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Folha de S.Paulo
Cientistas têm acompanhado com muita preocupação o julgamento que definirá o destino dos povos indígenas do Brasil e, por meio de associações científicas, demandam a rejeição da tese do marco temporal.
Nesta quarta-feira (7) deverá ser retomado no Supremo Tribunal Federal o julgamento do recurso extraordinário de interesse dos Xokleng, em razão de disputa sobre a posse da terra que tradicionalmente ocupam, denominada "La Klãnõ".
Indígenas do Parque Jaraguá, em São Paulo, protestam contra o marco temporal - Felipe Iruatã/Folhapress |
O voto do ministro Nunes Marques, divergente do voto do relator, Edson Fachin, pretende que o STF adote como tese de repercussão geral —isto é, para todas as terras indígenas do país— a tese do marco temporal, pela qual só poderão ser demarcadas áreas nas quais havia presença de indígenas no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, além das 19 condicionantes adotadas no julgamento da ação popular contra a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol.
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), "amicus curiae" no processo, apresentou um conjunto de reflexões antropológicas com o propósito de contribuir para o entendimento das questões em pauta. Os argumentos da ABA, subscritados por associações como Academia Brasileira de Ciências (ABC), Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), podem ser assim resumidos:
1 - A tese representa um equívoco na compreensão do modo especificamente indígena de ocupar e conceituar seus territórios. Baseia-se numa visão estática do espaço que contraria o modo dinâmico dos indígenas ocuparem o território, conforme a Constituição. Para esta, a ocupação tradicional de uma terra indígena deve levar em consideração quatro elementos: espaços para habitação permanente; para atividades produtivas; para a reprodução física e cultural; e para a preservação ambiental. Estes são equivalentes entre si e ocupados de forma diferenciada ao longo do tempo. Neles podem ocorrer rotações de cultivos, diversificação de atividades de caça, pesca e coleta e mesmo mudanças nos locais de construção das residências, seja para acompanhar essas atividades, seja por fatores cosmológicos/religiosos ou por motivos específicos de organização social. A tese desconsidera pressões externas, derivadas de políticas de Estado, conflitos fundiários ou introdução de doenças que podem afetar a dimensão demográfica e a distribuição dos indígenas nos territórios. Desconsidera, ainda, que um território não se caracteriza apenas por suas qualidades econômicas, mas também por aquelas simbólicas, permitindo o desenvolvimento de um modo específico de vida;
2 - A adoção da tese teria consequências profundamente negativas sobre a regularização fundiária de processos demarcatórios fora da região amazônica. De fato, nas demais regiões, a soma das terras indígenas (TIs) em todas as fases de regularização constitui apenas 1,7% das existentes no país. Nestas, verificam-se os mais intensos e acirrados conflitos, especificamente em termos de superfície abrangida, decorrentes de processos históricos de expropriação;
3 - Por fim, a tese desconsidera que as identificações e delimitações das terras indígenas não são realizadas a partir de visões abstratas sobre territórios genéricos; diversamente, partem de demandas concretas, de grupos domésticos específicos, de parentelas e comunidades locais, pertencentes a cada povo indígena. Assim, as consequências da decisão judicial não seriam tampouco genéricas. Ela incidiria sobre a vida de coletividades concretas —na maioria dos casos, em condições precárias de vida.
As mencionadas associações científicas demandam que os processos de identificação e demarcação das TIs sejam realizados de acordo com a Constituição Federal em vigor, rejeitando-se a tese do marco temporal e as 19 condicionantes adotadas no julgamento da terra indígena Raposa Serra do Sol.
Andréa Zhouri
Professora titular do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG e presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
Sônia Magalhães
Professora da UFPA e vice-presidente da ABA
Deborah Bronz
Professora da UFF e secretária da ABA
Alexandra Barbosa
Professora da UFPB e secretária-adjunta da ABA
Fábio Mura
Professor da UFPB e coordenador do Comitê de Laudos da ABA
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