9 de novembro de 2022

Republicanos foram com tanta sede ao pote contra o aborto que espantaram eleitor mediano

Imbróglio explica por que o partido foi melhor nas corridas para a Câmara do que nas disputas para o Senado nas midterms

Hélio Schwartsman


Durante muito tempo, o Partido Republicano usou a bandeira da oposição ao aborto para mobilizar o eleitorado mais conservador. Nos EUA, onde o voto não é obrigatório, não basta conquistar a preferência do eleitor; é preciso também motivá-lo para sair de casa e visitar a urna. Funcionou.

Posições antiaborto, ou "pró-vida", como eles gostam de dizer, tornaram-se "mainstream" entre os republicanos. O presidente Donald Trump fez questão de nomear para a Suprema Corte três juízes contrários à prática. E eles não perderam tempo. Tendo a maioria da corte, repeliram Roe vs. Wade, a decisão de 1973 que assegurava nacionalmente às mulheres o direito de interromper a gravidez.

Em vários estados do Sul e do Meio-Oeste, regras extremamente restritivas passaram a valer automaticamente.

Eleitores votam nas midterms em Nova York - Sarah Blesener/The New York Times

A história de sucesso acaba aqui. Bandeiras pró-vida caíam bem entre os mais conservadores, mas não no conjunto da população. Mais de 40 anos de aborto legalizado fizeram com que o direito da mulher de decidir sobre o próprio corpo fosse incorporado à preferência média do cidadão americano.

Segundo pesquisa Gallup, apenas 19% dos americanos acham que o aborto deve ser proibido; 80% pensam que ele deve ser permitido, dividindo-se entre os que o chancelam em todos os casos (32%) e os que pensam que deve ser autorizado em determinadas circunstâncias (48%). Isso significa que o fim de "Roe vs. Wade" não foi bem recebido.

O Kansas, que é um estado bem mais rural e conservador do que a média nacional, já dera em agosto um sinal de que isso poderia ocorrer, quando uma consulta popular determinou que o aborto deveria continuar sendo um direito. Agora, nas eleições gerais de meio de mandato, o efeito voltou a aparecer com força em todo o país e pode ter sido parcialmente responsável por evitar o que seria uma avassaladora vitória republicana no Legislativo.

Pesquisa de boca de urna da rede CNN mostrou que 27% dos eleitores disseram que o aborto foi fator que mais influiu em seu voto, o que o coloca muito perto da economia, o eterno campeão. Mais ainda, quatro estados, Michigan, Kentucky, Califórnia e Vermont, realizaram consultas populares sobre o aborto, e os eleitores de todos eles decidiram manter ou expandir o direito.

O imbróglio ajuda até a entender por que os republicanos foram melhor nas corridas para a Câmara do que nas para o Senado. Por uma série de mecanismos, o Partido Republicano vem selecionando candidatos e lideranças que são mais radicais do que seu eleitorado médio, seja em questões comportamentais como o aborto, seja na defesa da tese trumpista de que o último pleito presidencial foi roubado.

Vários deles tiveram sucesso na disputa por uma cadeira na Câmara, já que ela se dá por meio de distritos que, por causa de anos e anos de "gerrymandering" (redesenho dos limites das seções eleitorais com o objetivo de favorecer o partido no poder), vêm se tornando cada vez mais radicais.

O problema é que a eleição para o Senado não se dá pelos distritos, mas tem âmbito estadual. Aí, afastar-se da preferência média do eleitorado deixa de ser uma vantagem para tornar-se um ônus.

Em resumo, a bandeira pró-vida, enquanto utilizada com moderação, ajudou os republicanos. Mas eles perderam a cabeça e foram posteriormente com tanta sede ao pote que ela acabou espantando o eleitor mediano e até o levemente conservador.

Há chance de algo parecido acontecer no Brasil? Eu receio que não. Nos EUA, é clara a preferência média por uma legislação pouco restritiva.

No Brasil, ocorre o contrário. Segundo o Datafolha, 71% querem ou manter a lei como ela está, só admitindo o aborto em caso de estupro ou risco de vida para a mãe, ou restringi-la ainda mais. Os que defendem sua ampliação ou o fim de qualquer limitação são apenas 26%.

Considerando-se que aqui o Congresso foi ainda mais para a direita e que o governo Lula não terá muita disposição de contrariar a bancada da Bíblia, as chances de descriminalização repousam todas no STF, que poderia em princípio reconhecer a decisão sobre seguir ou não com uma gravidez como um direito fundamental da mulher. Seria o "Roe vs. Wade" brasileiro.

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