiu as capacidades militares do Japão e reiniciou a produção de energia nuclear, que havia sido interrompida após o triplo desastre de 2011. Ele também empurrou o Japão de volta aos braços dos Estados Unidos depois que o DPJ tentou criar mais distância.

Seu legado mais importante será uma forte guinada à direita em um sistema político que já era bastante conservador. Abe não conseguiu isso como populista. Ele era membro de um grupo ultraconservador chamado Nippon Kaigi, que não é muito grande. Tem cerca de 40 mil membros, mas cerca de 60% dos parlamentares sob Abe pertenciam a esse grupo que pede uma ampla reforma constitucional, quer que as mulheres fiquem em casa e denuncia o que vê como uma visão apologética da história que reconhece as atrocidades imperiais japonesas.

Na época de sua morte, Abe estava muito mais perto de alcançar seu objetivo de revisão constitucional. A renúncia à guerra na constituição do pós-guerra foi muito importante para a identidade nacional japonesa, mas seu significado vem diminuindo. O número de pessoas que pensam que o Japão nunca deveria travar uma guerra novamente ou que apóiam o Artigo IX da constituição está agora em torno de 50%.

Abe queria que o Japão revisasse o Artigo IX e reconhecesse que suas Forças de Autodefesa são na verdade um exército. Mas ele também queria mudar outros artigos da constituição. As propostas de revisão constitucional pareciam muito semelhantes em alguns lugares à antiga constituição Meiji que foi a base para a expansão imperialista japonesa antes da guerra.

Essa ideia de mudança profunda ainda faz parte da plataforma do LDP. Isso significaria uma revisão maciça em termos de organização da democracia no Japão e levaria ao retrocesso das proteções democráticas.

Colaborador

Kristin Surak ensina sociologia na London School of Economics. Ela é autora de Making Tea, Making Japan: Cultural Nationalism in Practice (2013) e The Golden Passport: Global Mobility for Millionaires (2023).

Daniel Finn é o editor de recursos da Jacobin. Ele é o autor de One Man's Terrorist: A Political History of the IRA.

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