2 de janeiro de 2023

Mauro Vieira terá que ir além da tarefa de reconstruir o Itamaraty

Não adianta defender política externa bem-sucedida de 20 anos atrás para uma realidade completamente diferente hoje

Patrícia Campos Mello

Folha de S.Paulo

O discurso de posse do novo chanceler, Mauro Vieira, reforça que a principal missão do Itamaraty de Lula 3 é recuperar o protagonismo no cenário mundial que o Brasil tinha durante os dois primeiros mandatos do presidente (2003-2010).

Mas o perigo é o "novo" Itamaraty estar propondo a mesma política externa que defendia 20 anos atrás para uma realidade que hoje é completamente diferente. Só o "soft power" de Lula e a política externa "altiva e ativa" de Celso Amorim não serão suficientes para o Brasil recuperar o protagonismo em um mundo multipolar muito mais complexo.

O novo chanceler brasileiro, Mauro Vieira, na cerimônia de transmissão de cargo no Itamaraty - Pedro Ladeira/Folhapress

Vieira começou seu discurso com mesuras a seu mentor Amorim, ex-chanceler e atual assessor internacional, a quem chamou de "um dos maiores diplomatas da nossa história". Elencou como prioridades da política externa de Lula 3 todos os temas caros a Lula 1 e 2 —reforma do Conselho de Segurança da ONU, aposta na integração com países da América Latina e do Sul Global, resgate da Unasul (União das Nações Sul-Americanas), da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) e até do Ibas (Fórum de Diálogo entre Índia, Brasil e África do Sul).

Mas será que o alinhamento com o Sul Global dá conta da realidade de uma China muito mais expansionista e militarista? Seria o momento certo de priorizar o Brics com a Rússia, um de seus integrantes, envolvida em uma guerra e ameaçando uso da força nuclear? O Ibas se mantém o mesmo com a Índia liderada não por Manmonhan Singh, tecnocrata com grande afinidade a Lula, mas por um líder de ultradireita como Narendra Modi, que usa a religião para acirrar tensões no país?

Vieira promete a "ideologia da integração" para se reaproximar dos países latino-americanos. Será que isso é suficiente para lidar com uma Venezuela sob Nicolás Maduro, com uma deterioração democrática e econômica sem precedentes? Como ressuscitar a Unasul e revitalizar a Celac com figuras como o ditador de esquerda Daniel Ortega, da Nicarágua, e autoritários de direita como Nayib Bukele em El Salvador?

O chanceler Vieira enxerga de forma clara a difícil missão de reconstruir o patrimônio diplomático brasileiro depois que a diplomacia "cristã, branca e ocidental" bolsonarista transformou o Brasil em pária global. De fato, essa é prioridade zero.

Mas é preciso avançar.

Ele próprio reconheceu, no fim de sua fala, que não só o cenário geopolítico mudou, como o país e o Itamaraty também.

Sua escolha para liderar o MRE causou frustração em parte das diplomatas, que ansiavam por uma chanceler mulher. Vieira acenou com a escolha da embaixadora Maria Laura da Rocha para a secretaria-geral —primeira mulher a ocupar o cargo em 104 anos.

Diante de críticas à falta de políticas para garantir mais diversidade em cargos de liderança, ele prometeu uma política de inclusão e recrutamento de mais mulheres e negros. Está claro que uma diplomacia feita por um establishment de homens brancos não mais reflete a realidade da sociedade brasileira.

Vieira também mostrou que ouviu as críticas à falta de ação em relação a acusações de assédio em sua gestão anterior, ao se comprometer com maior prioridade ao combate a casos de assédio, abuso e discriminação, fazendo com que a Ouvidoria e a Corregedoria do Serviço Exterior passem a responder diretamente à Secretaria-Geral das Relações Exteriores.

Ele também indicou mudanças estruturais no ministério, com a criação —ou recriação— de secretarias para cuidar de mudança do clima, tecnologia, integração regional, África, atenção às comunidades brasileiras no exterior, diversidade e participação social.

E ter a política externa ambiental como novo norte, a ênfase na cooperação entre os países amazônicos, o combate à fome e o fortalecimento dos elos da cadeia mundial de suprimentos alimentares são metas muito bem-vindas e sintonizadas aos desafios atuais.

Está certo, estamos a anos-luz de Ernesto Araújo, que em seu discurso de posse em 2019 citou 14 vezes o combate à "ordem global" e ao "globalismo", incluiu a Ave-Maria em tupi e longos trechos em grego. Mas reconstruir não vai bastar, porque o mundo não ficou parado. Vai ser preciso atualizar a bem-sucedida diplomacia de Lula 1 e 2 para o novo mundo que Lula 3 irá encontrar.

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