27 de agosto de 2018

Leia um capítulo de "Zé Dirceu - Memórias", a autobiografia do líder petista


O ex-ministro fala sobre a batalha da Maria Antônia

Bernardo Mello Franco

O Globo

José Dirceu com Eduardo Matarazzo Suplicy e Lula, três dos principais nomes de fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980. Alfredo Rizzutti / Estadão Conteúdo

O ex-ministro José Dirceu, de 72 anos, escreveu na cadeia o que diz ser o primeiro tomo de Zé Dirceu – Memórias (Geração Editorial). Rascunhou o texto à mão, em letra miúda, com o papel e a caneta esferográfica que tinha à disposição em quase dois anos que esteve preso em Pinhais, no Paraná. O original passava de 400 páginas.

Abaixo, leia um capítulo do livro:

***

Capítulo 6 - A BATALHA DA MARIA ANTÔNIA

A verdadeira história do que aconteceu naquele dia em Higienópolis e a insanidade de um congresso da UNE em Ibiúna

Eu era um dos dirigentes da dissidência paulista do PCB quando assumi a presidência da União Estadual dos Estudantes, mas a partir daí afastei-me do partido, dedicando-me exclusivamente ao Movimento Estudantil. Ao ser preso, não era filiado a nenhuma organização, um fato raro.

Ibiúna foi o êxtase e a agonia do Movimento Estudantil, pela grandeza e pelo tamanho do erro. Um congresso clandestino com 850 delegados! Só o Movimento Estudantil com sua audácia e coragem seria capaz de tamanha sandice.

A UNE nunca deixou de realizar seus congressos, mesmo sob a ditadura. O primeiro deles foi em 1965, em São Paulo, mediante mandado de segurança. Aconteceu na Politécnica, situada na Cidade Universitária, no Crusp, conjunto residencial — várias faculdades, como a Politécnica, estavam instaladas no campus de USP. O segundo, em Belo Horizonte e o terceiro em Valinhos, no convento de São Bento, sempre protegidos por entidades religiosas, dada a proximidade da Ação Popular com a Igreja Católica. O de 1968, já sobre influência e direção da dissidência, seria o de Ibiúna. Os demais haviam sido clandestinos, mas com reduzido número de delegados.

José Serra, da AP, era o presidente da UNE em 1964. No ano seguinte, elegeu-se José Luís Guedes, também da AP; em 1967, foi a vez de Luís Travassos, meu antecessor na presidência do Centro Acadêmico 22 de Agosto e na UEE de São Paulo.

Para entender o 30º Congresso da UNE é preciso retornar a 1968, quando o Movimento Estudantil tomou conta das ruas e faculdades do país. As greves, com ocupação de fábricas em cidades industriais, indicavam a retomada da luta operária. Além disso, a oposição ganhava terreno em setores da Igreja, no meio artístico e intelectual, em importantes fatias da classe média. A situação foi agravada pela queda de braço entre os militares que levara à “eleição” — na verdade, uma escolha do alto-comando das Forças Armadas — do marechal Costa e Silva, supostamente da linha-dura, para suceder a Castelo Branco.

A passeata dos 100 mil, no Rio de Janeiro, em março de 1968, as ocupações, o crescimento do movimento secundarista, como era chamado o Movimento Estudantil nos ginásios e colégios, acenderam a luz vermelha na cúpula do regime militar.

Dentro do movimento, a luta pela direção entre a AP e as dissidências, com participação do PCBR, do PCB, dos trotskistas da 4ª Internacional, do Partido Operário Comunista, o POC, era generalizada. Como é da natureza dessas contendas, envolveu a disputa pela sede, pela pauta, pelo método de escolha dos delegados, pelo credenciamento, pelo controle das comissões, pela mesa e pelo regimento do congresso. Ou seja, uma “guerra civil” incompatível com o momento gravíssimo que vivia o paíse o grau de repressão desencadeado.

Em Salvador, no Conselho Geral de Entidades da UNE, as dissidências tinham maioria e decidiram o local do congresso — São Paulo — e a pauta política influenciada evidentemente pela visão daquela organização política.

No clima de confronto que o Brasil vivia, organizar um congresso clandestino nessas condições era uma temeridade, com mais de 800 delegados se deslocando de todos os cantos do país.

Centenas de delegados rumaram para um pequeno sítio, o Mucuru, no bairro Apiaí, em Ibiúna. Chovia torrencialmente e as condições do local eram péssimas. Não havia instalações minimamente adequadas para tomar banho, dormir, comer e fazer reuniões. A plenária foi aberta e o Congresso poderia ter se encerrado antes de as tropas cercarem o sítio, não fossem as divergências sobre tudo — credenciamento, regimento interno, pauta e muito mais — que adiaram seu início em 48 horas. Lentidão que seria fatal para o Congresso, surpreendido com a chegada de forças policiais da Força Pública de São Paulo, Deops e mesmo do exército para prender centenas de delegados. Deveu-se o atraso também às negociações entre as facções políticas e delegações sobre as chapas e cargos, sobre o apoio a um ou outro candidato, que poderiam formar uma maioria e levar à vitória da minha candidatura a presidente da UNE ou a dos outros candidatos, principalmente o da AP, Jean Marc von der Weid, e Marcelo Medeiros, do PCBR.

Hoje parece um despautério promover um congresso clandestino com centenas de delegados, sem chamar a atenção das autoridades e órgãos de informação e inteligência, mas havia precedentes. Belo Horizonte e Valinhos, apesar das diferenças de local, instalações e número de participantes, mostraram que seria possível. Em Ibiúna, também seria factível, desde que fizéssemos um encontro relâmpago que marcasse uma vitóriado Movimento Estudantil sobre a ditadura, o que exigia um grau de unidade e de responsabilidade política de que não dispúnhamos.

O local foi definido, vim a saber depois, dado o compartimento das informações, pela comissão de organização, a partir da ajuda de um apoiador da dissidência e do Agrupamento de São Paulo. Era Domingos Simões, dono do sítio, de quem me tornaria amigo nas décadas de 1980 e 1990 e a quem visitaria mais de uma vez naqueles anos. O pedido viera de Therezinha Zerbini, esposa do general cassado e reformado pelos golpistas, Euryale Zerbini, e futuramente líder da luta pela anistia, e pelo frei Tito de Alencar, dominicano e estudante da Faculdade de Filosofia da USP.

Levantou-se, depois, a tese de que o lugar expressava “uma concepção foquista e guerrilheira”, o que é uma grande bobagem. Embora o fato de escolher um sítio combinasse com a decisão de, novamente, organizar um congresso clandestino, essa sim a verdadeira decisão a ser questionada.

Sobre a queda do Congresso, há muito folclore, mas os seus organizadores estão vivos e podem revelar toda a trama que envolveu sua concepção e organização. Da minha parte, fico com a responsabilidade política pela sua realização, apesar de não saber nada sobre onde e em que condições seria realizado por razões de segurança. Apesar da prisão de centenas de estudantes, a própria realização, a ida de mais de 800 delegados para São Paulo e seu transporte para Ibiúna revelam o potencial de organização das entidades estudantis e organizações políticas e relevam também qualquer outro erro, na verdade é que o Congresso caiu, como dizíamos, não pela compra de centenas de pães numa padaria da região, mas por sua própria concepção. Mas os tempos eram outros e o exemplo dos dois outros congressos clandestinos turbou nossa avaliação dos riscos, e a compartimentação de informações por medidas de segurança fez o resto.

Pela própria experiência do Movimento Estudantil, sabia-se ser possível organizar um congresso dentro de uma universidade, como, por exemplo, no Crusp da Cidade Universitária da USP, em São Paulo. Tínhamos este aprendizado. No Crusp acontecera o congresso da

UEE, acompanhado por milhares de estudantes, como escudo protetor à repressão que ameaçava invadir a Cidade Universitária. Foi uma estupenda vitória do Movimento Estudantil, retratada em manchetes de todos os jornais do país. Fui eleito presidente da UEE e consolidei minha liderança no encontro vitorioso do Crusp.

Era um contraponto democrático à ditadura e a suas farsas eleitorais, seu colégio eleitoral indireto, sua repressão e autoritarismo. Mas, no fundo, essa decisão retratava nosso estado de espírito e o desejo de apoiar a luta armada, optando por negar a luta parlamentar e a oposição legal dirigida pelo MDB. Já se pregava o voto nulo nas eleições de 1966.

Fomos incapazes, todos nós e a AP, de combinar as formas de luta, de articular com a oposição institucional do MDB, com os parlamentares de esquerda, com o Movimento Contra a Ditadura. Recordo minhas conversas com deputados eleitos pelo MDB, casos de Fernando Perrone, um amigo, cuja família era de Passa Quatro. E também de Mário Covas, amigo de meu cunhado, o jornalista Flamarion Mossri, e de minhas discussões com Cláudio Abramo. Todos eles tentavam nos convencer do despropósito daluta armada, ainda que cientes da necessidade da resistência sem tréguas.

Foi Mário Covas, inclusive, quem me doou as passagens de avião para comparecer à reunião do conselho de entidades da UNE em 1968 e passar por Brasília para fazer contatos e reuniões políticas antes de voltar a São Paulo. Por tais exemplos de solidariedade, Covas responderia a Inquérito Policial Militar (IPM), que levaria a sua ilegal e ilegítima cassação, reparada depois pelo povo de Santos, sua cidade natal, e pelos paulistas, elegendo-o sucessivamente deputado, senadore governador por duas vezes.

Essa viagem para Salvador e Brasília ficou muito marcada em minha memória. Conheci uma das maiores capitais do Nordeste e nossa capital federal, impactado e orgulhoso de JK, mineiro como eu, que fora capaz de arrancar o Brasil do litoral e desbravar o cerrado do planalto central. A arquitetura e a beleza do pôr do sol me deixavam inebriado e um sentimento de futuro se apossava de meus pensamentos.

Mas a vida era dura, meu cunhado só podia pagar minha passagem de ônibus, e o tempo era curto, precisava chegar logo a Salvador, daí minha pressa e o pedido a Mário Covas.

No reencontro com minha irmã Neide e seus filhos, os conselhos dela soavam para mim como carinho de irmã sem importância, era como se não existisse risco nenhum na luta contra a ditadura, era nossa geração. Ela relata-me como reagi aos seus conselhos, preocupada com meus pais e com meus atos: “Você então pegou a mão do Flama, seu sobrinho que leva o nome do pai, Flamarion, e desceu do apartamento dizendo que o papo da mãe dele estava muito chato”. Na hora de ir embora, uma indelicadeza própria da esquerda: “Aqui caberiam trêsou quatro famílias”, relembra minha irmã Neide.

Sabendo que a situação social e política era explosiva, eu tinha a intuição de que logo teríamos um desenlace. Não perduraria uma situação envolvendo a crescente mobilização contra a ditadura, as dissensões dentro do regime, os movimentos da oposição autêntica do MDB no parlamento, o aumento das ações armadas e dos choques om a repressão, sem que um lado se impusesse.

Verdade é que o MDB, como instituição, até 1974 não enfrentaria o governo que o criara. Principalmente nos anos mais terríveis, aqueles entre 1969 e 1973, manteve sua denúncia da repressão no nível mínimo. Dedicou-se a exigir o restabelecimento das liberdades democráticas ou do Estado de Direito. Isso era reflexo também do expurgo feito em suas fileiras em 1969, quando o setor mais combativo foi cassado, e da repressão que impedia sua organização pela base. Pesaram nisso também os anos do boom econômico e as campanhas psicossociais da Assessoria Especial de Relações Públicas, a AERP, máquina de lavagem cerebral do período Médici. Iludidas, as classes médias e outros setores da pequena burguesia acreditavam na política de desenvolvimento, bem-estar social e segurança. Sem o suporte das camadas médias e com os setores populares que se opunham ao regime votando nulo e branco, o MDB seria massacrado nas urnas em 1970, quando se cogitou, inclusive, de sua dissolução. Também é necessário frisar que a base social do regime se ampliou com a integração de importantes setores de técnicos e profissionais na administração pública e privada, com o enriquecimento de pequenos e médios comerciantes e industriais e com a especulação com terras, imóveis e ações da Bolsa de Valores.

Bem antes da edição do Ato Institucional número 5, começamos, por proposta minha, a preparar o Movimento Estudantil para um possível golpe dentro do golpe. Orientamos para essa situação limite, colocando na clandestinidade dirigentes e instalações, como gráficas, veículos e os poucos recursos que tínhamos. Minha principal preocupação era preservar nossa capacidade de luta e mobilização, nossa presença nas ruas e nossos centros acadêmicos, preservar lideranças evitando suas prisões e construir um sistema de comunicações resistente à repressão.

O pretexto para a edição do AI-5 e o fechamento do Congresso Nacional seria um discurso do deputado Márcio Moreira Alves, considerado ofensivo às forças armadas. A verdadeira motivação, porém, residia na aspiração dos militares mais radicais, a linha-dura, de obter poder total para concretizar os objetivos do golpe: destruir toda oposição democrática e popular ao governo e aos interesses que ele representava. Impunha o alinhamento com os Estados Unidos na Guerra Fria e na escalada de golpes em toda América do Sul, como veríamos logo noUruguai, Argentina, Bolívia, Chile. E com a Operação Condor, praticamente articulada pelos EUA e Brasil, seus principais fiadores.

Ferido de morte pelas prisões de Ibiúna e, a seguir, pelo AI-5, o Movimento Estudantil ainda resistiu em 1969 e 1970, realizando os chamados “congressinhos” regionais e elegendo, em março de 1969, uma nova diretoria para a UNE, tendo Jean Marc como presidente, derrotando Rafael de Falco, presidente do DCE da USP e nosso candidato.

Após Ibiúna, eu começaria um longo caminho pelas prisões militares e a luta jurídica pela liberdade. Eu e os demais líderes estudantis aprisionados, enquanto descia sobre o país a cortina do terror, sob o silêncio, quando não a cumplicidade, do Supremo Tribunal Federal (STF) e da mídia. Não por muito tempo, como veremos.

Estávamos todos esgotados, insones, mas sem perder a combatividade. Tínhamos vivido meses de tensão e desgaste. Em São Paulo, particularmente, enfrentamos as forças repressivas, o CCC, grupo paramilitar de estudantes de direita organizados pelo Deops e pelos órgãos de inteligência das Forças Armadas. A finalidade do CCC era dissolver assembleias, espancar estudantes, impedir eleições estudantis, depredar centros acadêmicos, ocupar faculdades pela força e realizar provocações em passeatas. Disso, o exemplo maior foi a tentativa, bem-sucedida, de nos desalojar da Faculdade de Filosofia e Letras da USP, na rua Maria Antônia, o coração e a alma do Movimento Estudantil paulista, seu principal centro político-cultural, irradiador de energia e criatividade para o país.

A chamada “Guerra da Maria Antônia” entre estudantes da filosofia contra alunos do Mackenzie é um case clássico de como se manipula um acontecimento histórico.

A UNE e a UEE eram apoiadas pelo DCE e por quatro dos cinco centros acadêmicos do Mackenzie, chamados DA, como o João Mendes, da Faculdade de Direito, presidido por Lauro Pacheco de Toledo Ferraz, o vice-presidente do DCE Jun Nakabayashi, o vice-presidente da UEE e também aluno de direito Américo Nicoletti e outras importantes lideranças da faculdade, como Renato Martinelli, Agostinho Fiordelisio, Décio Bar, José A. de Azevedo Marques, o Zé Al e Cid Barbosa Lima Sobrinho, militantes ativos do Movimento Estudantil e também muitos do PCB.

Não houve nenhuma guerra entre os estudantes da USP-Filosofia contra os do Mackenzie. E muito menos entre as duas instituições, se bem que a reitora do Mackenzie, Esther de Figueiredo Ferraz, identificada com o golpe de 1964, seria ministra da Educação no governo João Figueiredo, última fase do período ditatorial e apoiava explicitamente o CCC e a presença de grupos paramilitares na sua universidade, treinados pelo Deops sob a coordenação do policial Raul Nogueira de Lima, o “Raul Careca”.

A ditadura queria desalojar os estudantes do centro da cidade, da Maria Antônia, vértice de um círculo que incluía a FAU, na rua Maranhão, a Economia, na rua Visconde de Cairu, a Sociologia e Política, na rua General Jardim, e a Filosofia e o Mackenzie frente a frente. Eram dezenas de milhares de estudantes com grande capacidade de mobilização e agitação, o quartel-general do Movimento Estudantil paulista e sua crucial base de apoio e de atuação política.

Tudo começou com uma mera provocação de grupos direitistas do Mackenzie. Eles exigiam a retirada de uma barreira que fechava a rua Maria Antônia na confluência com Itambé e Dona Veridiana, em Higienópolis, ameaçando fazer recuar o bloqueio à força.

Fui acordado no dia 3 de outubro, vésperas do 30º Congresso da UNE. Dormia na faculdade ocupada. Seguranças do prédio e estudantes que haviam montado um “pedágio” na barreira — a maioria dos motoristas apoiava o ME — avisavam que era iminente um confronto com os estudantes do Mackenzie.

Fui ao local, negociei e fiz retroceder a “cancela” da trincheira para liberar um dos portões da Universidade Mackenzie. Apesar disso, logo recomeçaram os atritos e as agressões aos nossos cobradores de “pedágio”. Compreendi que aquela insistência buscava um conflito, o que não era nosso objetivo.

Dito e feito. Em poucos minutos, a rixa aumentou, surgiram homens armados no Mackenzie — traziam bombas químicas, fabricadas nos laboratórios da faculdade, carabinas e revólveres — que deflagraram a batalha contra nós e o prédio da Filosofia. Tentavam invadi-la e nos desalojar pela violência. Serviram à repressão e às forças policiais que, no final, viriam para apoiá-las, invadir o edifício e incendiá-lo, depois de depredar todas suas instalações.

Na conflagração, a direita assassinou, com um tiro na cabeça, o estudante seminarista José Carlos Guimarães, do Colégio Marina Cintra, situado na Consolação. José Guimarães era um dos defensores do prédio, como centenas de outros estudantes, que acorreram à Maria Antônia ao saberem da agressão. Como nossa meta não era ocupar o Mackenzie e sim defender a Maria Antônia, decidi por uma retirada para evitar novas mortes e não propiciar pretexto para uma repressão generalizada ao Movimento Estudantil. Depois de um comício relâmpago na rua Visconde de Cairu, onde discursei empunhando a camisa ensanguentada de José Guimarães, saímos em passeata pelo centro, denunciando o assassinato do jovem e pobre estudante, que viera estudar e trabalhar em São Paulo.

Os bandos paramilitares e o CCC, fundado por João Marcos Flaquer e comandado pelos delegados “Raul Careca” e Otávio Medeiros, com a participação dos estudantes Ricardo Osni, Francisco José Menin, João Parisi Filho, José Parisi, Boris Casoy, entre outros, que dirigiram o ataque ao prédio da Filosofia, com cobertura das autoridades, havia tempos usavam e abusavam da violência. Espancavam lideranças, dissolviam reuniões, vandalizavam urnas e locais de votação nas eleições estudantis como no dia 27 de setembro de 1967. Porém, a partir daquele dia, demos um basta e começamos a responder à altura. Como comprovam as fotografias de militantes do Movimento Estudantil, defendendo-se das investidas do CCC na própria Filosofia ocupada. Retrucamos com tiros a uma agressão armada noturna para surpresa e recuo imediato dos paramilitares. Bem mais tarde, Flaquer, Osni e os irmãos Parisi figurariam como torturadores no rol do livro Tortura Nunca Mais. O tiro que assassinou José Guimarães foi atribuído a Osni, segundo o próprio delegado José Paulo Bonchristiano, do Dops, em entrevista à repórter Marina Amaral, da Agência Pública.

José Parisi tinha o péssimo hábito de agredir estudantes e, arrogante, vivia se infiltrando nas manifestações como provocador. Numa dessas vezes, surpreendido e cercado por dezenas de estudantes como agente a serviço do Deops e trazido à minha presença, parecia um menino travesso que, chorando, me implorava para evitar seu linchamento. Dono de um histórico de agressões, invasões de faculdades, dissolução de assembleias, destruição de urnas de votação nas eleições, sequestros de estudantes, era tido como um dos auxiliares de Raul Careca. Para evitar o pior, decidi que ficaria “preso” conosco e criei as condições para soltá-lo, apesar do desgaste que sofri — a maioria queria mesmo era dar-lhe uma boa surra, antes de deixá-lo nu em alguma rua movimentada como a Augusta.

A versão da ditadura, do governo Abreu Sodré e da reitora do Mackenzie, que felicitou os agressores e assassinos, foi da “guerra” entre estudantes e entre as instituições. Nada mais falso. Tratou-se de provocação pensada, organizada e executada pelos órgãos de repressão para atacar e incendiar a principal faculdade da USP, onde até mesmo havíamos feito uma reforma universitária comandada por uma comissão paritária de estudantes e professores.

Antes de relatar minha prisão, minha memória me leva a Iara Iavelberg, líder estudantil, militante da Polop, presidente do Grêmio da Psicologia que hoje leva seu nome. Culta, libertária, feminista, elegante, quatro anos mais velha do que eu, Iara era uma liderança natural. Eu a via de longe nas assembleias e às vezes conversava nas reuniões políticas, um fosso de divergências políticas separava a Dissidência da Polop. No fundo eu a admirava, mas eu aos poucos me apaixonava, sem ser correspondido.

Ela nem sequer me notava fora a convivência estudantil e política. Fiz de tudo para namorá-la, mas nada. Desisti e eis que, após uma assembleia, saímos para jantar com um grupo que depois se tornaria constante e unido: André Gouveia, Zé Arantes, Lola, Moacyr Urbano Villela e sua namorada Beth Chachamovits e tantos outros. Foi quando me dei conta de que Iara já me percebia, sentava-se ao meu lado, me envolvia. Não cabia em mim de alegria e passamos a namorar e a viver uma curta e tumultuada paixão, que durou pouco, como tudo naqueles tempos, mas marcou minha vida para sempre. Imaturo e irascível, não fui capaz de manter a relação e, aos poucos, com idas e vindas, reencontros e separações, acabamos com a relação, mas não com o afeto e a amizade.

Ainda me lembro, como se fosse hoje, nosso reencontro nas ruas em pé de guerra, da Maria Antônia cercada por barricadas, numa noite no mês de agosto ou setembro, e nossa alegria e a imediata vontade de ficarmos juntos. E assim foi, pela última vez vi Iara e nos amamos com intensidade e paixão. Era 1968.

Iara filiou-se à VPR e tornou-se companheira de Carlos Lamarca. Foi brutalmente assassinada em agosto de 1971, em Salvador, para onde se deslocara acompanhando o capitão na sua última e derradeira tentativa de montar uma guerrilha no sertão da Bahia.

Cercada em seu apartamento pelas forças da repressão, foi covardemente assassinada e, como aconteceu com outros companheiros, os órgãos da ditadura, com a cumplicidade da imprensa, montaram a farsa do suicídio, desmascarada pela família de Iara e órgãos de Direitos Humanos em 2003, quando pôde finalmente ser enterrada no cemitério judaico em São Paulo.

Nunca mais me esqueci de Iara. Quando recebi a notícia de seu assassinato, uma onda de dor e revolta tomou conta de mim durante meses. Em todos os momentos de alegria ou tristeza, quando me vêm à mente meus companheiros e companheiras caídos na luta contra a ditadura, a figura de Iara preenche minha solidão. Meu desespero me dá forças e vontade de viver a vida como ela viveu, com paixão, plenamente, sem medo de ser feliz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...