Estrago na imagem das Forças, em especial o Exército, deve levar anos para ser mitigado
Igor Gielow
O caso policial envolvendo a família Cid, que tragara o tenente-coronel Mauro e agora chega a seu pai homônimo, um general de quatro estrelas da reserva, mostra à perfeição o custo que as Forças Armadas terão de pagar pela associação ao bolsonarismo.
Era uma sociedade fadada ao fracasso, caso os militares ouvissem a si mesmos: durante anos, Jair Bolsonaro (PL) era considerado apenas um mau fardado, que saiu pelas portas dos fundos do Exército após misturar sindicalismo com ameaças terroristas.
O general Mauro Cid, pai do ex-ajudante de ordens da Presidência, quando era comandante militar do Sudeste - Roberto Oliveira/Alesp |
Nos anos de implantação da doutrina de volta ao protagonismo político dos militares, preconizada pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, Bolsonaro foi reabsorvido devido a seu potencial eleitoral. Era visto por generais da reserva como manipulável, mas uma vez no poder o contrário foi demonstrado.
Pelo histórico, o Exército foi a Forças mais implicada com o bolsonarismo. Cid pai, por exemplo, era membro do Alto-Comando e um contemporâneo do então presidente na turma de 1977 da Academia das Agulhas Negras.
Já na reserva, ganhou uma sinecura bem paga em dólares em Miami, como chefe do escritório da Apex, a agência de promoção de investimentos estrangeiros do governo federal. A maior notoriedade de sua passagem foi abrigar o médico de Bolsonaro no Planalto, Ricardo Camarinha, em um cargo insondável na Flórida.
Agora, as investigações apontam que talvez sua vida nos Estados Unidos tenha tido outros episódios de interação com o roteiro de vulgaridades do bolsonarismo. Por óbvio, é preciso esperar para entender exatamente do que se tratam remessas de dinheiro e o rolo das joias que seu filho, como ajudante de ordens de Bolsonaro, tentou vender em vez de incorporar ao patrimônio público, segundo a PF.
Do ponto de vista de imagem, é uma conta alta que se apresenta aos militares por seu comportamento. É preciso deixar claro, por evidente, que nunca houve uma adesão em bloco de todos os fardados às práticas deletérias do bolsonarismo.
Isso foi demonstrado na crise militar de 2021, que derrubou de forma inédita na redemocratização todos os comandantes de Força e o ministro Fernando Azevedo pelo não alinhamento cego a Bolsonaro. Claro, havia nuances, como as benesses recebidas pelos militares na reforma previdenciária e administrativa da categoria e a própria presença ostensiva em cargos de natureza civil do governo.
Mas foi a partir daquele momento que a Defesa, e os novos comandantes, aplicaram o verniz bolsonarista explícito às suas fardas. Houve um sem-número de atritos com o poder civil, a cooptação ao plano de questionar urnas eletrônicas. A transformação do general Walter Braga Netto em vice na chapa do presidente apenas coroou simbolicamente o movimento.
Ainda assim, ao fim o legalismo foi majoritário, com a prevalência daqueles que rejeitavam o golpismo do então presidente e não deram corda às maquinações dos tenebrosos meses dele no poder após a derrota para Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Se é certo que a maioria dos militares votaram em Bolsonaro, isso não os tornou todos aderentes de golpe.
Mas todos, por metonímia, pagam o custo da grande sinergia causada pela tentação de politizar suas atividades. A mancha é anterior aos espasmos finais do governo. Do ponto de vista administrativo, nada supera a tragédia administrada pelo general da ativa Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde em meio à pandemia de Covid-19.
O mito do militar eficiente em qualquer função pública reduziu-se a isso, mitologia. Além disso, as apurações sobre golpismo, em especial o papel de integrantes do Exército na intentona do 8 de Janeiro, elevou a gravidade dessa avaliação ao campo criminal e institucional.
Agora, com operações de marreteiro imputadas pela polícia a Cid filho, o bolo todo ganha uma cereja quase burlesca, se não houvesse sugestão de crime. O caso do tenente-coronel é ainda mais grave quando oficiais lembram que ele estava sendo preparado, internamente, para uma ascensão meteórica, talvez rumo ao Comando do Exército.
Dentro da Força, o mal-estar é enorme. Todo o processo de recolhimento e depuração política operado pelo comandante Tomás Ribeiro Paiva, um dos expoentes legalistas do Alto-Comando, é ofuscado pelas revelações diárias.
Há também aqueles incomodados pelo que consideram excesso do Supremo Tribunal Federal nas operações —o tempo de prisão de Cid filho é contestado até por oficiais que não podem ser chamados de bolsonaristas. Mas esta é uma cisão antiga, que vem da notória postagem intimidatória de Villas Bôas contra um habeas corpus a Lula em 2018, e não parece perto de estar equacionada.
Outro ponto de queixas mudas é o fato de a apuração chegar a um oficial de topo de hierarquia, no caso Cid pai. Mas aqui o constrangimento é mais pelo que vem sendo revelado do que por corporativismo, mostrando que a desintoxicação pelo abraço ao bolsonarismo é um processo que pode levar anos.
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