Igor Gielow
Folha de S.Paulo
Para um político incensado em seu meio como um dos mais astutos há décadas, Luiz Inácio Lula da Silva vive uma situação peculiar.
Aliados, adversários e amigos de ocasião são unânimes em questionar a sapiência aplicada ao curso de ação do petista em seu terceiro mandato, obtido em condições excepcionais que requeriam um trabalho intensivo para frutificarem em apoio subsequente.
Lula e Lira durante um encontro no começo do ano no Palácio do Planalto - Adriano Machado - 11.jan.2023/Reuters |
O quase desmonte do ministério, chantagem que tomou ares de probabilidade na tarde de quarta (31), foi apenas o mais agudo sintoma de uma somatórias de erros que só pode ser atribuída ao avesso do que se esperava de Lula nos meios do poder.
Com meros seis meses no cargo, Lula enfrenta o mais duro início de governo desde o segundo mandato da sucessora Dilma Rousseff (PT), com desempenho pior. Arrisca, e não são poucos os observadores moderados que apontam isso, tornar-se um pato manco precoce.
Como se sabe, a expressão importada da política americana designa presidentes em fim de mandato ou severamente alijados de seu poder efetivo. Podem ser figuras decorativas, como Michel Temer (MDB ) no ano final de sua gestão, perigosas, como Donald Trump nos EUA, ou um misto das duas coisas, como Jair Bolsonaro (PL) nos estertores.
Por óbvio, Lula não chegou lá e tem muito jogo pela frente, mas está flertando abertamente com a condição. Nada explica a falta de empenho em negociar uma aprovação tranquila da medida provisória que redesenhou a Esplanada justamente para abarcar os neoaliados que deveriam lhe garantir governabilidade.
Isso custa dinheiro, evidente, e cessão de espaço, coisas que usualmente o PT gosta de guardar para si. Mas Lula, supõe-se, é esperto o suficiente para saber que represar concessões lhe traria problemas.
Os vazamentos ao longo da quarta de que o petista não se encontraria com Arthur Lira (PP-AL) para não transparecer a genuflexão de resto inevitável só serviram para irritar o poderoso presidente da Câmara, que declarou guerra à articulação política do Planalto no fim do dia.
Depois, Lira fez chegar ao governo que, na Casa que preside, só passarão projetos do interesse do governo se o jogo for rearranjado —e ele já retomou boa parte do poder orçamentário perdido com o fim nominal das emendas de relator, o famoso orçamento secreto.
Se isso irá custar ou não o Ministério da Saúde para o antigo centrão, após Lula ter apoiado um novo consórcio centrado no PSD-MDB-Republicanos, ainda veremos. Mas o clima de reprise no cinema de Brasília é grande.
Novamente na conta de Lula está o fato de que essa era uma bomba-relógio anunciada há meses. As recentes derrotas, com a evisceração da pasta de Marina Silva (Meio Ambiente) à frente, só mostravam que o manual dos anos 2000 perdera a validade: o Congresso não irá a reboque do Planalto.
Assim como a reforma da Previdência de 2019 foi obra de um Congresso afinado com a elite econômica, sua financiadora, a grande vitória até aqui do governo, a aprovação do arcabouço fiscal, atendia a um interesse do Parlamento.
Em nada ajudará a operação da Polícia Federal contra aliados de Lira. É daquelas coincidências que político algum acredita que sejam isso, e não se entra no mérito aqui. No campo dos símbolos, a ação será lida como um recado ao deputado que, pela experiência pretérita, parece precisar de calibre muito maior de munição para se sentir atingido.
Todo o crédito que Lula ganhou com o 8/1 já havia sido exaurido, e as promessas de um governo de união nacional que já eram vazias no discurso de posse do petista se provaram só isso. O presidente não conseguiu galvanizar a rede de apoio que a montagem do ministério insinuava, e tudo indica que foi vítima de soberba.
Há exemplos também de tirocínio torto, demonstrado pelo fato de que Lula conseguiu indispor-se tanto com o agronegócio quanto com o MST, ou em episódios como o caso dos carros populares ou da proliferação de CPIs.
Soma-se a isso a destruição de um outro capital, o do prestígio externo. Lula ainda era visto lá fora com um herói da democracia, e a transição de governo teve um apoio decisivo dos Estados Unidos. Ponto a ponto, está jogando fora tudo o que tinha gratuitamente.
Sua inicialmente boa proposta sobre a guerra da Ucrânia virou um cipoal de vaivéns, a natural corte à China tornou-se uma plataforma para antiamericanismo explícito, a desejável normalização na América Latina desandou no elogio à ditadura venezuelana.
Neste último item, o erro é duplo, pois dá gás às sandices ideológicas do bolsonarismo. Até em jornalistas seguranças no Itamaraty bateram. Por fim, a percepção de que Amazônia era prioridade só no discurso, um efeito colateral da falta de articulação no Congresso, cobrará também seu preço em fóruns internacionais.
Lula ainda pode virar o jogo, claro, se buscar foco na economia —o surpreendente desempenho do PIB, cortesia do espezinhado agro, somado à boa vontade generalizada nas hostes congressuais e na Faria Lima com uma agenda mais racional, dá as condições para isso.
É incerto se promoverá uma mudança como em 2005-2006, quando emergiu das cinzas do mensalão como candidato imbatível à reeleição montado no ciclo das commodities chinês. Brasil e mundo são muito mais complexos hoje, e a tal união nacional poderá ao fim ser imposta de fora para dentro, por atores com agendas bem próprias para 2026.
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