Igor Gielow
Folha de S.Paulo
Para quem esperava um Götterdämerung, um crepúsculo dos deuses wagneriano, o ocaso da Presidência de Jair Bolsonaro (PL) chegou ao fim formal nesta sexta (29) com um sussurro algo patético.
Na forma de uma lacrimosa live, Bolsonaro encerrou dois meses de mutismo para entregar um pacote de platitudes e lamentos. Não chegou a questionar as urnas como de costume, moderando sua agressividade talvez em vista dos dois dias de foro privilegiado que tem pela frente.
Bolsonaro durante sua live de despedida na biblioteca do Palácio da Alvorada - Jair Bolsonaro no Facebook |
Nem tampouco admitiu a derrota para Luiz Inácio Lula da Silva (PT), embora o tenha feito de forma tácita ao admitir que o sol nascerá no dia 1º como sempre. Titubeante, não apagou o efeito que sua reclusão final no Palácio da Alvorada potencialmente causou no movimento que o levou ao poder no pleito de 2018.
Segundo um político que o visitou na clausura na semana retrasada, Bolsonaro parecia um personagem de tragédia farsesca: na penumbra, quase catatônico, murmurando sem parar que "vamos vencer".
Emulava, diz esse interlocutor, as ideias que os generais palacianos remanescentes lhe sopravam desde que perdeu a eleição. Sim, continua o relato, a ilusão de que as Forças Armadas iriam aderir a um levante popular bolsonarista foi mantida como hipótese de trabalho desse grupo.
Daí o silêncio cúmplice da escalada terrorista dos antes folclóricos personagens acampados em frente a quartéis pelo Brasil. Novamente, talvez de olho nos riscos judiciais, decidiu condenar na live a tentativa de atentado em Brasília quase duas semanas após o ocorrido.
De forma inédita na República, Bolsonaro optou por ser um ex-presidente em atividade nos dois meses remanescentes de seu mandato. Com efeito, a transição lulista tratou de negociar limites orçamentários com o Congresso e Flávio Dino age como ministro da Justiça que de fato só será a partir da semana que vem.
Desde que o capitão italiano Francesco Schettino abandonou o navio Costa Concordia em 2012 não se via algo parecido, com a diferença de que não houve quem gritasse "Vada a bordo, cazzo!". Na live, tentou jogar a culpa na imprensa: teria ficado quieto porque se falasse algo, "seria um escândalo". E, diz, "trabalhei".
Deu as caras publicamente em palanques militares e junto a seguidores no Alvorada. Ensaiou alguma articulação, participando de um jantar do PL, mas só. Nem sequer comunicou ao vice, o senador eleito Hamilton Mourão (Republicanos-RS), que quer deixar a faixa presidencial em alguma gaveta para Lula achar.
A opção pelo mutismo, uma forma de se desvincular da violência eventual que irromper em seu nome reforçada pela live final, e a fuga anunciada para o refúgio do ídolo Donald Trump na Flórida, contudo deverá apresentar sua conta.
Em frente do Comando Militar do Sudeste, na nobre região do Ibirapuera em São Paulo, manifestantes há mais de 50 dias frequentando a "alameda do golpe", como um feliz vendedor de churrasquinho instalado nas proximidades apelidou, dão a chave da questão.
Um deles, um senhor de cerca de 70 anos que mora na vizinhança e se identifica como Pedro, diz que passa lá todos os dias "porque as Forças Armadas irão salvar o Brasil de Lula". Como? "Impedindo a posse, claro". E qual a indicação disso? "Eu sei."
A origem de sua crença é um dos grupos de WhatsApp em que recebe notícias, por assim dizer, do desenvolvimento da situação política. Mas Pedro está irritado. "Aqui [aponta para o celular] diz que o Bolsonaro vai comandar a resistência dos Estados Unidos, mas acho que ele tinha de ter feito algo aqui. Longe, vai perder", afirma.
Pedro não está sozinho. Segundo o Datafolha, nada menos que 25% dos eleitores brasileiros se definem hoje como bolsonaristas. E há o contingente adicional que leva aos 49,1% de eleitores de Bolsonaro em 30 de outubro, muitos por simples ojeriza a Lula.
Mesmo depurando esse grupo amplo, é muita gente. Somando aos 25% aqueles que disseram ao Datafolha estarem mais próximos do bolsonarismo do que do centro ou do petismo, 7% dos ouvidos, chega-se a um respeitável terço do eleitorado que parece disposto a seguir nessa faixa de frequência.
Sem governar, manteve a aprovação no nível que havia chegado, recorde para seu mandato, na campanha. O Datafolha a aferiu em 39%, enquanto 37% o reprovam. É o pior índice para um presidente de primeira viagem, mas melhor do que qualquer outro número que obteve em seus quatro anos.
É uma aposta na nostalgia sebastianista, mas o espaço que deixa abre caminho para a ascensão de novas lideranças que capturem não só suas viúvas, mas também aquela fatia de descontentes com a chegada de Lula ao poder que não se veem como radicais de extrema direita.
Os nomes estão decantados, o novo governador paulista Tarcísio de Freitas (Republicanos) à frente. Pela gravidade do cargo, ele estreia na grande política já presidenciável, com um articulador político de peso por trás, Gilberto Kassab (PSD).
Não é por acaso que ele já se diz alguém próximo do presidente, mas não bolsonarista. Resta, por óbvio, saber se dará conta do recado, mas a casa arrumada nas contas deixadas pelos tucanos e a carteira de obras para inaugurar nos próximos dois anos facilitarão sua vida. Se isso será suficiente para abocanhar o eleitorado do ex-chefe, é uma questão em aberto.
Assim, salvo a materialização do golpe militar esperado pelo senhor Pedro sob a garoa no Ibirapuera, Bolsonaro fez questão de usar a porta dos fundos em sua despedida.
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