27 de setembro de 2024

O partido de Sahra Wagenknecht é um mau exemplo para a esquerda

Na Alemanha, o novo partido de Sahra Wagenknecht teve bom desempenho nos primeiros testes eleitorais. Mas o sepultamento da política de classe e a reprodução de posições de direita na questão da imigração mostram por que sua ascensão não representa uma boa notícia para a esquerda.

Pablo Castaño


Sahra Wagenknecht discursa no palco durante evento de campanha da BSW para a eleição estadual na Saxônia no dia 28 de agosto de 2024, em Dresden, na Alemanha. (Robert Michael / picture alliance via Getty Images)

Tradução / O bom desempenho da Aliança Sahra Wagenknecht (BSW) nas últimas eleições regionais da Alemanha chamou atenção da esquerda no nível internacional. Com sua liderança homônima, a ex-porta-voz do Die Linke, a BSW angariou mais de 10% de apoio nos estados da Saxônia, Turíngia e Brademburgo e agora pode até entrar no governo nessas três regiões no leste do país.

Mas se esse novo partido que se autointitula de “esquerda conservadora” está conquistando relativo sucesso eleitoral — superando os antigos companheiros do Die Linke —, seria esse um bom exemplo para partidos de esquerda de outros lugares? Em uma palavra: não. A BSW copia tanto a estrutura política quanto as principais propostas políticas da extrema direita e da direita, sobretudo no tema da migração, mas também em áreas como economia, clima e liberdade de expressão.

Crescimento eleitoral, mas sem parar a extrema direita

Não há dúvida do avanço eleitoral em si. As eleições europeias de junho viram a primeira participação da BSW em um pleito, alcançando 6,2% dos votos — desempenho melhor que tanto o Die Linke quanto o neoliberal Partido Democrático Liberal (FDP, na sigla em alemão), menores legendas do governo nacional do chanceler Olaf Scholz.

A líder da BSW, Wagenknecht, já foi uma das figuras de maior visibilidade do Die Linke, mas fazia críticas frequentes à liderança do partido. Ela atacava sobretudo a guinada ecológica da agremiação, seu apoio à política de portas abertas para a imigração implementada por Angela Merkel em 2015 e 2016 e a posição do partido sobre a pandemia, ecoando, por sua vez, uma visão cética sobre a vacina. Depois do fracasso do breve “movimento” Aufstehen (“Levantar-se”) promovido por Wagenknecht em 2018, a veterana da política acabou rompendo com o Die Linke, levando com ela boa parte das lideranças e parlamentares do partido.

O nascimento da BSW foi acompanhado de considerável atenção midiática, também motivada pela esperança de que a legenda ajudaria a interromper a ascensão do partido de extrema direita “Alternativa para a Alemanha” (AfD, na sigla em alemão). Infelizmente, essas previsões não se concretizaram. Na verdade, a AfD venceu as eleições na Turíngia e ficou em segundo em uma disputa apertada na Saxônia e em Brandemburgo, alcançando, no limite, os melhores resultados de sua história.

Ainda assim, o eleitorado da BSW parece vir de outros campos. Pesquisas realizadas após a eleição mostraram que a principal fonte de votos da BSW na Turíngia e na Saxônia foi o Die Linke, que já estava mergulhado em uma crise muito antes de Wagenknecht decidir romper com o partido. Fundado em 2007 na esteira da guinada neoliberal do Partido Social-Democrata (SPD, na sigla em alemão) e com profundas raízes nos movimentos sociais, o Die Linke derreteu nas eleições de 2021. Durante a campanha daquele ano, o partido de esquerda parecia estar mais concentrado na formação de uma coalizão com o SPD e os Verdes (Die Grünen) do que em buscar explicar a própria plataforma. A guerra na Ucrânia agravou ainda mais a disputa interna já existente no Die Linke, opondo, de um lado, a liderança que apoiava o alinhamento do governo de coalizão com Kiev e, de outro, a ala de Wagenknecht, que expressava crescente objeção a esse posicionamento.

As críticas às sanções contra a Rússia e o apoio militar de Berlim à Ucrânia, foi, com efeito, um dos elementos que mais atraiu eleitores para a plataforma da BSW: Wagenknecht convenceu uma parcela considerável do eleitorado de que a posição do governo a favor da Ucrânia é um desastre para a economia alemã, que depende em grande medida do gás russo. Nesse sentido, Wagenknecht conseguiu copiar a AfD, até então único partido a criticar abertamente as sanções contra a Rússia e o apoio militar a Kiev. Esse também foi um dos motivos para o crescimento eleitoral da extrema direita, sobretudo na antiga região Oriental.

Mas Wagenknecht não conseguiu atrair muitos dos eleitores da AfD nas eleições regionais de setembro. A BSW conquistou mais apoio entre antigos eleitores do Die Linke, dos Democratas Cristãos, do SPD e de pessoas que se abstinham de votar do que entre o antigo eleitorado da extrema direita. Esse partido, portanto, representou muito mais uma reordenação de um eleitorado amplo da esquerda do que um rival para a AfD.

Um ordoliberalismo de esquerda

A maior parte da energia por trás das críticas à esquerda do BSW se refere às posições do partido com relação à imigração. Mas há outros motivos para considerar essa nova legenda uma ameaça, e não uma oportunidade para a esquerda radical.

O primeiro são as posições econômicas de Wagenknecht. O partido herdou do Die Linke posições de esquerda sobre taxação e o controle de empresas estratégicas pelo Estado e os trabalhadores. Além disso, Wagenknecht tece uma crítica necessária à natureza neoliberal da União Europeia: ela já censurou o chamado Pacto de Estabilidade e Crescimento — que impede o investimento público — e defende a eliminação de paraísos fiscais, efetivamente tolerados pela UE mesmo dentro de suas fronteiras. Mas não é só isso. A ex-comunista Wagenknecht elogiou representantes das restrições orçamentárias ordoliberais, como o conservador Ludwig Erhard. Sua admiração pela versão alemã do neoliberalismo se traduz em um discurso econômico em que o principal sujeito não é a classe trabalhadora, mas pequenas e médias empresas (chamadas de Mittelstand).

“Elas têm sua própria cultura empresarial, com foco no longo prazo, na próxima geração, e não nos retornos trimestrais. Estão integradas nas comunidades locais, muitas vezes fazendo negócios entre empresas”, afirmou Wagenknecht em uma entrevista recente à New Left Review. Para essa antiga integrante do Partido da Unidade Socialista (SED, na sigla em alemão), “o que importa na Alemanha é a Mittelstand, o forte bloco de empresas menores que podem se posicionar para enfrentar as grandes corporações. Essa oposição é tão importante quanto a polaridade entre capital e trabalho”.

Essa visão é, com certeza, diferente da retórica “social” própria do Die Linke, cuja premissa são os interesses das pessoas de baixa renda. Ainda assim, a linha da BSW também reverbera com uma certa tradição da Alemanha Ocidental do pós-guerra, que colocou a classe média como pivô da democracia e do chamado sistema social de mercado. Por falta de um movimento de trabalhadores e trabalhadoras forte e combativo, essa visão idealizada de consenso social construída em torno de pequenas empresas parece conseguir atrair partes da própria classe trabalhadora e, notadamente, muitos antigos eleitores dos partidos Social-Democrata e Democrata Cristão. Mas a BSW não está enfrentando essa ideologia de aliança entre classes, mas sim ativamente promovendo-a.

A nova formação política também está longe da esquerda quando o assunto é política climática. O programa da BSW afirma que espera atingir a neutralidade climática por meio do “desenvolvimento de tecnologias inovadoras importantes”, enquanto sua plataforma para as eleições europeias defende o desenvolvimento de “combustíveis neutros para o clima”. Ainda assim, a debilidade do compromisso ambiental de Wagenknecht se confirma na posição de seu partido contra o abandono de motores de combustão interna até 2035 (conforme plano atual da UE).

A posição dela se relaciona com uma forte antipatia pelos Verdes, principais representantes, para Wagenknecht, do liberalismo progressista que ela busca combater. Sem dúvida, a deriva neoliberal e militarista do partido verde alemão já distanciou, há muito tempo, a legenda da esquerda. Mas dificilmente se poderia concluir que a agenda verde individualista voltada para o consumidor seja de fato o limite do clamor por justiça climática. A BSW, no entanto, não demonstra nenhum interesse de desenvolver um ambientalismo socialista.

“Minorias bizarras”?

Um dos eixos programáticos da BSW é a “liberdade de expressão”, demanda clássica da esquerda. No entanto, na insistente retórica da BSW, a grande ameaça é a “cultura de cancelamento” da esquerda. O programa eleitoral do partido denuncia um “progressivo estreitamento do campo autorizado de expressão”, enquanto no livro Die Selbstgerechten (“Os farisaicos”, em tradução livre), Wagenknecht denuncia os progressistas preocupados com as “minorias cada vez menores e mais bizarras”, contra as quais advoga pela “normalidade”.

O programa da BSW tem o intuito de combater um “novo autoritarismo político que se arroga o poder de educar as pessoas e regular sua forma de viver ou sua linguagem”, enquanto sua líder adota em seu livro a retórica da direita sobre uma “teoria de gênero liberal de esquerda”, que despreza as lutas feministas e queer.

Ao opor a defesa das minorias à defesa do povo, Wagenknecht ignora que a esquerda tem muitas vezes combinado as duas coisas ao longo da história. Com efeito, lideranças populistas de esquerda do período recente, como Bernie Sanders, Jeremy Corbyn e Pablo Iglesias, fazem isso muito bem. Os comentários de Wagenknecht, ao contrário, apresentam ameaças à liberdade de expressão de maneira quase indistinguíveis daquelas vindas da extrema direita, e não um ataque às políticas realmente graves de Estados e monopólios digitais.

Ainda mais preocupante é a proximidade da BSW com a AfD no tema da migração. Wagenknecht concorda com a extrema direita ao apontar para a chegada de trabalhadores estrangeiros como um grande problema social. Vale admitir que esse enquadramento também foi adotado por partidos do governo federal (SPD, os Verdes e o FDP), que recentemente anunciaram a adoção de controles nacionais das fronteiras e restrições ao direito de asilo. Wagenknecht tentou dar uma base social a sua oposição à imigração, argumentando no livro Die Selbstgerechten que os imigrantes “concorrem diretamente pelos empregos dos alemães”, reduzindo o nível dos salários e aumentando o valor dos aluguéis. Essa retórica supõe inevitável o enquadramento liberal de oferta e demanda, em vez de defender com veemência políticas públicas fortes para limitar o preço dos aluguéis e aumentar os salários. Talvez a rendição de Wagenknecht à mão invisível do mercado tenha a ver com sua admiração pelos fundadores do ordoliberalismo alemão.

Acompanhando um diagnóstico que culpa a população migrante pelas desigualdades que são essenciais ao capitalismo neoliberal, o programa europeu da BSW defende “o fim da imigração descontrolada para a UE”, retórica indistinguível daquela da extrema direita, e se traduz na proposta de transferir os procedimentos de solicitação de asilo para fora das fronteiras europeias – exatamente o mesmo argumento da AfD. Wagenknecht definiu a política de “fronteiras abertas” como “o vazio das políticas imigratórias neoliberais”. Na verdade, a neoliberal União Europeia fez exatamente o oposto: reforçou as barreiras de suas fronteiras externas, o que levou à morte mais de 30 mil pessoas no Mediterrâneo na última década. No programa da BSW, não há nenhum traço de formulação de políticas para abrir rotas legais e seguras para a migração, um vácuo compartilhado tanto com a extrema direita quanto com os grandes partidos europeus.

Ainda que Wagenknecht declare oposição ao racismo, sua retórica por vezes pende para a xenofobia, como quando exclamou: “A Alemanha está sobrecarregada, a Alemanha não tem mais espaço.” O programa eleitoral da BSW para a UE alegou que, na França e na Alemanha, existem “sociedades paralelas influenciadas por islamistas” em que “as crianças crescem odiando a cultural ocidental” – descrição alarmante que parece copiada do manual de estratégias de Marine Le Pen. A líder da BSW também recorreu ao que acadêmicos chamam de “femonacionalismo”, apresentando o patriarcado como um fenômeno meramente importado de fora para a Alemanha: “As mulheres no nosso grupo [BSW] particularmente estão felizes de viver em um país que, em grande medida, superou o patriarcado, e elas não querem vê-lo reintroduzido pela porta dos fundos” – ou seja, pela imigração.

A intenção de Wagenknecht de atrair os eleitores da AfD se traduz em uma atitude mais cuidadosa com relação ao partido xenofóbico. A líder do BSW se recusou a participar das grandes manifestações antifascistas realizadas neste ano, e se recusou também a definir a AfD como extrema direita, apesar de ser um rótulo amplamente aceito. A brandura da ex-comunista para com a AfD rendeu a ela em 2022 a capa da Compact, revista conservadora aberta a algumas formas de social-democracia, e um convite para se unir ao partido vindo de Björn Höcke, liderança da legenda na Turíngia.

Enquadramento de extrema direita favorece a extrema direita

Uma análise das propostas e discursos de Wagenknecht mostra que ela, em grande medida, copiou o enquadramento político da extrema direita. O “conservadorismo de esquerda” que ela quer representar esconde a contradição entre capital e trabalho em uma amálgama de diferentes classes, apresenta a diversidade social como ameaça e divide a classe trabalhadora ao retratar a população de origem estrangeira principalmente como migrante, não como trabalhadora. Com essa base, a BSW não enfrentará nem rivalizará com a ascensão de ideias de extrema direita na Alemanha, mas sim as alimentará.

A BSW tece uma crítica necessária à arquitetura neoliberal da UE e é uma voz poderosa contra a Otan e o crescente militarismo europeu. Mas a adoção das linhas divisórias da extrema direita impede o partido de Wagenknecht de se tornar uma inspiração valiosa para a esquerda em outros países. A sigla está longe do exemplo político da França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon, que levou a esquerda a uma vitória histórica ao atrair explicitamente o eleitorado de origem estrangeira e enfrentar abertamente as políticas xenofóbicas e antissociais de Le Pen e Emmanuel Macron. Sua trajetória nos mostra que não é necessário se render à visão de sociedade da extrema direita para vencer.

Colaborador

Pablo Castaño é jornalista freelancer e cientista político. É doutorado em Política pela Universidade Autónoma de Barcelona e escreveu para Ctxt, Público, Regards e The Independent.

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