31 de janeiro de 2022

O nefasto retorno do FMI

O governo argentino legitimou o golpe e a eterna renegociação de um passivo impagável. Dessa forma, desperdiçou um contexto favorável para sustentar a recuperação, isolar a direita e forjar uma frente latino-americana de resistência aos credores.

Claudio Katz


Máximo Kirchner renunciou à presidência do bloco de deputados da Frente de Todos em desacordo com o acordo com o FMI. (Foto: Telam)

Tradução / Por fim, o governo assinou um acordo com o FMI que convalida a dívida fraudulenta assumida por Macri. Fernández adoçou o anúncio com a promessa de evitar ajustes e sugeriu que é a melhor opção possível. Porém, ele descartou as alternativas a essa rendição e esqueceu que o país nunca saiu airoso desses compromissos.

O acordo legaliza as irregularidades de um crédito que violou todas as normas do FMI e financiou a fuga de capitais, sem contribuir com um único dólar para empreendimentos produtivos. Todas as denúncias oficiais desta fraude estão agora arquivadas e as denúncias contra os funcionários da Cambiemos [coligação de Macri] perdem o sentido. Não é verdade que “Fernández resolve o problema gerado por Macri”. O presidente ratifica as tropelias de seu antecessor e endossa o endividamento forçado das gerações futuras.

O presidente detalhou o que foi acordado para os próximos dois anos e meio, mas nada disse sobre o cenário posterior. A partir de 2025, toda a carga dos 45,5 bilhões de dólares devidos ao Fundo reaparecerá. Nesse momento, ressurgirá a impossibilidade de pagamento e a consequente obrigação de se firmar outro acordo mais oneroso.

Por esta razão, Guzmán evitou desta vez seu termo favorito “acordo sustentável”. Ele arranjou um alívio imediato que adia o problema, repetindo a dilatação de prazo já negociada com os detentores de títulos privados. Foi acertada uma trégua relativa para o próximo biênio, que mantém ativada a bomba do endividamento explosivo.

Se o adiamento funcionar, ao final do período de carência haverá que se enfrentar a mesma montanha de vencimentos impagáveis. Os 20 bilhões de dólares por ano exigidos pelo Fundo também não aparecerão no futuro. Nesse momento, o FMI voltará à carga com suas conhecidas exigências de reforma trabalhista e previdenciária. Guzmán se gaba de ter conseguido a eliminação desses atropelos no atual acordo, mas esconde que eles reaparecerão no próximo refinanciamento.

Algumas autoridades argumentam que o país poderá negociar de uma posição fortalecida dentro de dois anos. Mas não explicam como surgirá essa capacidade reforçada da Argentina para colocar-se ante o Fundo. Os fiscais daquele órgão já estarão confortavelmente instalados no Ministério da Economia e no Banco Central e a grande carta da ilegitimidade de passivos terá se perdido.

Nenhum servidor público poderá se opor no futuro à fraude que agora se convalida. Não poderão alegar a responsabilidade de Macri, Trump e Lagarde sobre um crédito ratificado por Fernández, Biden e Giorgieva.

Todas as denúncias de um passivo ilícito irão para a gaveta da memória. O mesmo acorrerá com os pedidos de intervenção da ONU e da Corte Internacional de Justiça, para que declarem a nulidade de uma operação financeira irregular.

Fernández repete a mesma aceitação da fraude que assumiram todos os governos nas últimas quatro décadas. Essa sucessão de ratificações transformou o endividamento em um aluvião incontrolável. Pela enésima vez, um governo progressista encobre os ultrajes de seu antecessor direitista, com a mesma repetição da divisão do trabalho. O escandaloso passivo assumido pelas equipes econômicas ortodoxas é abençoado por seus pares de heterodoxia.

À medida que o país assume a trapaça, os funcionários do FMI respiram aliviados. Eles transformaram a Argentina no principal devedor da organização e não terão que explicar por que razão nenhuma outra nação enfrenta uma situação semelhante. Os outros dois devedores pendentes (Egito e Iraque) devem valores incomparavelmente mais baixos.

A mesma ajuda oficial se estende aos grandes capitalistas locais, que desviaram o dinheiro concedido pelo FMI para suas próprias contas depositadas no exterior. A investigação já realizada pelo Banco Central identificou os beneficiários desta fuga, que naturalmente aprovam a validação de sua manobra. As principais entidades do establishment já antecipavam este apoio entusiástico ao acordo.

Guzmán tinha, em sua mesa, a lista completa dos que lucraram e congelou a investigação. Nem sequer permitiu que os dados fossem cruzados com os registros da AFIP [Administración Federal de Ingresos Públicos], para avaliar se os dólares dos expatriados foram declarados ao erário.

Os servidores apenas emitiram vagos pedidos de colaboração para que o FMI contribuísse para a recuperação dos dólares escondidos em paraísos fiscais. Obviamente, o principal cúmplice da fraude não agregou nenhuma informação e o retardamento da investigação antecipou o acordo promovido por Washington.

Um corte sem ajuste?

O governo substituirá o crédito assinado por Macri por outro que refinancie a inadimplência daquele empréstimo. O FMI garante a cobrança do que é devido com a prorrogação dos prazos e a vigilância sobre a política econômica. Essa auditoria ocorrerá por meio de dez revisões trimestrais, que garantem ao Fundo uma cogestão estratégica durante os próximos mandatos presidenciais.

Guzmán apresenta esta reintegração com o FMI como um evento “razoável” que contribuirá para reduzir as incertezas. Mas omite que essa ingerência reativará o desprezo que todos os emissários do Fundo exibiram pelo país, nos 22 acordos firmados nas últimas seis décadas. Enquanto Giorgieva compartilha mensagens indulgentes com o Papa Francisco, os verdadeiros diretores da organização (David Lipton, Ilan Goldfajn) são velhos cúmplices de Macri, que exigem uma grande cirurgia da Argentina.

Por essa razão, eles demoliram todos os pedidos de benevolência. Rejeitaram a possibilidade de perdão ou desconto no capital devido e, também, a conversão de passivos em obrigações climáticas ou a prorrogação de vencimentos para 20 anos. Eles até mantiveram a cobrança de uma sobretaxa incomum para o volume exorbitante de crédito que eles mesmos concederam. Vetaram, ademais, a possível concessão de recursos adicionais por parte de outros sócios da instituição.

Guzman disfarça esse rigor das cláusulas, elogiando os quatro compromissos acordados com o FMI pelos próximos dois anos e meio. Destaca, em primeiro lugar, a redução do déficit fiscal que o governo propôs colocar em 3,3% do PIB para o ano corrente e que finalmente foi ajustado para 2,5%. Em 2023 deve ser de 1,9% e em 2024 deve ser de 0,9%.

Esses declínios no déficit têm sido a grande bandeira da ortodoxia de direita, que estabelece a principal desgraça da economia argentina nos gastos públicos. Guzman sempre proclamou o contrário, mas agora ele descobre os méritos desses cortes. Ele afirma que essas reduções terão efeitos virtuosos, pois em vez de se assentarem nos gastos, sairão da maior receita obtida pelo tesouro com crescimento e tributação.

Mas na gestão dos últimos meses esse critério não prevaleceu e, por isso, o ressurgimento da pandemia foi privado do subsídio correspondente (IFE - Ingreso Familiar de Emergencia). Ademais, o pacto fiscal negociado com os governadores e o frustrado projeto orçamentário de 2022 foram desenhados com cortes, para estar em sintonia com o Memorando de Entendimento exigido pelo FMI.

Guzmán também apresenta o que aconteceu no último trimestre de 2021, como exemplo de redução dos gastos devido ao crescimento e à tributação. Nesse período, as receitas estaduais aumentaram significativamente, ao ritmo de recuperação da economia que compensou a queda anterior (10%).

O ministro projeta esses dados para o futuro e afirma que não haverá qualquer ajuste em itens relevantes (como obras públicas ou ciência e tecnologia). Mas não esclarece qual taxa de crescimento e qual arrecadação seria necessária para alcançar a redução drástica do déficit com a qual se comprometeu para o próximo biênio.

Os percentuais dessa redução foram acordados com o FMI, mas não os números que permitiriam a redução. Não foi estabelecido quanto os salários vão aumentar, que nível de recuperação as pensões terão ou quanto a pobreza diminuirá e o PIB aumentará. Embora esses números sejam de magnitudes a serem revisadas, o corte do déficit foi rigorosamente preestabelecido. Os auditores do Fundo estarão presentes para monitorar esse cumprimento.

O segundo compromisso oficial é a redução do financiamento fiscal com emissão monetária. Esse corte começou em 2020 (7,3%), foi reforçado no ano passado (3,7%) e se intensificará de forma repentina em 2022 (1,00%), 2023 (0,6%) e 2024 (0%). Com esse cronograma, o grande objetivo da ortodoxia, que é zero emissões, seria alcançado. Os monetaristas sempre sonharam em colocar a economia de volta nos trilhos, simplesmente sugando o dinheiro em circulação.

Agora Guzmán adota esse programa e promete reintroduzir taxas de juros reais positivas para pavimentar a disciplina monetária. Ele afirma que nesse caminho se consolidará um mercado de financiamento do gasto público em pesos, o que compensará a contínua exclusão da Argentina do mercado internacional de crédito.

Mas o ministro omite os conhecidos problemas das gigantescas emissões de títulos locais. Com estas colocações, os bancos são induzidos a especular com o crédito público, em detrimento do financiamento da indústria, agricultura ou serviços. Não se sabe até que ponto o crescimento elevado será sustentado com taxas de juros positivas que desencorajam o investimento produtivo.

Tarifas e dólares em letras pequenas

O terceiro compromisso acordado com o Fundo é a redução da inflação para facilitar o superávit fiscal e a aquisição oficial dos dólares destinados ao FMI. Guzmán enfatiza que a organização agora aceita o caráter multicausal e não apenas monetário do aumento de preços. Mas ele omite que essa concessão retórica não tem consequências práticas. Os fiscais de Washington só vão verificar se a inflação cai com cortes nas emissões monetárias e juros altos.

O ministro também afirma que vai combater a carestia com o instrumento heterodoxo de acordos de preços. Mas ele esquece que esses acordos fracassados persistiram em toda a variedade de ministros neoliberais (que, por exemplo, Macri tinha).

Com a auditoria do FMI, a erosão desses controles aumentará. O Fundo pretende arrecadar seus créditos com os dólares aportados pelas exportações e, para estimular essas vendas, promove a transferência dos preços internacionais dos alimentos para o mercado local. Como também promove um grande aumento nas tarifas, o acordo vai superaquecer a carestia que já tem um piso de 50% ao ano.

O reajuste tarifário aparece nas letras miúdas do acordo e incluirá um fracionamento de preços, para encarecer o serviço para os setores de alta e média renda. Os lucros das companhias de eletricidade, telefone ou gás continuarão sendo um mistério insondável para a maioria da população.

O quarto compromisso com o FMI é a recomposição da paridade cambial. O governo promete evitar uma mega desvalorização, mas concorda em acelerar a taxa de desvalorização do peso para intensificar o acúmulo de reservas, que o Fundo vê como garantia de pagamento. A meta de arrecadar 5 bilhões de dólares aos cofres do Banco Central em 2022 já foi definida. Mas ninguém explica como se atingirá esse objetivo.

No ano passado foi alcançado um superávit comercial de 14 bilhões de dólares e não há um único dólar nas reservas disponíveis do Banco Central de la República Argentina. Mesmo que os pagamentos sejam adiados por dois anos e meio, não há como aumentar a retenção de divisas se a fuga de capitais persistir.

O pico dessa evaporação ocorreu com Macri e persistiu no último biênio. O mecanismo financeiro dessa erosão foi substituído por modalidades equivalentes, na gestão do comércio exterior por um punhado de grandes empresas. Essa drenagem pode ser cortada por meio de regulamentações drásticas que o FMI vetará.

Os auditores do organismo só exigirão maiores exportações e a consequente primarização da economia. Essa direção inclui os empreendimentos destrutivos do meio ambiente, que o governo intensificou nos últimos meses (exploração de petróleo no mar, megamineração em Chubut).

Resumindo: ninguém sabe por enquanto qual será o ajuste necessário para cumprir os compromissos assumidos pelo governo nas esferas fiscal, monetária, inflacionária e cambial. Mas o cenário de maior vulnerabilidade e dependência gerado por essas obrigações já está à vista.

Experiências demolidoras

Algumas autoridades propagam a miragem de “um grande sucesso para o país”, com as mesmas fantasias que acompanharam todos os acordos anteriores. Preveem um grande crescimento com redistribuição sob a égide do FMI, esquecendo-se do que aconteceu nos três últimos desembarques do Fundo.

Na gestão de Alfonsín, foram assinados cinco acordos com o Fundo. Os fiscais revisaram as contas e emitiram periodicamente sentenças de descumprimento das metas acordadas. Para lidar com os abalos cambiais e inflacionários gerados por essas avaliações, os ministros ajustavam seus planos, enquanto o Fundo administrava o refinanciamento de vencimentos por conta-gotas.

Alfonsín, por fim, jogou a toalha em meio à hiperinflação e o FMI levou à chegada de um presidente com ideias afins. Endossou diretamente a conspiração patrocinada por Cavallo e o boicote a um crédito final que abriu caminho para a presidência de Menen.

Em seus discursos recentes, Cristina relembrou esses episódios sem tirar conclusões do que aconteceu. Seu companheiro de governo Alberto está preso no mesmo labirinto que sufocou Alfonsín. Fernández será visitado pelos chantagistas a cada três meses e terá que passar no exame.

Se a história se repetir e os inspetores ficarem insatisfeitos, o FMI procurará um substituto. A organização é especializada em apertar o pescoço de governos progressistas. Isso os leva a fazer o trabalho sujo que desmoraliza a população e facilita o retorno dos neoliberais à Casa Rosada.

Mas o Fundo não tem sido mais contemplativo com presidentes de direita que falharam em aplicar suas prescrições. O FMI patrocinou a conversibilidade no auge do neoliberalismo e protegeu a liberalização comercial, a flexibilidade trabalhista e as privatizações que precipitaram a degradação econômica da década de 1990.

Durante o mandato de De La Rúa, promoveu a reforma previdenciária e trabalhista juntamente com o programa déficit zero. Quando a economia entrou em colapso, estimulou um maior endividamento e diante da impossibilidade de pagar esse passivo, impôs as duas medidas de alívio que precipitaram o colapso de 2001 (blindagem e renegociação da dívida soberana). Os técnicos do Fundo alcançaram o recorde de triplicar a dívida em apenas dois anos.

Aqueles que agora celebram o Memorando que Guzmán está preparando devem lembrar como terminaram as duas famosas ajudas do FMI, que desencadearam o fim da conversibilidade, o calote, a corrida cambial, o corralito e a pesificação assimétrica.

A experiência de Macri é mais recente e ninguém esqueceu como o Fundo apoiou o endividamento louco para sustentar a maior bicicleta financeira da história contemporânea. A Argentina foi o principal tomador de empréstimos do mundo em mero benefício dos financistas, que lucravam com as altíssimas taxas de juros oferecidas pelo Estado.

Os ministros de Macri naufragaram na implementação de algumas receitas que Guzmán está agora revivendo (redução do déficit, emissão zero), mas com o empréstimo-ponte enviado por Trump conseguiram transferir o problema para o atual governo. Como os diretores do Fundo são especialistas em culpar os outros por seus próprios desastres, eles criticaram Macri pelas medidas que promoveram. Com essa demonstração de hipocrisia, eles eludem suas próprias responsabilidades.

Os macristas também escondem o tumulto que consumaram e prometem resolver o ônus da dívida, com a mesma velocidade com que Macri previu o fim da inflação. Essa gestão refutou a crença ridícula de que os governos de direita administram com mais seriedade ou têm especialistas para lidar com as complexidades das finanças.

Nas últimas décadas, o FMI tem sido o principal culpado pelos infortúnios financeiros da Argentina. A crença generalizada de que os problemas “são nossos” é totalmente falsa. O Fundo esteve diretamente envolvido em todos os nossos pesadelos sem nunca assumir as consequências de seus fracassos.

Tampouco se encarregou dos turnos que seus gerentes promoviam. Eles sustentaram a conversibilidade e a desvalorização, o choque dos ortodoxos e o resgate dos heterodoxos, o endividamento dos neoliberais e os pagamentos dos progressistas. A Argentina se acostumou a administrar sua economia sob o comando de um fundo monetário, que afundou o país repetidamente. Não há razão para esperar um resultado diferente do novo acordo.

Outro caminho é viável

Muitos apoiadores do governo entendem que o acordo é um compromisso indesejado, mas inevitável no cenário atual. Com essa postura de resignação, incorporaram os argumentos da direita, que entendem que a resistência ao Fundo se equipara ao abandono do planeta.

Afirmam que o FMI é um “banco do mundo” que associa todos os países do mundo. Mas esquecem que o crédito escandaloso de Macri não foi aprovado por aquela comunidade. Irrompeu repentinamente mediante um simples telefonema de Trump. Os Estados Unidos não são apenas o principal acionista com poder de veto na organização, mas também administram todas as decisões estratégicas da instituição. A queda de braço é com Washington e não com “o mundo inteiro”. Para recuperar a soberania econômica, essa tensão deve ser assumida.

O medo da disputa com o Norte cegou o governo ao avaliar outras alternativas. Não apenas descartaram uma suspensão ordenada de pagamentos, muito distante da inadimplência periódica imposta pelo esgotamento das reservas. Eles também rejeitaram os cursos mais cautelosos sugeridos por alguns membros da coalizão oficial.

Os pagamentos poderiam ser adiados para prolongar a negociação ou cancelar os juros podem ser cancelados sem o abono do capital ou buscar algum status quo de congelamento das negociações. Mas sob pressão de financistas no mercado de câmbio, o governo concordou com um pacto de rendição.

Com essa decisão, perdeu-se a oportunidade de aproveitar a reativação da economia para iniciar outro caminho. Se essa expansão incuba um ciclo de alta (que vai além da simples recuperação), renunciou-se a introduzir a redistribuição de renda, em um contexto de alta do PIB.

Com uma reforma tributária progressiva, controle estatal do comércio exterior e gestão direta do sistema financeiro, essa reativação poderia ser combinada com uma retumbante melhora nos salários e no emprego. A volta do FMI impedirá a discussão desse projeto, pois o governo cedeu o poder de veto aos inimigos dos ganhos sociais.

O partido no poder também desperdiçou o contexto de divisão e perda de iniciativa que afeta temporariamente a direita. Essa oposição não conseguiu chegar a um acordo sobre uma resposta ao dilema colocado pelo FMI. Um setor propõe acompanhar o governo nos cortes pelos próximos dois anos e outro motoriza o confronto, para garantir a base eleitoral de um próximo presidente do Cambiemos. Nenhum dos dois grupos definiu como administrariam a futura renegociação do acordo.

A Frente de Todos poderia aproveitar a perda de prestígio de Macri para forjar uma ampla frente contra o FMI. Não o faz porque tem mais afinidades com seus adversários do ruptura, do que com as correntes populares contrárias ao Fundo.

A resignação que prevalece no governo também o impede de registrar a grande mudança política na América Latina. Essa mudança poderia fornecer apoio continental ao confronto com o FMI. O ano passado fechou com três vitórias eleitorais para o progressismo (Peru, Chile e Honduras) e em 2002 há grandes chances de vitória no Brasil e possibilidades de uma agradável surpresa na Colômbia. O assédio imperial da Venezuela continua a falhar e o ataque da direita na Bolívia naufragou.

O próprio Alberto Fernández foi nomeado presidente de um órgão regional que exclui os Estados Unidos e rivaliza com a OEA (CELAC). Além disso, já circulam declarações contundentes do presidente mexicano contra a asfixia financeira que o FMI impõe à Argentina. O país não enfrenta, portanto, o isolamento adverso que a Grécia sofreu na Europa, por exemplo, quando o FMI introduziu o terrível ajuste que o povo helênico ainda sofre.

Por outro lado, a Argentina não é a única vítima regional das cobranças compulsivas do Fundo. O Equador sofre todos os efeitos de um refinanciamento que corta salários e encarece o combustível. A Costa Rica sofre, por sua vez, as consequências de um acordo que corrói o sistema de Previdência Social. Fernández poderia retomar as campanhas regionais contra a dívida das últimas décadas, mas não pode pedir apoio para uma ação que ele mesmo arquiva.

O contexto internacional também difere dos momentos de maior iniciativa imperialista e de unipolaridade estadunidense. A própria viagem de Fernández à Rússia (no auge do conflito na Ucrânia) e à China (para um evento boicotado por Washington) ilustra a existência de um quadro propício para rejeitar a submissão ao Fundo.

Basta contrastar o tipo de crédito para fins produtivos que é administrado em Pequim (infraestrutura, usina nuclear, barragens, modernização ferroviária) com a fraude financeira que o FMI monitorou, para corroborar o caráter lesivo do novo acordo firmado com o FMI. .

Teremos também de ver as consequências geopolíticas desse tratado. Certamente aumentarão a pressão dos Estados Unidos para que a Argentina abandone suas ambiguidades de política externa e se adéque ao roteiro do Departamento de Estado. Biden agora terá embaixadores adicionais no Ministério da Economia e no Banco Central. Ele os usará para exigir compensação política pela clemência desses auditores. Uma amostra dessa direção já surgiu no acompanhamento argentino às recentes sanções votadas em Genebra contra a Venezuela.

Rejeição e mobilização

O Parlamento e as ruas serão as próximas áreas da disputa que concentra o acordo com o FMI. A esquerda já antecipou sua oposição frontal e está patrocinando um amplo chamado para apoiar esse questionamento com mobilização popular. Há muitos sinais de uma maior predisposição para essa luta, mas ainda não estourou um movimento maciço contra o FMI.

A grande tradição nacional de resistência ao Fundo continua viva, mas o governo e a direita semearam o medo de retomar essa batalha. Os golpes dos banqueiros são bem conhecidos e a cumplicidade do FMI é bem conhecida, mas muitos setores internalizaram a crença de que é melhor abaixar a cabeça e aceitar o mal menor. A polêmica com essa atitude é a grande tarefa do momento.

Há indícios de um clima mais propício para desenvolver essa luta. Basta comparar as críticas que já estão surgindo contra o acordo, com a ausência de questionamentos sobre a troca de papéis com os detentores de títulos privados, para se notar a mudança de percepção.

O ressurgimento de slogans e mobilizações contra o FMI têm contribuído para essa reconsideração. As campanhas desenvolvidas pelos partidos de esquerda e a Autoconvocação para a suspensão do pagamento e apuração da dívida já resultaram em atos de afluência impressionante.

O comício realizado em meados de dezembro na Plaza de Mayo foi ignorado pela imprensa, mas teve uma afluência muito alta. Concorreu em número com o ato realizado pelo governo no dia anterior no mesmo local. As comemorações dos 20 anos da rebelião de 2001 também se concentraram na denúncia do papel desempenhado pelo FMI naquela crise.

Por outro lado, a capitulação do partido no poder provocou fortes críticas dos setores radicalizados do Kirchnerismo. Essas correntes devem agora definir seu voto no Congresso. Ali não haverá espaço para ambiguidades e a convergência com a esquerda em uma rejeição comum constituiria um grande avanço para a causa popular.

O governo estendeu a mão para a direita votar o Memorando e na Carta de Intenções. O FMI favorece esse apoio compartilhado, mas se a rivalidade prevalecer e a ruptura reaparecer, haverá um fogo de artifício entre dois grupos que apoiam o retorno dos fiscais do Fundo.

O pré-acordo com os credores já foi assinado, mas a batalha para torná-lo efetivo está apenas começando. É conveniente recuperar a memória de todos os danos causados pelo FMI para evitar que se repita o mesmo infortúnio. A rejeição do acordo é o primeiro passo de uma longa batalha contra o inimigo serial do povo argentino. Com atitudes firmes, ideias convincentes e força nas ruas, o caminho da resistência ao Fundo será reaberto.

Resumo

O governo legitima a fraude e a eterna renegociação de um passivo impagável. Aceita inspeções que condicionam a política econômica e obstruem a redistribuição de renda. Promete, infundadamente, cortar o déficit sem ajuste e promove um aperto monetário que afeta a continuidade do crescimento. Minidesvalorizações e aumentos tarifários prejudicam a redução da inflação e o aumento projetado das reservas não é compatível com a fuga de divisas.

O FMI foi responsável por todos os pesadelos financeiros. Ele sufocou a administração de Alfonsín, causou o colapso de 2001 e monitorou a devastação de Macri. O governo desperdiçou um contexto favorável para sustentar a reativação, isolar a direita e forjar uma frente latino-americana de resistência aos credores. A batalha no Congresso e nas ruas está apenas começando.

Sobre o autor

Economista, pesquisador, professor e membro do EDI (Economistas de Esquerda). Seu site é www.lahaine.org/katz.

A primeira mulher presidente de Honduras é uma socialista com visão

Honduras empossou a socialista Xiomara Castro como presidente na semana passada, encerrando o pesadelo do golpe de 2009 apoiado pelos EUA no país. Os desafios que ela enfrenta são imensos, mas sua presidência pode ser uma peça-chave de uma nova onda de esquerda em toda a América Latina.

Medeia Benjamim

Jacobin

Xiomara Castro toma posse como presidente de Honduras em Tegucigalpa em 27 de janeiro de 2022. (Inti Oncon / Picture Alliance via Getty Images)

É uma nova era histórica para Honduras, onde o povo conseguiu derrotar o narco-estado de Juan Orlando Hernández e eleger Xiomara Castro, a primeira mulher presidente do país e progressista. Como candidata presidencial do Partido Libre, de esquerda, Xiomara Castro obteve uma vitória esmagadora e foi empossada em 27 de janeiro em uma cerimônia no Estádio Nacional, com a presença de milhares de apoiadores entusiasmados.

Mudando o tradicional slogan ativista espanhol de “Sí se puede” (Sim, podemos) para “Sí se pudo” (Sim, fizemos), hondurenhos dentro e fora do estádio suspiraram de alívio pelo pesadelo de doze anos do Partido Nacional ter chegado ao fim. A transição do golpe de 2009 – em que o marido de Castro, o ex-presidente Manuel Zelaya, foi deposto do palácio presidencial e saiu do país de pijama – para Xiomara Castro vestindo a faixa presidencial turquesa e branca na presença de seu marido foi, como declarou o mestre de cerimônias, um histórico “retorno da legalidade”.

Para um pequeno país da América Central com menos de 10 milhões de pessoas, a posse de Castro foi um evento internacional, com participantes como a vice-presidente dos EUA Kamala Harris, o rei da Espanha Felipe VI e a popular vice-presidente da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner. Em todo o continente, a esquerda latino-americana comemorou sua vitória dando impulso à “segunda maré rosa” de governos progressistas que varreram a região, uma maré que em breve incluirá Gabriel Boric no Chile e, esperamos, ainda este ano, o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o colombiano Gustavo Petro.

A agenda de Castro para limpar a casa é vasta. Ela pediu “não mais esquadrões da morte, não mais silêncio sobre feminicídios, não mais assassinos contratados, não mais tráfico de drogas, não mais crime organizado”. Ela até usou o termo “socialismo democrático” para descrever sua agenda.

Mas Castro enfrentará desafios intensos daqui para frente. Ela herda um dos países mais violentos do mundo, onde a maioria dos homicídios está ligada a gangues, crime organizado e tráfico de drogas; e o conluio entre funcionários do governo, forças de segurança estatais e privadas, grupos paramilitares e líderes empresariais é generalizado. Honduras também é uma nação com um judiciário tendencioso e corrupto que rotineiramente falha em levar os perpetradores de crimes violentos à justiça.

Castro também herda uma nação atingida por dívidas esmagadoras, imensa desigualdade, coronavírus e desastres naturais recentes, como chuvas intensas, secas e furacões. Castro disse: “Recebo um país falido após doze anos de ditadura. Somos o país mais pobre da América Latina. Isso explica as caravanas de migrantes que fogem para o norte, arriscando suas vidas”.

Ela prometeu eletricidade gratuita para os cidadãos mais pobres do país e uma redução nos preços dos combustíveis. Mas dados os cofres do governo, suas políticas serão limitadas pelos ditames de doadores estrangeiros – especialmente os Estados Unidos. Castro também será constrangida pelo Congresso hondurenho, que está em meio a uma intensa luta pelo poder que turvou as águas da vitória em sua volta.

Durante as eleições, o Partido da Salvação de Honduras (PSH) concordou em apoiar Xiomara Castro em troca dos cargos de vice-presidente do líder do PSH Salvador Nasralla e de líder parlamentar do deputado do PSH Luis Redondo. Mas 21 deputados do Partido Libre de Castro romperam e conspiraram com o conservador Partido Nacional para eleger Jorge Cálix como chefe do Congresso. Um espetáculo patético de empurra-empurra e gritos no plenário do Congresso foi seguido por duas sessões de juramento separadas. Agora há dois congressos separados.

Acusações de violações constitucionais foram apresentadas por ambas as partes, e acusações criminais contra Redondo por usurpação de funções públicas e falsificação de documentos. Em um esforço para resolver a crise, Castro ofereceu a Cálix um cargo no gabinete, mas ele recusou, supostamente por causa da oposição do resto de sua coalizão.

Não está claro como a crise parlamentar vai evoluir, mas fortaleceu as forças conservadoras no Congresso e, com o Partido Libre tão dividido, a tarefa de governar e aprovar uma agenda legislativa progressista será ainda mais complicada.

Há, no entanto, medidas que Castro pode tomar por conta própria, como abordar a situação das mulheres em um país que tem a segunda maior taxa de feminicídio da América Latina (o assassinato de uma mulher por um homem por causa de seu gênero). Segundo a Universidade Nacional Autônoma de Honduras, uma mulher é morta, em média, a cada vinte e três horas.

Castro emoldurou todo o seu discurso com uma mensagem para as mulheres do país. Ela abriu declarando: “A presidência da república nunca foi assumida por uma mulher em Honduras. Estamos quebrando correntes e quebrando tradições”, e encerrou com uma promessa: “Chega de violência contra as mulheres. Vou, com todas as minhas forças, fechar a lacuna e criar as condições para que nossas meninas se desenvolvam plenamente e vivam em um país livre de violência. Mulheres hondurenhas, não vou falhar com vocês. Eu defenderei seus direitos – todos os seus direitos. Conte comigo."

Apoiadores da presidente hondurenha Xiomara Castro participam de sua cerimônia de posse. (Luis Acosta/AFP via Getty Images)

Grupos de direitos das mulheres têm trabalhado com membros da equipe de transição de Castro para elaborar uma lei de violência contra as mulheres que abordará as dificuldades de levar os infratores à justiça; ela também defende abrigos para mulheres que são sobreviventes de violência doméstica. Embora Castro seja uma forte defensor dos direitos das mulheres e da diversidade sexual, questões como aborto ou casamento igualitário são uma ponte longe demais no país católico conservador. Além disso, o deputado que Castro defende como chefe do Congresso, Luis Redondo, é anti-aborto, anti-LGBT e não tem o apoio de grupos feministas hondurenhos.

Espera-se, no entanto, que Castro derrube a proibição existente contra anticoncepcionais de emergência. Honduras é o único país da América Latina com proibições absolutas de aborto e anticoncepcionais de emergência. Como os anticoncepcionais de emergência foram proibidos por decreto, Castro poderá agir unilateralmente para desfazer a proibição.

A questão do aborto é mais complexa. Castro quer legalizar o aborto em caso de estupro, quando a vida da mãe corre risco ou quando o feto não é viável. Mas quando uma medida semelhante foi votada em 2017, apenas oito dos 128 legisladores votaram a favor. Para piorar a situação, no ano passado, os conservadores no Congresso aumentaram o limite necessário para modificar a proibição total do aborto no país para dois terços do Congresso.

Castro também pediu anistia para os presos políticos e justiça para os muitos hondurenhos que perderam seus entes queridos nas mãos da polícia, do exército, dos paramilitares e dos assassinos, muitas vezes por se oporem à extração ilegal de madeira, mineração e construção de barragens hidrelétricas.

Em seu discurso presidencial, Castro pediu liberdade para as oito pessoas da comunidade Guapinol que estão sendo julgadas (e detidas há mais de dois anos em prisão preventiva ilegal) por suas ações contra um projeto de mineração. Castro também pediu justiça para a líder ambientalista Berta Cáceres, assassinada em 2016. A filha de Cáceres, “Bertita”, apareceu no palco com Castro na posse, segurando uma placa com a foto de sua mãe e dando à nova presidente um presente do povo Lenca.

Castro também está pedindo responsabilização pelos abusos do presidente hondurenho Juan Orlando Hernández (JOH). O irmão de JOH foi condenado à prisão perpétua nos Estados Unidos por contrabandear grandes quantidades de cocaína para os Estados Unidos. Durante seu julgamento, o nome do presidente apareceu mais de cem vezes por cumplicidade com um cartel local.

O clamor popular para que JOH fosse extraditado e julgado nos Estados Unidos ficou evidente durante a posse. Quando Kamala Harris foi apresentada, a multidão irrompeu em um canto estridente de “Tome JOH de volta, tome JOH de volta!” implicando que o governo dos EUA havia apoiado o canalha e agora deveria responsabilizá-lo.

Mas JOH não vai para a cadeia tão cedo. No próprio dia da posse, ele foi empossado como representante hondurenho no Parlamento Centro-Americano – uma tradição para ex-presidentes centro-americanos que, infelizmente, provavelmente lhe garantirá imunidade diplomática pelos próximos quatro anos.

Por fim, Castro terá que enfrentar o gigante vizinho de Honduras ao norte. Os Estados Unidos são o maior doador e parceiro comercial de Honduras, e os militares dos EUA mantêm uma posição na Base Aérea de Soto Cano. A aparição do vice-presidente Harris na posse foi tomada por muitos hondurenhos como um sinal positivo de que o presidente Joe Biden tem interesse em tornar o mandato de Castro bem-sucedido – mesmo que apenas para conter a migração em massa que sua presidência tem buscado. Mas eles também viram a presença de Harris como um sinal de que os Estados Unidos estão observando de perto a presidente Castro e tentarão mantê-la na linha.

Castro imediatamente afirmou sua independência ao devolver a embaixada venezuelana em Tegucigalpa ao governo de Nicolás Maduro (que havia sido usurpada pelo falso presidente Juan Guaidó, apoiado pelos EUA). Por outro lado, há rumores de que a pressão dos EUA impediu Castro de mudar imediatamente a lealdade de Taiwan (um grande contribuinte para projetos em Honduras) para a China, como ela havia proposto na campanha. Os próximos quatro anos de Castro provavelmente exigirá a manutenção de um delicado equilíbrio entre manter boas relações com os Estados Unidos e integrar-se mais à esquerda latino-americana.

No momento, milhões de hondurenhos estão se aquecendo no “brilho Xiomara”. “Ela é uma mulher forte que lutou ao nosso lado”, disse a advogada de direitos humanos Priscila Alvarado, ao deixar a posse exultante. “Temos esperança e fé de que ela governará para o povo e com o povo. E milhões de hondurenhos que votaram nela estarão lá para apoiá-la.”

Sobre a autora

Medea Benjamin é cofundadora do CODEPINK for Peace e autora de vários livros, incluindo Inside Iran: The Real History and Politics of the Islamic Republic of Iran.

O petróleo está destruindo o planeta - e impulsionando a inflação

A inflação de hoje não é causada apenas por uma recuperação pós-pandemia nos preços dos combustíveis, mas por uma exaustão de longo prazo da produção de petróleo. Precisamos acabar com nossa dependência dos combustíveis fósseis sem que isso se torne o pretexto para outra onda de austeridade.

Uma entrevista com
Matthieu Auzanneau

Entrevistado por
Harrison Stetler


Uma bomba de petróleo entre Seminole e Andrews, no oeste do Texas, fotografada em 13 de agosto de 2008. (Paul Lowry / Flickr)


Tradução / O preço do petróleo bruto subiu de menos de 20 dólares o barril no início da pandemia para mais de 90 dólares. É um dos principais impulsionadores da alta inflação que se tornou um grande problema não só nos Estados Unidos mas em todo o mundo, muitos países enfrentando uma volatilidade de preços não vista em décadas. As interrupções na cadeia de fornecimentos e a escassez de novos investimentos em petróleo induzida pelo COVID-19 são parcialmente responsáveis por esta situação. Mas há algo mais profundo do que a pandemia e suas consequências que está a desestabilizar o capitalismo global.

Matthieu Auzanneau é um autor especializado na indústria do petróleo e diretor do Shift Project, um centro de estudos parisiense dedicado a acabar com o uso de combustíveis fósseis. Seu livro de 2015, Or noir, la grande histoire du pétrole publicado por La Découverte, é uma extensa história da indústria do petróleo. Pétrole: Le déclin est proche (Seuil, 2021, em coautoria com a jornalista Hortense Chauvin) discute os efeitos de ter sido atingido em 2008 o pico da produção convencional de petróleo.

Harrison Stetler, da Jacobin, conversou com Auzanneau sobre as perturbações na indústria do petróleo, a transição para outras fontes de energia e a questão de quem deve pagar por isso.

Harrison Stetler

Na véspera da cimeira da COP26 no ano passado em Glasgow, a Agência Internacional de Energia (AIE) divulgou o seu relatório anual o World Energy Outlook 2021. Pode ler-se no documento: “Os mercados mundiais de energia estão confrontados com um período de perturbações e volatilidade se a transição para fontes de energia não-carbónicas não for acelerada.” De que realidade está falando a AIE?

Matthieu Auzanneau

Existem dois elementos-chave por trás da declaração da AIE. Quando se fala em riscos de volatilidade, ou riscos de stress no mercado, há antes de tudo um fenómeno cíclico ligado à recuperação pós-COVID. E depois há um fenómeno muito mais profundo, que é a dificuldade crescente que as empresas petrolíferas encontram em obter recursos petrolíferos inexplorados para compensar a metade da produção mundial que está estruturalmente em declínio porque as reservas estão em situação crítica.

Um conceito muito importante na indústria do petróleo, encontrado em qualquer indústria extrativa, é a “maturidade de recursos”. Quando falamos de um recurso "maduro", significa que já extraímos pelo menos metade das reservas existentes. Hoje, tanto a AIE como as principais fontes de referência determinaram que cerca de metade da produção mundial de petróleo está madura. Isso significa que só podem diminuir.

Foi por isso que em 2018, antes da crise do COVID, a AIE afirmou no seu relatório executivo destinado a decisores, que o pico da produção de petróleo líquido convencional – que constitui três quartos do total – havia sido ultrapassado; e foi ultrapassado em 2008, ano em que rebentou a bolha especulativa dos subprime, sustentando a tese de um nexo de causalidade entre o pico do petróleo convencional e a crise do subprime.

Quando a AIE publicou este relatório em 2018, já destacava a imensa dificuldade, sobretudo sistemática, que as empresas petrolíferas encontravam para descobrir os recursos necessários para compensar o declínio das fontes existentes. Por isso alertaram para o risco de escassez de oferta até 2025, se a produção de petróleo de xisto não pudesse triplicar para 20 milhões de barris por dia a partir de 2025 – na época, era de 7 a 8 milhões por dia.

Não é de forma alguma o que se passa. A crise COVID-19 agravou a lacuna de investimento em petróleo que já existia em 2018. Vemos agora as tensões a acontecer porque os investimentos em jazidas de petróleo não convencional e extremas – óleo de xisto, perfuração offshore ultraprofunda – que seriam necessários para compensar o declínio não foram realizados. Desde então, a procura voltou, mas o que falta é capacidade de produção adicional. Há uma coisa muito importante a saber sobre a indústria do petróleo: é que se nada se fizer, se parar de se investir, a produção não pode ser mantida.

Harrison Stetler

Em 18 de janeiro, Le Monde publicou uma longa reportagem sobre a indústria do petróleo, na qual é citado. No primeiro parágrafo, os jornalistas afirmam que “as reservas comprovadas no subsolo são suficientes para durar pelo menos cinquenta anos com base no consumo anual atual". É toda a história?

Matthieu Auzanneau

Esta ilusão é clássica e é enganosa por duas razões. A primeira é uma razão económica, que – como constatamos constantemente – o preço do petróleo é de natureza a provocar uma recessão. A procura de petróleo é extremamente pouco sensível ao preço do barril. Foi exatamente o que aconteceu em 2008: quando as pessoas não têm meios para comprar gasolina ou gasóleo, cortam noutras despesas, como pagamento de hipotecas. Se se estima que para fazer investimentos basta que o preço do barril suba para 150, 160 ou mesmo 200 dólares – como imaginávamos no início da década de 2010 – então deparamo-nos com o fenómeno recessivo do preço do petróleo.

Mas a segunda razão pela qual essa ilusão é fundamentalmente enganosa e, na minha opinião num nível nitidamente mais grave, é por razões práticas. O barril suplementar é encontrado em depósitos de baixo rendimento (“barril marginal”) em locais cada vez mais inacessíveis. O horizonte da indústria petrolífera era a perfuração offshore, depois offshore “profunda”. Hoje, falamos em perfuração offshore “ultraprofunda” ou no Ártico. Será cada vez mais difícil compensar o declínio do petróleo fácil de extrair por petróleo não convencional de jazidas profundas, do Ártico ou de outros lugares.

Este critério simples demonstra que há um problema. O que descrevo aqui é tudo menos novo ou um segredo para os executivos da indústria. Para eles, é uma realidade. O chefe da Mobil, na época da fusão com a Exxon em 1998, disse que tínhamos chegado ao fim da era do "petróleo fácil". Desde então, desenvolvemos agrocombustíveis, areias betuminosas, offshore ultraprofundos, todos mais caros e mais complicados de produzir do que o petróleo convencional, que atingiu os seus limites.

É um problema geológico fundamental. Chegámos ao fim dos recursos inexplorados fáceis de extrair. Chegámos ao fim do “petróleo fácil”. Entramos agora na era do petróleo complicado e, portanto, será cada vez mais difícil compensar o declínio do petróleo fácil com petróleo não convencional, de jazidas profundas, sejam do Ártico ou de outros lugares. Para nós, isso significa uma coisa muito simples. Não é só por causa do clima que temos que sair do petróleo. A festa acabou.

Harrison Stetler

Há um certo silêncio em torno do fenómeno do "pico petrolífero". O seu último livro, em coautoria com Hortense Chauvin, é o resultado de uma feliz combinação de circunstâncias: teve acesso a pesquisas da Rystad Energy, uma empresa de consultoria do setor de energia com sede na Noruega. Como explica o silêncio em torno da questão dos recursos petrolíferos?

Matthieu Auzanneau

Por uma razão muito simples: são dados que têm um valor económico muito alto, pelos quais normalmente se teria que pagar. Se tiver algumas centenas de milhares de euros, poderá ter acesso. Infelizmente, esse raramente é o caso de um humilde investigador académico. Essas empresas de consultoria em informação económica são principalmente agências de espionagem partilhadas. Você espia a sua concorrência e todo mundo espia todo mundo. No entanto, esses dados, que levantam questões fundamentais sobre um futuro que diz respeito a todos, normalmente são reservados apenas aos industriais. Tudo isto agora tornou-se público porque há um problema real com a sustentabilidade da produção global de petróleo.

Harrison Stetler

Nestes últimos meses, a ansiedade com a inflação tornou-se uma questão política maior. Como os preços do petróleo – que agora giram em torno de 90 dólares o barril – alimentam a inflação? Falar sobre o pico do petróleo remete à futurologia dos anos 1970. Mas você afirma que já estamos a suportar os seus efeitos.

Matthieu Auzanneau

Certamente que há inflação, mas também há volatilidade de preços, então não apenas preços muito altos, mas também preços que mudam rapidamente. Durante a maior parte do século XX, os preços do petróleo foram muito estáveis. Agora as companhias petrolíferas precisam de preços altos para extrair petróleo do Ártico e de outros lugares e, ao mesmo tempo, há o caráter recessivo do preço do barril.

De facto, na história recente, já vimos exemplos. Defendo a teoria segundo a qual o que aconteceu em 2008 foi um choque petrolífero. O que vimos em 1973 foi o resultado do pico de produção de petróleo convencional nos EUA. Em 2008, o que aconteceu? O que causou o estouro da bolha do subprime? O aumento das taxas de juro do Federal Reserve, que subiram de forma constante entre 2003 e 2006 para evitar a inflação induzida pelo aumento histórico e sem precedentes do preço do petróleo, em particular devido ao fim do petróleo fácil

É um facto curiosamente subestimado, eu diria mesmo comicamente. Ninguém lhe dirá que o aumento da taxa do Fed teve um efeito direto no estouro da bolha do subprime. No entanto, todos sabem até porque está escrito na ata da FED, que a principal razão para o aumento das taxas de juro foi o aumento do preço do petróleo a partir de 2003, que passou de cerca de 30 dólares para bem mais de 100 dólares o barril. Vimos grandes produtores, incluindo a Arábia Saudita, enfrentarem dificuldades históricas para manter os seus níveis de produção. Foi também o período do declínio do petróleo do Mar do Norte – um caso clássico que demonstra uma queda irreversível na produção. Do meu ponto de vista, o que ocorreu em 2008 foi muito clara e diretamente um choque petrolífero. Foi a primeira grande crise do fim do crescimento.

Não estou a dizer tudo isto para defender uma tese, mas para salientar que a situação é pior do que se estivéssemos diante de um problema puramente "económico". Este é um problema ecológico e releva fundamentalmente da geologia. Quando alguns dizem "só temos que investir mais", recusam-se a ver que vivemos numa esfera onde começámos a encontrar petróleo que estava sob os nossos pés e agora falamos em ir para o Ártico. A maioria dos produtores não ganhou dinheiro com o “petróleo não convencional”. A grande maioria dos operadores petrolíferos não convencionais estiveram presentes do início ao fim sem gerar o mínimo fluxo financeiro.

Harrison Stetler

Como estão as grandes petrolíferas a adaptar-se a esta nova realidade?

Matthieu Auzanneau

Mesmo que quisessem não é por razões éticas que as grandes sairiam do petróleo. No seu relatório de 2020, a AIE fez uma declaração tragicamente explícita. Disse que as companhias de petróleo podem estar a perder o apetite muito mais rapidamente que os consumidores. Isso significa que estamos no fim do petróleo fácil. Para as petrolíferas, a realidade – antiga – está aí e o barril proveniente de jazidas com baixo rendimento torna-se cada vez mais caro e arriscado de extrair. Não tem nada a ver com ética ou o clima.

A Royal Dutch Shell interrompeu a produção no Ártico; não por escrúpulos éticos ou ambientais, mas porque uma plataforma de vários milhares de milhões de dólares naufragou na costa do Alasca numa tempestade de Outono. É o fim do petróleo fácil. Faz-se um investimento de 2 mil milhões de dólares para enviar uma plataforma de petróleo em North Slope, ao norte de Prudhoe Bay, e ela fica destruída na costa.

Harrison Stetler

Os nossos modelos sociais envolvem um aumento contínuo da disponibilidade de energia, um aumento que será difícil de sustentar devido ao fim do petróleo fácil, à devastação causada pelo aumento das emissões de combustíveis fósseis e à dificuldade das fontes de energias renováveis produzirem tanta energia. Mesmo que seja apenas para manter um certo nível de fornecimento de energia, a energia nuclear parece ser a única solução previsível, pelo menos a médio prazo. Como deve a esquerda posicionar-se em relação à energia nuclear?

Matthieu Auzanneau

Infelizmente, em França, ser a favor ou ser contra a energia nuclear tornou-se uma questão de esquerda ou direita. É realmente o reconhecimento do fracasso de uma expressão de pensamento claro. É importante salientar que a ecologia política, que para mim é fundamentalmente de esquerda, deve defender o rigor científico. O mundo político deve aceitar o jogo da racionalidade. O problema que enfrentamos é de física e tecnologia – por isso precisamos de nos informar sobre as suas dimensões práticas e tecnológicas, talvez antes mesmo de abordar as dimensões éticas.

É praticamente impossível um país desenvolvido resolver a equação da eliminação progressiva dos combustíveis fósseis sem energia nuclear. É um facto. Existem excelentes razões para ser antinuclear, e eu respeito-as plenamente. Mas é preciso tirar consequências racionais. Isto significa que, se se for tentado a resolver essa equação sem energia nuclear, haverá efeitos indesejáveis em termos de consumo, em termos de estabilidade da produção de eletricidade. Existem muitos efeitos colaterais complexos e difíceis e, se não se reconhece isto, então não se é racional, não se está enfrentando o trágico desafio que a natureza nos lança agora.

Harrison Stetler

Claro, a sobriedade energética também é um caminho essencial. Mas sabemos o que acontece em sociedades que enfrentam uma queda repentina e brutal de energia – por exemplo, a Coreia do Norte após a queda da URSS, ou a Síria na década de 2010.

Matthieu Auzanneau

Precisamos ser claros sobre o que queremos dizer com sobriedade. Uma sobriedade imposta? Ou uma sobriedade pensada e deliberada? Mais uma vez, se refletirmos sobre a sobriedade, rapidamente compreendemos que não é a sobriedade de cada célula do organismo social, é a sobriedade do organismo.

Isto não significa que vamos pedir às pessoas que não têm muito para apertar o cinto. Não, significa entender como os órgãos vitais da sociedade podem funcionar sendo muito mais sóbrios. Isto não significa que todas as famílias tenham que sobreviver com menos. Significa que projetaremos sistemas técnicos, sistemas de produção, sistemas de energia, sistemas de processamento industrial, sistemas agrícolas, sistemas de saúde e sistemas culturais que possam funcionar e prestar seus serviços de forma mais sóbria.

A metáfora que costumo usar é que o petróleo é o sangue da sociedade contemporânea. Sair do petróleo não é apenas fazer uma cirurgia de coração aberto, é também mudar as redes de fornecimento de energia – e, portanto, mudar o funcionamento e a organização dos órgãos vitais da sociedade.

Sobre o autor

Matthieu Auzanneau é um especialista na indústria do petróleo e autor de Oil, Power, and War: A Dark History.

Sobre o entrevistador

Harrison Stetler é jornalista freelancer e professor baseado em Paris. 

30 de janeiro de 2022

Crises escancaram desigualdade planejada de São Paulo, afirma Raquel Rolnik

Para urbanista, sujeitos periféricos podem confrontar ordem excludente da cidade, que privilegia classe média

Eduardo Sombini
Geógrafo e mestre pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima


[RESUMO] Em entrevista à Folha, professora da USP argumenta que São Paulo vem sendo planejada por poucos e para poucos, o que produziu um padrão desigual de urbanização. A cidade vive um momento especial em sua história, com a coexistência de crises e a emergência política de sujeitos periféricos que podem protagonizar um novo ciclo de lutas urbano, diz.

*

São Paulo completou 468 anos na última terça-feira (25) atravessando a provável mais grave crise de moradia da sua história, avalia Raquel Rolnik, 65.

Ocupações nas periferias da região metropolitana e nos bairros centrais da capital se avolumam, e a população em situação de rua aumenta expressivamente, mas o agravamento das condições habitacionais dos mais pobres é só uma fração do "combo de crises" —econômica, de mobilidade urbana, de saúde pública— que a cidade enfrenta, na interpretação da urbanista.

Raquel Rolnik, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP - Danilo Verpa - 13.nov.15/Folhapress

Apesar do cenário que beira a distopia, Rolnik não se mostra desanimada. "Quem vive as crises quer morrer, mas esses momentos são oportunidades de transformação", diz em entrevista por videochamada à Folha.

Um dos mais importantes nomes do campo progressista dos estudos urbanos no Brasil, Rolnik apoiou a candidatura de Guilherme Boulos (PSOL) na última eleição municipal em São Paulo e aposta no potencial de "sujeitos periféricos" protagonizarem um novo ciclo de lutas urbano, impulsionando agendas ambientais, antirracistas e feministas, por exemplo, e disputando os rumos de um novo modelo de política urbana.

Em "São Paulo: o Planejamento da Desigualdade" —edição atualizada do livro "São Paulo", da antiga coleção Folha Explica, editada agora pela Fósforo—, a professora da USP revisita a história do planejamento urbano da cidade, destacando as opções políticas tomadas em momentos de crise e responsáveis pela consolidação de um padrão "classemédiocêntrico", que resguarda os privilégios dos grupos de renda mais elevada e marginaliza a maior parte da população.

Em sua avaliação, as medidas de isolamento social adotadas durante a pandemia são uma expressão nítida desse modelo excludente, já que ficar em casa não foi uma opção para a grande maioria dos paulistanos.

"São Paulo", da coleção Folha Explica, foi publicado em 2001. Por que atualizar e relançar o livro agora? Esse livro teve algumas edições ao longo da sua história. Na penúltima ("Territórios em Conflito - São Paulo: Espaço, História e Política", Três Estrelas), o texto saiu com um compilado de colunas publicadas na Folha e alguns artigos acadêmicos.

Quando a Fósforo assumiu parte do catálogo da Três Estrelas, propus retomar o formato do "Folha Explica São Paulo", aquele livrinho acessível, para quem não é especialista, e achei que era o momento de atualizar o texto —não só trazê-lo para os dias de hoje, mas fazer uma atualização um pouco mais radical de como falar da São Paulo do passado.

Decidi fazer isso pela mesma razão pela qual convidamos o Emicida para escrever o prefácio: este momento pelo qual a cidade está passando é muito especial na história, não apenas porque estamos vivendo um verdadeiro combo de crises, mas também em razão da emergência de novas vozes, que são justamente os sujeitos periféricos, conceito formulado por Tiaraju D’Andrea.

Essa narrativa sobre a cidade vem do movimento cultural das periferias, da luta antirracista, e está colocando sobre a mesa pautas que nunca tiveram muito destaque, mesmo entre os que denunciam a desigualdade.

Conto no livro a história das crises e das opções que foram tomadas naqueles momentos, com a tese de que estamos vivendo mais uma dessas. Que tal, então, começar a pensar em um outro modelo de cidade agora, apostando que, diante da crise, outro modelo de cidade é possível? Quem vive as crises quer morrer, acha que tudo está horrível —e está mesmo—, mas esses momentos são oportunidades de transformação.

No livro, a sra. indica que há uma linha de continuidade entre as várias crises do passado: a desigualdade continuou a ser planejada e a se reproduzir. O novo título do livro, aliás, faz menção a isso. Como a desigualdade vem sendo planejada em São Paulo? Falo de quando se sai da ordem escravocrata para o trabalho livre e se institui uma geografia da cidade em que, sobre as colinas, morava a classe dominante, e, nas várzeas, se instala a classe operária.

A classe operária das várzeas se instala em pensões, cortiços, casas minúsculas de alta densidade entremeadas com a paisagem das fábricas, enquanto há o paradigma dos casarões ajardinados, cujo modelo primeiro são os Campos Elíseos, depois há a migração para Higienópolis, avenida Paulista, Jardins e, em seguida, na direção da marginal Pinheiros e da zona sul.

Essa migração constitui um território burguês, que concentra renda e poder e vai incorporando outros modos de viver da classe dominante —casarões, depois edifícios e, nos anos 1990, as torres corporativas.

Há uma mudança de morfologia e, ao mesmo tempo, uma grande continuidade de um padrão segregacionista, porque o modelo periférico do território popular também se constituiu, com a autoconstrução da casa própria em loteamentos, muitas vezes irregulares e clandestinos, em periferias distantes, conectadas pelo ônibus.

O título, "Planejamento da Desigualdade", é uma brincadeira para quem diz: "São Paulo é uma porcaria porque não tem planejamento, por isso é esse caos, é essa bagunça". Não tem nada de caos e de bagunça. Tem planos aprovados e uma legislação urbanística, mas excludente, "classemédiocêntrica", que pensa a cidade a partir das formas de morar e de existir de um pedaço dela e simplesmente ignora o resto —e destina para o resto da cidade, que, aliás, é a maioria dela, as piores localizações.

A legislação urbanística construiu esse padrão absolutamente segregado, cujo objetivo básico é manter a concentração de oportunidades econômicas, sociais e políticas na mão de quem já tem e blindar a entrada de "newcomers", mas, ao mesmo tempo, garantir que o mundo do trabalho vai continuar lá arrumando, cozinhando, limpando, polindo.

Como a sra. avalia a reprodução desse padrão durante a pandemia? O que aconteceu na pandemia é a expressão mais nítida desse modelo "classemédiocêntrico", porque, diante do perigo de contágio e de morte, a política pública foi o isolamento social. "Fique em casa, vá para o home office, fique na internet fazendo tudo online e não se desloque" —ou seja, se referindo a uma realidade que deve corresponder a menos de 30% dos moradores da cidade.

Para que esses moradores pudessem ficar isolados em casa, existia um exército de gente trabalhando, levando comida, transportando. Para essas pessoas, não teve política.

A ideia do planejamento da desigualdade vem do fato de a cidade ser pensada e planejada por poucos e para poucos. O mal-estar que a maioria das pessoas da cidade tem é decorrente dessa opção.

Na pandemia, se a gente pensasse nas maiorias, nos trabalhadores de serviços essenciais que precisavam continuar se deslocando, a política deveria ser, por exemplo, tratar o transporte coletivo de uma forma totalmente diferente. No mínimo, distribuir "PFF5" para todo o mundo e, em vezes de cortar, colocar mais ônibus em circulação para ir muito menos gente dentro de cada ônibus e ter distanciamento entre as pessoas.

No começo da pandemia, houve um entusiasmo, principalmente nos setores progressistas, sobre a possibilidade de medidas redistributivas ganharem impulso. Depois de dois anos de Covid-19, porém, parece que predomina a percepção de aumento generalizado da pobreza. A São Paulo do pós-pandemia deve ser mais partida e fragmentada? O pós-pandemia está em disputa. No campo da moradia, que eu acompanho há muitos anos, acho que esta é a maior crise da história da cidade. Estou quase afirmando isso com certeza, embora a crise da moradia do final dos anos 1920 tenha sido bem difícil e acabou gerando o padrão de autoconstrução periférica, com todas as suas mazelas.

Estamos vivendo uma situação absolutamente paradoxal no campo da moradia. A renda caiu, o desemprego e a miséria aumentaram, ao mesmo tempo que a cidade está vivendo um dos maiores booms imobiliários da sua história.

Exatamente no momento em que há menos gente com capacidade de comprar um espaço, o espaço está ficando mais caro que nunca? Isso porque a dinâmica de produção e comercialização do espaço físico da cidade ficou totalmente financeirizada nas últimas décadas. Ou seja, esse crescimento imobiliário não tem nada ver com a renda da população, mas com a quantidade de capital excedente circulando no mercado financeiro que busca o tijolo, o imobiliário, como estratégia de valorização futura.

Esse capital não é só local e nacional, mas global e não tem nenhum tipo de barreira: entra, passeia pelo planeta à vontade e se instala no imobiliário com uma perspectiva de remuneração de longo prazo, porque existe uma enorme concentração de renda a nível global, como mostram os trabalhos de Thomas Piketty e Nouriel Roubini.

O imobiliário é um ativo financeiro. Por isso, estamos vivendo uma crise enorme, porque os pobres dos humanos têm que competir por uma localização com um capital financeiro gigantesco que não tem nenhum compromisso, nem territorial, nem afetivo, nem político, com a cidade.

O Emicida conta no prefácio, a partir da história pessoal dele, o que as pessoas fazem diante da crise: se viram. Tornam-se especialistas em "sevirologia", expressão do José Soró, liderança de um movimento cultural de Perus.

Estamos vivendo um boom de novas ocupações nas extremas periferias, um boom de novas ocupações em prédios em áreas centrais e, ao mesmo tempo, um boom de pessoas na rua, com uma característica completamente diferente. Historicamente, o morador de rua era um homem de meia-idade, com algum tipo de dependência química, problema mental etc. Imagina, a gente está vendo na rua famílias inteiras, como há muito tempo não se via.

O cenário de novas ocupações parece o dos anos 1990, o de população de rua eu nunca tinha visto algo como o de hoje. Diante disso, qual é a política habitacional que temos? Nenhuma, nem municipal, nem estadual, nem federal.

Algumas PPPs (parcerias público-privadas) aqui e ali. PPP não é política habitacional, é política de mercado financeiro. Ela não está voltada para atender uma demanda de quem mais necessita de moradia, mas para viabilizar um negócio com uma conta que fecha —e, para isso, tem que ter gente para pagar.

As PPPs não atendem quem está hoje na rua, indo abrir novas frentes de ocupação muito precária nas extremas periferias. É outro grupo, com renda estável e um pouco mais alta, com capacidade de pagamento. Isso é superlegal, mas olha em volta, olha quem está precisando de política pública de moradia. Usar a energia e os recursos do Estado para viabilizar moradia para quem não está na rua da amargura neste contexto é um escândalo. Um escândalo!

Vamos olhar o outro lado dessa história. Durante a pandemia, a auto-organização nos bairros populares foi muito intensa e segurou a onda de muita gente em termos de fome, de condições de morar, de redes de solidariedade. Nas favelas e nas ocupações mais estruturadas, morreu muito menos gente porque existia uma rede mínima de proteção, dentro da precariedade. Isso demonstra que é possível dar respostas por meio de uma política de mobilização completamente descentralizada.

Diria que um movimento não tão intenso, mas semelhante a esse foi a crise dos anos 1980, que gerou no começo dos anos 1990 um movimento muito interessante de renovação no campo político. Depois, isso foi totalmente fagocitado pelo sistema, mas sinto que, neste momento, a gente tem essa possibilidade de novo. Vamos ver quais vão ser os novos movimentos políticos que teremos, não só com a eleição deste ano, mas sobretudo a nível local.

​​Os últimos anos foram brutais para as agendas progressistas, e o campo da política urbana ficou marcado pela desconstituição. A sra. está esperançosa com a possibilidade de renovação política, mesmo com esse histórico recente? No ano passado, nós no Labcidade [Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da FAU-USP] tivemos uma experiência muito interessante de trabalho conjunto com três mandatas lideradas por mulheres negras, vereadoras na Câmara de São Paulo, que mostram uma mudança muito significativa.

Já vivi alguns ciclos de crise e de luta. Comecei a me envolver com política urbana nos anos 1970, então pude observar quando, pela primeira vez, operários e lideranças sindicais foram eleitos e que tipo de política pública foi sendo construída.

Agora, estamos vivendo mais um momento —no comecinho, pequenininho, não hegemônico. Vai pipocando, em vários lugares do Brasil, uma nova geração de sujeitas periféricas, mulheres, negras, trans, que estão se colocando no espaço público e trazendo novas pautas. Espero que isso cresça e vire um grande movimento de transformação.

Se a gente olhar para os ciclos de lutas urbanos, teve um muito forte nos anos 1980, que deu na Constituinte, na emenda popular da reforma urbana, nas gestões democrático-populares, nas experiências com movimentos de moradia. Esse ciclo teve, claramente, um descenso.

Em 2005, 2006, novos movimentos começaram a surgir e, em 2013, de alguma forma eles se expressaram. Dois mil e treze foi capturado por outra narrativa, mas a narrativa do direito à cidade estava na rua e esse foi o primeiro encontro desses novos movimentos.

Eles não desapareceram e geraram uma liderança política como Guilherme Boulos, que foi para o segundo turno da eleição municipal de São Paulo contra todas as expectativas. Boulos é exatamente essa nova geração de movimentos que nasceram na era Lula e já começaram questionando as políticas desse período.

Há agendas novas: movimentos ambientalistas, feministas, antirracistas, pela mobilidade. O parque Augusta foi uma vitória de um socioambientalismo urbano autogerido.

Se eles serão capazes de conquistar uma hegemonia e produzir políticas, é cedo para dizer, mas já vivi no outro momento. Quando a gente estava em 1974, 1975, não podia imaginar que ia fazer a Constituinte em 1988. Hoje está parecendo tudo horrível e distópico, mas acho que têm mudanças importantes na cidade.

A sra. citou o parque Augusta. Existem críticas a respeito da reprodução das desigualdades por esse ativismo, ou seja, sobre os jovens de classe média das áreas centrais conseguirem se articular melhor e levar adiante suas pautas enquanto os sujeitos periféricos enfrentam muito mais dificuldades. Como enxerga essa questão? Tenho uma posição diferente. Apoiei e participei da luta do parque Augusta, assim como apoio e participo da luta do parque do Bixiga [proposto no entorno do teatro Oficina, em terrenos do Grupo Silvio Santos]. Acho que tem algumas simplificações na conversa.

A primeira grande simplificação: São Paulo não pode ser entendida por meio do binômio centro/periferia, que não corresponde à territorialidade política da cidade. Esse binômio esconde o território popular que existe no centro. Aliás, esconder o território popular do centro é ótimo para uma frente de expansão imobiliária que quer eliminá-lo. O centro é um dos territórios negros e populares de São Paulo, e existe uma luta histórica pela permanência em bairros como Bixiga, Sé, República, Glicério.

Então, é preciso visibilizar e proteger o território popular do centro, porque a política atual é de eliminação —por exemplo, o que está se fazendo na chamada cracolândia é solução final, eliminação física de todos os imóveis e das pessoas.

Dizer que pobre está na periferia e que branco rico está no centro simplifica a história e não permite revelar que esses espaços centrais também são objeto de conflito. Não preciso dizer nada, só convido as pessoas a ir ao parque Augusta passear. Você não encontra só branco de classe média, mas uma mistura social. É um espaço muito apropriado pelas pessoas e muito popular.

Dito isso, você tem razão, no sentido de que a classe média tem uma capacidade de vocalização na política muito maior. Esta é a história da cidade: a história da classe média fazendo política urbana para si mesma.

RAQUEL ROLNIK, 65

Arquiteta e urbanista, doutora pela Universidade de Nova York e professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde coordena o Labcidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade). Foi diretora de Planejamento da Prefeitura de São Paulo (1989-1992, gestão Luiza Erundina, PT), secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-2007, governo Luiz Inácio Lula da Silva, PT) e relatora especial da ONU para o direito à moradia adequada (2008-2014). Autora, entre outros livros, de "Guerra dos Lugares: a Colonização da Terra e da Moradia na Era das Finanças" e "A Cidade e a Lei: Legislação, Politica Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo".

SÃO PAULO: O PLANEJAMENTO DA DESIGUALDADE

Preço R$ 59,90 (120 págs.); R$ 44,90 (ebook)
Autor Raquel Rolnik
Editora Fósforo

O romance palestino após a era da revolta em massa

A história do romance palestino não pode ser separada do contexto político mais amplo da luta pela libertação. À medida que o horizonte emancipatório na Palestina diminuiu desde o início dos anos 1980, a literatura compartilhou o sentimento de derrota.

Bashir Abu Manneh


No contexto global da “guerra ao terror” em curso, os palestinos não são mais vistos como um povo descolonizador com direitos nacionais, mas como um grupo de terroristas e bombas-relógio. (Makbula Nassar / Wikimedia Commons)

Desde o nakba de 1948, o romance palestino tem estado na vanguarda da articulação da experiência de desapropriação nacional, bem como horizontes emancipatórios no mundo árabe. Ele mapeou as relações mutáveis entre forma literária e ação coletiva, entre estética e política.

Foi em 1948 que os palestinos perderam sua pátria e se tornaram refugiados espalhados em países árabes e além. A nakba marca, assim, um processo histórico de desapropriação e derrota no qual um movimento colonial de colonos expulsou um povo, expropriou suas terras e as substituiu por mão de obra colonizadora. Os palestinos levaram mais de uma década para reorganizar e rearticular seus movimentos políticos: primeiro sob o nacionalismo árabe (muitas vezes negligenciado como período de estudo) e logo, depois de 1967, dentro de um novo nacionalismo palestino.

O período de 1967 a 1982 constitui a ascensão e queda do nacionalismo palestino pós-48, tanto da possibilidade revolucionária popular em todo o mundo árabe quanto da luta secular de guerrilha armada. Após a derrota de Beirute para Israel em 1982, um declínio político generalizado se instalou. Isso foi rompido pela primeira intifada em 1987 - o último ato significativo de mobilização popular em massa - que por sua vez foi liquidada por Israel e explorada pela Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em Oslo.

Desde 1993, não houve nenhuma revolta organizada em massa para se mencionar (embora pequenos bolsões importantes permaneçam). O que quer que exista foi distorcido por movimentos religiosos como o Hamas, que estão impregnados de categorias nacionalistas islâmicas (como a jihad) que restringem a potencialidade universal da história palestina.

O que define a longa conjuntura desde 1993 é o fracasso do projeto nacional, a ascensão da Autoridade Palestina colaboracionista (comandantes da ocupação israelense na Cisjordânia) e sua oposição por um movimento fundamentalista popular. Esse período também é marcado pela guerra contra os ocupados, pelo politicídio do povo palestino e pela expansão sem fim do projeto colonial de colonos nos territórios palestinos ocupados de 1967.

No contexto global da “guerra ao terror” em curso, os palestinos não são mais vistos como um povo descolonizador com direitos nacionais, mas como um grupo de terroristas e bombas-relógio – como representado pela série israelense da Netflix, Fauda. Alternativamente, eles são percebidos como um grupo de vítimas individuais a serem lamentadas, mas muito raramente como um povo cujos direitos foram violados por Israel ao longo de gerações. Essa história está ligada ao romance palestino de forma crucial.

Uma análise materialista do romance palestino pode nos ajudar a elucidar essa dinâmica de colonialismo, resistência e literatura. Tal análise ajuda a articular a relação entre as formas sociais, políticas e estéticas. Como a mobilização política pode constituir, restringir e moldar a cultura? Como a literatura incorpora a possibilidade histórica? O que explica as mudanças que ocorrem na forma romanesca?

Promessa universalista

Returning to Haifa, de Ghassan Kanafani, foi publicado em 1969 no auge da revolta, resistência e possibilidade revolucionária dos palestinos e árabes. A novela encena um confronto entre refugiados que voltam para sua casa em Haifa após a ocupação israelense da Cisjordânia e Gaza em 1967 e seu novo habitante - um sobrevivente do Holocausto que criou a criança palestina acidentalmente deixada para trás nas expulsões angustiantes da nakba.

Returning to Haifa encena um encontro humano entre israelenses e palestinos; narra de forma complexa os vários ferimentos que levaram ao entrelaçamento das histórias após 1948. A seguir, a troca mais significativa no romance entre o pai refugiado protagonista e seu filho agora israelense, deixado para trás em 48. O pai afirma:

Quando você vai parar de considerar que a fraqueza e os erros dos outros são endossados ​​por conta de suas próprias prerrogativas? ... Você deve entender as coisas como elas devem ser entendidas. Eu sei que um dia você vai perceber essas coisas, e que você vai perceber que o maior crime que qualquer ser humano pode cometer, seja ele quem for, é acreditar por um momento que a fraqueza e os erros dos outros lhe dão a direito de existir às suas custas e justificar seus próprios erros e crimes.

Tematicamente, muito depende desse “um dia você vai perceber”. Que forma de política poderia levar a tal percepção? Que estratégia? Kanafani não dá a resposta, mas enfatiza a pergunta: “O homem, em última análise, é uma causa. Foi o que você disse. E é verdade. Mas que causa? Essa é a questão." O certo é que a pátria é um futuro baseado em princípios de igualdade universal. Esse é o registro humanista de todo o romance e do futuro que ele antecipa.

A perseguição judaica e a expropriação palestina só podem ser resolvidas nesse registro universalista: não por meio de nacionalismos estreitos e expropriação possessiva, mas por meio de categorias que todos os humanos podem compartilhar e compreender. Nenhum ser humano deve ser despejado à força de sua casa, e nenhum ser humano tem o direito de forçar outro a uma vida de exílio e carência. Se ao menos todos mantivessem esses padrões.

Returning to Haifa é realista na forma. Todos os componentes historicizantes e democratizantes do realismo clássico estão aqui, incluindo o compromisso ético de dar voz aos impotentes como parte da história. Atos individuais são significativos como partes da agência coletiva. Para Kanafani, o presente é cognoscível e transformável, e o futuro exigirá luta organizada e autotransformação.

O fim da agência

Para avaliar o significado de Returning to Haifa e o momento histórico distinto de sua publicação, basta compará-lo com The Other Rooms, de Jabra Ibrahim Jabra, publicado em Bagdá em 1986. Jabra é o romancista e figura cultural proeminente da Palestina. Com sete romances e dezenas de estudos críticos e traduções para o árabe em seu nome, ele representa a voz do pobre refugiado palestino transformado em intelectual árabe na era da descolonização.

Mas neste romance curto e tardio, nenhum dos elementos que Kanafani mobilizou aparece. A narrativa é difícil de entender, o protagonista está confuso, alienado e em estado de declínio existencial, incapaz de descobrir coisas básicas sobre si mesmo e seu entorno – nem seu nome, nem sua localização, nem seu trabalho. O movimento é interminável, mas sem nenhum senso de direção, e assim o romance escapa a qualquer senso de coerência. A única coisa certa é que o pesadelo nunca vai acabar. A resistência não é apenas fútil em The Other Rooms, mas totalmente ausente; não é sequer uma opção a ser contemplada e rejeitada. A espiral de fracasso e derrota nunca termina.

Nos romances anteriores de Jabra, as ações de um indivíduo recebiam um papel mais significativo na tentativa de mudar o mundo. Em The Other Rooms, em contraste, a agência foi esmagada por um estado repressivo e perdida no delírio. Há uma ligação clara entre o fim da agência revolucionária coletiva e a sensação de incoerência e desesperança que caracteriza The Other Rooms.

Becos-sem-saída?

O último ponto de comparação em relação ao romance palestino é Detalhe Menor de Adania Shibli, publicado em 2016. Shibli pertence a uma nova geração de escritores pós-Oslo, e suas duas novelas anteriores eram narrativas estilizadas difíceis de situar. Seu último romance é emocionante e fala poderosamente sobre o momento contemporâneo de fechamento político, apagamento palestino e guerra. Também registra a atração do passado e o retorno à nakba como prisma central do entendimento, contado por meio do incidente do estupro de uma menina beduína – o chamado “pequeno detalhe” do título.

Desde os Acordos de Oslo, a nakba voltou à consciência política palestina, marcando não apenas o abandono político dos refugiados, mas um retorno às questões mais existenciais da identidade palestina: expulsão e dispensabilidade. Detalhe Menor, no entanto, difere de relatos anteriores de perda e derrota.

Em certo sentido, o romance continua o relato da perda de conexão e da busca incessante de sentido que o modernismo palestino aperfeiçoou. Há um incidente a ser investigado, conhecimento a ser obtido e uma busca pela verdade e coerência.

Mas o registro documental de Shibli nos afasta do peso existencial. A investigação não revela nada que já não soubéssemos. O romance é, portanto, de estrutura circular, e o final retorna o narrador palestino a uma situação semelhante à da menina beduína de 48 – cercada por soldados e ameaçada. Não mudou muito. A história não é desenvolvimento, mas repetição com ligeira variação de pequenos detalhes. A mulher ocupada é assombrada por um passado que se torna seu presente. Ela também é apenas mais um pequeno detalhe da história.

Até certo ponto, as escolhas estéticas de Shibli são bem-sucedidas em mostrar como a colonização não é apenas um evento, mas um processo contínuo. Mas é uma estética que tem um custo, que é a perda de detalhes históricos. Não há distinção real em Detalhe Menor entre períodos históricos, e há quase uma equação de sofrimento entre um investigador de classe média da Cisjordânia atual e uma pobre menina beduína estuprada e morta por soldados israelenses em 1948. Essas distinções são cruciais e devem ser mantidas.

Em Detalhe Menor, a garota estuprada não recebe nem voz nem nome. Ela é retratada como fedorenta, balbuciando e babando, e sua história é contada por outros (ou o perpetrador israelense ou o palestino de classe média, ambos psicologicamente instáveis). É a reportagem do jornal sobre o incidente que motiva o cisjordânio a viajar para Israel. Precisamos mesmo de um romance para reproduzir os silêncios do jornalismo e da história?

São escolhas preocupantes que correm o risco de replicar o apagamento que o romance procura criticar. De fato, a inclusão da menina beduína na narrativa parece ser pouco mais que um artifício. Um romance realista a teria representado de forma diferente, e o presente como transformável. Um romance modernista teria registrado e lamentado a perda do horizonte emancipatório. Mas Detalhe Nenor é diferente.

As escolhas estéticas de Shibli são uma resposta particular à lógica da intensificação da guerra colonial e do apagamento – uma em que a desumanização na verdade significa a eliminação de humanos, ou pelo menos uma seção específica de humanos. No entanto, uma frase repetida no romance resiste a essa lógica: “O homem, não o tanque, prevalecerá”.

No entanto, lendo o romance de Shibli, a sensação é de que é o tanque e não o homem que prevalece; a frase tão repetida está em hebraico e silencia a vítima palestina. Ao contrário da frase de Kanafani – “o homem é uma causa” – a de Shibli é um dispositivo de zombaria em vez de compromisso humanista. O que significa para os vencedores coloniais falar do homem universal? É uma ironia vazia e obsoleta.

Como no modernismo palestino anterior, a resistência coletiva está ausente de Detalhe Menor. Mas há um novo registro aqui. A forma do romance não resiste, não luta contra a história que conta. Não se protege da dura realidade. O futuro é concebido como uma repetição de lesões passadas. Isso soa como um compromisso com uma estética particular, independentemente de suas implicações éticas.

No entanto, uma estratégia de reumanização sempre foi uma forte tendência na literatura palestina. É exemplificado por escritores contemporâneos de Gaza como Atef Abu-Seif e Nayrouz Qarmout, cujas perspectivas ecoam um sentimento sucintamente articulado pelo filósofo moral antiguerra Jonathan Glover: “O respeito pela dignidade é uma das grandes barreiras contra a atrocidade e a crueldade. Reconhecer nosso status moral compartilhado torna mais difícil torturar ou matar uns aos outros”.

Kanafani teria aprovado.

Sobre o autor

Bashir Abu-Manneh é diretor da Escola de Inglês da Universidade de Kent e editor colaborador da Jacobin.

Eleição em Portugal vai decidir se os trabalhadores realmente se beneficiaram da recuperação

Hoje Portugal vota em eleições antecipadas, enquanto o primeiro-ministro António Costa procura acabar com a dependência do seu governo de centro-esquerda dos partidos de extrema-esquerda. Se ele for bem-sucedido, isso comprometerá ainda mais Portugal a um modelo fracassado de baixos salários e baixo investimento.

Joana Ramiro


O primeiro-ministro português, António Costa, fala com jornalistas enquanto espera que a sua esposa vote nas eleições antecipadas de hoje. (Horacio Villalobos / Corbis via Getty Images)

Após dois anos de condições de pandemia, os líderes em toda a Europa estão mantendo suas posições como se quisessem salvar a vida. O primeiro a sair foi o primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte, que cedeu à pressão em fevereiro passado, entregando as rédeas ao tecnocrata Mario Draghi. Na Alemanha, a tão esperada saída de Angela Merkel trouxe uma virada para a centro-esquerda. Na Grã-Bretanha, Boris Johnson enfrenta crescentes pedidos de renúncia após um fluxo constante de revelações sobre festas realizadas em sua residência durante o lockdown.

Mas o que nenhum político europeu sequer pensou em fazer foi arriscar uma eleição antecipada, na crença de que, apesar das atuais incógnitas e adversidades, eles acumulariam uma esmagadora maioria. Nenhum, isto é, exceto o primeiro-ministro português António Costa. Hoje ele descobrirá se sua aposta valeu a pena – e se ele melhorou os 36% que seu partido alcançou no último concurso em outubro de 2019, pouco antes do COVID-19.

A mudança não pode ser simplesmente explicada como uma espécie de surto megalomaníaco de confiança. Em vez disso, Costa tinha razões materiais para acreditar que essa era uma manobra política inteligente quando a oportunidade se apresentou. Seu Partido Socialista (Partido Socialista, PS) governava como um governo minoritário desde 2019, após quatro anos em que dependia de um acordo governamental com a extrema esquerda. Esta foi uma vitória para o PS, que nos últimos dois anos esteve assim livre para transitar entre aprovar leis progressistas com o apoio do Bloco de Esquerda (BE) e do Partido Comunista (Partido Comunista Português, PCP), ou mais políticas mais conservadoras com a ajuda do centro.

Mas um governo minoritário ainda era muito limitador para Costa, que em diferentes fases da pandemia viu seus índices de aprovação dispararem e cair e disparar novamente. Um bloqueio preventivo altamente bem-sucedido em março de 2020 poliu a reputação do primeiro-ministro socialista como um líder habilidoso, mas o aumento de infecções e mortes relacionadas ao COVID após as festividades de Natal daquele ano ameaçaram derrubar o serviço nacional de saúde e o governo. A redenção de Costa veio na forma de uma campanha de vacinação extremamente popular na primavera e no verão de 2021, mas os louros foram principalmente para o carismático coordenador da força-tarefa, o almirante Henrique Gouveia e Melo. No outono, Costa sabia que tinha que fazer algo para garantir que o PS pudesse continuar governando sem impedimentos da esquerda ou da oposição de centro-direita. Ele teve sua oportunidade quando o parlamento foi chamado para aprovar um novo orçamento para 2022.

Em 2022, Portugal está prestes a começar a alocar sua fatia de € 45 bilhões (US$ 50,8 bilhões) dos fundos de recuperação da COVID-19 da UE. Quem recebe o quê e como será reembolsado tornou-se uma questão de conversas de jantar em família, e o consenso não pôde ser encontrado nem nos lares portugueses nem no parlamento. A esquerda exigia reformas econômicas e trabalhistas; liberais e a oposição sugeriram medidas de austeridade. Mas o primeiro-ministro se empenhou e se recusou a mudar o plano de gastos – que, por sua vez, foi rejeitado por quase todos os outros partidos. O presidente Marcelo Rebelo de Sousa convocou eleições antecipadas – uma perspectiva que Costa estava bem preparado para aceitar.

Espremido como sardinha

Em uma coluna de Política Externa em setembro passado, o economista Michael Moran cunhou um nome fofo para a suposta recuperação de Portugal da crise financeira global: capitalismo da sardinha. Moran exalta as virtudes da abordagem portuguesa, que desde meados da década de 2010 virou o jogo da crise e manteve um “custo de vida razoável, desemprego relativamente baixo, crescimento econômico estável e contentamento público geral em uma era de polarização”.

Mas o “capitalismo da sardinha” ou passa por cima ou esquece de mencionar muitos dos elementos que permitiram a Portugal estes poucos anos de escasso crescimento tão facilmente desfeitos pela pandemia. A forte dependência de Portugal do capital estrangeiro, seja na forma de turismo ou investimento, significou a falência de muitas das pequenas e médias empresas do país quando o COVID começou. A pandemia pode não ter parado totalmente o crescimento econômico do país (com o FMI a prever um aumento de 5% do PIB em 2022), mas exacerbou visivelmente as discrepâncias de riqueza na sociedade portuguesa.

Portugal registou o menor investimento público em toda a União Europeia em 2020 e 2021, enquanto os salários e pensões continuam escandalosamente baixos para os padrões da Europa Ocidental. Entre todos os países da OCDE, Portugal tem o sexto salário médio mais baixo (1.230 dólares por mês), mas o aumento comparativo mais alto nos preços da habitação. Em termos simples, isso significa que, embora o eleitor português médio ainda tenha um emprego após dois anos de coronavírus, a maioria se sente mal paga, sobrecarregada e incapaz de pagar muito mais depois de pagar o aluguel. Até mesmo a ideia de “custo de vida razoável” de Moran foi destruída, com a “inflação da COVID” tornando itens cotidianos como carne e combustível proibitivamente caros. O capitalismo da sardinha pode parecer brilhante – mas abra tampa e é um lugar apertado e lotado para se viver.

Muito barulho por nada

Com a austeridade ditada pelos europeus de 2011 a 2015 ainda fresca na mente da maioria das pessoas, a chegada dos fundos de recuperação da UE (e seu reembolso) está sendo seguida com apreensão compreensível. Embora Costa e seu gabinete ainda possam parecer as mãos mais seguras para lidar com o erário público, o clima está mudando rapidamente.

A maioria dos profissionais liberais de Portugal ainda pode votar no PS, mas muitos desertaram para a Iniciativa Liberal (Iniciativa Liberal) de 2015 ou até se apaixonaram pela fanfarronice do líder de extrema-direita André Ventura e seu partido simplesmente chamado Chega. Ambos falam para os donos de negócios e o empresário, ambos abominam impostos mais altos e redistribuição de riqueza, e ambos declararam guerra ao estado de bem-estar social. O primeiro atrai os caras das fintechs individualistas, os capitalistas influenciadores e todos aqueles cujos sonhos molhados apresentam Elon Musk montando um foguete de pênis para Marte. Quanto a Ventura, seu apoio é uma mistura de misóginos, racistas e interesses comerciais oportunistas em busca de conexões poderosas no rastro de sua força ascendente.

Os socialistas só podem contar com duas certezas. A primeira é que é improvável que seus concorrentes de esquerda obtenham ganhos significativos além de seu eleitorado existente. Os comunistas estão focados na renovação interna e cuidando de seus eleitores dentro dos sindicatos. As novas gerações de eleitores do PCP trazem novas exigências e uma excitante promessa de regeneração. Mas eles fazem isso em um momento em que as fileiras mais numerosas de comunistas veteranos estão morrendo e a curva de crescimento do partido é plana.

O Bloco de Esquerda, por sua vez, está exausto após seis anos de “domésticos” públicos com os socialistas. Pode ser o partido com a abordagem mais saudável do poder, equilibrando um programa muitas vezes radical com uma estratégia política que transforma suas políticas em lei. Mas estar tão perto do PS, mesmo que seja uma espinha na sua garganta, tem seus efeitos colaterais desagradáveis. Na campanha eleitoral, o Bloco de Esquerda não conseguiu criar uma identidade distinta ou mostrar um propósito além de “empurrar os socialistas para o socialismo”. Seus eleitores mais inconstantes podem decidir provar um dos sabores mais recentes da política progressista – uma colher do partido ecossocialista LIVRE ou o PAN focado nos direitos dos animais. O Bloco de Esquerda atualmente detém 19 dos 230 assentos no parlamento, mas as pesquisas sugerem que será sorte manter esse número.

A melhor aposta do PS está nas divisões dentro da burguesia portuguesa. Sim, o líder da oposição Rui Rio apareceu bem nas pesquisas nas últimas semanas da campanha – colocado seu Partido Social Democrata (PSD) de centro-direita apenas dois pontos atrás do partido de Costa. No entanto, ele continua sendo uma alternativa controversa. Sua retórica costuma ser muito vernacular, com intervenções beirando a brincadeira, quando o que o grande capital quer é um primeiro-ministro capaz de apaziguar Bruxelas enquanto mantém a força de trabalho satisfeita o suficiente com apenas aumentos salariais escassos. Para alguns da classe alta portuguesa, o Rio também é muito ambíguo em se comprometer a manter o protofascista Chega fora de uma possível coalizão. Para aqueles que são a favor das privatizações e das baixas responsabilidades fiscais, o PSD continua muito dedicado a apoiar os pensionistas e – ainda que debilmente – a cuidar dos serviços sociais dos quais muitos dependem. Para aqueles que anseiam pelos anos da ditadura, o PSD é democrático demais. E para os poucos católicos devotos que ainda restam em Portugal, eles preferem ir com os democratas-cristãos do que votar em um Rio grosseiro e autointitulado “católico incrédulo”.

Em última análise, a diferença entre PS e PSD será decidida pelo número dos que se absterem. E com esta eleição tomando uma forma particularmente elaborada sob as regras da era da pandemia (muitos votaram pelo correio ou antecipado; aqueles que se isolam ou diagnosticados com COVID poderão votar hoje em um calendário especial), os números de participação são uma incógnita. Com toda a probabilidade, o resultado trará uma remodelação em vez de uma revisão – mais alguns assentos para a Iniciativa Liberal, talvez um ou outro deputado para o Chega, e alguns somando e subtraindo entre a esquerda e a centro-esquerda. O PS pode ter assentos suficientes para formar um governo, mas terá de voltar a fazer um acordo de oferta e procura com o BE e o PCP ou fazer o impensável: oferecer ao PSD a opção de formar uma grande coligação.

A situação não é totalmente sem precedentes: nas eleições gerais da Espanha em 2019, o homólogo de Costa, o primeiro-ministro socialista Pedro Sánchez, pensou que poderia fortalecer a posição de seu partido de centro-esquerda e acabar com o impasse político caminhando para eleições prematuras. Em vez disso, o partido de Sánchez perdeu assentos enquanto a extrema direita avançou. A estabilidade política que Sánchez tanto ansiava foi encontrada por meio de um gabinete multipartidário, incluindo vários membros das maiores forças de esquerda radical da Espanha. Com um pouco de sorte, podemos encontrar uma fresta de esperança semelhante do outro lado da fronteira em Portugal.

Sobre a autora

Joana Ramiro é jornalista, escritora, radialista e comentarista política radicada em Londres.

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