23 de dezembro de 2010

Obscurantismo contemporâneo

Alain Badiou

Le Monde

Tradução / Como devemos chamar as construções intelectuais extraordinárias que são os trabalhos de Darwin, Marx e Freud? Elas não são estritamente ciências, mesmo se a biologia – incluindo a biologia contemporânea – for pensada dentro da moldura darwiniana. Elas certamente também não são filosofias, mesmo se a dialética, esse antigo nome platônico para filosofia, tenha ressurgido com Marx. Elas não podem ser reduzidas a práticas às quais esses autores jogaram luz, mesmo se a experimentação prova a razão de Darwin, mesmo se políticas revolucionárias tentam verificar a hipótese comunista de Marx, e mesmo se a cura psicanalítica coloque Freud nas fronteiras sempre confusas da psiquiatria.

Vamos chamar o “século 19” de período que vai da Revolução Francesa à Revolução Russa. Eu proponho chamar essas três tentativas de dispositivos de pensamento geniais e, afirmando isso, em um certo sentido esses dispositivos identificam o que o século 19 trouxe, como uma nova força, para a história da emancipação humana. Depois de Darwin, os movimentos da vida humana e da existência, irrevogavelmente desvencilhados de toda transcendência religiosa, foram deixados à imanência de suas próprias leis.

Depois de Marx, a história dos grupos humanos foi removida tanto da opacidade da providência e da onipotência quanto das inércias opressivas da propriedade privada, da família e do Estado. Ela foi deixada ao jogo livre das contradições dentro da qual um futuro igualitário deve ser ser escrito – mesmo se for com esforço e incerteza. Depois de Freud, ficou compreendido que não há alma, cujo treinamento seria sempre algo moralizante, opondo os desejos primordiais ao que a infância traz com o que será. Ao contrário, é no centro desses desejos, particularmente dos desejos sexuais, que a possível liberdade do sujeito está em jogo – uma liberdade em que ele ou ela dependem da linguagem, esse resumo da ordem simbólica.

Por muito tempo, todas as formas de conservadorismo atacaram esses três grandes dispositivos. É natural. É muito bem conhecido o fato de que nos Estados Unidos, mesmo hoje, as instituições educacionais são geralmente forçadas a opor o criacionismo bíblico à evolução em um sentido darwiniano. A história do anti-comunismo praticamente sobrepõe-se à da ideologia dominante em todos os grandes países em que o capital-parlamentarismo reina sob a capa da “democracia”. A psiquiatria positiva, que vê desvios e anomalias em todos os lugares que devem ser contra-atacados com o uso brutalidades químicas, tenta desesperadamente “provar” que a psicanálise é uma impostura.

Por muito tempo, particularmente na França, não obstante, os imensos efeitos emancipatórios, em pensamento e ação, de Darwin, Marx e Freud, prevaleceram em meio a argumentos ferozes, revisões agonizantes e críticas criativas. O movimento desses dispositivos dominou a arena intelectual. Conservadorismos estavam na defensiva.

Depois do vasto processo de normalização em escala global que começou nos anos 1980, todo tipo de pensamento ou mera crítica emancipatória é inconveniente. Portanto, nós temos visto um esforço atrás do outro para remover todos os traços desses grandes dispositivos de pensamento que são cunhados como “ideologias” onde eles são exatamente a crítica racional da ideologia por si só. A França, de acordo com Marx o “lugar clássico da luta de classes”, se viu sob a ação de pequenos grupos de renegados da “década vermelha” (1965-1975), que estão na linha de frente dessa reação. Nós temos testemunhado a multiplicação de “livros negros” sobre o comunismo, sobre a psicanálise, sobre o progressismo e sobre tudo que não é igual à estupidez contemporânea: consumir, trabalhar, votar e calar a boca.

Entre essas tentativas, que, sobre o rótulo de “modernidade”, reciclam as tolices obsoletas liberais da década de 1820, as menos detestáveis não são aquelas derivadas de um materialismo do prazer que atua como uma espécie de vigia, particularmente em relação à psicanálise. Longe de ser qualquer tipo de emancipação, o imperativo “aproveite!” é aquele que as tão proclamadas sociedades ocidentais nos ordenam a obedecer. E isso para nos prevenir de ver o que realmente conta: o processo em que algumas verdades disponíveis são liberadas, que os grandes dispositivos de pensamentos costumavam considerar.

Portanto, devemos chamar de “obscurantismo contemporâneo” todas as formas, sem exceção, de supressão e erradicação do poder contido, para o benefício de toda a humanidade, em Darwin, Marx e Freud.

13 de dezembro de 2010

Chega de direitos humanos

WikiLeaks e Saara Ocidental

Jeremy Harding


Tradução / Graças a WikiLeaks, aprendem-se duas coisas sobre a ocupação ilegal, pelo Marrocos, do Sahara Ocidental, lições que nos vêm da Embaixada dos EUA em Rabat: 1) a ocupação é fonte de renda pessoal para oficiais do exército marroquino, mas... 2) tudo bem, tudo ótimo.

O Sahara Ocidental foi possessão espanhola, que Madrid teria de entregar às populações nativas em 1975. O rei Hassan II do Marrocos aproveitou-se do caos reinante na Espanha ao tempo da morte de Franco e anexou o território. A ONU lamentou muito; a Frente Polisario embarcou numa guerra de libertação, que acabou em impasse e num cessar-fogo, em 1989. Naquele momento, o Marrocos controlava a maior parte do território, onde fazia jorrar colonos, com o projeto de superar, em números populacionais, os sarauis indígenas.

Sob auspícios da ONU, os dois lados – o reino do Marrocos e a Frente Polisario – concordaram que a independência passaria porreferendum. Vinte anos depois, ainda não aconteceu e já ninguém espera que aconteça: os marroquinos avançaram sobre o terreno, encontrando resistência bizantina, ano após ano. A missão da ONU foi posta de lado; o projeto colonial avança; há centenas de milhares de refugiados na Argélia e uma população no território, sempre punida quando reivindica direitos de independência.

São questões de somenos para o embaixador Thomas T. Riley, escrevendo de Rabat em 2008. O que conta é “a robusta relação militar entre EUA e Marrocos”, confirmada pela “compra de armamento sofisticado dos EUA, que incluirá, esse ano, 24 F-16s”[1]. O regime, anuncia Riley:

“também aumentou suas atividades num acordo de parceria com a Guarda Nacional de Utah, que visita regularmente o Marrocos para conduzir operações de treinamento e ajuda humanitária”.

Ainda assim, perturba-o um pouco a corrupção no exército do Marrocos (no total, 218 mil soldados; entre “50 e 70% (...) preocupados com operações na região do Sahara Ocidental”). Riley cita o Tenente General Abdelaziz Bennani, comandante da Sessão Sul – i.e. o território anexado. Ao que parece, Bennani:

“usou sua posição para arrancar dinheiro de empresas fornecedoras dos militares e influenciar decisões comerciais. Boato muito disseminado diz que é proprietário de grandes fatias de empresas pesqueiras no Sahara Ocidental (...) há relatórios, inclusive, de alunos da Academia Militar do Marrocos que pagam para obterem indicação para postos militares mais lucrativos.”

No topo da lista: o Sahara Ocidental

Riley arranjou excelente emprego na Savvis, a empresa de comunicações, depois que os Republicanos perderam a Casa Branca. Fast forward até o verão de 2009: outro par de mãos trabalha no laptop em Rabat – o chargé d’affaires, Robert P. Jackson – que digita outro telegrama que tem muito prazer em intitular “Western Sahara Realities” [Realidades do Sahara Ocidental]’ [2]. E repete os números de Riley – cerca de 150 mil soldados marroquinos estão alocados no Sahara Ocidental – e diz, corretamente, que 385 mil pessoas vivem na área anexada. (Só uma faixa ‘liberada’, à margem do deserto, é ainda controlada pela Frente Polisario, e o cessar-fogo continua vigente.)

Jackson acerta também ao dizer que os colonos marroquinos chegam hoje “a bem mais da metade daquele número”. Esse portanto é território cuja população nativa é apenas ligeiramente maior que o número de soldados ali alocados por Rabat: a proporção é quase de 1:1. Se isso não for repressão, o que mais será? Lá estarão para dar aulas de educação moral e cívica? O exército marroquino organizará seminários sobre genealogia dos mórmons, para proveito da Guarda Nacional de Utah? Pois Jackson escreve que “o respeito aos direitos humanos no território melhorou muito”2. Admite que os cidadãos nativos não têm direito de reivindicar qualquer independência: talvez os direitos humanos dos sarauís sejam como direitos animais das raposas, que já conquistaram o direito de se meterem na toca, à espera de que alguém defenda o direito das raposas. Mas não esperem que Jackson – hoje embaixador dos EUA em Camarões – faça o serviço.

Há oito anos, perto de Layoune, capital do Saara Ocidental, os sarauís organizaram um acampamento para protestar contra a ocupação marroquina foi invadido e sitiado pelos militares e, em novembro, foi destruído; houve 60 feridos e foram presos os suspeitos de sempre. E só, em matéria de direitos humanos dos sarauís.

Há até passagens mais preocupadas com a natureza do conflito, no telegrama de Jackson. Pergunta-se por que a Frente Polisario (a qual, segundo ele, operaria “à moda dos cubanos”) jamais reclamou áreas do próprio Marrocos, da Mauritânia ou da Argélia, onde vivem grandes números de sarauís, como parte do Estado independente que reivindicam. Conclui que não o fazem foi falta de “um nacionalismo mais amplo”, de onde conclui que a disputa é estreitamente territorial – expressão de antigas tensões de fronteira entre Marrocos e Argélia, com a Frente Polisario atuando como cúmplice dos argelinos.

Sim, sim, trata-se de território, mas só na medida em que a descolonização do Sahara espanhol deveria ter implicado em direito à independência. A etnia dos que vivem na região, ou de outros, além fronteiras, nada tem a ver com isso. Seja qual for o papel da Argélia nesse conflito, a Frente Polisario jamais comprometeria seus objetivos desafiando a Organização da Unidade Africana (OAU) ou a inviolabilidade das fronteiras coloniais e sonhando com um Sahara Ocidental ‘maior’, expandido. Tivesse feito isso, não teria recebido parecer favorável da Corte Internacional de Justiça, a ONU não teria concordado com o referendo sobre a independência, e o governo do que é hoje o único território colonizado da África (República Árabe Democrática Sarauí, ing. Saharawi Arab Democratic Republic, SADR o SADR) não seria membro da União Africana nem seria reconhecida por 81 Estados.

Pois... vejam só! Um chargé d’affaires em Rabat desqualifica o movimento de independência, porque fez o que deveria ter feito. Já o Marrocos, que viola rotineiramente fronteiras de um Estado soberano, que viola as aspirações legítimas dos sarauís, que infla a terra anexada com colonos e soldados... é premiado com duas dúzias de aviões bombardeiros para a própria ‘proteção’!

29 de novembro de 2010

Dois elogios para o WikiLeaks

Bernard Porter


Tradução / Bem, grande coisa não há. Mas, até aqui, só nos serviram pequenas fatias saborosas selecionadas pelos editores dos jornais premiados com uma prévia da coisa toda: selecionados por critérios dos jornais (em geral, os temas que renderiam as melhores manchetes, por país); e aparentemente pesadamente "editados" pelos jornalistas. O que ainda esteja por vir, não sabemos. (Tentei entrar diretamente na página de WikiLeaks, mas não consegui. Meu computador estará envelhecendo? Tráfego congestionado na internet? Alguma espécie de bloqueio?) Mas é pouco provável que se encontrem lá coisas realmente perigosas, tipo ‘top secret’, que provavelmente é material mais bem protegido.

O que mais se encontra nos WikiVazamentos, a julgar pelo que vi, são fofocas, e praticamente nenhuma novidade. As fofocas são evidentemente embaraçosas e poucos dizem sobre os assuntos ‘fofocados’: o que nos importa que o coronel Gaddafi ande pelo mundo com uma “voluptuosa enfermeira ucraniana”?! Será verdade? Será mentira? 

Por outro lado, as fofocas dizem muito sobre o modo de pensar dos fofoqueiros; sobretudo quando se tem a oportunidade de examinar uma grande amostra de material redigido, por exemplo, pelos embaixadores dos EUA em Londres. 

Descobri esse filão quando pesquisava as cartas privadas trocadas entre o Foreign Office e vários embaixadores britânicos nos anos 1850s: as cartas acompanhavam os telegramas oficiais, mas, diferentes dos telegramas, não eram reveladas ao Parlamento. O sistema de preconceitos que se inferia daquelas cartas tornava muito mais inteligíveis as políticas britânicas, do que os argumentos “oficiais” que acompanhavam, como “justificativas”, as propostas políticas.

Quanto a “já sabíamos disso”: sim, sim, muita gente sabia, mas muito do que já se sabia foi oficialmente desmentido no momento do evento, ou – o que é ainda pior – foi atribuída a alguma paranóia esquerdista ou sumariamente descartado como produto de alguma “teoria da conspiração”. 

Em geral, são necessários no mínimo 30 anos para que historiadores afinal possam exibir provas de que a sempre tão demonizada esquerda afinal tinha mesmo razão numa ou duas de suas análises. (Ou, vez ou outra, é a direita. Por exemplo, a velha história do “ouro de Moscou” do velho Partido Comunista da Grã-Bretanha.) Mas quando afinal a verdade aparece já é tarde demais e ninguém se interessa por ela. E é assim que, depois de 30 anos, os safados conseguem escapar, outra vez

Revelações instantâneas, no calor da hora, dificultam ou, pelo menos, diminuem a probabilidade de que os safados escapem. E isso, me parece, justifica a divulgação, por WikiLeaks, dessa recente imensa quantidade de documentos semissecretos da diplomacia dos EUA. 

Mas vejo alguns problemas. Primeiro, o problema da escala astronômica. Quem, afinal, conseguirá examinar tantos documentos e saber o que realmente documentam? Os historiadores só poderiam trabalhar com razoável segurança, se todo esse material tivesse aparecido, digamos, ao longo de trinta anos, ano após ano. E em todos os casos se aproximariam do material já com algumas ideias reunidas de outras fontes, e mesmo que provisórias, que lhes dariam um contexto histórico para os aspectos que mais lhes interessasse investigar. E trabalhariam com todo o conjunto dos dicta de cada embaixador dos EUA, por exemplo. Para isso, precisamente, inventaram-se as análises quantitativas. 

Um segundo problema é o modo como essa informação é abordada pela imprensa e pelos leitores: todos à procura de ‘revelações’, de porções mais sexy, de alguma “denúncia”, todos trabalhando com programas de busca por palavras-chaves e por aí vai. Respostas instantâneas (espero que não aconteça no caso dessa minha resposta instantânea) estimulam esse tipo de reação. 

O terceiro problema é que agora que toda aquela gente já sabe que suas opiniões e fofocas não são protegidas, de fato, por nenhum tipo de proteção confiável, e podem acabar publicadas em jornais, eles nunca mais escreverão tanto, nem tão descuidadamente. Assim, os historiadores do futuro não terão tanta informação da qual inferir os preconceitos que geram as atuais políticas quanto temos hoje – nesse que provavelmente foi o último jorro diluviano de material escrito para ser secreto, mas que acabou por chegar aos ouvidos do povo.

Nada disso deve ser lido como argumento contra revelar tudo o que foi revelado. Não gostaria de por meus interesses de historiador acima dos meus interesses de cidadão. Tenho-me divertido muito lendo o que fulano ou beltrano pensa de David Cameron ou de Nicolas Sarkozy ou de seja lá quem for, tanto quanto qualquer leitor de jornal não historiador. 

Estou gostando de ver com que facilidade algumas revelações já lançam dúvidas sobre o velho mito das boas relações anglo-norte-americanas – e não me incomodará se a coisa toda ruir como castelo de cartas. Não me incomoda ver tantos políticos tão atrapalhados; e adoraria – embora sem qualquer esperança de que aconteça – que todos os políticos que hoje tanto nos envergonham fossem trocados por outros que nos envergonhassem menos. 

De fato, encho-me de novas esperanças, ao ver que todos esses políticos e autoridades e embaixadores são tão ingênuos a ponto de entregar toda sua correspondência confidencial a um sistema tecnológico que pode ser facilmente violado por um hacker de 23 anos. Em certo sentido, vejo a coisa como deserção do sistema oficial de vigilância ao qual nós, cidadãos ordinários, estamos submetidos há anos. Não me parece, pelo que vi até aqui, que alguma vida tenha ficado ameaçada por causa daquilo lá. Assim sendo, no geral, congratulo-me, com algumas reservas, com WikiLeaks, por ter feito o que fez.

E estamos ainda no começo. Será interessante ver o que mais aparecerá nas próximas semanas; e se o que aparecer fará alguma diferença. Se fizer, seja qual for, é possível que eu descarte parte da minha reserva.

9 de novembro de 2010

É hora de rejeitar o consenso de Washington

Em Seul, a reunião do G-20 tem a chance de abandonar o dogma que reteve o mundo em desenvolvimento

Ha-Joon Chang


A reunião do G-20 esta semana, nos dias 11 e 12, em minha cidade natal, Seul, na Coreia do Sul, tem uma importância simbólica - é a primeira vez que a nova principal mesa de negociações do mundo reúne-se fora dos países do G-7, assumindo o papel de principal organismo de coordenação mundial de políticas de governo.

Agora que a reação inicial à crise terminou, o G-20 está buscando uma missão. Meus colegas coreanos querem um foco em "desenvolvimento", especialmente dos países mais pobres do mundo. Mas antes de acolher a iniciativa com braços abertos, é preciso perguntar que tipo de desenvolvimento o G-20 deve tentar estimular.

Um lugar evidente onde buscar inspiração é a história recente do país anfitrião. No curso de minha vida, a Coreia do Sul viveu um dos maiores milagres desenvolvimentistas - meio século atrás, sua renda per capita anual era de cerca de US$ 80, ou menos de metade da de Gana, à época. Hoje, essa renda é de US$ 19 mil, colocando o país em pé de igualdade com Portugal e Eslovênia. Como isso foi possível?

A Coreia do Sul, evidentemente, fez coisas que a maioria das pessoas concorda, são importantes para o desenvolvimento econômico, como investimentos em infraestrutura de saúde e educação. Mas, além disso, praticou uma série de políticas hoje supostamente más para o desenvolvimento econômico: ampla utilização de política industrial seletiva, combinação de protecionismo com subsídios às exportações; duras regulamentações sobre investimentos estrangeiros diretos; ativa, ainda que não particularmente ampla, utilização de empresas estatais; frouxa proteção a patentes e outros direitos de propriedade intelectual; pesada regulamentação das atividades financeiras nacionais e internacionais em um país.

Se a proposta coreana for aprovada, a reunião em Seul pode representar um divisor de águas: o início de uma nova abordagem desenvolvimentista realista e historicamente esclarecida, após décadas de equivocado fundamentalismo de mercado.

O G-7 foi sempre extremamente relutante ao recomendar essas políticas "heterodoxas" e insistiu que o pacote do Consenso de Washington - abertura, desregulamentação e privatização - era a receita certa para todos. Quando confrontados com o caso coreano, os defensores do Consenso de Washington tentaram descartá-lo, qualificando-o de exceção. Entretanto, a história das decolagens desenvolvimentistas na maioria dos países do G-7 - especialmente no Reino Unido, EUA, Alemanha, França e Japão - é, na verdade, muito mais próxima do modelo coreano do que qualquer coisa parecida com a agenda Consenso de Washington. As políticas "não ortodoxas" usadas pela Coreia e quase todos os outros atuais países ricos precisam ser seriamente consideradas em qualquer discussão inteligente e aberta sobre opções de desenvolvimento.

Será que as coisas vão mudar, com o lançamento da agenda de desenvolvimento do G-20? Uma análise das propostas do governo coreano sugere que podemos assumir um otimismo cauteloso.

A Coreia quer que o G-20 se concentre numa longa lista de questões ligadas ao desenvolvimento: infraestrutura, investimento privado e criação de emprego, educação, maior acesso dos países pobres aos mercados dos países ricos, maior inclusão financeira; estabelecimento de elementos para resistir a choques financeiros ou climáticos, segurança alimentar; governança.

Esse é um bom começo. Os coreanos rejeitam deliberadamente a abordagem "tamanho único" de décadas anteriores, em favor do que denominam "modelo iPhone dinâmico" - um conjunto de aplicativos de desenvolvimento para cada ocasião, inspirados em experiências bem-sucedidas em diversos países.

Mas existem algumas lacunas, também. É visível a falta de uma política industrial. A experiência coreana mostra que o sucesso exportador sustentável durante um longo período, pelo qual o país é famoso, demanda proteção e incubação de "setores nascentes" mediante uma política industrial seletiva, em vez de livre comércio e desregulamentação.

Equanimidade recebe atenção insuficiente. Em especial, não há menção a reforma agrária e a outras medidas para redistribuição de riqueza, que criaram a coesão social que tornou o desenvolvimento coreano posterior politicamente mais sustentável.

Então, vem a questão do dinheiro. É verdade que a agenda do G-7 por vezes parecia equiparar desenvolvimento a ajuda. No entanto, as propostas coreanas foram muito longe em rumo oposto, fazendo menção apenas passageira à importância de melhorar os fluxos de ajuda, tanto em qualidade como em quantidade.

Se essas lacunas puderem ser sanadas, a reunião do G-20 em Seul poderá representar um divisor de águas: o início de uma nova abordagem desenvolvimentista realista e historicamente esclarecida, após décadas de equivocado fundamentalismo de mercado. Claro, o G-20 é um fórum de discussão, mas fórum de discussões têm um papel- eles confirmam ou contestam o "senso comum" de uma época. Um Consenso de Seul baseado na verdadeira história de meu país poderá ser mais justo e mais eficaz do que o de Washington, que perdeu sua credibilidade intelectual e pragmática.

1 de novembro de 2010

O capitalismo e a maldição da eficiência energética

O retorno do paradoxo de Jevons

John Bellamy Foster, Brett Clark e Richard York

Monthly Review

November 2010 (Volume 62, Number 6)

Tradução / A maldição da eficiência energética, mais conhecida como Paradoxo de Jevons – a ideia de que a maior eficiência energética (e de recursos materiais) resulta não em conservação, mas em seu uso aumentado – foi primeiramente colocada em questão por William Stanley Jevons, no século XIX. Apesar de esquecido durante a maior parte do século XX, o Paradoxo de Jevons foi redescoberto nas últimas décadas, e está no centro das disputais ambientais do presente.

O século XIX foi o século do carvão. Foi o carvão, acima de tudo, que moveu a indústria britânica, e, portanto, o império britânico. Mas em 1863 o industrial Sir William George Armstrong, em seu discurso anual para a Associação Britânica para o Avanço da Ciência, questionou se a supremacia mundial britânica na produção industrial poderia ser ameaçada no longo prazo pela exaustão das reservas disponíveis de carvão.[1] Naquele tempo, nenhum estudo econômico havia sido levado a cabo sobre o consumo de carvão e o seu impacto no crescimento industrial.

Em resposta, William Stanley Jevons, que se tornaria um dos fundadores da economia neoclássica, escreveu, em apenas três meses, um livro intitulado A questão do carvão: uma investigação sobre o progresso da nação, e a provável exaustão de nossas minas de carvão (1865). Jevons argumentou que o crescimento industrial britânico se baseava no carvão barato, e que o seu custo ascendente, à medida que minas mais profundas eram exploradas, acarretaria a perda da “supremacia comercial e manufatureira”, possivelmente “no período de uma geração”, e um limite do crescimento econômico, gerando um “estado estacionário” da indústria “em um século”.[2] Nenhuma tecnologia ou substituição do carvão por outras fontes energéticas, segundo ele, poderia alterar isso.

O livro de Jevons teve enorme impacto. John Herschel, uma das grandes figuras da ciência britânica, escreveu em apoio à tese de Jevons que “estamos usando nossos recursos e expandindo nossa vida nacional a uma taxa enorme e crescente, e assim é iminente um acerto de contas, mais cedo ou mais tarde”.3 Em abril de 1866, John Stuart Mill saudou A questão do carvão na Casa dos Comuns, discursando em favor da proposta de Jevons de compensar a exaustão desse recurso natural crítico através do corte da dívida nacional. Essa causa foi assumida por William Gladstone, chanceler de Exchequer, que instou o Parlamento a agir para reduzir a dívida, baseado nas expectativas incertas para o desenvolvimento nacional futuro, devido à prevista exaustão rápida das reservas de carvão. Como resultado, o livro de Jevons rapidamente se tornou um bestseller.4

Mas Jevons estava totalmente equivocado em seus cálculos. É verdade que a produção britânica de carvão, em resposta à demanda crescente, mais do que dobrou nos trinta anos seguintes à publicação do livro. Durante o mesmo período nos Estados Unidos, a produção de carvão, a partir de um nível muito menor, cresceu dez vezes, apesar de ainda permanecer abaixo do nível britânico. 5 Mas não ocorreu nenhum “pânico do carvão” duradouro, devido à exaustão dos suprimentos de carvão disponíveis, no final do século XIX e início do século XX. O maior erro de Jevons foi igualar a energia para a indústria com o carvão em si, sem prever o posterior desenvolvimento de energias substitutas do carvão, como o petróleo e a hidroeletricidade.6 Em 1936, setenta anos depois do furor parlamentar gerado pelo livro de Jevons, John Maynard Keynes comentou sobre a projeção de um declínio da disponibilidade de carvão feita por Jevons, observando que ela foi “dist orcida e exagerada”. Pode-se acrescentar que o seu escopo foi bastante estreito.7

O Paradoxo de Jevons

Mas há um aspecto do argumento de Jevons – o próprio Paradoxo de Jevons – que continua a ser considerado um dos insights pioneiros na economia ecológica.8 No capítulo 7 d’A questão do carvão, entitulado “Sobre a economia de combustível”, Jevons respondeu à noção comum de que, uma vez que “o suprimento decrescente de carvão será enfrentado com novos modos de usá-lo de maneira eficiente econômica”, não haveria problema de suprimento, e que, de fato, “a quantidade de trabalho útil extraído do carvão pode ser aumentada muitas vezes, enquanto a quantidade de carvão consumido permanece estacionária ou diminui”. Em aguda oposição a isso, Jevons contrapôs que a maior eficiência no uso do carvão como fonte energética apenas gerava um aumento de demanda para esse recurso, e não diminuição de demanda, como se poderia esperar. Isso porque a melhora na eficiência levava a uma expansão econômica adicional. “É uma grande confusão”, escreveu ele, “supor que o uso econômico de combustível equivale a uma diminuição de consumo. Na verdade ocorre exatamente o contrário. Como regra, novos modos de economia levarão a um aumento de consumo, de acordo com um princípio reconhecido em muitos casos semelhantes... Os mesmos princípios se aplicam, com ainda mais força e distinção, para o uso de um agente geral como o carvão. É a própr ia economia no seu uso que leva ao seu consumo extensivo”.9

“Tampouco é difícil ver”, escreveu Jevons, “como surge esse paradoxo”. Toda inovação tecnológica na produção de máquinas a vapor, destacou ele em uma detalhada descrição da evolução da máquina a vapor, resultara numa máquina termodinamicamente mais eficiente. E cada máquina nova, aperfeiçoada, resultara em uso aumentado de carvão. A máquina de Savery, uma das primeiras máquinas a vapor, destacou ele, era tão ineficiente que “praticamente, o custo do funcionamento impedia a sua utilização; ela não consumia carvão, porque a sua taxa de consumo era muito alta”.1 0 Modelos posteriores que eram mais eficientes, como a famosa máquina de Watt, levaram a cada vez maiores demandas por carvão, a cada aperfeiçoamento. “Cada um desses aperfeiçoamentos da máquina a vapor, quando levado a cabo, não faz mais do que acelerar novamente o consumo de carvão. Todo ramo da manufatura recebe um novo impulso – o trabalho manual é substituído ainda mais por trabalho mecânico, e obras muito prolongadas, que não eram comercialmente viáveis com o uso da energia mais cara, podem ser executadas.1 1

Ainda que Jevons tenha pensado que esse paradoxo se aplicava a numerosos casos, o seu foco n’A questão do carvão foi inteiramente no carvão como “agente geral” da industrialização e como estímulo para indústrias de bens de investimento. O poder do carvão para estimular o avanço econômico, o seu uso acelerado, apesar dos avanços na eficiência, e a severidade dos efeitos a ser esperados do declínio de sua disponibilidade, eram todas devido ao seu papel duplo como o combustível necessário para a moderna máquina a vapor e como a base para a tecnologia do alto-forno. Em meados do século XIX, o carvão era material-chave para altos-fornos e na fundição do ferro – o produto industrial crucial e base do domínio industrial.12 Foi em virtude de seu maior desenvolvimento nessa área, como “manufatura do mundo”, que a Grã-Bretanha foi responsável pela metade da produção mundial de ferro em 1870.13 A maior eficiência no uso do carvão, portanto, traduziu-se em maior capacidade de produzir ferro e expandir a indústria em geral, levando a uma crescente demanda por carvão. Como coloca Jevons:

Se a quantidade de carvão usado em um alto -forno, por exemplo, diminui em comparação com a produção, os lucros do comércio aumentarão, novos capitais serão atraídos, e o preço do ferro-gusa cairá, mas a demanda por ele aumentará; e, ao final, o maior número de fornos mais do que compensará a sua diminuição de consumo. E se nem sempre é esse o resultado em um ramo específico da manufatura, devemos lembrar que o progresso em qualquer de seus ramos estimula uma nova atividade em muitos outros, e leva indiretamente, se não diretamente, a mais incursões em nossos veios de carvão.[14]

O que tornou esse argumento tão poderoso à época é que pareceu imediatamente óbvio para todos os contemporâneos de Jevons que o desenvolvimento industrial dependia da capacidade de expandir a produção de ferro a baixo custo. Isso implicava que uma redução na quantidade de carvão necessário para um alto-forno seria imediatamente traduzida em uma expansão da produção industrial, da capacidade industrial, e sua habilidade de capturar uma maior porção do mercado mundial – e vem daí a maior demanda por carvão. A tonelagem de consumo de carvão pelas indústrias do ferro e do aço da Grã-Bretanha, em 1869, de 32 milhões de toneladas, excedeu a quantidade combinada usada nas manufaturas em geral (28 milhões de toneladas) e estradas de ferro (2 milhões de toneladas).1 5

Essa foi a era do capital e a era da indústria na qual o poder industrial era medido em termos da produção de carvão e ferro-gusa. A produção de carvão e ferro na Grã-Bretanha cresceu em estreita correlação nesse período, ambas triplicando entre 1830 e 1860.1 6 Como coloca o próprio Jevons: “Depois do carvão... o ferro é a base material do nosso poder. Ele é osso e o tendão de nosso sistema de trabalho. Analistas políticos trataram corretamente a invenção do alto-forno de carvão como aquela que mais contribuiu para a nossa riqueza material... A produção de ferro, o material de toda a nossa maquinar ia, é a melhor medida de nossa riqueza e poder”.1 7

Assim, nenhum dos leitores de Jevons deixaria de perceber os efeitos multiplicadores na indústria de uma melhora na eficiência no uso do carvão, ou as “incursões aumentadas” às “minas de carvão” que isso geraria. “A economia”, ele concluiu, “multiplica o valor e a eficiência de nosso material principal; ela aumenta indefinidamente a nossa riqueza e de nossos meios de subsistência, e leva ao aumento de nossa população, obras e comércio, o que é gratificante para o presente, mas deve levar a um fim antecipado”.18

Uma lei natural

Ao tratar o carvão como “o material chefe” da indústria britânica, Jevons enfatizou o que ele via como uma mudança no desenvolvimento industrial, a partir do que ele chamava de “produtos básicos do país”, para outro. A grande batalha sobre as Corn Laws já haviam apontado para o fato – já apontado por seu pai, Thomas Jevons, entre outros – de que um menor preço para um produto básico expandiria fortemente a sua demanda, e em último caso, escassez (que, no caso do trigo, deveria ser satisfeita com importações).1 9 Mas ao final do século XIX, era o carvão, e não o trigo, que estava no centro de um tipo de escassez malthusiana.20

“A tese de Jevons nesse livro”, observou Keynes, “era que a manutenção da prosperidade e liderança industrial da Grã-Bretanha requeria um crescimento contínuo de sua indústria pesada numa escala que implicaria uma demanda de carvão em progressão geométrica. Jevons propôs esse princípio como uma extensão da lei da população de Malthus, e a designou como Lei Natural do Crescimento Social... A partir daí, basta um pequeno passo para colocar o carvão na posição ocupada pelo milho na teoria de Malthus”.21

Estendendo a teoria de Malthus ao carvão, Jevons escreveu: “A nossa subsistência não depende mais da nossa produção de trigo. A decisiva revogação das Corn Laws nos impele do trigo para o carvão. Ela marca, de qualquer maneira, a época na qual o carvão foi finalmente reconhecido como o produto básico do país; ela marca a ascensão do interesse manufatureiro, que é apenas outro nome para o desenvolvimento do uso do carvão”. Jevons argumentou que embora a população tenha “quadruplicado desde o começo do século XIX”, o consumo de carvão cresceu “dezesseis vezes”, e que esse crescimento da produção de carvão “per capita” era uma necessidade do desenvolvimento industrial acelerado, que teria de acabar.22

Mas a maior contradição por detrás do paradoxo que Jevons levantou – a dinâmica global de acumulação ou reprodução expandida intrínseca ao capitalismo – não foi analisada n’A questão do carvão. Como um dos primeiros economistas neoclássicos, Jevons abandonou a ênfase central na classe e na acumulação que distinguiu o trabalho dos economistas clássicos. As suas análises econômicas tomaram a forma de uma teoria do equilíbrio estático. Não há nada no seu argumento que lembre a noção de Karl Marx do capital como valor que se autovaloriza, e a consequente necessidade de contínua expansão.

O quadro de referência econômico de Jevons estava, portanto, mal-equipado para tratar concretamente questões como acumulação e crescimento econômico. A explosão da população, da indústria e da demanda por carvão (como o “material central” da vida industrial) era, em sua visão, simplesmente o produto de uma abstrata Lei Natural do Crescimento Social, elaborada a partir de Malthus. Ao enfocar o capitalismo mais como um fenômeno natural do que como uma realidade socialmente construída, ele não podia encontrar uma explicação para a demanda econômica continuamente crescente, que não fosse mencionar o comportamento individual, a demografia malthusiana e o mecanismo do preço. Ao invés de enfatizar o próprio motivo do lucro, ele se baseou na lei abstrata da energia de Justus von Liebig: “A civilização, diz o Barão Liebig, é a economia de energia, e a nossa energia é o carvão”.23

As forças que comandam a expansão econômica, alimentando a industrialização e resultando na demanda crescente por carvão, eram assim estranhamente fracas e maldesenvolvidas n’A questão do carvão, refletindo o fato de que faltava a Jevons uma concepção realista da economia capitalista e da sociedade.

Hegemonia industrial, não sustentabilidade ecológica

A hegemonia britânica, e não a ecologia, é o pano de fundo das considerações de Jevons. Apesar da ênfase que ele coloca na escassez de recursos e da sua importância para a economia ecológica, seria um erro considerar o caráter d’A questão do carvão como predominantemente ecológica. Jevons não se concentrou nos problemas ambientais associados à exaustão das reservas energéticas da Grã-Bretanha ou do resto do mundo. Ele nem mesmo mencionou a poluição do ar, do solo e hídrica que acompanhava a produção de carvão. Charles Dickens, décadas antes, descreveu as cidades industriais, com a sua queima concentrada de carvão, como caracterizadas por uma “praga de fumaça, que obscurece a luz, e suja o ar melancólico” em uma progressão incessante de “vômito negro, manchando todas as coisas vivas ou inanimadas, apagando a face do dia, e embrulhando todos esses horrores com uma densa nuvem negra”.24 Disso, não há nem sequer um traço em Jevons. Da mesma maneira, as doenças e riscos ocupacionais enfrentados pelos trabalhadores nas minas de carvão e nas fábricas alimentadas a carvão não constaram em sua análise, como testemunhado pelas Condições da classe trabalhadora inglesa de Friedrich Engels.25

De fato, não havia em Jevons nenhuma consideração pela natureza como tal. Ele simplesmente assumiu que os distúrbios e degradações em massa da terra eram um processo natural. Ainda que a falta de carvão, como fonte energética, tenha originado questionamentos em sua análise sobre a possibilidade do crescimento sustentado, a questão da sustentabilidade ecológica em si nunca foi abordada. Já que a economia tem de permanecer em contínuo movimento, Jevons desconsiderou fontes sustentáveis de energia, como a água e o vento, como inconfiáveis, limitadas a um tempo e local particular.26 O carvão ofereceu ao capital uma fonte energética universal para operar a produção, sem distúrbios dos padrões comerciais.

Jevons, portanto, não tinha resposta real para o paradoxo que levantou. A Grã-Bretanha poderia ou rapidamente usar a sua fonte barata de combustível – o carvão sobre o qual a sua industrialização repousava – ou poderia usá-lo mais lentamente. Ao final, escolheu usá-lo rapidamente: “Se pródiga e corajosamente avançarmos na criação de nossas riquezas, tanto materiais quanto intelectuais, é difícil estimar a grandeza da influência positiva que podemos atingir no presente. Mas a manutenção de tal posição é fisicamente impossível. Temos que fazer a escolha decisiva entre uma grandeza breve, mas verdadeira, e uma longa e continuada mediocridade”.27

Expresso nesses termos, o caminho a ser tomado era claro: buscar a glória no presente e aceitar a perspectiva de uma posição drasticamente degradada para as gerações futuras. Uma vez que Jevons não tinha resposta para o que ele viu como a exaustão rápida e inevitável dos estoques de carvão da Grã-Bretanha – e a capital e o governo britânicos não viram outro curso concebível a não ser “business as usual” – a resposta ao livro de Jevons tomou a forma predominante, por estranho que pareça, de uma justificação adicional para a redução da dívida nacional. Isso foi apresentado como uma medida preventiva face à eventual desaceleração da indústria. Como escreveu Keynes, “A proposição de que estávamos vivendo às custas de nosso capital natural” levou à resposta irracional de que era necessário levar a cabo “uma rápida redução do peso da dívida”.28

De fato, a quase totalidade do impacto político do livro de Jevons ficou confinado, ironicamente, ao seu penúltimo capítulo, “Taxas e dívida nacional”. Jevons e outras figuras, como Mill e Gladstone, que assumiu o seu argumento, nunca defenderam seriamente a ideia da conservação do carvão. Não há nenhuma menção na análise de Jevons ao ponto levantado por Engels em uma carta a Marx, na qual o capitalismo industrial era caracterizado como um “esbanjador de energia solar passada”, como evidenciado pelo seu “esbanjamento [de] nossas reservas de energia, nosso carvão, metais, florestas, etc.”.29 Para Jevons, a ideia de uma alternativa ao business as usual nunca foi discutida, e sem dúvida nunca foi cogitada. Nada estava mais distante da sua visão econômica do que a transformação das relações sociais de produção em direção a uma sociedade governada não pela busca do lucro, mas pelas necessidades genuínas das pessoas e pelos requisitos sócio-ecológicos da sustentabilidade. Ao final, os problemas que ele previu foram adiados no curso real da história pela expansão do uso de outros combustíveis fósseis – petróleo e gás natural –, assim como de energia hidrelétrica, e pela corrente exploração de recursos no mundo inteiro. Tudo isso, porém, preparou o terreno para o nosso dilema planetário atual e para o retorno do Paradoxo de Jevons.

A redescoberta do Paradoxo de Jevons

O Paradoxo de Jevons foi esquecido no auge da era do petróleo durante três quartos do século XX, mas ressurgiu nos anos 70 devido à crescente preocupação sobre a escassez de recursos associada com a análise dos Limites do crescimento feita pelo Clube de Roma, exacerbada pela crise do petróleo e da energia de 1973-74. Enquanto medidas de eficiência energética eram tomadas, economistas se debruçavam sobre a sua efetividade. Isso levou à ressurreição, no fim dos anos 70 e início dos 80, da questão geral posta pelo Paradoxo de Jevons, na forma do que foi chamado de “efeito rebote”. Essa era a noção bastante simples de que ganhos de eficiência propiciados pela engenharia normalmente levam a uma diminuição do preço efetivo de uma mercadoria, com isso gerando aumento de demanda, de maneira que os ganhos de eficiência não causavam um decréscimo no consumo de igual medida. O Paradoxo de Jevons foi frequentemente relegado à versão mais extrema do efeito rebote, no qual há um backfire, ou um rebote de mais de 100% da “economia de engenhar ia”, resultando em aumento, e não em diminuição, do consumo de um dado recurso.30

Os otimistas da tecnologia tentaram argumentar que o efeito rebote é pequeno, e, portanto, os problemas ambientais podem ser resolvidos em grande medida tão somente através da inovação tecnológica, com os ganhos de eficiência sendo traduzidos em processamento reduzido de energia e materiais (desmaterialização). Porém, há fortes evidências empíricas de um efeito rebote substancial. Por exemplo, avanços tecnológicos nos veículos automotores, que aumentaram a quantidade média de milhas percorridas por galão em 30% nos Estados Unidos a partir de 1980, não reduziram a energia total utilizada pelos veículos. O consumo de combustível por veículo permaneceu constante, enquanto os ganhos de eficiência levaram ao aumento não apenas do número de automóveis e caminhões nas estradas (e das milhas viajadas), mas também do seu tamanho e “performance” (taxa de aceleração, velocidade de cruzeiro, etc.) – de maneira que hoje SUV’s e minivans povoam as autoestradas estadunidenses. No nível macro, o Paradoxo de Jevons pode ser constatado no fato de que, ainda que os Estados Unidos tenham dobrado a sua eficiência energética desde 1975, o seu consumo de energia aumentou dramaticamente. Juliet Schor nota que nos últimos 35 anos: a energia gasta por dólar do PIB foi cortada pela metade. Mas ao invés de cair, a demanda energética aumentou em cerca de 40%. Além disso, a demanda cresce mais rapidamente naqueles setores que têm os maiores ganhos de eficiência – uso de energia no transporte e residencial. A eficiência de refrigeradores aumentou 10%, mas o número de refrigeradores em uso aumentou em 20%. Na aviação, o consumo de combustível por milha caiu mais de 40%, mas o uso total de combustível cresceu 150%, porque a milhagem por passageiro aumentou. Veículos têm história semelhante. E com a explosão da demanda, tivemos explosão das emissões. O dióxido de carbono desses dois setores aumentou em 40%, o dobro da taxa da maior economia.

Economistas e ambientalistas que tentam medir os efeitos diretos da eficiência na diminuição do preço e o efeito rebote imediato geralmente tendem a ver esse efeito como relativamente pequeno, no intervalo de 10 a 30% em ramos de alto consumo energético, como aquecimento e resfriamento doméstico e automóveis. Mas uma vez que são incorporados os efeitos indiretos, aparentes no nível macro, o Paradoxo de Jevons permanece extremamente significativo. É no nível macro que os efeitos de escala se tornam claros: aperfeiçoamentos na eficiência energética podem diminuir o custo efetivo de vários produtos, impelindo a economia em geral e expandindo o consumo energético em geral.3 1 Economistas ecológicos como Mario Giampietro e Kozo Mayumi argumentam que o Paradoxo de Jevons somente pode ser entendido em um modelo macroevolucionário, onde aperfeiçoamentos na eficiência resultam em mudanças nas matrizes da economia, de maneira que o efeito agregado é o aumento da escala e do ritmo do sistema como um todo.[32]

A maior parte das análises do Paradoxo de Jevons permanece abstrata, baseadas em efeitos tecnológicos isolados, e apartados do processo histórico. Elas deixam de examinar, tal como Jevons, o caráter da industrialização. Além disso, elas estão ainda mais distantes de um entendimento realista do caráter orientado à acumulação do desenvolvimento capitalista. Um sistema econômico devotado aos lucros, à acumulação e à expansão econômica sem fim tenderá a usar todos os ganhos da eficiência energética ou redução de custos para expandir a escala agregada da produção. A inovação tecnológica será, portanto, claramente configurada para esses mesmos fins expansivos. Não é mera coincidência que todas as grandes inovações que dominaram os séculos XVIII, XIX e XX (ou seja, a máquina a vapor, a estrada de ferro e o automóvel) se caracterizaram pela sua importância no direcionamento da acumulação do capital e pela retroação positiva que geraram no que concerne ao crescimento econômico como um todo – de maneira que os efeitos de escala na economia que resultaram de seu desenvolvimento necessariamente suplantaram as melhoras na eficiência tecnológica.33 A conservação no agregado é impossível para o capitalismo, por mais que a razão entradas/saídas possa aumentar na engenharia de um dado produto. Isso porque todas as economias tendem a estimular a formação de mais capital (caso canais de investimento estejam disponíveis). Esse é especialmente o caso quando recursos industriais essenciais – o que Jevons chamou de “materiais centrais” ou “produtos básicos” – estão em jogo.

A falácia da desmaterialização

O Paradoxo de Jevons é o produto de um sistema econômico capitalista que é incapaz de conservar na macroescala, pois ele é configurado para maximizar o processamento energético e material, desde a fonte de recursos até o depósito de final de lixo. A economia de energia em tal sistema tende a ser usada como um meio para o desenvolvimento adicional da ordem econômica, gerando o que Alfred Lotka chamou de “máximo fluxo energético”, ao invés de uma mínima pr odução de energia.34 A desconsideração da conservação absoluta de energia (em oposição à relativa) está imbricada na natureza e na lógica do capitalismo, como um sistema integralmente devotado aos deuses da produção e do lucro. Como colocou Marx: “Acumulai! Acumulai! Esse é o mandamento!”35

Visto no contexto da sociedade capitalista, portanto, o Paradoxo de Jevons demonstra a falácia das noções correntes de que os problemas ambientais com que a sociedade se depara podem ser resolvidos com meios puramente tecnológicos. Economistas ecológicos hegemônicos frequentemente se referem à “desmaterialização” ou “desacoplamento” do crescimento econômico em relação ao consumo de energia e recursos. O aumento da eficiência energética é com frequência tomado como uma indicação concreta de que o problema ambiental está sendo resolvido. Mas a economia de materiais e energia, no contexto de um dado processo de produção, como vimos, não é nada novo; ela é parte da história cotidiana do desenvolvimento capitalista.36 Cada nova máquina a vapor, como enfatizava Jevons, era mais eficiente do que a anterior. “Processos de economia de matérias-primas”, como notou o sociólogo ambiental Stephen Bunker, “são mais velhos do que a Revolução Industrial, e foram dinâmicos ao longo da história do capitalismo”. Toda noção de que a redução do processamento material por unidade de renda nacional é um fenômeno novo é, portanto, “profundamente a-histórica”.37

O que se negligencia, então, em noções simplistas de que a uma maior eficiência energética normalmente leva a um aumento da economia agregada, é a realidade da relação do Paradoxo de Jevons – através da qual a economia de energia é usada para promover novas formações de capital e a proliferação de mercadorias, demandando recursos cada vez maiores. Ao invés de uma anomalia, a regra de que a eficiência aumenta o consumo energético e material é integral ao própr io “regime do capital”.38 Como colocado em O peso das nações, um estudo empírico importante das saídas materiais nas últimas décadas em cinco nações industrializadas (Áustria, Alemanha, Holanda, Estados Unidos e Japão): “Ganhos de eficiência propiciados pela tecnologia e novas práticas gerenciais tem sido compensadas por [aumentos da] escala do crescimento econômico”.39

O resultado é a produção de montanhas sobre montanhas de mercadorias e custos unitários decrescentes que levam a um maior gasto de recursos materiais. Além disso, no capitalismo monopolista tais mercadorias tomam cada vez mais a forma de valores de uso artificiais, promovidos por um vasto sistema de propaganda e projetados para instigar uma demanda cada vez maior por mercadorias e pelo valor de troca que elas representam – como um substituto para a satisfação de necessidades genuinamente humanas. Bens desnecessários e desperdício são produzidos com labuta inútil para incrementar valores puramente econômicos, em detrimento do ambiente. Qualquer desaceleração desse processo de destruição ecológica, sob o sistema atual, implica o desastre econômico.

Aos olhos de Jevons, a “escolha decisiva” levantada pela continuação do business as usual era simplesmente “entre uma breve mas verdadeira grandeza [nacional] e uma longa e continuada mediocridade”. Ele optou pela primeira – o máximo fluxo energético. Um século e meio mais tarde, em nossa economia muito maior e mais global – mas não menos cara – não é mais apenas a supremacia nacional que está em jogo, mas o destino do próprio planeta. Certamente, há aqueles que defendem que deveríamos “viver bem agora e deixar que o futuro cuide de si mesmo”. Escolher esse caminho, porém, é flertar com o desastre planetário. A única resposta real para a humanidade (incluindo as futuras gerações) e para a Terra como um todo é alterar as relações sociais de produção, para criar um sistema no qual a eficiência não seja mais uma maldição – um sistema mais elevado, no qual igualdade, desenvolvimento humano, comunidade e sustentabilidade sejam objetivos explícitos.

Notas

1. Sir William George Armstrong, Presidential Address, Report of the 33rd Meeting of the British Association for the Advancement of Science, Held at Newcastle-upon-Tyne (London: John Murray, 1864), li-lxiv. Ver também William Stanley Jevons, The Coal Question: An Inquiry Concerning the Progress of the Nation, and the Probable Exhaustion of Our Coal -Mines, ed. A. W. Flux (London: Macmillan, 1906 [1865]), 32-36.

2. Jevons, The Coal Question, xxxi, 274.

3. John Herschel, citado em Juan Martínez-Alier, Ecological Economics (Oxford: Basil Blackwell, 1987), 161 -62.

4. Mic hael V . White, “Frightening the ‘Landed Fogies’ Parliamentary Politic s and the Coal Question,” Utilitas 3/2 (November 1991): 289-302; Leonard H. Courtney, “Jevons’s Coal Question: Thirty Years A fter,” Journal of the Royal Statistical Society 60/4 (December 1897): 789; John Maynard Keynes, Essays and Sketches in Biography (New York: Meridan Books, 1956), 132. O enfoque de Gladstone em relação à obra de Jevons foi inicialmente um estratagema tático, usado politicamente para justificar o argumento a favor da redução da dívida, que nunca foi de fato implementada no orçamento

5. Courtney, “Jevons’s Coal Question,” 797.

6. Jevons não estava sozinho nesse erro. John Tyndall, um dos maiores físicos da época, observou em 1865: “Não vejo nenhuma perspectiva para um substituto do carvão como fonte de potência motriz.” Citado em Jevons, The Coal Question, xi. Vale mencionar que a perfuração do histórico poço de petróleo de Edwin Drake no noroeste da Pensilvânia ocorrera apenas seis anos antes, em 1859, e o seu significado ainda não havia sido bem compreendido.

7. Keynes, Essays and Sketches in Biography, 128.

8. Mario Giampietro and Kozo Mayumi, “A nother V iew of Dev elopment, Ecological Degradation, and North–South Trade,” Review of Social Economy 56/1 (1998): 24-26; John M. Polimeni, Kozo Mayumi, Mario Giampietro, and Blake Alcott, eds., The Jevons Paradox and the Myth of Resource Efficiency Improvements (London: Earthscan, 2008).

9. Jevons, The Coal Question, 137-41.

10. Ibid., 141 -43.

11. Ibid., 152-53.

12. Ainda em 1842 as fornalhas inglesas ainda consumiam dois terços do carvão do país, mas quando Jevons escreveu o seu livro, mais de duas décadas mais tarde, isso havia diminuído para cerca de um quinto do consumo nacional e dificilmente se aplicaria a esse argumento, que se focava na demanda industrial de carvão como a maior e indispensável origem da demanda. Como disse Jevo ns, “Não me refiro aqui ao consumo doméstico de carvão. Esse pode sem dúvida ser diminuído sem problemas maiores além de diminuir nosso conforto domésticos e alterar de alguma forma nossos hábitos nacionais arraigados”. Ver Jevons, The Coal Question, 138-39; Eric J. Hobsbawm, Industry and Empire (London: Penguin, 1969), 69.

13. Eric J. Hobsbawm, The Age of Capital, 1848-1873 (New York: Vintage, 1996), 39-40.

14. Jevons, The Coal Question, 140-42.

15. Os dados de 1869 foram fornecidos na edição anotada da obra de Jevons de A. W. Flux. Em 1903 as relações mudaram, com as indústrias do ferro e do aço respondendo por 28 milhões de toneladas de consumo de carvão (menos do que no tempo de Jevons), enquanto o consumo das manufaturas em geral cresceu para 53 milhões de toneladas e das ferrovias para 13 milhões de toneladas. Ver Jevons, The Coal Question, 138-39.

16 Hobsbawm, Industry and Empire, 70-71.

17. Jevons, The Coal Question, 245.

18. Ibid., 156.

19. Ibid., 195, 234-41; Thomas Jevons, The Prosperity of the Landholders Not Dependent on the Corn Laws (London: Longmans, 1840).

20. O próprio Malthus negou a possibilidade da escassez de minerais, argumentando que as matérias primas, em contraste com os alimentos, “ocorrem em grande abundância” e “a demanda... não deixará de criá-las em quantidades tão grandes quanto forem desejadas”. Ver Thomas Robert Malthus, An Essay on the Principle of Population and a Summary View of the Principle of Population (London: Penguin, 1970), 100.

21. Keynes, Essays and Sketches in Biography, 128-29.

22. Jevons, The Coal Question, 195-96. A discussão de Jevons sobre o desenvolvimento industrial em termos dos vários produtos básicos antecipou a obra de Harold Innis e a teoria dos produtos básicos do crescimento econômico. Ver Mel Watkins, Staples and Beyond (Montreal: McGill-Queens University Press, 2006).

23. Jevons, The Coal Question, 142.

24. Charles Dickens, The Old Curiosity Shop (New York: E.P. Dutton and Co., 1908), 327.

25. Frederick Engels, The Condition of the Working Class in England (Chicago: Academy Publishers, 1984). Ver também John Bellamy Foster, The Vulnerable Planet (New York: Monthly Review Press, 1994), 50-5 9; Brett Clark e John Bellamy Foster, “The Env ironmental Conditions of the Working Class: An Introduction to Selections from Friedrich Engels’s The Condition of the Working Class in England in 1844,” Organization & Environment 19/3 (2006): 375-88.

29. Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works (New York: International Publishers, 1975), vol. 46, 411.

26. Jevons, The Coal Question, 164-71.

27. Ibid., 459-60.

28. Keynes, Essays and Sketches in Biography, 132.

30. Blake A lc ott, “Historic al Ov erv iew of the Jevons Paradox in the Literature,” in Polimeni, et al., The Jevons Paradox, 8, 63. For the Club of Rome study, see Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows, Jørgen Randers, William W. Behrens III, The Limits to Growth (New York: Universe Books, 1972).

31. Juliet B. Schor, Plenitude (New York: Penguin Press, 2010), 88-90. Para uma discussão detalhada dos dados empíricos sobre o Paradoxo de Jevons, ver John M. Polimeni, “Empirical Ev idence for the Jevons Paradox,” in Polimeni, et al., The Jevons Paradox, 141 -71.

32. Mario Giampietro and Kozo May umi, “The Jevons Paradox,” in Polimeni, et al., The Jevons Paradox, 80-81.

33. Para uma discussão de inovações que marcam épocas, ver Paul A. Baran and Paul M. Sweezy, Monopoly Capital (New York: Monthly Review Press, 1966), 219-22.

34. A lfred J. Lotka, “Contributions to the Energetic s of Evolution” Proceedings of National Academy of Sciences 8 (1922): 147 -51; Giampietro and Mayumi, “The Jevons Paradox,” 111-15.

35. Karl Marx, Capital, vol. 1 (New York: Vintage, 1976), 742.

36. John Bellamy Foster, Ecology Against Capitalism (New York: Monthly Review Press, 2002), 22-24.

37. Stephen G. Bunker, “Raw Materials and the Global Economy,” Society and Natural Resources 9/4 (July -August 1996): 421.

38. Robert L. Heilbroner, The Nature and Logic of Capitalism (New York: W.W. Norton, 1985).

39. Emily Matthews, Christof Amann, Stefan Bringezu, Marina Fischer -Kowalski, Walter Hüttler, René Kleijn, Yuichi Moriguchi, Christian Ottke, Eric Rodenburg, Don Rogich, Heinz Schandl, Helmut Schütz, Ester van der Voet, and Helga Weisz, The Weight of Nations (Washington, D.C.: World Resources Institute, 2000), 35.

17 de outubro de 2010

O retorno da "cultura da pobreza"

Décadas depois de Daniel Patrick Moynihan, os estudiosos estão admitindo que a cultura e a pobreza persistente estão entrelaçadas.

Patricia Cohen


Um terreno baldio na East 110th Street em Nova York em 1952: o estudo da degradação urbana há muito é influenciado por modas políticas. Créditos: William C. Eckenberg/The New York Times

Por mais de 40 anos cientistas sociais investigando causas da pobreza tenderam a tratar explicações culturais como as trataria Voldemort: Aquilo Cujo Nome Não Deve Ser Dito.

A reticencia era herança de pesadas guerras que começaram depois que Daniele Patrick Moynihan, então assistente na secretaria de trabalho do governo Johnson, introduziu a ideia de uma "cultura da pobreza" ao público em um surpreendente relatório de 1965. Embora ele não tenha inventado a frase (a honra pertence ao antropólogo Oscar Lewis) sua descrição da família negra urbana como presa em um inescapável "emaranhado de patologia" de mães solteiras e dependência em serviços sociais era vista como atribuindo deficiências morais auto-perpetuantes aos negros, como se os culpasse por seu próprio infortúnio.

A análise de Moynihan nunca perdeu seu apelo para os pensadores conservadores, cujos argumentos no final da história sucederam quando presidente Bill Clinton assinou lei em 1996 "acabando com bem-estar como o entendemos". Mas nas trincheiras majoritariamente liberais da sociologia e antropologia acadêmicas a palavra "cultura" virou uma granada armada e a ideia que atitudes e padrões de comportamento mantinham as pessoas na pobreza foram evitadas.

Agora depois de décadas de silêncio esses estudiosos falam abertamente sobre você-sabe-o-que e concedem que cultura e pobreza persistente estão emaranhadas.

"Finalmente alcançamos um estágio das pessoas não terem mais medo de serem politicamente incorretos", disse Douglas S. Massey, sociólogo em Princeton que argumenta que Moynahan foi injustamente amaldiçoado.

O velho debate deu forma ao novo. Mês passado Princeton e o Brookings Institution publicaram uma coleção de trabalhos sobre pais solteiros, um assunto que observaram ter se tornado proibido depois do relatório Moynihan. No recente encontro anual da American Sociological Association os presentes discutiram a ressurgência da especialização de estudo sobre cultura. E em Washington na primavera passada, cientistas sociais participaram de um informativo do Congresso sobre cultura e pobreza relacionado com uma edição especial do "The Annals", jornal da American Academy of Political and Social Science.

"A cultura voltou à agenda da pesquisa sobre pobreza", declara a introdução, reconhecendo que ela nunca deveria ter sido removida.

O tema gerou interesse em Capitol Hill porque muito da pesquisa intersecta com os debates sobre políticas sociais. Visões das raízes culturais da pobreza "têm um importante papel em formatar como os legisladores escolhem se endereçar aos assuntos relativos à pobreza", notou Lynn Woolsey, democrata da Califórnia no encontro.

O tema gerou interesse em Capitol Hill porque muita pesquisa se interage com os debates políticos. As visões das raízes culturais da pobreza "desempenham papéis importantes na definição de como os legisladores escolhem abordar questões de pobreza", declarou a Representante Lynn Woolsey, democrata da Califórnia, no encontro.

Esse pico de pesquisa acadêmica também chega quando a porcentagem dos americanos vivendo em pobreza atingiu o maior nível em de 15 anos: um em sete, ou 44 milhões.

Com esses estudos veem muitas e variadas definições de cultura mas todos diferem do modelo dos anos 60 nesses aspectos cruciais: hoje, cientistas sociais estão rejeitando a noção de uma cultura de pobreza monolítica e imutável. E atribuem atitudes e comportamentos destrutivos não ao inerente caráter moral, mas ao racismo e isolamento persistentes.

Para Robert J. Samson, sociólogo de Harvard, cultura é melhor descrita como "entendimentos compartilhados".

"Eu estudo desigualdade e o foco dominante é em estruturas da pobreza", ele disse. Mas adiciona que a razão que um bairro se torna numa "armadilha de pobreza" tem também a ver com a percepção comum de como as pessoas na vizinhança agem e pensam. Quando pessoas veem grafiti e lixo, eles o acham aceitável ou veem que seria desordem? Eles respeitam o sistema legal ou têm alto nível de "cinismo moral", acreditando que "leis são feitas pra serem quebradas"?
Como parte de um grande estudo em Chicago o professor Sampson visitou vários bairros diferentes nesse verão, deixando cair envelopes endereçados e selados para ver quantas pessoas colocariam na caixa de correio, um sinal que cuidar do alheio é parte da cultura de uma comunidade.

Em alguns bairros como Grand Boulevard, aonde a notória favela de Robert Taylor se ergueu, quase nenhum envelope foi remetido; em outras, pesquisadores receberam mais de metade das cartas. Renda não explica necessariamente a diferença, disse professor Sampson, mas ao invés, as normas culturais da comunidade, os níveis de cinismo moral e desordem.

A percepção coletiva do bairro - está em ascensão ou estagnado? - é uma forma mais eficaz de prever o futuro de uma comunidade do que o nível real de pobreza, disse ele.

William Julius Wilson, cujo trabalho pioneiro francamente confrontou vida no ghetto enquanto focalizava explicações econômicas para pobreza persistente, define cultura como uma maneira dos "indivíduos de uma comunidade desenvolverem entendimento de como o mundo funciona e tomar decisões baseadas naquele entendimento".

Para alguns jovens negros, disse o sociólogo professor Wilson de Harvard, o mundo funciona assim: "se você não tem uma cara de forte você não sobrevive. Se você tem acesso a armas, tenha-as, e se brigar, use-as".

Tentando recapturar o tema dos economistas os sociólogos se aventuram em bairros pobres para entender mais aprofundadamente as atitudes dos residentes. Seus resultados desafiam algumas crenças comuns, com a crença que mães pobres ficam solteiras porque não dão valor ao casamento.

Na Filadélfia, por exemplo, mães pobres disseram às sociólogas Kathryn Edin e Maria Kefalas que elas achavam casamento profundamente importante, ate sagrado, mas não achavam que seus parceiros eram "próprios para o casamento". Esses resultados estão empurrando alguns experts em lei e pobreza a concluir que é improvável que programas que promovem casamento sem alterar condições econômicas e sociais funcionarão.

Mario Luis Small, sociólogo da Universidade de Chicago e editor da edição especial do The Annals, tentou descobrir por que algumas mães da cidade de Nova York com filhos em creches desenvolveram redes de apoio, enquanto outras não. Como ele explicou em seu livro de 2009, “Ganhos não antecipados”, a resposta não dependia de renda ou etnia, mas sim das regras da creche. Centros que realizavam viagens de campo frequentes, associações de pais organizadas e procedimentos de coleta e entrega criaram mais oportunidades para os pais se conectarem.

Acadêmicos mais jovens, como o professor Small, de 35 anos, atribuíram o aumento nas explicações culturais a uma “nova geração de estudiosos sem a bagagem desse debate”.

Scholars like Professor Wilson, 74, who have tilled the field much longer, mentioned the development of more sophisticated data and analytical tools. He said he felt compelled to look more closely at culture after the publication of Charles Murray and Richard Herrnstein’s controversial 1994 book, “The Bell Curve,” which attributed African-Americans’ lower I.Q. scores to genetics.

The authors claimed to have taken family background into account, Professor Wilson said, but “they had not captured the cumulative effects of living in poor, racially segregated neighborhoods.”

He added, “I realized we needed a comprehensive measure of the environment, that we must consider structural and cultural forces.”

He mentioned a study by Professor Sampson, 54, that found that growing up in areas where violence limits socializing outside the family and where parents haven’t attended college stunts verbal ability, lowering I.Q. scores by as much as six points, the equivalent of missing more than a year in school.

Changes outside campuses have made conversation about the cultural roots of poverty easier than it was in the ’60s. Divorce, living together without marrying, and single motherhood are now commonplace. At the same time prominent African-Americans have begun to speak out on the subject. In 2004 the comedian Bill Cosby made headlines when he criticized poor blacks for “not parenting” and dropping out of school. President Obama, who was abandoned by his father, has repeatedly talked about “responsible fatherhood.”

Conservatives also deserve credit, said Kay S. Hymowitz, a fellow at the conservative  ManhattanInstitute, for their sustained focus on family values and marriage even when cultural explanations were disparaged.

Still, worries about blaming the victim persist. Policy makers and the public still tend to view poverty through one of two competing lenses, Michèle Lamont, another editor of the special issue of The Annals, said: “Are the poor poor because they are lazy, or are the poor poor because they are a victim of the markets?”

So even now some sociologists avoid words like “values” and “morals” or reject the idea that, as The Annals put it, “a group’s culture is more or less coherent.” Watered-down definitions of culture, Ms. Hymowitz complained, reduce some of the new work to “sociological pablum.”

“If anthropologists had come away from doing field work in New Guinea concluding ‘everyone’s different,’ but sometimes people help each other out,” she wrote in an e-mail, “there would be no field of anthropology — and no word culture for cultural sociologists to bend to their will.”

Fuzzy definitions or not, culture is back. This prompted mock surprise from Rep. Woolsey at last spring’s Congressional briefing: “What a concept. Values, norms, beliefs play very important roles in the way people meet the challenges of poverty.”

4 de outubro de 2010

O Lulismo e seu futuro

Os dois mandatos do PT tiveram o mesmo papel do New Deal de Roosevelt nos anos 30: fazer da diminuição da pobreza e do incremento da igualdade os objetivos nacionais de longo prazo. Mas virão embates entre o capital financeiro e o industrial, e entre a classe média tradicional e o proletariado emergente

André Singer


Enquanto as organizações de trabalhadores querem tornar o imposto mais progressivo, os empresários buscam diminuir a carga tributária. Capitalistas e assalariados estão em campos opostos. Empresários da indústria (para quem a taxa de juros é central) e trabalhadores em geral (para quem o aumento do emprego é decisivo) estão momentaneamente juntos contra os rentistas ILUSTRAÇÃO: JULIO IBARRA_2010

Numa passagem de 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx mostra como é frequente os atores de uma determinada época buscarem inspiração nos acontecimentos de outra. Se o período histórico evocado pelos homens contemporâneos pode ser revelador da natureza das tarefas que eles pretendem realizar, mesmo que o resultado final possa ser diferente do esperado, vale a pena deter-se na consideração do seu significado. O Brasil do ano eleitoral que se encerra tem algo da atmosfera imaginária na qual, há mais de meio século, a democracia norte-americana criou o arcabouço de leis, instituições e ações do New Deal.

Conjunto de programas iniciados na primeira Presidência de Franklin D. Roosevelt para fazer frente à crise de 1929, o New Deal permitiu um salto na qualidade de vida dos pobres e propiciou maior igualdade entre os cidadãos americanos. Ter instaurado tal ambiente é um legado dos dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele pode moldar o “marco regulatório”, para usar uma expressão do mundo jurídico, no qual ocorrerão as próximas disputas eleitorais. Isto é, partidos e candidatos divergirão quanto aos meios, mas os fins estão fixados de antemão.

Nesse caso, as eleições brasileiras de 2002 e 2006 poderão ser vistas, no futuro, como o início de um longo ciclo político, semelhante ao que aconteceu com as vitórias de Roosevelt em 1932 e 1936. Na primeira eleição (1932, 2002), formou-se uma nova maioria. Na segunda (1936, 2006), em uma votação de continuidade, a coalizão majoritária se manteve, mas com uma troca de posição importante no apoio ao presidente. Em ambos os casos (Roosevelt, Lula), a troca de apoio decorreu da política levada a cabo no primeiro mandato: a classe média se afastou do presidente, mas eleitores pobres tomaram o seu lugar.

Durante a vigência do ciclo, é possível até haver troca de partidos no poder. Foi o que ocorreu em 1952 e 1956, com a vitória republicana. Mas ela não implicou abandono dos grandes objetivos nacionais: a diminuição da pobreza e o incremento da igualdade. De acordo com o cientista político John Berg, as eleições de realinhamento “têm o potencial de definir um novo tipo de política, um novo conjunto de clivagens, que pode durar décadas”.

Não seria por acaso, portanto, que comparações entre o período atual e o de Roosevelt tenham se multiplicado recentemente. Em julho, citando o economista americano Paul Krugman, o jornalista Fernando de Barros e Silva escreveu na Folha de S.Paulo: “Os Estados Unidos do pós-guerra eram, sobretudo, uma sociedade de classe média. O grande boom dos salários que começou com a Segunda Guerra levou dezenas de milhões de americanos – entre os quais meus pais – de bairros miseráveis nas regiões urbanas ou da pobreza rural à casa própria e a uma vida de conforto sem precedentes.”

Krugman relata a “sensação admirável” de viver em uma comunidade na qual a maioria das pessoas leva “uma vida material reconhecidamente decente e similar”. Conclui o jornalista: “Essa middle-class society que encarnava o sonho americano não foi obra de uma ‘evolução gradual’, mas, diz Krugman, ‘muito pelo contrário, foi criada, no curto espaço de alguns anos, pelas políticas do governo Roosevelt’.”

Outra menção aparece no fecho de um balanço da Presidência de Lula feito por dois economistas ligados ao governo, Nelson Barbosa e José Antonio Pereira de Souza. “A superação de dogmas recentes encontra paralelos em momentos nos quais os Estados das economias capitalistas centrais optaram pela ruptura de seus modelos de atuação”, dizem os autores. “Assim foi, por exemplo, com a G.I. Bill (1944) e com o Employment Act (1946).” [1] A segunda medida, em particular, teve um caráter duradouro. “Desde a Segunda Guerra Mundial, o governo federal havia reconhecido suas responsabilidades pela manutenção da economia em pleno emprego”, lembrou Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia.

Um terceiro exemplo vem da ciência política. Wendy Hunter e Thimothy J. Power comparam o Programa Bolsa Família ao Social Security Act, com o qual, em 1935, Roosevelt instituiu o sistema de previdência pública. Hunter e Power vaticinavam, já em 2007, que o Bolsa Família poderia se tornar, como a previdência pública nos Estados Unidos, um “terceiro trilho” na política brasileira: aquilo que não se pode mexer, sob o risco de morte política.

A julgar pelas propostas dos candidatos à Presidência durante a campanha deste ano, Hunter e Power estavam certos: a oposição disse que queria dobrar o número de famílias atendidas pelo Bolsa Família, e ninguém falou em diminuir o benefício. Apesar das diferenças que os separam, os postulantes estavam envolvidos no clima rooseveltiano de criar no Brasil, em um “curto espaço de alguns anos” uma sociedade com base na classe média.

Tanto que Dilma Rousseff, do PT, propôs “erradicar a miséria” no espaço de um mandato. José Serra, do PSDB, falou em “partir para a erradicação da pobreza”. Marina Silva, do PV, elogiou o fato de 25 milhões terem deixado a linha da pobreza no período recente e disse que não mexeria na política que permitiu isso. Plínio de Arruda Sampaio, do PSOL, fez do combate à desigualdade o centro do seu discurso.

Mas em que medida há condições materiais para aplicar aqui o New Deal de Roosevelt? Até que ponto é verdadeiro o consenso em torno dessas metas? E qual resistência se deve esperar às políticas necessárias para transformar o projeto em realidade? Comecemos pelas condições materiais.

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, entre 2003 e 2008 a pobreza extrema (rendimento médio domiciliar per capita de até um quarto de salário mínimo) foi reduzida de 15% para 10% da população. No mesmo período, a pobreza absoluta (rendimento médio domiciliar per capita de até meio salário mínimo) caiu em proporção semelhante, reduzindo-se o total de brasileiros nessa faixa de renda para 23%. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, os brasileiros abaixo da linha de pobreza eram metade da população. No governo Lula, caíram para cerca de um terço da população.

Em linhas gerais, os dados apontam que uma parte do sonho rooseveltiano – o de construir uma sociedade em que (quase) todos estão fora da pobreza – está ao alcance dos dois próximos mandatos presidenciais. Não se trata apenas de uma expansão da classe média, pois o proletariado também aumenta. À medida que o subproletariado é incorporado ao mercado de trabalho formal e ao padrão de consumo “normal”, a base da pirâmide social passa a ser formada pelo proletariado, uma vez que não há outra classe abaixo dele. É possível que um proletariado mais antigo – uma espécie de aristocracia operária – se mantenha como uma fração de classe à parte, porém as diferenças relativas teriam diminuído.

Embora a redução da pobreza tenha significado também uma diminuição da desigualdade, esta parece responder com mais vagar às iniciativas governamentais. Num comunicado do início do ano, o Ipea observou que “o movimento recente de redução da pobreza tem sido mais forte que o da desigualdade”. Segundo Ilan Goldfajn, economista-chefe do Itaú Unibanco, “somos o décimo pior país em distribuição de renda” no mundo. Para o especialista em finanças públicas Amir Khair, hoje “apenas 1% dos brasileiros mais ricos detém uma renda próxima da dos 50% mais pobres”. Por isso, segundo o economista Marcelo Neri, quando olhado desde o ângulo da desigualdade, a fotografia da sociedade brasileira é “ainda grotesca”.

Alguns argumentam até que, por trás da vagarosa queda do índice de Gini, que mede o desnível entre os que recebem salário, haveria na realidade uma piora na repartição da riqueza entre o capital e o trabalho. Nessa lógica, uma maior equidade entre os que vivem do próprio trabalho teria sido compensada por um aumento da parcela apropriada pelos capitalistas sob a forma de lucros e dividendos.

Sinais disso seriam os largos gastos do Tesouro com o pagamento de juros e os polpudos lucros das grandes empresas ao longo do governo Lula. No entanto, de acordo com o Ipea, a participação do trabalho na renda nacional, que estava estagnada há quinze anos, também começou a aumentar. Em 2004, ela era de 31% do Produto Interno Bruto, e passou para 33% em 2007. Mais ainda: de acordo com as estimativas do economista João Sicsú, no ano passado ela deve ter voltado ao patamar de onde começou a cair em 1995: 35%.

Mas, se a renda dos assalariados – e particularmente dos mais pobres – cresce num ritmo suficientemente acelerado para eliminar a pobreza em poucos anos, como se explica que a desigualdade caia devagar? Acontece que os ricos estão ficando mais ricos. A economista Leda Paulani tem assinalado que 80% da dívida pública estão em mãos de algo como 20 mil pessoas, as quais, sozinhas, recebem um valor dez vezes maior do que os 11 milhões de famílias atendidas pelo Bolsa Família. O sociólogo Francisco de Oliveira, por sua vez, chamou a atenção para os sinais de riqueza ostensiva revelados pela inclusão de mais de uma dezena de brasileiros na lista da revista Forbes dos mais ricos do mundo. De fato, basta abrir um jornal ou revista para deparar com notícias relativas à expansão do comércio de alto luxo em São Paulo.

Como há indícios de que possa ter ocorrido certo achatamento nos ganhos da classe média, a persistência da desigualdade deve, realmente, decorrer do que é apropriado pelos muito ricos. A queda lenta da desigualdade, em sociedades que partem de um patamar elevado e nas quais os mais ricos continuam a acumular riqueza, aponta para a dificuldade de atingir, no curto prazo, uma situação em que os seus membros tenham uma vida material “reconhecidamente similar”.

Mesmo mantido o ritmo atual de melhora das condições de vida dos menos aquinhoados, o Ipea calcula que em 2016 chegaremos a um indicador de desigualdade um pouco inferior àquele que dispúnhamos em 1960, quando foi aplicada a primeira pesquisa sobre diferenças de renda.

Ou seja, se for bem-sucedido o esforço no sentido de elevar o padrão de existência dos mais pobres nos próximos anos, o que está no horizonte é voltar ao ponto interrompido pelo golpe de 1964. Após duas décadas de um regime militar concentrador, e de outras duas décadas de estagnação, as políticas de redução da pobreza nos levarão de volta ao limiar de onde começamos a regredir. Não é coincidência que o salário mínimo tenha voltado, em 2009, ao patamar de meados dos anos 60.

Aagenda de diminuição da pobreza e da desigualdade do governo Lula avançou por meio de uma estranha combinação de orientações antitéticas: de um lado, manteve linhas de conduta do receituário neoliberal e, de outro, adotou mecanismos de uma plataforma desenvolvimentista. Essa combinação sui generis de mudança e ordem explicaria por que o apoio político ao presidente, grosso modo, migrou da classe média para o subproletariado.

A combinação se deu ao longo de três fases. Na primeira, entre 2003 e 2005, predominou a ortodoxia: contenção de despesas públicas, elevação dos juros e reforma previdenciária que apontava para a redução de benefícios no serviço público. Era o pacote clássico de “maldades” neoliberais, voltadas para estabilizar a economia por meio da contração dos investimentos públicos e das atividades econômicas em geral.

Para além de mera opção técnica, o que estava em jogo era uma escolha política: evitar a radicalização por meio do atendimento das condições impostas pela classe dominante. Como afirmou o ex-senador Saturnino Braga: “Na transição, quando findavam os últimos meses de Fernando Henrique Cardoso, a inflação e a taxa cambial dispararam. Aquilo foi um aviso do capital.”

Ocorre que, quase ao mesmo tempo, houve um conjunto de iniciativas na direção contrária às soluções neoliberais. O lançamento do Bolsa Família, em outubro de 2003, foi seguido pela expansão do crédito popular, com o convênio assinado entre sindicatos e bancos no final do mesmo ano, e pela valorização do salário mínimo, iniciada em 2004. As três medidas deram a partida para a recuperação da economia por meio do fortalecimento de um mercado interno de consumo de massa.

Asegunda etapa da política econômica começa com a passagem de Guido Mantega para o Ministério da Fazenda, em 2006, e se estende até a irrupção da crise financeira internacional, em 2008. A partir da chegada de Mantega ao centro das decisões econômicas, o lado popular do projeto de Lula, que ficara em desvantagem na primeira fase, ganha mais peso. Isso se reflete em uma elevação substancial do salário mínimo em 2006, com um aumento real de nada menos que 14%. A progressão do salário mínimo continuou ao longo do segundo mandato, com uma valorização estimada em 31%.

Entres os estudiosos do tema, observa-se uma convergência em torno da percepção de que no valor do salário mínimo encontra-se a chave para reduzir a iniquidade no Brasil. “O salário mínimo estabelece o piso da remuneração do mercado formal de trabalho, influencia as remunerações do mercado informal e decide o benefício mínimo pago pela Previdência Social”, assinala Sicsú. Quase 68% dos trabalhadores ganham apenas até dois salários mínimos, e uma parcela expressiva dos aposentados recebe um. Por isso, o sociólogo Simon Schwartzman afirma que “o salário mínimo foi o grande fator para a redução da pobreza”.

Segundo o economista Amir Khair, 75% do consumo que estimula o crescimento vem das famílias. Assim, o aumento do poder aquisitivo das famílias de baixa renda – que se beneficiaram também da diminuição do preço de artigos populares, por meio de desonerações fiscais – impulsionou a atividade econômica como um todo. As empresas elevaram o investimento para aproveitar as oportunidades abertas pela expansão do mercado, com isso gerando emprego, o qual por sua vez realimentou o consumo, em um círculo virtuoso há muito esperado no Brasil.

Um segundo elemento caracterizou o triênio 2006–2008: o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, em janeiro de 2007. Partindo de um patamar muito baixo, a União quase duplicou o montante orçamentário destinado ao investimento. Houve, igualmente, uma multiplicação do investimento realizado pelas estatais – sendo que a Petrobras, sozinha, tem mais capacidade de investimento do que a União.

Para além daquilo que a União e as estatais podem investir diretamente, cumpre atentar para o efeito indutor que exercem sobre o investimento privado, sobretudo na área relativa aos grandes projetos de infraestrutura. Até o advento da crise financeira internacional, a meta do PAC – sustentar um crescimento de 5% – foi atingida. Não fosse pela paralisia das atividades econômicas decorrentes da crise, é possível que chegasse a 7%.

A terceira fase da política econômica do governo Lula ainda está em curso, o que dificulta a avaliação. Ela corresponde ao período que se abre com a crise internacional e deverá ir até o final do mandato. Cabe somente indicar o aprofundamento da trajetória delineada na segunda etapa. Os bancos estatais foram fortalecidos para garantir o crédito, operando até certo ponto na contramão do Banco Central, que demorou em reduzir a taxa de juros. O consumo popular foi ampliado mediante aumentos do salário mínimo e das transferências de renda, mesmo depois de iniciada a crise. O setor produtivo foi estimulado por meio de desonerações fiscais e ações indutoras, como o programa de habitação Minha Casa, Minha Vida.

Em linhas gerais, a desorganização das finanças mundiais deixou ao setor público o encargo de impedir que se abrisse um ciclo de depressão econômica. Apesar de não ter evitado a estagnação em 2009, a rápida (e forte) recuperação em curso mostra que o Brasil foi bem-sucedido no uso dos instrumentos disponíveis.

A condução das medidas anticíclicas durante a crise, na qual o presidente se destacou pela ousadia de conclamar a população a manter a confiança e comprar, arriscando-se a quebrar junto com os endividados, caso algo desse errado, consolidou uma popularidade inédita desde a redemocratização. Subitamente, o crescimento que se julgava extinto, voltou. Pode-se dizer que a crise fortaleceu o campo popular na terceira fase do governo Lula, o que tornou tal fato decisivo para a alavancagem da candidatura de Dilma Rousseff.

No programa apresentado por Dilma Rousseff na campanha eleitoral, o objetivo central é eliminar a miséria extrema na década que começa em 2011. Prometeu fazer isso com a valorização do salário mínimo, a ampliação gradual das transferências de renda e o reforço do papel do Estado na economia. Também disse que manterá o Banco Central com autonomia para conduzir a política monetária, deixar o câmbio flutuante e exercer alguma rigidez fiscal.

Não se deve depreender da moderação desse arranjo que ele esteja isento de embates importantes, cujos desfechos definirão os contornos mais precisos do caminho a ser trilhado nos próximos anos. A menos que sobrevenha nova ascensão do movimento social, em refluxo desde a década de 90, uma parte dos conflitos ocorrerá num plano relativamente oculto – eles se darão por meio de negociações intraestatais, sem que o público amplo possa percebê-los de imediato.

Ao analisar com minúcia os processos de decisão, cujos reflexos na superfície são por vezes tênues, aparecem os nós e as tensões definidores. Um bom exemplo passado está na seguinte descrição de Nelson Barbosa:

Devido à crise internacional e seus reflexos no Brasil, a receita do governo caiu, e se o governo cortasse a despesa na mesma proporção em que a receita caiu, ele empurraria a economia para baixo, como se agia normalmente no passado. Diferentemente de outras crises, agora nós temos escolha, podemos reduzir o superávit primário para preservar o crescimento e o bem-estar da população. A decisão de reduzir a meta de superávit primário em 2009 passou tranquila na imprensa; para quem participa da política econômica do governo Lula isso é um marco.

Trata-se de uma delicada rede de pressões e contrapressões no interior do Estado.

A redução da pobreza e da desigualdade depende da manutenção do crescimento em um patamar ao redor de 5%, como previa o PAC. Para atingir esse patamar, que não foi alcançado sequer no segundo mandato de Lula, haverá uma série de escolhas a serem feitas. Carlos Lessa, o ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES, argumenta que há duas visões conflitantes a respeito de como produzir essa expansão da economia. Em uma delas, seria necessário elevar substancialmente a taxa de investimento público. Deduz-se que os recursos devam sair, nesse caso, da diminuição do serviço da dívida, à qual o Banco Central resiste.

Numa outra visão, isso não precisa acontecer, implicando, no entanto, em um processo de desindustrialização do país. Essa segunda proposta pressuporia que a exportação de soja, carne e minério de ferro, por exemplo, daria conta do recado, sem depender de o Brasil produzir mercadorias de alto valor agregado. Por trás desses pontos de vista conflitantes se encontram interesses sociais e econômicos diferentes, cujo confronto definirá a dinâmica futura.

O peso das exportações no modelo “inventado” pelo governo Lula é reconhecido pelos seus defensores. O senador Aloizio Mercadante mostra que triplicou o valor exportado entre 2002 e 2008: de 60 bilhões de dólares para quase 200 bilhões de dólares. Porém, destaca que o destino das mercadorias mudou. Em 2002, os Estados Unidos recebiam 24,3% das exportações brasileiras, patamar reduzido a 14,6% em 2008. Sem estardalhaço, o governo Lula esvaziou a proposta da Área de Livre Comércio das Américas, a Alca, que atrelaria o Brasil aos Estados Unidos, e investiu na formação de um bloco sul-americano forte, ao mesmo tempo em que fortalecia os vínculos com potências emergentes como a China.

O sucesso da estratégia externa desempenhou, assim, um papel destacado na economia política do realinhamento. O ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, no entanto, tem chamado a atenção para o fato de o Brasil ser vítima de “uma leve, mas real doença holandesa”, pela qual os mecanismos de mercado tendem a levar um país com extensos recursos naturais a ter um câmbio cronicamente sobreapreciado [2].


A consequência não é difícil de imaginar: torna-se mais barato importar artefatos industrializados do que fabricá-los internamente. Para combater a doença holandesa, afirma Bresser-Pereira, é indispensável administrar o câmbio, em vez de deixá-lo oscilar ao sabor do mercado. Em cálculo recente, ele indica que o real deveria flutuar ao redor de 2,40 por dólar, o que implicaria uma desvalorização em torno de 25%.

Uma coalizão de interesses liderada pelo capital financeiro tem obstado a desvalorização. Como as importações baratas ajudam a controlar os preços internos, garantindo o poder de compra dos consumidores, em especial os de baixíssima renda, há uma pressão no sentido de mantê-las nesse patamar. Elas permitem, na outra ponta, à classe média tradicional, cuja poupança também é beneficiada por juros elevados, o acesso a produtos importados (além de o real em alta facilitar viagens internacionais). Em terceiro lugar, o câmbio valorizado favorece os detentores internacionais de capital, que lucram no Brasil com a aplicação de dinheiro especulativo remunerado a altas taxas de juros em moeda forte.

Na posição oposta se encontram os empresários industriais, o proletariado fabril e os exportadores. Os industriais observam com preocupação crescente a queda das atividades fabris desde o começo dos anos 90. Também não é por acaso que a Central Única dos Trabalhadores defende “aplicar política cambial voltada para a defesa da economia nacional”. Os exportadores querem ganhar mais com o que vendem. Esse tripé deu ao governo sustentação para impor um imposto de 2% sobre o capital especulativo em 2009, na vigência da crise internacional. A medida, embora tímida, impediu que a valorização da moeda aumentasse ainda mais, além de sinalizar a existência de setores sociais ponderáveis preocupados com a doença holandesa.

Em que pese ser uma das maiores taxas de juros do mundo, e parecer distante o momento em que a coalizão “produtivista” consiga forçar a sua diminuição, o balanço do último período mostra algum abalo na liberdade do capital financeiro. A ampliação do crédito no segundo mandato (quando passou de 25% para 40% do PIB) foi obtida apesar da oposição dos bancos privados. Ela expressa o aumento da capacidade do Estado – apoiado pelos três setores mencionados e pelo fortalecimento dos bancos públicos durante a crise – em obrigar o sistema financeiro a emprestar ao público, em lugar de apenas comprar títulos do governo. Nesse sentido, revelou-se crucial o reforço do BNDES no papel de financiador, a juros mais baixos, das empresas industriais.

Sabe-se que os juros altos inibem os investimentos produtivos, pois o capital é remunerado sem precisar “fazer nada”. Eles também transferem recursos públicos – que poderiam ser usados para aumentar a criação de infraestrutura – para a mão dos rentistas, que os esterilizam ou usam em um consumo de luxo, com aumento da desigualdade. Por isso, os empresários da área produtiva (para quem a taxa de juros é central) e os trabalhadores em geral (para os quais o aumento do emprego é decisivo) estão momentaneamente juntos na batalha contra a “usura”.

O PAC funciona como uma espécie de carta-programa dessa coalizão antirrentista. Ele avançou devagar, porém continuamente, no segundo mandato de Lula, tendo aproveitado a crise financeira internacional para dar alguns passos adiante. A “mãe do PAC” prometeu manter a trilha. Mas a defesa dos juros altos será proporcional ao enorme poder acumulado pelo setor financeiro sob o signo da globalização.

As bandeiras históricas da classe operária, como a redução da jornada de trabalho – agora para quarenta horas – e a proposta de uma reforma tributária progressiva, materializada num imposto sobre grandes fortunas, repõem em cena, por outro lado, a plataforma petista original, de fundamento classista. Em função do caráter pluriclassista da candidatura Dilma, os coordenadores da coalizão evitaram esses pontos agudos.

Mas três itens cruciais para os trabalhadores parecem fazer parte da plataforma possível. Primeiro, o prosseguimento da política de valorização do salário mínimo que, nos últimos anos, implicou maior renda para assalariados de baixa remuneração e aposentados que recebem o piso. Em segundo lugar, a manutenção do crédito, que quase dobrou no governo Lula. Em terceiro, a maior capacidade de o Estado induzir o investimento privado, por meio de empréstimos, subsídios e da participação em projetos de infraestrutura.

Tais medidas levam à diminuição do desemprego. O aumento das taxas de emprego anuncia o ressurgimento das condições para uma ascensão da luta dos trabalhadores. Uma taxa de desemprego de 6%, à qual o Brasil pode chegar ao final deste ano, aponta para um quadro semelhante àquele que vigorou antes da grande onda de demissões no segundo mandato de Fernando Henrique – e, portanto, mais próxima das condições vividas na grande década dos movimentos sociais (1978–88), que levaram o próprio Partido dos Trabalhadores a surgir, crescer e se consolidar.

Joseph Stiglitz mostra como, na concepção do setor financeiro, quando a taxa de desemprego fica abaixo de certo patamar, acende-se o alerta inflacionário, que impulsiona uma política monetária contracionista. Deve-se esperar, portanto, tensões nesse campo, em que a força da aliança produtivista será testada em embates com o setor financeiro.

É característico da atual situação um sistema de alianças móveis, em que a mudança das condições materiais pode operar rápidas alterações de posição. A mobilidade gerada com a redução da pobreza é um exemplo disso. Com carteira assinada e acesso ao crédito, brasileiros de baixa renda começaram a comprar geladeiras, aparelhos de televisão, computadores, carros e, depois, até casas financiadas em longo prazo. Os capitalistas desses ramos puderam, por seu turno, aumentar a produção e auferir lucros maiores com ela, solidificando os laços de interesse entre os trabalhadores e o capital produtivo. Só que isso deverá gerar uma pressão no sentido de aumentos salariais e outras reivindicações trabalhistas.

Sob o governo Lula, surgiram 10,5 milhões de vagas com carteira assinada. Trata-se de um novo proletariado, que entra no mercado em condições precárias, mas apto a integrar-se ao mundo sindical, que já percebeu a relevância estratégica desse contingente. “Apesar dos 10 milhões de novos empregos gerados, o mercado de trabalho brasileiro se caracteriza por elevadas taxas de rotatividade, desemprego e de informalidade, precariedade dos postos de trabalho, crescimento indiscriminado da terceirização e fragilidade do sistema de relações de trabalho”, diz a plataforma da CUT para as eleições 2010. Não se deve descartar, em consequência, a possibilidade de haver uma unificação dos estratos novos e velhos do proletariado no próximo período, dando face inédita à luta sindical.

Seja qual for o destino dos atritos que virão a marcar o ciclo político, o objetivo de reduzir a pobreza por meio da transferência de renda para os segmentos muito pauperizados deverá ser a marca dos próximos anos. Não teremos, contudo, direitos universais à saúde, à educação e à segurança sem aumentar o investimento público. No Brasil, ainda não há saneamento básico e moradia de qualidade mínima para enormes setores da população. Além dos programas de transferência de renda, os relativos à saúde, educação e segurança pública são fundamentais para a redução da pobreza e da desigualdade. O que implica em vultosos desembolsos, bem como um Estado equipado para exercer funções de envergadura. Daí, igualmente, a necessidade de continuar a valorização do funcionalismo público, com a reestruturação de carreiras de Estado e o aumento da folha de pagamento dos servidores.

Embora o Bolsa Família caminhe para se tornar um direito reconhecido na Constituição, sob a forma de uma Renda Básica de Cidadania, a ser proposta no bojo da Consolidação das Leis Sociais que o próximo governo deverá enviar ao Congresso Nacional, não há consenso ao redor do tamanho e abrangência que o Estado deve ter no Brasil. Assim como não existe acordo a respeito da reforma tributária que deveria garantir os recursos para ele. Enquanto as organizações de trabalhadores sugerem tornar o imposto mais progressivo, as entidades empresariais, unificadas quanto a essa questão, buscam diminuir a carga tributária em absoluto. Nesse item, capitalistas e assalariados se encontram em campos opostos. A pressão da burguesia pela contenção dos gastos do Estado deverá crescer.

Assim, a abrangência dos serviços públicos de saúde e educação é um tema que separa a coalizão majoritária em diferentes segmentos. Para os trabalhadores, deve-se atender ao mandamento constitucional de universalizar a saúde e educação públicas. Para os empresários, a privatização em curso, representada pelos planos de saúde e escolas privadas, merece ser preservada e ampliada. Contrapõem-se aqui visões distintas a respeito do papel do lucro no atendimento de necessidades fundamentais como medicina e educação. Divergência que se estende para o campo da previdência. Isso explica por que medidas como a revogação da CPMF, em dezembro de 2007, contaram com o ativo apoio do setor empresarial e oposição dos representantes dos trabalhadores.

Esses conflitos espelham divisões sociais mais amplas. O sociólogo Jessé Souza tem chamado a atenção para o caráter profundamente conservador da sociedade brasileira, que encara como “natural” a extrema desigualdade. Talvez até, poderíamos acrescentar, se resista à tentativa de alterar um quadro longamente estabelecido.

A expressão de tal resistência pode surgir de maneira disfarçada por certos comportamentos do cotidiano. Anos atrás, o compositor Chico Buarque, com a sua fina sensibilidade para a realidade nacional dizia: “Assim como já houve um esquerdismo de salão, há hoje um pensamento cada vez mais reacionário. O medo da violência se transformou em repúdio não só ao chamado marginal, mas aos pobres em geral, ao motoboy, ao sujeito que tem carro velho, ao sujeito que anda malvestido.”

São fundas as fraturas que separam as vastas legiões de brasileiros pobres da classe média tradicional, cuja superioridade relativa diminui à medida que o movimento de ascensão social se intensifica. A velocidade do percurso em direção a uma possível sociedade “decente e similar” dependerá até certo ponto da correlação de forças entre esse proletariado emergente e a classe média tradicional.

Essa classe média dá certa base de massa à frente rentista, que tem como programa a autonomia do Banco Central, a liberdade de movimento dos capitais, o corte dos gastos públicos e, em uma conjuntura favorável, uma reforma trabalhista que retire direitos dos trabalhadores. Ao velho e novo proletariado interessa a plataforma oposta, com a adequação da política monetária às metas de crescimento, a desvalorização do real para evitar a doença holandesa, o aumento do gasto público na direção de um Estado de bem-estar, com a transformação dos programas sociais em direitos que se somem aos da legislação trabalhista.

No plano partidário, PMDB e PT parecem destinados a representar posições divergentes na próxima etapa. Apesar das fragilidades dos partidos brasileiros, em que o excesso de pragmatismo dificulta levar ao terreno da política os interesses de classe, o sistema permite alguma refração das clivagens sociais. Desse modo, o tamanho das bancadas legislativas do PMDB e do PT – tanto na Câmara quanto no Senado – deverá determinar o andamento de propostas decisivas, como a Consolidação das Leis Sociais, no Congresso.

Os ventos internacionais, cuja temperatura e intensidade costumam influenciar na balança interna, mostram-se confusos, o que não é necessariamente ruim para o sonho rooseveltiano brasileiro. A grave crise financeira de 2008 produziu efeitos contraditórios. Enquanto nos Estados Unidos resultou em uma guinada progressista, com a vitória de Barack Obama interrompendo a escalada conservadora dos dois mandatos de Bush ii, na Europa provocou uma reação à direita, com intensificação da xenofobia e adoção de políticas econômicas contracionistas.

Nos países emergentes, a crise clarificou a percepção de que é preciso procurar uma via autônoma de desenvolvimento que não dependa da problemática recuperação dos centros capitalistas tradicionais. O Brasil em particular, embalado pelo desejo de transformar-se em uma sociedade de classe média, tem, no destaque internacional que alcançou, um impulso nessa direção.

O caminho será cheio de choques, cujo resultado exato não se pode prever. Contudo, se a minha hipótese estiver correta, durante um tempo longo o norte da sociedade será dado pelo anseio histórico de reduzir a pobreza e a desigualdade no Brasil. Em que grau e velocidade, a luta de classes dirá.

[1] A G.I. Bill, assinada por Roosevelt em junho de 1944, deu o direito a veteranos de cursar a universidade no retorno da Segunda Guerra Mundial. Promulgado pelo presidente Harry Truman em fevereiro de 1946, o Employment Actatribuía ao governo federal a incumbência de promover oportunidades de emprego.
[2] O modelo da "doença holandesa" foi desenvolvido a partir de uma análise dos efeitos dos ganhos com a exportação de gás naquele país, nos anos 70.

André Singer, jornalista, cientista político e professor na Universidade de São Paulo, foi secretário de Imprensa da Presidência da República de 2003

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