3 de setembro de 2024

O labirinto venezuelano

A situação venezuelana após as eleições de julho gera confusão entre moradores locais e estrangeiros. Reinaldo Antonio Iturriza López oferece um olhar crítico e aprofundado sobre o labirinto político venezuelano, analisando as causas da crise atual e explorando possíveis soluções a partir de uma perspectiva esquerdista.

Reinaldo Iturriza López

Jacobin

Imagem: Jacobin Italia.

Entrevista por Federico Fuentes

As eleições presidenciais na Venezuela, em 28 de julho, colocaram mais uma vez sobre a mesa um debate que parece interminável sobre a legitimidade ou não das eleições. O anti-chavismo denuncia mais uma vez a fraude eleitoral, enquanto as forças governamentais respondem acusando-os de serem conspiradores golpistas aliados ao imperialismo norte-americano. No meio, um povo venezuelano cada vez mais negligenciado, que, no entanto, resiste a permitir que a extrema direita assuma o governo do país.

As múltiplas análises subsequentes, as mais variadas, não escapam ao labirinto político em que caiu a política venezuelana. Dependendo de se alinharem com o governo ou com a oposição, a sua interpretação dos fatos será uma ou outra. São poucas as leituras que procuram ver além e refletir com honestidade intelectual sobre as causas que explicam a situação atual e as soluções – à esquerda – que podem ser vislumbradas.

O escritor, ativista, sociólogo e diretor do Centro de Estudos para a Democracia Socialista, Reinaldo Antonio Iturriza López, é uma daquelas vozes que tentam sair do atoleiro e tornar a análise mais complexa. Em conversa com Federico Fuentes, para a Revista Jacobin, Iturriza analisa as diferentes interpretações em torno das eleições presidenciais, os processos políticos e sociais que explicam a situação atual e os caminhos possíveis para escapar do labirinto.

Federico Fuentes

As eleições presidenciais de 28 de julho parecem uma repetição das anteriores: mais uma vez, a oposição denuncia a fraude e o governo insiste em classificar estas alegações como uma tentativa de golpe de Estado. Qual é a sua avaliação?

Reinaldo Iturriza López

Deixe-me primeiro problematizar as avaliações habituais sempre que ocorre uma situação eleitoral na Venezuela. Regra geral, partimos da ideia – certamente apoiada em evidências empíricas – de que em cada disputa se confrontam dois lados antagônicos: o conjunto de forças alinhadas com o programa da revolução bolivariana e o conjunto de forças que se opõem a esse programa. .

O fato de a primeira destas forças ter permanecido no poder durante vinte e cinco anos costuma ser interpretado de diferentes maneiras: Uma parte da esquerda tende a valorizar que as sucessivas vitórias do chavismo refletem a enorme capacidade de resistência da sua base de apoio popular e a indubitável capacidade política da sua liderança, fatores que conseguem neutralizar os ataques do imperialismo e evitar o retorno ao poder das forças mais reacionárias.

A direita, por sua vez, constrói uma história segundo a qual só é possível explicar a permanência do chavismo no poder a partir do seu caráter autoritário. Em cada ocasião, e invariavelmente, as suas vitórias eleitorais seriam de legitimidade duvidosa ou inexistente porque se baseavam na manipulação das massas, no uso indiscriminado de recursos públicos em tempos de campanha, na desqualificação de dirigentes da oposição ou diretamente na fraude.

Finalmente, há outra parte da esquerda que apoia algumas destas abordagens e procura distanciar-se do chavismo precisamente por causa do seu caráter autoritário, do seu desrespeito pelo princípio da alternância democrática, das suas manobras contra a oposição, da sua repressão às manifestações públicas, pela restrição das liberdades, pelo controle das instituições, pelos seus excessos em questões econômicas, etc.

Em resposta, aquela parte da esquerda em que predomina uma avaliação bastante positiva da revolução bolivariana, costuma denunciar o rude duplo padrão quando se trata de abordar a questão da Venezuela, apontando que aquelas situações que são identificadas como erros, fraquezas ou excessos do chavismo no poder são considerados normais em qualquer outro país democrático do mundo, sem falar no silêncio que tenta impor-se a nível global relativamente ao que acontece nas sociedades sob regimes verdadeiramente ditatoriais ou, mais recentemente, face ao genocídio israelense em Gaza.

Tais são os fatos e as diversas interpretações dos fatos, aqui descritas muito brevemente. Periodicamente ocorrem processos eleitorais na Venezuela em que se medem certas forças e, uma vez conhecidos os resultados, passamos ao momento da disputa sobre a avaliação do ocorrido, que será uma ou outra de acordo com a posição política de quem faz a interpretação. É normal. Já é assim há muito tempo e tudo indica que continuará a acontecer. Parece não fazer sentido analisar cada uma destas avaliações porque, todos sabemos, obedecem a posições políticas e não a uma interpretação conscienciosa dos fatos.

Ora, parece-me que se houvesse um interesse genuíno em compreender o que se passa na Venezuela, teríamos que começar por problematizar o que é dado, ou seja, o que assumimos como fatos indiscutíveis. E, no caso de uma eleição presidencial, o foco da atenção deve ser colocado não apenas nas forças políticas em conflito – incluindo, claro, a influência desastrosa exercida pelo imperialismo americano – mas fundamentalmente no soberano, ou seja, no repositório da soberania popular, os cidadãos.

Federico Fuentes

E o que você acha da forma como os cidadãos venezuelanos chegam a este novo processo eleitoral?

Reinaldo Iturriza López

Um primeiro fato a ter em conta é que o povo venezuelano que foi às urnas no domingo, 28 de julho, fê-lo num contexto de profunda crise de representação, com uma classe política que atravessa, em geral, o seu pior momento no últimas cinco décadas. A classe política antichavista chegou às eleições carregando o peso acumulado de sucessivas derrotas, insultada pela sua base de apoio social, presa das suas contradições, sem uma liderança indiscutível e unificadora, com pouca clareza estratégica, supervisionado pelo governo dos EUA, pagando o custo de alguns flertes antidemocráticos que o fizeram desperdiçar o seu capital político acumulado.

Mas a classe dominante chegou a este processo eleitoral igualmente vítima das suas contradições, o que implicou uma disputa em que as tendências mais conservadoras e pragmáticas tiveram sucesso, acabando por impor o que [o marxista italiano Antonio] Gramsci chamaria de “anti-programa” da revolução passiva. Isto traduziu-se no fato de a classe trabalhadora ter deixado de constituir a espinha dorsal do bloco de forças no poder.

A partir de 2016 (após a derrota nas eleições legislativas de 2015, que foi um sinal claro da fratura do bloco hegemônico nacional e popular), mas especialmente a partir de Setembro de 2018 (com a aplicação de um programa econômico de corte ortodoxo-monetarista ), a classe dominante procedeu a uma tentativa de recomposição do bloco de forças a partir de cima, aliando-se a frações da burguesia e criando as condições para o progressivo dilapidação da força política a partir de baixo.

Durante a última década, enormes contingentes do que outrora foi a base de apoio popular do governo desfiliaram-se do chavismo, o que significa que uma parte importante da sociedade venezuelana se viu mais uma vez numa “situação de vácuo ideológico”, para usar a expressão cunhada pelo [marxista boliviano René] Zavaleta Mercado. Este é um fenômeno que não ocorria no país desde a década de 1990. Um grande problema político que o chavismo soube resolver.

Quais são as implicações de tudo isto para as recentes eleições presidenciais? Bem, ficou bastante claro, em primeiro lugar, que ambas as forças entraram na disputa com as respectivas bases sociais de apoio profundamente diminuídas. Em segundo lugar, este tipo de mudança estratégica adotada pela classe dominante a que acabo de me referir constitui uma circunstância que nos obrigou a pôr em causa um fato que é dado como certo: a arena eleitoral como terreno de disputa entre dois projetos históricos antagônicos. O debate programático esteve praticamente ausente durante toda a campanha eleitoral.

Em terceiro lugar - e em estreita relação com o anterior - uma parte importante dos cidadãos, aqueles que se encontram numa “situação de vazio ideológico”, exerceriam o seu direito de voto sem se sentirem representados por qualquer candidato. Em quarto e último lugar, uma parte considerável da votação dirigida ao candidato da oposição estaria muito longe de significar qualquer identificação com o antichavismo, mas refletiria fundamentalmente a rejeição do governo. E, vice-versa, parte da votação dirigida ao candidato oficial, em vez de ser lida como apoio ao governo, representa na verdade uma rejeição à possibilidade de triunfo da extrema direita.

Por mais óbvio que seja, importa ainda sublinhar que, perante tal situação, seria absolutamente decisivo que o árbitro eleitoral anunciasse os resultados sem deixar a menor margem de dúvida, garantindo também as correspondentes auditorias e publicando os resultados desagregados por mesa eleitoral. Não só isso não aconteceu, como as explicações do Conselho Nacional Eleitoral sobre a causa que o teria impedido de desempenhar as suas funções (nomeadamente, um hackeamento do sistema) foram francamente insuficientes, para dizer o mínimo.

Do exposto fica claro que quando se trata de avaliar o que aconteceu na Venezuela desde 28 de julho, as interpretações habituais são completamente limitadas, pois se baseiam, na melhor das hipóteses, em leituras superficiais e, na pior das hipóteses, no completo desconhecimento do que aconteceu nos últimos anos em termos de correlação de forças políticas. É também claro que para além das versões opostas das forças em conflito – fraude ou tentativa de golpe de Estado – a dúvida razoável e, com ela, uma agitação mais do que genuína, estabeleceram-se na sociedade venezuelana.

Os protestos populares de segunda-feira, 29 de julho, estão diretamente relacionados com estes últimos. Eventualmente, durante o dia, e sem dúvida, ambas as forças interviriam: num caso, tentando capitalizar o descontentamento e alimentando a violência; no outro, impondo a ordem. Certamente pode-se dizer que hoje a ordem reina na Venezuela, mas com dúvidas e desconfortos que persistem.

Federico Fuentes

Porque acha que o CNE e o Governo demoraram tanto a tornar públicas as atas? O que você acha da decisão do TSJ? Alguma coisa muda?

Reinaldo Iturriza López

Recordemos as palavras textuais do chefe do órgão eleitoral, Elvis Amoroso, na madrugada do dia 29 de julho, por ocasião do anúncio do primeiro boletim oficial: "Nas próximas horas os resultados estarão disponíveis mesa por mesa no site do Conselho Nacional Eleitoral, tal como tem sido feito historicamente, graças ao sistema de votação automatizado. Da mesma forma, os resultados serão entregues às organizações com fins políticos em CD, nos termos da lei. Pois bem, como já referi, não só isso não aconteceu, como as explicações sobre as causas de tal omissão foram francamente insuficientes.

Acrescentaria que a publicação dos resultados de forma desagregada e verificável não é uma questão meramente técnica, mas sim uma questão verdadeiramente substantiva: estamos falando tanto de uma obrigação do árbitro eleitoral como de um direito do povo venezuelano, que sente que esse dito direito foi escamoteado. Este é um panorama que não se alterou após a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que validou os resultados emitidos pelo Conselho Nacional Eleitoral, instando-o a publicar os referidos resultados de acordo com o disposto na lei, ou seja, no prazo de trinta dias após a proclamação do Presidente da República.

Federico Fuentes

Como você avalia o papel desempenhado por outros governos na América Latina após as eleições?

Reinaldo Iturriza López

O papel desempenhado pelos governos da Colômbia, do Brasil e do México, na minha opinião, é digno de nota. Na minha opinião, são motivados por um interesse genuíno na mediação entre as partes, colocando o reconhecimento da vontade popular acima de qualquer outra questão. As suas declarações públicas se distinguiram, pelo menos até à data, pelo bom senso, que me parece essencial neste momento. Considero correta a posição que aponta para a necessidade da “publicação transparente de dados desagregados e verificáveis”. Tal posição coincide com o interesse das maiorias populares no nosso país.

Federico Fuentes

Olhando para trás, para o processo, como você acha que chegamos a essa situação? Como você caracteriza a trajetória do Governo Maduro nos últimos anos?

Reinaldo Iturriza López

Pois bem, no que precede procurei fornecer o que considero uma contextualização fundamental, pois nos permite compreender como chegamos à situação atual. Mas aproveitaria a sua pergunta para acrescentar o seguinte: compreendo perfeitamente as razões pelas quais a circunstância do cerco econômico imperialista contra a Venezuela é tão frequentemente apelada para explicar a agitação popular.

Além do mais, diria que a razão é simples: com efeito, o referido cerco multiplicou exponencialmente quaisquer danos que a crise econômica pudesse ter causado à população antes, digamos, das primeiras sanções contra a Petróleos de Venezuela, em agosto de 2017. Nós falam de medidas punitivas e ilegais destinadas a acelerar o colapso da economia nacional e, para ser franco, a causar o sofrimento e a morte de seres humanos.

Perante circunstâncias desta natureza, isto é, perante uma situação tão extrema, uma sociedade como a venezuelana, que – recorde-se – vem de anos de intensa politização, passaria naturalmente a pesar, por um lado, os danos causados ​​por estes ataques e, por outro, as decisões da liderança política para superá-los. Se algo está profundamente enraizado na cultura política do cidadão venezuelano médio, é a convicção de que a liderança política deve assumir a sua responsabilidade face aos acontecimentos, e nisso a figura de Hugo Chávez desempenhou um papel fundamental.

Pois bem, a forma como a classe dominante procedeu para enfrentar tais circunstâncias foi construindo uma história segundo a qual não havia outras alternativas além das medidas que eventualmente seriam adotadas, por exemplo, em termos de política econômica. Primeiro mau sinal. Ou seja, não haveria espaços para deliberação pública, participativa e de liderança sobre as diferentes opções em cima da mesa pela simples razão de que só havia uma opção em cima da mesa. Mas e se a única alternativa pusesse em causa o horizonte estratégico da revolução bolivariana? Bem, azar. Instalada essa lógica de raciocínio no seio da classe dominante, a única opção para controlar a hiperinflação, por exemplo, consistia no conjunto de medidas que acabaram sendo aplicadas a partir de setembro de 2018: redução drástica dos gastos públicos, desvalorização dos salários ao seu valor histórico mínimo, bônus da renda da classe trabalhadora, etc.

Tal sequência de circunstâncias, ou seja, as privações materiais - que são sempre também privações espirituais, e que afetam drasticamente os laços sociais -, o cerco imperialista, que multiplica exponencialmente as privações materiais, a privação política que envolve o encerramento de alternativas para enfrentar a situação (a que se seguem mais privações materiais), permite-nos compreender, pelo menos parcialmente, o fato gravíssimo de que uma parte importante da cidadania chegou ao ponto de considerar a extrema direita venezuelana como uma opção política.

Federico Fuentes

Que posições assumiram as forças políticas da esquerda radical face a tudo isto? Que opções existem para fortalecer a esquerda neste contexto?

Reinaldo Iturriza López

Respondo desde meu espaço de ativismo: as opções são muitas e não paramos de trabalhar para multiplicá-las. Procuramos ser coerentes com a necessidade de criar espaços onde a análise da situação possa ser realizada com um mínimo de rigor e honestidade intelectual. Temos feito um esforço para resgatar do esquecimento a parte mais valiosa da tradição da esquerda revolucionária venezuelana, tentando criar as condições que garantam a transferência geracional, para que aqueles que acabam de aderir à militância não sintam que têm de começar do zero.

Há um enorme acúmulo de lutas e conhecimentos que lançam muitas luzes sobre o que devemos fazer neste momento e no futuro. Sem dúvida que atravessamos um momento particularmente difícil, mas não será a primeira nem a última vez que enfrentaremos situações como esta. Não só mantemos ligações com militantes em muitos lugares do país, bem como fora da Venezuela, mas estamos avançando no sentido de alcançar níveis mais eficazes de articulação política.

De resto, temos plena certeza de que, em qualquer circunstância, a esquerda revolucionária não pode ser assumida como um gueto, como um punhado de militantes que, eventualmente, oferecem um testemunho de luta altruísta. A solução para os problemas fundamentais do país passa pela esquerda, mas vai além dela, como nos ensinou [o marxista venezuelano] Alfredo Maneiro. A esquerda revolucionária deve ser capaz de falar com as maiorias populares, deve distinguir-se pela sua vontade de poder, como afirmou Hugo Chávez.

Diante de uma situação que gera confusão e que se assemelha a um labirinto político, pois não há saída, consideramos que é hora de temperança e caráter. Qualquer ação motivada pela indignação moral constitui um passo em falso. Estamos convencidos de que novas situações virão. A ordem reina na Venezuela, como já mencionei, e com ela a calma, mas é uma calma expectante. É o povo venezuelano quem terá a última palavra.

Colaborador

Socióloga e escritora, ex-Ministra do Poder Popular para a Cultura da Venezuela (2014 a 2016).

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