16 de janeiro de 2025

Carlo Ginzburg vê ponto de contato entre Trump e Mussolini

Em entrevista à Folha, historiador italiano celebrado fala sobre fake news, tema de ensaio recém-publicado no Brasil

16.jan.2025 às 10h00

Naief Haddad
Repórter especial da Folha

Folha de S.Paulo

[RESUMO] Em ensaio recém-publicado, Carlo Ginzburg, 85, discute a atração exercida pelas fake news recorrendo a pensadores como Tácito, Maquiavel e Freud. À Folha, o historiador italiano indica semelhanças entre Mussolini e Trump e defende a "leitura lenta" diante da velocidade da internet.

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Já havia passado uma década da Marcha sobre Roma, episódio que levou Benito Mussolini, à frente do Partido Nacional Fascista, a assumir a função de primeiro-ministro da Itália. Em 1932, Il Duce, dono de uma retórica envolvente e muitas vezes distante da verdade factual, concedeu uma série de entrevistas ao jornalista alemão Emil Ludwig, que resultou no livro "Colloqui con Mussolini".

Em um desses encontros no Palácio Venezia, na capital italiana, Ludwig disse: "O senhor escreveu certa vez que as massas não deveriam saber, e sim acreditar".

Adolf Hitler (esq.) é recebido por Mussolini em Veneza em 1934 - Ann Ronan Picture Library/Photo12/AFP

Depois de assentir enfaticamente, Mussolini complementou: "O homem moderno tem uma capacidade ilimitada para a fé. Quando as massas parecem cera entre minhas mãos, quando suscito nelas a fé ou quando me misturo a elas e quase sou esmagado por elas, eu sinto que sou parte delas. Ao mesmo tempo, persiste em mim certo sentimento de aversão, semelhante ao que sente o oleiro diante do barro que está moldando".

O líder italiano sabia explorar a ambiguidade da palavra "massa", que pode significar um corpo sólido ou uma grande reunião de pessoas. Tanto que, mais adiante na entrevista, acrescentou: "Tudo depende da habilidade para controlar as massas à maneira de um artista".

A desenvoltura com que o ditador falava sobre a manipulação dos seguidores por seu mestre vinha, em grande parte, dos livros de Maquiavel, especialmente de "A Arte da Guerra". Mussolini contava, aliás, que seu pai, um ferreiro socialista, costumava ler textos do célebre autor florentino para os filhos depois do jantar.

As ideias de Maquiavel sob a ótica de Mussolini estão entre as que guiam "Fake news?", uma das conferências apresentadas por Carlo Ginzburg na Universidade Centro-Europeia, em Budapeste, em 2019. Ampliada e transformada em um ensaio, a fala do historiador italiano de 85 anos foi publicada na mais recente edição da revista serrote.

Apesar do intervalo de cinco anos entre a conferência na Hungria e a publicação no Brasil, o texto se mantém atual. Não só isso. "Fake news?" é mais uma demonstração de como o autor de livros como "O Queijo e os Vermes", publicado aqui em 1987, e "Os Andarilhos do Bem", de 1988, consegue estabelecer conexões improváveis também em um formato mais sucinto, os ensaios, aos quais tem se dedicado especialmente nas últimas décadas. Um exemplo é "Olhos de Madeira", reunião de nove ensaios, lançada no Brasil em 2001.

No caso de "Fake news?", a escrita fluente e a erudição sem empáfia, lapidadas ao longo de mais de seis décadas de carreira, estão a serviço da reflexão sobre as ondas de desinformação, especialmente aquelas impulsionadas por governantes.

"Tento olhar para as notícias falsas com um distanciamento crítico. É um tipo de abordagem de um ângulo oblíquo", afirma Ginzburg à Folha.

O historiador toma como base o estranhamento, um conceito presente em boa parte da sua obra. Estranhamento, tal qual ele escreveu, como um meio de superar a aparência e alcançar uma compreensão mais profunda da realidade. Também se vale de formulações de pensadores dos dois últimos milênios, dos quais o mais antigo é Tácito, historiador romano nascido no ano 56 depois de Cristo.

Existe algum tipo de prazer em acreditar naquilo que soa falso? "Tácito respondeu sim e colocou isso como um paradoxo: ‘Fingunt simul creduntque’ [traduzido como ‘fingem e acreditam ao mesmo tempo’ e como ‘imaginavam e ao mesmo tempo acreditavam nas próprias imaginações’]. Há uma espécie de propensão das pessoas em acreditar em notícias falsas, em acreditar em algo que reforça um impulso narcisista", diz Ginzburg, incluindo outra referência no pacote, Sigmund Freud.

"Me lembro também daquela expressão em inglês, ‘wishful thinking’, que não existe em italiano nem em português. Uma combinação de, digamos, pensamento e desejo."

Em "Medo, Reverência, Terror", de 2014, volume que reúne quatro ensaios sobre iconografia política, o historiador já havia recorrido ao tal paradoxo ("Fingunt…"). No texto "Reler Hobbes hoje", além de apontar a influência de Tácito sobre o autor de "Leviatã", Ginzburg escreveu que o pensador romano lançou mão da expressão justamente em um contexto de circulação de notícias falsas.

Ou seja, as ferramentas de divulgação variam de época para época, mas o debate sobre as fake news tem, no mínimo, 2.000 anos de estrada.

Mestres da ilusão

Em "A ascensão dos charlatões", ensaio publicado há quatro anos pela revista piauí, outro importante historiador europeu, o inglês Peter Burke, se referiu a Mussolini como "mestre da ilusão" e lembrou que ele "costumava deixar as luzes de seu gabinete, em Roma, acesas a noite inteira para que as pessoas pensassem que ainda estava trabalhando".

É uma observação que nos leva a pensar o quanto o modus operandi de Donald Trump, que assume a Casa Branca na próxima segunda (20) se assemelha às estratégias do líder italiano de um século atrás.

O ofício escolhido por Ginzburg, que o levou a conhecer bem as engrenagens do fascismo, bastaria para que hesitasse em fazer referências à ideologia fora do seu contexto histórico.

Além disso, há uma carga familiar. Seu pai, o professor e jornalista Leon, foi preso pela polícia de Mussolini e, em seguida, morto na Alemanha; sua mãe, a escritora Natalia, sempre teve uma atuação antifascista veemente.

Natalia Ginzburg em 1989, aos 73 anos; a autora de "Léxico Familiar" morreu em 1991 - Francesco Gattoni/Divulgação

No entanto, Carlo Ginzburg afirma ter notado sinais da cartilha fascista no trumpismo quando esteve em Chicago em 2015 e pôde acompanhar alguns discursos do empresário americano, então candidato pela primeira vez à Casa Branca.

O historiador não se refere, por exemplo, ao antissemitismo, assimilado pelo regime fascista muito por conta da influência nazista. Nesse aspecto, segundo ele, não existe semelhança. Mas Trump, assim como Mussolini, é bem-sucedido ao manipular as massas lançando mão de recursos emocionais e das principais tecnologias da sua época —o rádio em se tratando do italiano e a internet no caso do norte-americano.

Nesse aspecto, o presidente eleito dos EUA, que não titubeia em distorcer as informações, faz eco ao pai do fascismo. Com novas faces, o populismo se mantém vigoroso.

Para Ginzburg, o combate às fake news só será bem-sucedido quando desenvolvermos a capacidade de ler nas entrelinhas, técnica que, segundo ele, deveria ser ensinada nas escolas. "Nietzsche, que foi filólogo antes de se tornar filósofo, dizia que a filologia é a arte da leitura lenta. Precisamos combinar a leitura lenta com a velocidade da internet".

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