26 de setembro de 2024

O espírito da Comuna de Paris ainda está vivo

Pensadores como Karl Marx e Peter Kropotkin identificaram a comuna como a estrutura política para uma sociedade transformada e radicalmente democrática. Podemos encontrar exemplos disso em algumas das principais lutas sociais e ambientais do mundo hoje.

Kristin Ross

Cena da Comuna de Paris, 1871. (Heritage Art / Heritage Images via Getty Images)

Este é um trecho de The Commune Form: The Transformation of Everyday Life, de Kristin Ross, agora disponível na Verso Books.

Tradução / Quando Karl Marx, observando de Londres, leu relatos sobre o que acontecia nas ruas de Paris na primavera de 1871, tudo indica que ele começou a imaginar, pela primeira vez na vida, como são os trabalhadores comuns quando se comportam como donos de suas vidas e não como escravos assalariados.

Em A guerra civil na França, Marx observa devidamente as conquistas legislativas dos Communards. Mas foi a forma que suas vidas estavam tomando, a arte e a administração de suas vidas diárias, que prenderam sua atenção e que mudariam o caminho de sua própria pesquisa e escrita na última década de sua vida.

As questões que ele abordou nos últimos anos, os materiais que selecionou e as paisagens intelectuais, políticas e geográficas mais amplas que mapeou para si mesmo, todos passaram por alterações substanciais devido ao seu encontro com a forma comunal. Os ideais communards em 1871, por mais elevados que pudessem ter sido, não o preocupavam. Em vez disso, eram as práticas dos communards — a própria “existência real de trabalho” da Comuna, como ele disse — que contavam.

A forma comunal

A curiosidade e a admiração de Marx foram reservadas para a descoberta e implementação por pessoas comuns, “finalmente”, de uma forma: “A forma política sob a qual se elabora a emancipação econômica do trabalho”. A emancipação econômica do trabalho, ao que parece, não era uma meta aspiracional ou uma recompensa por bom comportamento. Na forma viva e pulsante de pessoas levando vidas sem roteiro baseadas em cooperação e associação, em sua “colaboração apaixonada” — a frase é de Charles Fourier — essa emancipação já estava materialmente em andamento.

Os trabalhadores queriam organizar sua própria vida social de acordo com princípios de associação e cooperação. Eles deram a esse desejo o nome de “comuna”, ecoando o slogan que começou a ressoar em reuniões e clubes de trabalhadores por toda a cidade no final do Segundo Império. A Comuna de Paris foi uma intervenção pragmática no aqui e agora.

A forma comunal é, antes de tudo, sobre pessoas vivendo de forma diferente e mudando suas circunstâncias ao trabalhar dentro das condições disponíveis no presente. Nesse sentido, a forma como forma era indistinguível das pessoas específicas que estavam mudando suas vidas, vivendo de modo diferente, naquele momento no tempo e no espaço — os bairros — em que estavam fazendo isso.

Em outra de suas formulações bem citadas, Marx escreve sobre os communards “esmagando o Estado”. No entanto, em suas atividades diárias, havia menos destruição acontecendo, como eu vejo, do que uma espécie de desmantelamento passo a passo. O desmantelamento de qualquer quantidade de hierarquias e funções estatais estava em andamento, e mais importante, do que faz da política uma atividade especializada sequestrada para os poucos enfadonhos operando a portas fechadas.

Descoberta e redescoberta

Onde Marx viu na Comuna de Paris de 1871 a descoberta importante de uma forma, Piotr Kropotkin, ao que parece, viu antes a redescoberta da forma. Assim, uma das mais interessantes entre as muitas reflexões de Kropotkin sobre a forma da comuna não ocorre em seus escritos sobre a insurreição de 1871, mas, ao invés disso, no decorrer de sua longa história de outra revolta francesa — a grande, como ele a chamou no título de seu livro A grande revolução (1789–1793).

A alma da Revolução Francesa de 1789, seu único vigor, ele escreve, consistia nos sessenta e poucos distritos que surgiam diretamente de movimentos populares e não se separavam do povo, os distritos que fizeram da cidade de Paris uma vasta Comuna insurrecional: “A novidade que foi introduzida [pelo povo francês] na vida da França foi a Comuna popular. A centralização governamental veio depois, mas a Revolução começou criando a Comuna.”

De igual importância para os distritos vizinhos da capital, Kropotkin deixa claro, eram as comunas camponesas. Sucessivas insurreições camponesas desempenharam um papel geralmente subestimado, mas decisivo, na radicalização do processo revolucionário entre 1789 e 1794.

Foram essas últimas forças do campo que exigiram a abolição dos direitos feudais e a devolução das terras que os senhores e o clero haviam tomado das aldeias a partir do século XVII. Afinal, como Kropotkin nos lembra, o principal instrumento de exploração do trabalho humano naquela época não era a fábrica, que mal existia, mas sim a terra.

Foi em direção à posse comunitária de terras que o pensamento revolucionário do século XVIII estava focado. (O mesmo, eu poderia acrescentar, poderia ser dito de nosso próprio tempo.) A revolta das comunas de aldeia no campo, ele escreve, “é a própria essência, a fundação da grande Revolução”. Ao mesmo tempo, Paris “preferiu se organizar em uma enorme comuna insurgente, e essa comuna, como uma comuna da Idade Média, tomou todas as medidas necessárias de defesa contra o Rei”.

Foi Paris como Comuna que derrubou o rei, que se tornou a arma dos sans-culottes contra a realeza e os conspiradores, e que empreendeu o nivelamento das fortunas. Os distritos parisienses deveriam manter a iniciativa revolucionária por quase dois anos. Os distritos não eram apenas “o verdadeiro centro e o verdadeiro poder da Revolução”, mas, quando eles morreram, a revolução em si terminou, pois um governo centralizado começou a se solidificar.

Democracia direta

Para Marx e Kropotkin, a revolução é indistinguível da democracia direta da forma comunal, e essa democracia é uma revolta contra os excessos das formas políticas vigentes. Foi isso que Marx quis dizer quando se referiu à Comuna de Paris como “uma forma política completamente expansiva”. A forma comunal, para Marx e Kropotkin, é ao mesmo tempo o contexto e o conteúdo da revolução, ou, nas palavras de Kropotkin, “o cenário necessário para a revolução e os meios de fazê-la acontecer”.

O nome “Comuna”, como tal, representa e abrange o que Kropotkin (e a maioria dos historiadores) entendem ser a força mais radicalmente democrática em ação na Revolução Francesa. Mas Kropotkin está dizendo algo mais do que isso. Revolução, em sua visão, nada mais é do que o conflito entre o Estado de um lado e as comunas do outro.

A contradição não é entre o Estado e a anarquia, mas entre o estado e outra organização da vida política, um tipo alternativo de inteligência política, um tipo diferente de comunidade. Na medida em que o Estado recua, as comunas e seu modo de vida florescem.

Se o papel do Estado é de fato administrar todos os aspectos das sociedades enquanto as domina e as perpetua, então talvez seja melhor para nós não ver a forma Estado como algo final, realizado. Podemos estar melhor vendo-a como uma tendência, uma orientação. O mesmo, então, seria verdade para a forma comunal: é melhor pensar nela não como algo realizado, mas sim como uma tendência, uma orientação.

As observações feitas por Marx e Kropotkin sobre a forma comunal na história revolucionária francesa podem nos ajudar a isolar alguns fios ou componentes recorrentes e reconhecíveis da forma política em questão. O espaço-tempo da forma comunal está ancorado na arte e organização da vida cotidiana e em uma responsabilidade coletiva e individual assumida pelos meios de subsistência.

Portanto, necessariamente, implica uma intervenção altamente pragmática no aqui e agora e um compromisso de trabalhar com os ingredientes do momento presente. Pressupõe um cenário que seja local, baseado em um bairro ou circunscrito. As distintas dimensões espaciais e a temporalidade da forma comunal se desdobram ao lado — ou dentro do contexto de — um Estado distante, desmantelado ou em desmantelamento, ou um Estado cujos serviços foram tornados redundantes por um grupo de pessoas que assumiram a gestão de suas próprias preocupações.

Definindo lutas

Meu objetivo nessas breves reflexões não é fornecer uma definição de uma forma que, em sua contingência, falta de abstração e natureza contínua e inacabada, dificilmente poderia se prestar a tal tarefa. A forma comunal, como forma, não se presta a uma definição estática, inalterável ao longo do tempo; ela não se desdobra da mesma forma em todos os lugares do mundo.

Na verdade, é inseparável de suas várias instanciações históricas, do que Marx poderia ter chamado de suas várias “existências de trabalho”, cada uma das quais se envolve com as condições particulares do presente, em uma situação particular. E então é para a história que devemos olhar, para a história das lutas materiais reais, para encontrar tais momentos de criações alternativas e reencenações, da melhor forma que pudermos, com iniciativas e experimentos relacionados em nosso próprio tempo, não apenas suas próprias “existências de trabalho” particulares, mas os ecos complexos que elas entretêm.

Essas são experiências locais que se recusam a ser definidas por um chauvinismo localista. Somente recriando situações passadas — re-situando o que são, de fato, batalhas específicas locais — podemos começar a perceber sua relação com outras experiências em outros lugares temporal e geograficamente.

Nos últimos anos, lutas territoriais dinâmicas como a ZAD (que significa “Zona para Defender”) perto da vila rural de Notre-Dame-des-Landes no oeste da França, ou as ocupações de oleodutos na América do Norte, reviveram aspectos da forma comunal e a tornaram sua. Movimentos como a defesa da Floresta Weelaunee em Atlanta (Stop Cop City) estão criando intervenções poderosas na destruição cada vez mais acelerada do meio ambiente que transpira em todos os lugares ao nosso redor.

A existência desses movimentos hoje — o próprio fato deles — também teve um efeito secundário, mas, a meu ver, não menos dramático: eles alteram o que é perceptível sobre o passado recente, e especialmente as décadas de 1960 e 1970. As preocupações ecológicas de hoje despertam novos ecos do passado recente que, por sua vez, alteram nossa compreensão do que conta agora.

As lutas contemporâneas baseadas na questão da terra nos ajudam a remodelar um novo sentido das principais linhas de conflito da segunda metade do século XX até o nosso tempo. Elas mudam nossa compreensão do que importava então e do que importa (ou do que é útil para nós) agora. Batalhas de longo prazo travadas na década de 1970 por fazendeiros e seus aliados no sul da França e fora de Tóquio para impedir a apreensão de suas terras para desenvolvimento de infraestrutura ou para os militares se tornam visíveis como o que podemos vê-las agora — as lutas definidoras do período.

À luz dos movimentos contemporâneos, o cenário teórico recente também se encontra reconfigurado. O marxismo antiprodutivista dos anos 1970 de um pensador como Henri Lefebvre, amplamente ignorado na época na França (embora não nas Américas), assume uma nova ressonância, em grande parte por causa da preocupação de Lefebvre com a questão tão central para a forma comunal da vida cotidiana: seus descontentamentos e suas alternativas. Seus texto, e outros, dos anos 1970 tornam-se recentemente disponíveis para nosso uso em esforços para superar a lógica capitalista no presente por meio da reconquista do tempo e do espaço vividos.

Colaborador

Kristin Ross é professora de literatura comparada na Universidade de Nova York e autora de Communal Luxury: The Political Imaginary of the Paris Commune.

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