Perspectiva não defende a expulsão de judeus da Palestina, mas questiona a violência colonial do Estado de Israel
Bruno Huberman
Doutor em relações internacionais pelo Programa San Tiago Dantas e professor da PUC-SP. Autor de "Colonização Neoliberal de Jerusalém"
[RESUMO] Em resposta a João Pereira Coutinho e Hélio Schwartsman, autor sustenta que o colonialismo por povoamento é uma realidade persistente, não um fenômeno do passado, e que os detratores dessa perspectiva têm dificuldades em compreender que a luta palestina não busca a expulsão de judeus de Israel, mas a garantia de sua autodeterminação como povo e a superação das hierarquias coloniais.
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Em artigos recentes, João Pereira Coutinho e Hélio Schwartsman criticaram a teoria do colonialismo por povoamento ou assentamento. A partir do livro "On Settler Colonialism", de Adam Kirsch, os colunistas da Folha depreciam os teóricos desse conceito, os qualificando como ideólogos que promovem o antissemitismo e justificam a expulsão de judeus de Israel e da Palestina.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que essa não é uma moda acadêmica. Desde os anos 1960, intelectuais palestinos como Fayez Sayegh vêm buscando compreender a sua realidade a partir dessa perspectiva, sem deixar de levar em consideração outros casos, como os da Argélia, da Rodésia e da África do Sul.
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Palestinos deslocados pela guerra caminham de volta para o norte da Faixa de Gaza - Rizek Abdeljawad/27.jan.25/Xinhua |
Patrick Wolfe foi o principal rearticulador da teoria com a publicação, em 1999, de "Settler Colonialism and the Transformation of Anthropology". O pesquisador australiano define o colonialismo por povoamento como um processo de eliminação dos nativos. Os genocídios coloniais —dos povos indígenas das Américas ao perpetrado por Israel contra os palestinos— são casos exemplares.
A principal contribuição de Wolfe é apontar a permanência do colonialismo constituído pelo assentamento de estrangeiros. Em Israel, nos EUA, na Austrália e no Brasil, os colonos vieram e nunca foram embora.
Assim, essa perspectiva rompe com a naturalização das relações coloniais ainda vigentes e revela como o colonialismo não é algo do passado, mas um fenômeno do presente.
Os assentamentos judeus e a expulsão de palestinos por Israel não são excepcionais: a proposta do marco temporal, que almeja redefinir os parâmetros jurídicos de demarcação de terras indígenas no Brasil para facilitar empreendimentos extrativistas, e o projeto de construção de um oleoduto na reserva Standing Rock, do povo dakota, nos EUA, são exemplos de como os Estados colonos ainda agem para expropriar as terras indígenas.
Coutinho e Schwartsman reivindicam que a teoria não faz sentido, porque não seria possível apontar os verdadeiros povos originais de um pedaço de terra.
Schwartsman afirma que os judeus já "foram a população invadida" (pelos romanos) e que os palestinos seriam os invasores. Como já apontei em outro artigo na Ilustríssima, os detratores da teoria têm grande dificuldade em compreender o que o colonialismo e a indigeneidade são.
Em primeiro lugar, o colonialismo é um fenômeno característico da modernidade, iniciada com as grandes navegações europeias do século 15. O colonialismo significa a expansão da modernidade europeia e das relações capitalistas por meio da violência e da subjugação racista de povos inferiorizados nas atuais América, África, Ásia e Oceania. Portanto, não é um fenômeno milenar.
A indigeneidade tampouco significa a existência de um povo que seria o habitante original de um território na história, mas uma identidade forjada a partir do colonialismo moderno. São nativos aqueles que originalmente ocupavam um território reivindicado pelos colonizadores. Trata-se de uma identidade relacional, vinculada à existência do colonizador. O palestino só é nativo porque está sob o colonialismo israelense.
Logo, não faz sentido dizer que judeus foram colonizados por romanos ou que palestinos são invasores. O Império Romano pereceu muito antes do alvorecer da modernidade. Ademais, é bem provável que os palestinos de hoje sejam descendentes diretos dos judeus da era romana. Os judeus, inclusive, compõem o povo nativo daquela terra.
Contudo, o que faz de Israel um Estado colonial é a sua origem (e permanência) no projeto sionista europeu do final do século 19, que buscava a constituição de um Estado exclusivamente judaico na Palestina por meio do assentamento permanente de judeus estrangeiros (europeus, asiáticos e africanos) e da negação da autodeterminação dos demais povos que viviam ali.
Coutinho e Schwartsman ressaltam ainda os limites da solução do problema colonial. Segundo eles, a teoria reivindica a remoção dos colonizadores e a devolução das terras aos nativos, o que justificaria a expulsão dos judeus da Palestina.
Adam Kirsch aponta essa como a razão do antissemitismo contemporâneo, apesar de reconhecer que os autores que empregam esse conceito ao analisar o caso palestino, como Lorenzo Veracini e Rashid Khalidi, rejeitam a violência como solução e defendem a resolução de dois Estados ou de um único Estado democrático com a permanência dos judeus.
Há um caso excepcional na história de uma colônia de povoamento que obteve a libertação por meio da expulsão dos colonos: a Argélia francesa, em 1962. Essa não é, porém, a principal referência do Movimento Nacional Palestino, que se volta à África do Sul tanto para nomear a sua realidade —apartheid— quanto para lutar por sua liberdade —a campanha BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções). A solução sul-africana foi a reconciliação entre brancos e negros em um único Estado.
Nas Américas, onde todos os Estados modernos são fruto de processos de colonização por povoamento, somente dois, Bolívia e Equador, reconheceram juridicamente a soberania indígena. Ambos são Estados plurinacionais onde não há sobreposição única entre Estado —povo e nação—, mas a soberania das múltiplas nações do território —indígenas e colonas— é reconhecida.
Isso resulta na descentralização do poder colonial na gestão do Estado. A Constituição do Brasil de 1988 também pode ser entendida como uma descolonização parcial do país por ter reconhecido direitos específicos e estabelecido a autonomia dos povos indígenas.
Nenhum desses casos envolveu a expulsão dos colonizadores. Contudo, todos eles vêm se mostrando limitados em assegurar a autodeterminação dos nativos, porque as estruturas de séculos de colonialismo resistem aos esforços de descolonização.
De toda forma, compreender a realidade colonial é o primeiro passo para desestruturá-la e constituir uma nova relação social que supere a hierarquia colonial. A teoria do colonialismo por povoamento tem esse objetivo e deve ser entendida como um instrumento para a construção da liberdade e da justiça.
Essa perspectiva não questiona a existência dos judeus no território palestino, mas a violência colonial do Estado de Israel, que põe em risco a existência do povo palestino.
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