24 de janeiro de 2025

Os antigos pântanos do Iraque estão correndo risco

Reportagem da Jacobin revela como os pântanos do sul do Iraque, o berço da civilização humana, enfrentam um verdadeiro desastre da má gestão ambiental e política após a intervenção militar dos EUA. À medida que a água desaparece, o mesmo está acontecendo com uma cultura de 5.000 anos.

Jaclynn Ashly

Jacobin

"Sem água, não há vida nos pântanos", diz o criador de búfalos Haidar Waheed Hashim. (Jaclynn Ashly / Jacobin)

Búfalos-d’água deslizam suavemente por canais de águas rasas que serpenteiam pelos pântanos mesopotâmicos do sul do Iraque, sua pele preta brilhando sob o calor implacável do verão do país. Terra seca e rachada se expande para longe sob o sol escaldante do país. Um barco de madeira abandonado está encalhado no solo em ruínas.

Há apenas alguns meses, esta paisagem desolada era uma lagoa de água doce. Agora, a devastação tomou conta.

“Criamos búfalos aqui desde a época de Adão”, proclama Argeol Issa Omarah, de 73 anos, um dos vários criadores de búfalos — conhecidos como Ma’dan — que habitam os Pântanos Mesopotâmicos do Iraque, que muitos estudiosos bíblicos acreditam ser o local do Jardim do Éden. Tanto os Pântanos Mesopotâmicos quanto a cultura dos Ma’dan receberam o status de Patrimônio Mundial da UNESCO em 2016.

Essas zonas úmidas na parte sul do país já foram uma das paisagens mais distintas do mundo, alimentando uma cultura antiga que sobreviveu aqui por milênios. Os rios Tigre e Eufrates, fluindo do sul da Turquia através da Síria e do Iraque, se encontraram no rio Shatt al-Arab perto de Basra, criando vastos pântanos no Iraque e no Irã. As inundações sazonais transformaram a região em uma rede interconectada de zonas úmidas.

A vida nesses pântanos remotos esteve inalterada por milhares de anos, em grande parte inacessível a pessoas de fora. O isolamento terminou na década de 1980 com a Guerra Irã-Iraque, seguida pela Guerra do Golfo e a Revolta Xiita no início da década de 1990. O que se seguiu foi uma destruição deliberada e quase total dos pântanos.“Quando eu era criança, havia água até onde a vista alcançava”, diz Argeol Issa Omarah. (Jaclynn Ashly / Jacobin)

Nas últimas décadas, esforços foram feitos para restaurar e preservar os pântanos do sul do Iraque. No entanto, um desastre ambiental sem precedentes agora ameaça a região. As mudanças climáticas trouxeram temperaturas elevadas, enquanto a construção de represas a montante reduziu drasticamente o fluxo de água para o Iraque, fazendo com que os moradores de pântanos como Omarah tivessem que lidar com uma realidade dura e mutável.

Os árabes do pântano estão envolvidos em uma batalha difícil para salvar seu modo de vida.

O legado de Saddam

No auge, os pântanos eram o maior ecossistema de zonas úmidas do Oriente Médio, cobrindo a maior parte do sul do Iraque. Os talos de junco que se projetavam das águas forneciam amplo material para a construção de casas tradicionais de junco — conhecidas como mudhif —, bem como esteiras de junco usadas para sentar e dormir. A abundância de peixes nos pântanos garantia que os pescadores vivessem vidas confortáveis, enquanto espécies de pássaros migratórios e residentes eram abundantes. Até mesmo leões e hienas já vagaram por esse habitat único.

Os pântanos eram o lar de cerca de quinhentas mil pessoas, principalmente árabes dos pântanos que seguem o islamismo xiita. Esta antiga comunidade está entre as culturas vivas mais antigas do mundo, com raízes que remontam a seis mil anos até a antiga Suméria, a civilização mais antiga conhecida — que produziu os primeiros textos conhecidos do mundo — e o Império Acadiano, o primeiro império conhecido da Mesopotâmia. As cidades de Ur, que dizem ser o local de nascimento do profeta Abraão, e Uruk, a maior cidade do mundo em 3000 a.C., estavam localizadas ao longo do rio Eufrates nas bordas dos pântanos.

Embora os árabes dos pântanos falem árabe, seu dialeto incorpora palavras das línguas antigas, agora extintas, suméria e acádia. Durante séculos, sua cultura e meios de subsistência estavam intrinsecamente ligados à paisagem natural dos pântanos, com a água servindo como seu recurso mais precioso, do qual todas as outras coisas dependiam.

Os pântanos em si formam uma rede de três grandes zonas úmidas: o Pântano Hawizeh, que abrange o Iraque e o Irã, e os pântanos Central e Hammar, juntamente com oito pântanos menores.

O ecossistema criou um microclima único absorvendo calor, com temperaturas até 3°C mais frias do que as áreas ao redor. Ele sustentou uma biodiversidade excepcional, filtrando poluentes do Tigre e do Eufrates e protegendo a costa do Golfo da degradação ecológica.Uma mulher cuida de seu búfalo aquático em uma vila perto de Chibayish. (Jaclynn Ashly / Jacobin)

O delicado equilíbrio dos pântanos, no entanto, os tornava altamente vulneráveis ​​às vicissitudes dos anos secos e úmidos, dessecação e inundações. Em anos secos, os pântanos se fragmentavam em ilhas isoladas; em anos úmidos, formavam um sistema interconectado. O terreno de lama, juncos e água era quase intransitável, tornando muito difícil para qualquer exército invasor atravessar ou se locomover em cavalos. Essa vantagem natural tornou fácil para os árabes dos pântanos travar uma guerra de guerrilha e escapar da captura. Por essas razões, conquistar essa região do sul do Iraque era virtualmente impossível, de acordo com Steve Lonergan e Jassim Al-Asadi, que juntos escreveram o livro The Ghosts of Iraq’s Marshes [Os Fantasmas dos Pântanos do Iraquanos].

Mas Saddam Hussein, que governou o Iraque de 1979 até sua queda em 2003, tomaria como missão erradicar esse ecossistema único. Os pântanos há muito tempo forneciam refúgio não apenas para os árabes da região, mas também para comunistas e rebeldes que fugiam do governo. Erradicar os pântanos se tornou um elemento central da campanha de Saddam para esmagar a resistência e exercer controle sobre a região.

Drenando os pântanos

Durante a guerra Irã-Iraque na década de 1980, quando Saddam invadiu o vizinho Irã e mergulhou a região em um conflito que durou oito anos, os pântanos foram transformados em um campo de batalha estratégico. A água foi drenada de algumas áreas, enquanto outras foram intencionalmente inundadas. Estradas foram construídas para permitir a fácil movimentação de equipamentos militares pesados, bunkers foram escavados para o avanço das tropas e minas antitanque e antipessoas foram enterradas por toda a região. Essas ações, de acordo com Lonergan, professor de geografia na Universidade de Victoria, na Colúmbia Britânica, e líder da Iniciativa dos Pântanos Canadá-Iraque, causaram estragos no delicado ecossistema dos pântanos.

Os pântanos foram rearranjados para o teatro da guerra, deixando o meio ambiente devastado. Durante a revolta xiita de 1991, que durou de março a outubro, o exército iraquiano matou milhares de árabes xiitas dos pântanos. Muitos dos que participaram da revolta fugiram para o interior dos pântanos para escapar do exército.

Em 1992, Saddam decidiu se vingar dos desertores e elementos rebeldes nos pântanos, que então cobriam uma área de vinte mil quilômetros quadrados. Usando um plano de drenagem criado pelos britânicos na década de 1950 para converter os pântanos para uso agrícola, a administração de Saddam começou a eliminá-los sistematicamente.Os talos de junco que crescem nos pântanos são usados ​​para construir mudhif, casas tradicionais de junco. (Jaclynn Ashly / Jacobin)

Canais e diques foram construídos para desviar a água dos rios Tigre e Eufrates para longe dos pântanos. Simultaneamente, o exército iraquiano queimou e destruiu milhares de vilas e fazendas por toda a região, fazendo com que muitos moradores fugissem.

De acordo com Lonergan, um dos principais projetos do governo nesse esforço foi o Rio Prosperidade, um canal de dois quilômetros de largura e pouco mais de cinquenta quilômetros de comprimento que era paralelo ao Rio Tigre. Seu único propósito era transportar água para longe dos pântanos. Outro canal, conhecido como Rio Mãe de Todas as Batalhas — ou Umm al-Ma’arik — foi construído com o mesmo propósito ao longo do Eufrates. Qualquer água que potencialmente fluísse dos Rios Tigre e Eufrates para os pântanos era desviada para esses canais.

Em poucos meses, os pântanos começaram a secar. Mais de 90% deles desapareceram até 2000. Apenas o pântano Hawizeh, sustentado pela água que fluía do Irã, permaneceu intacto. A devastação ambiental desencadeou um êxodo em massa de árabes do pântano. Os estoques de peixes se esgotaram, os búfalos pereceram sem juncos para comer ou água para beber, e um modo de vida sustentado por milênios foi quase destruído.

Refugiados do pântano

O desvio de água também cortou o fornecimento para Chibayish, uma cidade nos Pântanos Centrais. A população de Chibayish caiu de sessenta e três mil em 1990 para apenas cinco mil em menos de uma década. Um relatório das Nações Unidas de 2003 estimou que apenas dez mil árabes permaneceram nos pântanos, com menos de 10% com capacidade de sustentar seu modo de vida tradicional.

Estima-se que de cem a duzentos mil árabes dos pântanos foram deslocados internamente, muitos migrando para o centro do Iraque, para cidades como Hilla, Samarra, Fallujah e Balad. Acredita-se que até cem mil tenham fugido do país como refugiados, alguns para países ocidentais, enquanto mais de quarenta mil fugiram para o vizinho Irã. Quase toda a população de árabes dos pântanos foi deslocada à força.Jassim al-Asadi, diretor da Nature Iraq, nasceu nos Pântanos Centrais e dedicou a maior parte da vida à sua restauração. (Jaclynn Ashly / Jacobin)

Em uma década, os pântanos foram reduzidos a terras áridas e o sustento dos Ma’dan se foi. “A maioria dos búfalos morreu e os que permaneceram vivos foram vendidos”, diz Al-Asadi, um ativista ambiental e diretor da Nature Iraq, o primeiro e único grupo de conservação do país. Asadi nasceu nos Pântanos Centrais e dedicou a maior parte de sua vida à sua restauração. “Outras famílias mantiveram apenas seis ou sete de seus búfalos e migraram para áreas úmidas em outras partes do Iraque.”

Omarah foi um dos muitos Ma’dan que fugiram em busca de água. Ele e sua família se estabeleceram ao lado do Rio Prosperidade, seguindo o caminho da água desviada dos pântanos. A destruição do bioma do pântano e do modo de vida Ma’dan levou a Agência de Refugiados da ONU a classificar os deslocados como refugiados ambientais. Observadores internacionais também sugeriram que a drenagem dos pântanos por Saddam constitui ecocídio com o propósito de genocídio.

O desastre perpetrado pelo governo iraquiano nos pântanos e seu povo “se destaca como uma das maiores catástrofes ambientais e humanitárias do século XX”, diz Lonergan. Por mais de uma década, os pântanos permaneceram como um deserto sancionado pelo Estado, despojados da biodiversidade e da vida que os sustentaram por milênios.

Esperança afogada

No final de março de 2003, uma coalizão de forças dos EUA, Grã-Bretanha, Austrália e Polônia invadiu o Iraque e derrubou o governo de Saddam. O país mergulhou no caos. Com a força policial desordenada, o crime e a corrupção se espalharam. Tensões tribais, regionais e religiosas há muito reprimidas transbordaram, e a raiva contra as forças de ocupação escalou de protestos para a violência. Ministérios do governo fecharam, seus prédios foram gravemente danificados nos bombardeios.

Mas em meio a esse caos, os árabes do pântano viram um vislumbre de esperança.

Menos de um mês após a invasão liderada pelos EUA, em 10 de abril, um grupo de jovens brandindo picaretas e pequenas bombas d’água demoliu as represas e diques que bloqueavam o fluxo de água para Abu Zareg, um pequeno pântano que já foi parte do maior Pântano Central. A notícia de seus esforços espontâneos se espalhou, e outros dentro e ao redor dos pântanos se juntaram, aproveitando a queda de Saddam para inundar novamente os pântanos. Asadi estava intimamente envolvido nesses esforços e convenceu o ministério de recursos hídricos a ajudar a desmantelar algumas das maiores represas e diques que exigiam equipamentos mais pesados.Os moradores restauraram cerca de 70% dos pântanos que foram drenados mais de uma década antes por Saddam Hussein. (Jaclynn Ashly / Jacobin)

“A água do Tigre e do Eufrates começou a fluir de volta para os pântanos”, Asadi me conta, sorrindo. “E a vida nos pântanos retornou. Semana após semana, mês após mês, a notícia se espalhou e as pessoas começaram a migrar de volta para os pântanos.” Atividades econômicas tradicionais, como pesca, fabricação de esteiras de junco, criação de búfalos e fabricação de queijo e iogurte de búfalo, retornaram depois que os pântanos foram inundados novamente.

Por meio dessas iniciativas, em sua maioria locais, os moradores restauraram cerca de 70% dos pântanos que haviam sido drenados mais de uma década antes. Apesar da desordem social aumentar no resto do país, foi um momento de esperança para os árabes dos pântanos.

Omarah estava entre aqueles que retornaram aos pântanos. Ele comprou vinte búfalos de água e suavemente recostou-se em sua vida tradicional. “A grama cresceu e se tornou abundante e saudável — mais do que suficiente para o búfalo”, ele me conta, sentado em uma esteira de junco em uma pequena sala de concreto em sua propriedade. Seus filhos timidamente espiam a sala de fora, rindo e correndo para longe cada vez que encontram meu olhar. “E a água chegou até a estrada principal.”

Mas essa esperança inicial já desapareceu. Omarah gesticula para fora, onde carros estão correndo por uma estrada pavimentada, ladeada por terra desertificada, onde apenas pequenas poças de água poluída permanecem.

“Durante Saddam, havia água suficiente no Tigre e no Eufrates, mas o problema foi sua decisão de drenar a água dos pântanos”, explica Asadi, sentado em um sofá em sua casa em Chibayish. “Agora não há Saddam, mas estamos enfrentando uma escassez de água no Tigre e no Eufrates por causa da represa [rio acima], juntamente com problemas na distribuição e gestão da água. A maior parte dela é alocada para terras agrícolas e muito pouco acaba nos pântanos.”

Mudanças climáticas e crise

Secas recorrentes e prolongadas devido às mudanças climáticas causaram estragos nos pântanos. Houve quatro grandes secas desde 2009, e sua gravidade foi maior do que nos anos anteriores. A frequência de secas na região continua a aumentar e representa uma ameaça existencial ao ecossistema. A seca prolongada que começou em 2021, ainda em andamento, foi a mais devastadora, de acordo com Asadi. As Nações Unidas relataram que em 2023, o Iraque enfrentou sua pior seca em quarenta anos.

As Nações Unidas identificaram o Iraque como um dos países mais vulneráveis ​​aos impactos das mudanças climáticas devido a uma combinação de altas temperaturas, falta de chuva, seca e escassez de água, e frequentes tempestades de areia e poeira. A chuva está se tornando cada vez mais rara, enquanto as temperaturas disparam. O Iraque registrou algumas das temperaturas mais altas do mundo — chegando a 50°C no verão passado — em suas cidades do sul.

A redução drástica de água da represa a montante na Turquia, Síria e Irã intensificou os impactos dessas secas, que foram muito além dos pântanos, afetando toda a região sul do Iraque. As extensas redes de represas da Turquia no Tigre e Eufrates cortaram a parcela de água do Iraque em 60%, enquanto o vizinho Irã desviou afluentes e outros rios. O aumento da temperatura também está causando um aumento na evaporação da água, contribuindo para o esgotamento dos reservatórios.Uma mulher coleta juncos para fazer esteiras tradicionais. (Jaclynn Ashly / Jacobin)

Naturalmente, quando os anos chuvosos traziam inundações para as áreas alagadas do Tigre e do Eufrates, os pântanos eram limpos de sais. Agora, no entanto, essa inundação natural não ocorre mais, resultando em um acúmulo de sais na água, afetando negativamente a produtividade de plantas e animais. Os pântanos, antes interconectados, agora existem como sistemas isolados, lutando para sobreviver de forma independente.

“O resultado disso é que a água restante [que chega aos pântanos] tem salinidade muito alta”, diz Najah Hussain, professor de ecologia na Universidade de Basra, no Iraque, especializado nos pântanos do sul. “Não podemos mais nem classificá-la como água doce. É uma mistura de água doce e salgada.” À medida que os pântanos secam, a alta concentração de sal na água mata os búfalos — junto com os peixes e as plantas. “Problemas em torno da quantidade e qualidade da água que chega aos pântanos afetaram todo o habitat”, Hussain me conta.

Ameaçado pela seca e pela política

A excitação inicial de Omarah em retornar aos pântanos se transformou em ansiedade sobre o futuro. Desde 2021, metade dos búfalos de água de Omarah morreram de doenças causadas por beber água salgada. Incapaz de comprar forragem para o resto, ele os vendeu e agora não tem nenhum.

“Quando você perde seu búfalo aquático, está perdendo uma grande parte de sua vida e identidade”, Omarah me conta, expressando o relacionamento único que os árabes do pântano têm com seus búfalos. “Eu crio búfalos há gerações e sempre pensei que passaria isso para meus filhos. Se eu soubesse fazer qualquer outra coisa, eu faria, mas a minha vida inteira eu não aprendi nada além de criar búfalos.”

De acordo com Asadi, hoje em dia os pântanos não podem depender do fluxo natural de água do Tigre e do Eufrates. Sustentá-los agora depende de fontes alternativas de água. Os pântanos não são mais fornecidos por sistemas naturais. Se a água chega aos pântanos ou não depende de decisões centralizadas feitas por autoridades iraquianas no ministério de recursos hídricos, o que impõe desafios próprios.

Este ministério em Bagdá determina a alocação de água para irrigação para cada província, com a agricultura consumindo a maior parte da água — quase 65%. As secas severas levaram a um aumento na competição, na qual os interesses de comunidades mais fracas, como os moradores dos pântanos, são sacrificados em prol dos interesses das mais poderosas.

“A prioridade no Iraque é primeiro a água potável, depois a agricultura e o petróleo, e somente quando sobra um pouco de água eles a liberam para os pântanos”, explica Asadi. “Não é a principal prioridade da administração.”

“Há alguns engenheiros trabalhando nos ministérios que acreditam que os pântanos são somente para serem inundados, podendo impedir inundações de cidades”, ele continua. “Mas eles não veem que os pântanos também existem para o meio ambiente, a economia e a cultura dos povos indígenas que vivem aqui. Eles veem isso como uma área baixa na qual podem dissipar água somente se houver quantidade suficiente. Se não, os pântanos não entram em suas mentes.”

"Com medo do futuro"

“Lembro-me de quando havia centenas de ilhas flutuantes, que foram construídas pelas próprias pessoas usando antigas técnicas sumérias”, conta Asadi, relembrando sua infância nos pântanos. “As ilhas subiam e desciam com a água. Cada família tinha pelo menos três barcos tradicionais, que usávamos para ir à escola e aos mercados.”

“Havia paz e amor entre os moradores e a natureza”, ele continua. “Durante todo o dia, você podia ouvir o canto das mulheres e homens nos pântanos que saíam para coletar grama e juncos. Esta área tinha um aspecto muito mais brilhante do que tem agora.”

As esperanças de restaurar esse passado encantador, no entanto, estão se afastando cada vez mais. Os impactos das secas recorrentes desde 2021 têm sido calamitosos. De acordo com Asadi, cerca de 33% dos búfalos aquáticos nos pântanos pereceram nos últimos quatro anos, enquanto 95% dos peixes morreram.O filho de Fallah Gzigron alimenta os búfalos aquáticos com forragem que eles precisam comprar para manter os animais vivos. (Jaclynn Ashly / Jacobin)

“Cada vez que você perde um búfalo, parece que está perdendo seus filhos”, explica Fallah Gzigron, de quarenta anos, criador de búfalos aquáticos e pai de nove crianças, de quatro a dezoito anos. “Então é muito doloroso cada vez que eles morrem ou sou forçado a vendê-los.” ​​Gzigron está sentado do lado de fora de seu mudhif construído ao lado de um canal raso que serpenteia pela terra amarelada e rachada.

Há apenas alguns meses, esta área do Pântano Central estava submersa em águas rasas. Mas quando secou, ​​as famílias a abandonaram em busca de água em outro lugar. Alguns retornaram depois que o Ministério de Recursos Hídricos cavou um canal e construiu uma estação de bombeamento entre Basra e Chibayish, permitindo que um fio de água doce do Tigre chegasse à área. No entanto, o fluxo está muito abaixo do que era antes.

Gzigron foi forçado a lamentar frequentemente as mortes de seus búfalos. Alguns anos atrás, ele possuía setenta. Mas agora tem apenas quinze restantes, com vinte e cinco que morreram há pouco tempo devido à má qualidade da água. Gzigron ganha a vida vendendo o leite de búfalo para um comerciante que o transporta para a cidade para comercializar. Aqueles que compram o leite fresco fazem queijo de búfalo e iogurte. Não há juncos ou gramíneas frescas para os búfalos comerem, então Gzigron agora é forçado a comprar forragem para alimentá-los.

“Ontem, comprei forragem no mercado por 160.000 dinares iraquianos [US$ 122], e isso só vai durar dois ou três dias”, Gzigron me conta, enquanto seu filho pequeno ordenha um búfalo atrás dele, preparando o leite que venderão mais tarde, naquele dia. “Todo o dinheiro que ganho vendendo leite vai para comprar forragem para os búfalos para mantê-los vivos.”

“Estou com muito medo do futuro”, ele continua. “Se as coisas piorarem, teremos muitos problemas. A água está ficando cada vez mais baixa. É difícil prever qualquer coisa. Nunca sei se no ano que vem a água ficará ainda mais baixa e o resto dos meus búfalos morrerá.”

Famílias em situação difícil

Haidar Waheed Hashim, um criador de búfalos de trinta anos e pai de treze, enfrenta dificuldades semelhantes. A desnutrição está afetando seus búfalos, reduzindo drasticamente sua produção de leite. “Normalmente, após vender o leite, eu deveria comprar mais búfalos e coisas para minha família”, ele diz enquanto seus búfalos d’água grunhem no canal estreito ao lado dele. “Agora estamos apenas perdendo, ano após ano. Sem água, não há vida nos pântanos.”Ahmad Udey Jabar é um dos pequenos comerciantes que compra leite dos criadores de búfalos e depois o vende nos mercados de Basra. (Jaclynn Ashly / Jacobin)

Ahmad Udey Jabar, também com trinta anos, é um pequeno comerciante que compra leite dos criadores de búfalos e depois o vende nos mercados de Basra. Antes de 2023, Jabar diz que ganhava 50.000 dinares iraquianos (US$ 38) por dia em lucros. Agora, ele ganha apenas 25.000 dinares (US$ 19) por dia. O suprimento de leite despencou — ele costumava coletar mais de 1.300 litros de leite por dia, mas agora coleta apenas 500 litros. “Até a qualidade do leite foi afetada devido à qualidade da água que os búfalos estão bebendo”, diz Jabar, que tem seis filhos pequenos.

Os meios de subsistência dos pescadores locais entraram em colapso por completo. “A vida agora não é mais como era antes”, diz Yasser Jeri, um pescador de quarenta anos e pai de duas filhas. Ele está sentado em seu barco de madeira em um curso de água alimentado pelo Rio Eufrates, jogando uma rede na água cristalina. “Você não consegue mais encontrar peixes grandes nesta água, apenas peixes pequenos.” Ele gesticula para alguns peixes pequenos no chão de seu barco que ele pescou naquele dia.O pescador Yasser Jeri sentado em seu barco de madeira em um curso de água alimentado pelo rio Eufrates. (Jaclynn Ashly / Jacobin)

“Isso é tudo que eu peguei hoje, e estou aqui há algumas horas”, ele continua. “Eu nem vou vender isso — é só para minha família. Nos anos anteriores, um peixe podia pesar cerca de seis quilos, mas o maior agora não tem mais do que meio quilo.” Hoje, Jeri diz que normalmente pega um quilo de peixe pequeno diariamente.

Perca os pântanos, perca a história

O futuro dos pântanos mesopotâmicos do Iraque é sombrio. Hussain diz que está “pessimista” sobre sua sobrevivência.

Não acho que possamos restaurar ou manter os pântanos como eram antes devido à escassez de água. Precisamos escolher certas áreas dos pântanos — cerca de cinco mil quilômetros quadrados — para cuidar e dar a eles água suficiente para revivê-los e mantê-los como um exemplo para as gerações futuras. Mas nada mais do que isso parece possível.

Asadi, que ainda sonha com os pântanos que conheceu quando criança, é mais otimista. Ele sugere que o Ministério de Recursos Hídricos poderia empreender projetos como a construção de diques de concreto e solo para gerenciar o fluxo de água e salvar os pântanos. No entanto, isso exigiria tornar os pântanos uma prioridade nacional, apoiada por recursos financeiros que o ministério atualmente não tem.

Em todo o Iraque, rios e lagos estão secando, e as reservas de água do país já foram reduzidas pela metade. O ministério de recursos hídricos estima que um quarto da água doce do Iraque será perdida na próxima década. Dada essa realidade, é difícil imaginar que os pântanos se tornem a prioridade do governo sem assistência internacional séria.

“Sempre terei esperança nos pântanos”, diz Asadi, enfatizando que sua restauração deve ser uma preocupação para o mundo inteiro. “Os pântanos são parte da cultura do Iraque e são de importância histórica para a civilização mundial”, ele me conta. “Ainda há aspectos da cultura suméria vivos aqui. O mudhif é, na verdade, uma estrutura suméria. Muito da civilização primitiva nasceu aqui nos pântanos.”

“Mas se perdermos os pântanos, então perderemos as pessoas. Elas migrarão para as cidades e ano após ano esquecerão sua cultura e história, suas lendas e canções. Se isso acontecer, uma cultura inteira que existe há milênios será completamente perdida.”

Colaborador

Jaclynn Ashly é uma jornalista independente atualmente baseada nos Estados Unidos.

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