12 de março de 2024

Transição deve considerar que haitianos querem guiar seu próprio futuro

País que protagonizou única revolta bem-sucedida de escravizados reclama de viver à mercê de ajuda internacional

Fabio Victor

Folha de S.Paulo

Quando explode mais uma crise no Haiti, muita gente esquece –ou nem sabe– que esse foi um dos primeiros países a abolir a escravidão no mundo e, mais importante, não por concessão do colonizador (a França, no caso), mas numa revolução em que o poder foi tomado pelos ex-escravizados.

Moradores de Porto Príncipe, capital do Haiti, deixam suas casas após gangues provocarem escalada da violência - Clarens Siffroy - 9.mar.24/AFP

Estamos falando do final do século 18, quase cem anos antes da abolição no Brasil. O Haiti era o principal produtor mundial de açúcar e o maior exportador mundial de café, e as condições dos trabalhadores dessas plantações ajudaram a detonar a insurreição.

A Revolução Haitiana começou em 1791, e dois ou três anos depois, ainda durante o processo, os revoltosos derrubaram a escravidão. Em 1804, declararam independência.

Trata-se do único caso na história de uma revolta bem-sucedida de escravizados.

Para o bem e para o mal, o passado rebelde molda a cultura haitiana. Se por um lado é um povo que não aceita ser subjugado por forasteiros, por outro sempre pagou um preço por essa insubmissão. A França cobrou uma indenização bilionária para reconhecer a independência e manter negócios com o país –cujo pagamento foi uma das causas do endividamento histórico haitiano. Os Estados Unidos demoraram décadas para reconhecer a autonomia do quase-vizinho caribenho.

Hoje três países têm influência política sobre o pequeno país que divide o território da ilha Hispaniola com a República Dominicana e tem o tamanho de Alagoas, segundo menor estado brasileiro: EUA, França e Canadá. O primeiro mais que os outros, em parte pela proximidade geográfica e pela enorme comunidade de haitianos-americanos vivendo lá (mais de 1 milhão).

Sem o poder econômico nem geopolítico dos norte-americanos, o Brasil ganhou alguma importância nesse cenário nos últimos anos, em certa medida por ter liderado militarmente a missão de paz da ONU mais duradoura no local —a Minustah, que se manteve no Haiti por 13 anos, de 2004 a 2017—, mas sobretudo pela crescente comunidade haitiana em solo brasileiro.

A migração em massa para cá começou após o terremoto de 2010, e o governo brasileiro calcula que cerca de 200 mil haitianos vivam hoje no país. Em visita recente à Guiana, o presidente Lula prometeu ajuda ao Haiti, mencionando entre as ações a inauguração de um centro de formação para jovens haitianos.

O apoio estrangeiro é fundamental neste momento de crise aguda. Períodos caóticos são uma constante no país caribenho, mas os eventos das últimas semanas atingiram o pico da desordem desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021.

Gangues dominam a capital, Porto Príncipe, promovendo ataques a delegacias, escolas, hospitais e ao aeroporto, que teve de ser fechado. O abastecimento de alimentos e água está restrito, e uma crise humanitária é iminente.

A pergunta a ser respondida é se e como a renúncia de Ariel Henry pode amenizar os ânimos. É possível que sim, ainda que temporariamente. Envolvidos indiretamente em duas guerras (Rússia-Ucrânia e Israel-Hamas) e no começo de uma campanha eleitoral, os EUA cobraram uma resposta internacional à crise.

O passado mostra que a resposta não deveria ser enviar mais uma missão militar. Em vez disso, melhor seria treinar efetivamente a polícia local, como vem sendo ensaiado ou já foi tentado de forma incipiente, sem êxito.

Mas, acima de tudo, como bem apontou neste jornal Werner Garbers, brasileiro que vive há quase 12 anos em Porto Príncipe, é preciso investir em infraestrutura, educação e emprego.

Isso implica ao mesmo tempo uma necessária e abrangente reforma do Estado, segundo a análise de Ricardo Seitenfus, ex-representante especial da OEA no Haiti e um brasileiro que conhece profundamente o país caribenho.

Defensor da tese de que a recorrente "ajuda humanitária" internacional é um entrave ao desenvolvimento haitiano, Seitenfus afirmava ainda no último final de semana que a fruta do poder estava mais uma vez madura e pronta para cair da árvore, e uma legião de atores se aprontava para a transição.

Henry caiu de maduro. Os passos seguintes serão cruciais para o futuro próximo do Haiti.

Qualquer medida precisa levar em conta que o protesto e a insubmissão são parte da cultura do país e que, desde sua histórica revolução, os haitianos exigem ser atores do seu próprio destino.

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