Angela Pinho
Folha de S.Paulo
Como o atual conflito entre Israel e o Hamas deixa claro, questões de política externa entraram de vez na pauta política brasileira como arma retórica da direita contra a esquerda e motivam um racha no próprio campo político do presidente Lula (PT).
Para analistas, a relevância política dos evangélicos tende a tornar ainda mais sensível a questão do Oriente Médio, uma vez que há forte identificação desse segmento de fiéis com Israel.
Um possível primeiro efeito desse cenário já se observa.
Palestinos e apoiadores, incluindo militantes de esquerda, realizam ato em frente a restaurante em São Paulo nesta terça-feira (10) - Bruno Santos/Folhapress |
No sábado (7), quando a ofensiva do Hamas teve início, Lula publicou nota na qual, sem citar o nome do grupo, usou a expressão "ataques terroristas" para caracterizar o ocorrido —além de defender a coexistência pacífica de Israel e de um Estado palestino economicamente viável.
A solução de dois Estados é tradicionalmente defendida pela diplomacia brasileira, diz o professor de relações internacionais da PUC-SP Reginaldo Nasser, especialista em Oriente Médio.
Já a nomeação dos atos como terrorismo chamou a atenção, pois geralmente busca-se evitá-la para facilitar o posicionamento do Brasil como mediador entre as partes, afirma Nasser.
Sua hipótese para explicar a mudança é o cenário interno brasileiro, com a preocupação em não desagradar os evangélicos —relevantes não só como grupo eleitoral, mas como bancada no Congresso.
Avaliação semelhante tem o professor do Instituto de Relações Internacionais da USP Feliciano de Sá Guimarães. Para ele, o governo brasileiro tem se equilibrado entre os grupos domésticos de pressão e a tradição da política externa brasileira.
"Sempre que houver uma questão internacional muito polarizada domesticamente é muito mais difícil para o governo tomar posições para um lado ou outro. E o tema de Israel-Palestina é muito polarizado na sociedade brasileira", diz.
Mesmo com tentativa de reduzir danos, as tensões na esquerda decorrentes desse quadro já são visíveis.
Na segunda-feira (9), discussão sobre Hamas e terrorismo levou a bate-boca no plenário entre os deputados federais Lindbergh Farias (PT-RJ) e Carla Zambelli (PL-SP), que tiveram de ser contidos.
Na tarde desta terça (10), Guilherme Boulos (PSOL) pediu a palavra na Câmara dos Deputados para um discurso em que citou o grupo palestino e condenou as mortes de civis em Israel.
Boulos tomou a atitude dias após perder um aliado na pré-campanha da candidatura à Prefeitura de São Paulo em 2024 —o ex-secretário estadual de Saúde Jean Gorinchteyn, da gestão João Doria (ex-PSDB), que se disse insatisfeito "diante da postura pró-Palestina que não menciona ou condena o grupo extremista islâmico armado Hamas".
Petistas que assinaram em 2021 carta contra a caracterização do Hamas como organização terrorista também têm sido alvo de críticas em redes sociais. Dez deles eram deputados naquele ano e, hoje, dois estão no governo —Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e Paulo Pimenta (Comunicação Social).
Nesta terça, Padilha disse ter assinado o texto para facilitar ações de saúde na Faixa de Gaza durante a pandemia de Covid, condenou as mortes de civis israelenses e anunciou que vai receber representantes da comunidade judaica.
O posicionamento não é pacífico no seu campo político, no entanto. A referência de Lula às mortes de civis como terrorismo foi alvo de críticas de diferentes origens, desde militantes de partidos à esquerda do PT, sob o argumento de que as ações do Hamas são na verdade uma reação, ao ex-ministro José Dirceu (PT).
Pelo mesmo motivo foi alvo de críticas a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), que prestou solidariedade às "vítimas do atentado terrorista em Israel".
À Folha ela reafirma sua posição pessoal de que visar civis nunca pode ser um método válido e diz que, pelo mesmo motivo, com os atuais ataques em Gaza se pode dizer que Israel está praticando terrorismo.
O senador Jaques Wagner (PT-BA) também recebeu críticas internas e nas redes sociais após condenar as mortes de civis em Israel.
Em 2009, ele foi um dos signatários de carta assinada por petistas contra nota oficial do próprio PT que havia chamado ataques israelenses em Gaza de "terrorismo de Estado", comparando-os "a práticas nazistas".
Além de Wagner, referendaram a carta na ocasião os então ministros Tarso Genro (Justiça), Fernando Haddad (Educação) e Carlos Minc (Meio Ambiente), além de Clara Ant, uma das mais próximas assessoras de Lula.
Eles afirmaram que a nota do PT banalizava e distorcia o fenômeno histórico do nazismo e não registrava "a necessária condenação ao terrorismo [do qual o Hamas é acusado]".
Nasser afirma que a tendência histórica da esquerda a favor da causa palestina se deve à luta contra o imperialismo e o colonialismo, e não a uma eventual simpatia pelo Hamas —grupo que de esquerda não tem nada, ressalta.
O Oriente Médio não é o único tema de política externa que gera tensões dentro e fora da esquerda. Isso ocorre também em relação a ditaduras como Venezuela e Nicarágua.
No primeiro caso, Lula afirmou, já depois de eleito, que os questionamentos sobre falta de democracia sob o regime de Nicolás Maduro eram "narrativas". No segundo, chegou a comparar em 2021 a reeleição do ditador Daniel Ortega em um pleito de fachada à permanência no poder da chanceler Angela Merkel.
Após um encontro com o papa Francisco, Lula disse em junho que falaria com Ortega a respeito da libertação do bispo Rolando Álvarez.
Uma moderação maior do discurso em relação a esses países pode ser esperada se a situação dos dois tiver mais repercussão no Brasil.
"A política externa ajuda a construir a imagem do presidente, e Lula sabe usar isso como ninguém, diferente de Bolsonaro", diz o professor da USP.
Além disso, afirma, também elege deputados que tenham pautas relacionadas a isso. "No passado a política externa podia não dar voto —essa não é mais a realidade", conclui.
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