10 de janeiro de 2025

Parabéns, sua privacidade vale US$ 20

Siri espionou consultas médicas e outros momentos privados dos seus usuários. Com o lamentável acordo judicial que foi estabelecido recentemente, a Apple agora pagará dinheiro suficiente para cada usuário bisbilhotado que entrou com ação coletiva comprar alguns cafés.

David Moscrop

Jacobin

Em 2019, o Guardian relatou que os consultores da Apple ouviam regularmente conversas e encontros privados, incluindo consultas médicas, compras de drogas e relações sexuais. As gravações foram feitas acidentalmente quando a Siri “ouviu mal” um termo como se fosse sua palavra de ativação. (Jacques Julien / Moment via Getty Images)


Quanto vale sua privacidade? Mais de US$ 20, talvez? Alguém pode pensar que é um valor bem baixo. Afinal, muitos esperariam que a privacidade não tivesse preço — algo que não está à venda por nenhum valor. Mas para milhões de pessoas espionadas pela Siri da Apple, US$ 20 é o que vale atualmente.

No início de janeiro, a Apple fechou um acordo de US$ 95 milhões decorrente de uma ação coletiva em 2019 nos Estados Unidos. As alegações eram que a Siri, a assistente de inteligência artificial da empresa, havia gravado vozes de usuários — e até mesmo conversas privadas — sem seu consentimento.

Uma mixaria por violações de privacidade

O acordo de US$ 95 milhões não é muito — ele fica em cerca de US$ 20 por pessoa, por dispositivo, e potencialmente menos, dependendo de quantas pessoas fizerem reivindicações. O pagamento parece particularmente insultuoso, dados os detalhes do que foi ouvido. Em 2019, o Guardian relatou que os consultores da Apple “regularmente” ouviam conversas e encontros privados, incluindo consultas médicas, compras de drogas e relações sexuais. As gravações foram feitas acidentalmente quando a Siri “ouvia mal” um termo como se fosse sua palavra de ativação. É seguro presumir que as pessoas não estavam ativando-o deliberadamente para compartilhar seus momentos mais íntimos com um gigante global da tecnologia e seus subcontratados.

Percorremos um longo caminho desde os tempos do caveat emptor — “comprador, tome cuidado” — quando questões de segurança e os direitos do consumidor eram deixados sem solução. Agitação social e movimentos de direitos do consumidor, muitas vezes em aliança com os trabalhadores, lutaram e conquistaram proteções que persistem até hoje. Mas agora, elas estão sendo minadas pouco a pouco.

Conforme relata o The Verge, o Google e a Amazon também foram acusados ​​de compartilhar conversas confidenciais sem consentimento, e o Google está enfrentando seu próprio processo. Em suma, tornou-se normal e tacitamente aceito que empresas multinacionais de tecnologia podem gravar momentos privados dos usuários por meio de seus assistentes de IA e que essas gravações podem chegar a ouvidos de humanos.

Quanto ao custo da violação, US$ 95 milhões é um erro de arredondamento em um erro de arredondamento para uma empresa como a Apple, que conseguiu gerar aproximadamente US$ 391 bilhões em receita no ano passado, quase US$ 94 bilhões dos quais foram lucro. Para gigantes da tecnologia como Apple, Google ou Meta, as violações de privacidade equivalem a pouco mais do que uma despesa insignificante. Os pagamentos de ações coletivas são apenas um detalhe no orçamento, não um impedimento para práticas invasivas. Com apenas algumas empresas ultra ricas dominando o mercado, os usuários têm poucos lugares para onde recorrer se desejam proteger sua privacidade — e as corporações têm incentivo limitado para respeitar as restrições.

Um problema maior — que inclui seu carro

Aindústria de tecnologia, e tudo o que ela toca, tornou-se notoriamente ruim no que diz respeito à privacidade. Intrusões — se não violações diretas — tornaram-se rotina.

Em março, escrevi sobre a prática insidiosa do seu carro espionando você e compartilhando essas informações com as companhias de seguros, para o benefício delas, é claro. A rede de vigilância da Big Tech se ampliou para incluir cada centímetro da sua vida: seu telefone, sua televisão, suas caixinhas de som, sua campainha, seu relógio, seu carro e praticamente qualquer outra coisa conectada à internet.

Acolhermos essas intrusões, ignorando-as, minimizando-as ou nunca pensando nelas em primeiro lugar, é um convite para empresas e políticos atropelarem nossos direitos de privacidade em nome da coleta de dados e do lucro. Embora isso possa soar como culpar a vítima, é menos sobre atribuir culpa a indivíduos e mais sobre destacar a ausência de resistência coletiva. Sem a resistência popular — seja nos níveis político ou do consumidor — as violações de privacidade não são controladas. Sim, o poder individual é limitado em um sistema que serve a oligarcas corporativos, mas não é inexistente. E, no entanto, muitos de nós renunciamos ao pouco poder que temos, decidindo que a troca vale o custo.

Sou tão culpado quanto qualquer outra pessoa. Construir um panóptico auto-aprisionador a serviço do beneficiamento do Vale do Silício acontece quase sem esforço. Você adiciona um dispositivo aqui, outro ali e, em pouco tempo, construiu sua própria prisão — um gadget de cada vez. Afinal, é a coisa mais conveniente a se fazer e, bem, todo mundo está fazendo isso — e até onde mais você vai para garantir uma torradeira?

O acordo de ação coletiva da Apple é um exemplo. Para uma quebra de confiança tão séria, o valor do acordo — os pagamentos triviais para aqueles cuja privacidade foi violada — deveria botar em foco o problema que enfrentamos. Abrimos mão do nosso direito à privacidade e somos totalmente irresponsáveis ​​em lutar por ela ou punir aqueles que a violam.

A proteção da privacidade não pode ser deixada apenas para o livre mercado ou para os consumidores

Opagamento imposto à Apple deveria ter sido exponencialmente maior, e os governos deveriam implementar proteções rígidas para salvaguardar a privacidade, juntamente com sanções significativas para empresas que se recusassem a cumpri-las. Usuários individuais ainda podem tentar optar por produtos ou configurações de dispositivos que maximizem a privacidade, mas, ainda assim, devemos encarar a realidade de que os dispositivos inteligentes estão aqui para ficar — e, de fato, muitos consumidores os preferem.

Esses consumidores merecem a proteção de governos que impõem fortes padrões de privacidade. Não é uma exigência absurda que as empresas sejam obrigadas a manter os dados dos consumidores seguros, lidando com eles de forma responsável e apenas com consentimento direto e expresso — não por meio de termos de serviço ocultos ou configurações obscuras projetadas para explorar usuários por meio de termos legais e tecnicismos. De fato, insistir em proteções robustas ao consumidor na era digital seria consistente com, e uma extensão lógica dos, direitos conquistados no último século e cada vez mais desperdiçados. Não deveríamos ceder esses direitos aos gigantes da tecnologia da era do panóptico.

Lutar por direitos de privacidade na era digital exigirá que os indivíduos pressionem por mais, mas a escolha do consumidor por si só não pode determinar nosso destino coletivo. Governos em todo o mundo devem estabelecer e impor padrões de privacidade robustos, e esse esforço começa com a demanda pública. Um pagamento insultuoso de US$ 20 por uma violação massiva de privacidade parece um ponto tão bom quanto qualquer outro para ser usado como plataforma.

Colaborador

David Moscrop é escritor e comentarista político. Ele apresenta o podcast Open to Debate e é o autor do livro Too Dumb For Democracy?

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