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31 de janeiro de 2025

Teoria do colonialismo por povoamento não é ideologia antissemita

Perspectiva não defende a expulsão de judeus da Palestina, mas questiona a violência colonial do Estado de Israel

Bruno Huberman
Doutor em relações internacionais pelo Programa San Tiago Dantas e professor da PUC-SP. Autor de "Colonização Neoliberal de Jerusalém"


[RESUMO] Em resposta a João Pereira Coutinho e Hélio Schwartsman, autor sustenta que o colonialismo por povoamento é uma realidade persistente, não um fenômeno do passado, e que os detratores dessa perspectiva têm dificuldades em compreender que a luta palestina não busca a expulsão de judeus de Israel, mas a garantia de sua autodeterminação como povo e a superação das hierarquias coloniais.

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Em artigos recentes, João Pereira Coutinho e Hélio Schwartsman criticaram a teoria do colonialismo por povoamento ou assentamento. A partir do livro "On Settler Colonialism", de Adam Kirsch, os colunistas da Folha depreciam os teóricos desse conceito, os qualificando como ideólogos que promovem o antissemitismo e justificam a expulsão de judeus de Israel e da Palestina.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que essa não é uma moda acadêmica. Desde os anos 1960, intelectuais palestinos como Fayez Sayegh vêm buscando compreender a sua realidade a partir dessa perspectiva, sem deixar de levar em consideração outros casos, como os da Argélia, da Rodésia e da África do Sul.

Palestinos deslocados pela guerra caminham de volta para o norte da Faixa de Gaza - Rizek Abdeljawad/27.jan.25/Xinhua

Patrick Wolfe foi o principal rearticulador da teoria com a publicação, em 1999, de "Settler Colonialism and the Transformation of Anthropology". O pesquisador australiano define o colonialismo por povoamento como um processo de eliminação dos nativos. Os genocídios coloniais —dos povos indígenas das Américas ao perpetrado por Israel contra os palestinos— são casos exemplares.

A principal contribuição de Wolfe é apontar a permanência do colonialismo constituído pelo assentamento de estrangeiros. Em Israel, nos EUA, na Austrália e no Brasil, os colonos vieram e nunca foram embora.

Assim, essa perspectiva rompe com a naturalização das relações coloniais ainda vigentes e revela como o colonialismo não é algo do passado, mas um fenômeno do presente.

Os assentamentos judeus e a expulsão de palestinos por Israel não são excepcionais: a proposta do marco temporal, que almeja redefinir os parâmetros jurídicos de demarcação de terras indígenas no Brasil para facilitar empreendimentos extrativistas, e o projeto de construção de um oleoduto na reserva Standing Rock, do povo dakota, nos EUA, são exemplos de como os Estados colonos ainda agem para expropriar as terras indígenas.

Coutinho e Schwartsman reivindicam que a teoria não faz sentido, porque não seria possível apontar os verdadeiros povos originais de um pedaço de terra.

Schwartsman afirma que os judeus já "foram a população invadida" (pelos romanos) e que os palestinos seriam os invasores. Como já apontei em outro artigo na Ilustríssima, os detratores da teoria têm grande dificuldade em compreender o que o colonialismo e a indigeneidade são.

Em primeiro lugar, o colonialismo é um fenômeno característico da modernidade, iniciada com as grandes navegações europeias do século 15. O colonialismo significa a expansão da modernidade europeia e das relações capitalistas por meio da violência e da subjugação racista de povos inferiorizados nas atuais América, África, Ásia e Oceania. Portanto, não é um fenômeno milenar.

A indigeneidade tampouco significa a existência de um povo que seria o habitante original de um território na história, mas uma identidade forjada a partir do colonialismo moderno. São nativos aqueles que originalmente ocupavam um território reivindicado pelos colonizadores. Trata-se de uma identidade relacional, vinculada à existência do colonizador. O palestino só é nativo porque está sob o colonialismo israelense.

Logo, não faz sentido dizer que judeus foram colonizados por romanos ou que palestinos são invasores. O Império Romano pereceu muito antes do alvorecer da modernidade. Ademais, é bem provável que os palestinos de hoje sejam descendentes diretos dos judeus da era romana. Os judeus, inclusive, compõem o povo nativo daquela terra.

Contudo, o que faz de Israel um Estado colonial é a sua origem (e permanência) no projeto sionista europeu do final do século 19, que buscava a constituição de um Estado exclusivamente judaico na Palestina por meio do assentamento permanente de judeus estrangeiros (europeus, asiáticos e africanos) e da negação da autodeterminação dos demais povos que viviam ali.

Coutinho e Schwartsman ressaltam ainda os limites da solução do problema colonial. Segundo eles, a teoria reivindica a remoção dos colonizadores e a devolução das terras aos nativos, o que justificaria a expulsão dos judeus da Palestina.

Adam Kirsch aponta essa como a razão do antissemitismo contemporâneo, apesar de reconhecer que os autores que empregam esse conceito ao analisar o caso palestino, como Lorenzo Veracini e Rashid Khalidi, rejeitam a violência como solução e defendem a resolução de dois Estados ou de um único Estado democrático com a permanência dos judeus.

Há um caso excepcional na história de uma colônia de povoamento que obteve a libertação por meio da expulsão dos colonos: a Argélia francesa, em 1962. Essa não é, porém, a principal referência do Movimento Nacional Palestino, que se volta à África do Sul tanto para nomear a sua realidade —apartheid— quanto para lutar por sua liberdade —a campanha BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções). A solução sul-africana foi a reconciliação entre brancos e negros em um único Estado.

Nas Américas, onde todos os Estados modernos são fruto de processos de colonização por povoamento, somente dois, Bolívia e Equador, reconheceram juridicamente a soberania indígena. Ambos são Estados plurinacionais onde não há sobreposição única entre Estado —povo e nação—, mas a soberania das múltiplas nações do território —indígenas e colonas— é reconhecida.

Isso resulta na descentralização do poder colonial na gestão do Estado. A Constituição do Brasil de 1988 também pode ser entendida como uma descolonização parcial do país por ter reconhecido direitos específicos e estabelecido a autonomia dos povos indígenas.

Nenhum desses casos envolveu a expulsão dos colonizadores. Contudo, todos eles vêm se mostrando limitados em assegurar a autodeterminação dos nativos, porque as estruturas de séculos de colonialismo resistem aos esforços de descolonização.

De toda forma, compreender a realidade colonial é o primeiro passo para desestruturá-la e constituir uma nova relação social que supere a hierarquia colonial. A teoria do colonialismo por povoamento tem esse objetivo e deve ser entendida como um instrumento para a construção da liberdade e da justiça.

Essa perspectiva não questiona a existência dos judeus no território palestino, mas a violência colonial do Estado de Israel, que põe em risco a existência do povo palestino.

2 de agosto de 2024

Resposta: Esquerda sionista busca expiar responsabilidade no genocídio palestino

Pesquisador reduz descolonização a ato de generosidade de Israel e EUA e reproduz imagem do "bom palestino" moderado

Bruno Huberman
Doutor em relações internacionais pelo Programa San Tiago Dantas e professor da PUC-SP. Autor de "Colonização Neoliberal de Jerusalém"


[RESUMO] Para contornar a crise que enfrenta, a esquerda sionista, argumenta o autor, recorre à representação colonial que divide os palestinos em bons e maus e aponta o Hamas como demônio corresponsável pelo massacre promovido por Israel na Faixa de Gaza, com o objetivo de se eximir de sua responsabilidade.

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A expressão "shooting and crying" (atirando e chorando, em inglês) nasceu do remorso que os soldados israelenses expressam pela violência empregada contra os palestinos em uma tentativa de se eximir dos seus crimes. Fábio Zuker, em sua resposta ao meu artigo, mantém essa tradição que busca as mais diferentes formas de expiar a responsabilidade sionista pela colonização dos palestinos desde a Nakba.

A Nakba —catástrofe em árabe— foi a expulsão de 750 mil palestinos e a destruição de 500 vilarejos na fundação de Israel, em 1948. Por décadas, os palestinos afirmaram ter sido expulsos por milícias sionistas. A história de Israel, entretanto, dizia que os palestinos fugiram voluntariamente.

Homem palestino em meio a área destruída em Bani Suhayla, no sul da Faixa de Gaza, alvo de operação das Forças Armadas de Israel - Bashar Taleb - 30.jul.24/AFP

Nos anos 1980, a desclassificação de documentos israelenses provou a narrativa palestina. Como demonstrou Arlene Clemesha nesta Folha, os documentos oficiais comprovam que os palestinos foram vítimas de um processo planejado de limpeza étnica. A revelação do seu papel colonial na Nakba provocou uma grave crise de identidade entre os sionistas.

Contudo, historiadores israelenses, como Avi Shlaim, buscaram expiar a responsabilidade sionista na Nakba. Ele culpou os palestinos pela sua própria catástrofe por erros da sua liderança. A respeito dessa manipulação, o palestino Nur Masalha escreveu:

"Os palestinos deveriam compartilhar a culpa pela sua própria Nakba. Claro que Shlaim está certo em apontar a liderança estrategicamente desastrosa do Mufti, Haj al-Husseini. A própria ideia que alemães e judeus tenham uma culpa compartilhada pelo Holocausto judeu seria corretamente considerada uma ofensa profunda. Quando o assunto é [...] a limpeza étnica dos palestinos, padrões éticos completamente diferentes são aplicados."

Como nota Masalha, responsabilizar qualquer judeu pelo Holocausto seria um absurdo, mas o mesmo padrão ético não é conferido aos palestinos por causa do racismo colonial israelense. Historicamente, os colonizadores representam os colonizados como bons e maus, demonstra Arun Kundnani, para justificar medidas violentas contra os "maus".

Se no passado foi preciso inventar que Al-Husseini teria convencido Hitler do extermínio dos judeus, como afirmou o premiê Binyamin Netanyahu, hoje esse "mau" palestino é o Hamas, também representado como nazista por Netanyahu.

Diferente das mentiras frágeis da direita, a esquerda sionista age de forma sofisticada. Para eles, as milícias de direita Irgun e Stern foram responsáveis por massacres e expulsões dos palestinos na Nakba. O objetivo é eximir o establishment da esquerda sionista de responsabilidade pela limpeza étnica.

No processo de paz dos anos 1990, a esquerda sionista recriou a narrativa de culpar a extrema direita israelense e os palestinos, agora na figura do Hamas, pelo suposto fracasso da criação do Estado palestino. Assim, foi desresponsabilizado o primeiro-ministro trabalhista Yitzhak Rabin, que afirmou, em discurso no Parlamento israelense em 1995, que a "entidade" palestina seria "menos que um Estado".

Hoje, a esquerda sionista repete a fórmula ao colocar Netanyahu e os palestinos, novamente por meio do Hamas, como "corresponsáveis" pelo genocídio, segundo Zuker. Em sua tréplica, ele reafirma a importância de "não confundir os palestinos com o Hamas" para imputar o extermínio em Gaza às vitimas.

Para Zuker, a única saída que os palestinos têm é aguardar a pressão internacional e ver quanta terra Israel estaria disposto a "ceder" pela paz. O autor diminui a descolonização a um ato de generosidade do colonizador e constrói o "bom" palestino como o moderado que espera Israel e EUA decidirem quando será livre. Assim, apaga a agência do palestino que luta por libertação, o que não é o que defendia Edward Said, famoso por jogar pedras contra Israel.

Anular a agência do colonizado é estratégia paternalista das esquerdas coloniais. Os intelectuais anticoloniais Frantz Fanon e Aimé Césaire romperam com a esquerda francesa por causa do apoio à repressão, pelo Estado francês, da luta de libertação nacional argelina sob a justificativa de que a resistência da Frente de Libertação Nacional seria excessivamente violenta.

Tal qual os franceses, a esquerda sionista rejeita o palestino real para justificar a violência colonial. Zuker se coloca como defensor da causa palestina, mas copia a extrema direita ao reduzir os palestinos a manipulados pelo Hamas, ignorando que Israel é o carcereiro da prisão a céu aberto chamada Gaza.

Ele afirma ainda que aqueles que apoiam a violência do ataque palestino devem "aceita[r] que esse será o caminho da resposta". Segundo pesquisa, 61% dos palestinos desejam que o Hamas governe Gaza depois da guerra. Isso forçou o Fatah, o "bom" palestino que administra a Cisjordânia a mando de Israel, a fazer um acordo de "unidade nacional" com o Hamas. Todos seriam agora "maus" palestinos que devem ter a sua morte justificada?

Sem dúvida, é preciso condenar os crimes ocorridos em 7 de outubro. Contudo, a representação racista do Hamas como demônio "corresponsável" pelo genocídio serve para desumanizar e dividir os palestinos, justificar o extermínio promovido por Israel e eximir a esquerda sionista da sua responsabilidade.

Crise da esquerda sionista

O genocídio em Gaza aprofundou a crise da esquerda sionista. Em Israel, onde estão alijados do poder desde 2001, os partidos Trabalhista e Meretz viram seus votos cair continuamente. Isso forçou a fusão entre os partidos para o próximo pleito.

Além disso, há o fortalecimento global da extrema direita, como visto na filiação de judeus brasileiros ao bolsonarismo; o crescimento de movimentos judaicos antissionistas, que protagonizaram a luta contra o genocídio nos EUA; e o abandono do sionismo pelas esquerdas, como demonstrado no apoio ao rompimento das relações diplomáticas do Brasil com Israel.

Os textos de Zuker fazem parte da luta da esquerda sionista por sobrevivência. A sua reivindicação do sionismo como movimento anticolonial e dos judeus como indígenas é uma estratégia da esquerda sionista em todo o mundo para criar um mito nativista para enfrentar a esquerda radical e a extrema direita.

O projeto da direita, de anexação da Cisjordânia e de apartheid, e da esquerda, de Estado único democrático, ameaçam a visão da esquerda sionista, que concebe Israel como Estado democrático de maioria judaica. Cresce a rejeição à resolução de dois Estados.

A esquerda sionista deseja salvar a Israel que eles imaginam ter existido até 1967. Para eles, a ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza desvirtuou o sionismo. A defesa do fim da ocupação busca salvar o que está na raiz da Nakba: a maioria étnica judaica obtida com a expulsão de 750 mil palestinos.

Contudo, mesmo sem a ocupação, Israel não é uma democracia liberal: a minoria palestina é discriminada por mais de 40 leis e sistematicamente expulsa de suas terras e não há casamento civil, apenas religioso. Etnocracias, aponta o israelense Oren Yiftachel, são, por definição, antidemocráticas.

Para Fanon, a ideia de retorno na história é reacionária pois parte de uma representação idealizada do passado. A tentativa de reconstrução resulta na violência contra grupos que não integram essa imagem.

A exclusão dos não judeus, os palestinos, não é um desvio do sionismo ou algo exclusivo da extrema direita. É orgânico do esforço sionista de restaurar Israel.

A ancestralidade é fundamental como horizonte histórico para construir um futuro sem opressões, não para reconstruir o passado. Um futuro de paz envolve o abandono de projetos mitológicos, seja o da Terra de Israel bíblica, do Estado de Israel pré-1967 ou da Palestina pré-1948. Por um futuro em que todos, do rio ao mar, sejam iguais e livres sob um regime democrático, laico e plurinacional.

14 de julho de 2024

Esquerda sionista ataca luta palestina por descolonização

Pesquisador reproduz ideologia colonialista de Israel por meio de falsa equivalência entre dois extremos "nativistas"

Bruno Huberman
Doutor em relações internacionais pelo Programa San Tiago Dantas e professor da PUC-SP. Autor de "Colonização Neoliberal de Jerusalém"


[RESUMO] Autor sustenta que artigo publicado na Folha repete o discurso de defensores de esquerda de Israel ao enquadrar a devastação atual de Gaza como resultado de um conflito entre dois grupos extremistas nativistas, o governo Netanyahu e o Hamas, e ignora que o colonialismo por povoamento estrutura o Estado de Israel desde a sua fundação e produz o apagamento de palestinos.


A esquerda sionista, isto é, a parcela à esquerda dos defensores de Israel, tem um objetivo neste momento: construir o discurso de que o horror visto em Gaza é produto de um conflito entre dois "demônios".

Tanto o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, quanto o grupo palestino Hamas seriam fundamentalistas de extrema direita que teriam originado o ciclo interminável de ações violentas. O ataque palestino de 7 de outubro e os bombardeios israelenses seriam a sua consequência trágica.

A aldeia Al-Mughayyer, na Cisjordânia, vista de janela quebrada em ataque de colonos israelenses - Mohamad Torokman - 17.abr.24/Reuters

Esse é o argumento do artigo "Extrema direita usa descolonização para projetos reacionários", de Fábio Zuker, publicado nesta Folha. O autor se baseia em um ensaio de Miri Davidson para sustentar que a extrema direita tem reivindicado um falso discurso de descolonização para justificar medidas violentas. A base dessa violência seriam os nacionalismos em que predomina uma visão "nativista", a ideia de que um determinado grupo social seria o verdadeiro nativo da terra e o detentor do Estado.

Zuker deturpa a argumentação de Davidson para incluir Israel e a Palestina nesse tipo de narrativa e, assim, deslegitimar a luta palestina por descolonização por meio de uma falsa equivalência com a violência genocida de Israel. O autor chega a afirmar que as vítimas, os palestinos, "são corresponsáveis nesse genocídio".

O efeito dessa narrativa é a despolitização da resistência anticolonial palestina. Zuker apaga a realidade colonial na Palestina, que está na raiz da opressão, para construir a representação de um conflito entre moderados e extremistas. "Ninguém é nativo do território entre o rio [Jordão] e o mar [Mediterrâneo]", afirma.

O objetivo é justificar o papel da esquerda sionista como guardiã da comunidade judaica contra o suposto extremismo da esquerda global que apoia a resistência palestina. A esquerda sionista busca se colocar ao lado dos "palestinos moderados" como vítimas dos "extremismos" e, portanto, como aqueles que possuem uma posição moral privilegiada para resolver a questão palestina exclusivamente por meio do diálogo.

Essa ideologia ignora que, devido à assimetria de poder, nenhum processo de descolonização teve seu término por meio do diálogo, mas através de disputas que envolveram sempre o emprego, por parte dos colonizados, das mais diferentes formas de resistência reconhecidas como legítimas pelo direito internacional.

NATIVISMO, COLONIALISMO E GENOCÍDIO

Daniel Denvir aponta, em "All-American Nativism", que o nativismo dos EUA é fundamentado em uma história de colonização por povoamento de brancos europeus em terras roubadas de indígenas, vítimas de genocídio, e da escravização de africanos. Isso fez do grupo formado de brancos, anglo-saxões e protestantes os pretensamente americanos verdadeiros.

Se, no passado, certos brancos também foram vítimas de racismo nativista, como irlandeses e judeus, atualmente todos foram incluídos na branquitude americana. O nativismo dos EUA, assim como o da extrema direita de países europeus, se volta agora contra imigrantes muçulmanos e outras pessoas "marrons".

O mesmo vale para Israel, país fundado por meio da colonização por povoamento de judeus europeus, africanos e asiáticos. Esse fato, entretanto, é ignorado por Zuker para construir o segundo ponto da sua narrativa: o sionismo seria um nacionalismo anticolonial, uma reação à opressão promovida por otomanos, britânicos e árabes.

Isso nega como o sionismo, uma ideologia surgida entre judeus europeus com o objetivo declarado de colonizar a Palestina, prosperou graças ao imperialismo europeu. O historiador judeu Maxime Rodinson dizia que, se o sionismo fosse realmente um movimento de libertação nacional, os sionistas teriam lutado ao lado dos palestinos contra o mandato britânico, não ao lado dos britânicos na repressão da revolta palestina de 1936-39.

Embora os judeus também fossem parcela da população nativa na Palestina, o sionismo os transformou em colonos. O sionismo racializou o "novo homem judeu" em oposição aos árabes nativos e dotou os identificados como judeus de privilégios materiais. Por outro lado, os palestinos foram reduzidos a invasores muçulmanos, tal qual sob o nativismo ocidental.

O problema de incluir os palestinos nesse balaio, como Zuker faz, é que eles estão sob um processo colonial real, não imaginário. São nativos, não nativistas.

A natividade é uma identidade relacional, constituída a partir do processo colonial. O que faz dos palestinos nativos não é sua relação com o território ou seu pertencimento étnico por si só, mas sua posição de subjugação na situação colonial.

Foi o colonialismo sionista que fez dos palestinos nativos, assim como foi o colonialismo americano que fez do povo lakota, por exemplo, indígena. Há, aliás, uma crescente solidariedade de povos indígenas com os palestinos porque eles se veem na mesma luta anticolonial contra o genocídio.

O genocídio é um fenômeno constituinte do colonialismo por povoamento, das Américas à Oceania. O pesquisador australiano Patrick Wolfe argumenta que o colonialismo por povoamento se baseia em uma lógica de eliminação, já que tem como objetivo apagar os nativos tanto material quanto simbolicamente por meio do apagamento identitário, da expulsão e do genocídio.

Os discursos de líderes israelenses que propagam que os palestinos não existem são, portanto, uma forma de genocídio complementar ao extermínio físico. A devastação de Gaza é a etapa atual do processo empreendido desde 1948 por governos israelenses —de esquerda e de direita— para apagar os palestinos. Não por acaso, o Estado de Israel foi fundado por meio da Nakba, o processo de expulsão de 750 mil palestinos e de destruição de 500 vilarejos.

Eliminar os indígenas permite aos colonos se tornar nativos. Eis o grande artifício que Zuker busca para criticar a extrema direita, que o autor, no entanto, acaba empregando em relação aos palestinos. Apagar a Nakba faz Zuker reproduzir a ideologia colonialista de Israel, que, paradoxalmente, ele diz combater. O colonialismo israelense não começou com as ocupações de 1967: é parte estruturante de Israel.

A resistência palestina e a sua reivindicação de indigeneidade, contudo, ameaçam o discurso nativista e a supremacia racial judaica. Por isso, é demonizada por sionistas, à esquerda e à direita.

21 de maio de 2021

O colonialismo no centro da questão Israel-Palestina

Ignorar a relação colonial impossibilita encontrar meios de superá-la

Bruno Huberman e Isabela Agostinelli



Alguns israelenses, como o cônsul-geral de Israel em São Paulo, Alon Lavi, costumam justificar a violência nos ataques contra os palestinos sob a garantia do direito de Israel existir. Contudo, o que Israel exerce é, na realidade, o poder de existir na forma de tanques, bombas e aviões que submetem os palestinos à existência de um Estado de apartheid em suas terras. Um poder colonial profundamente assimétrico, que tem feito do conflito um massacre.

Diferentemente do que reivindica Daniel Douek, não existe simetria por trás dessa violência. De um lado, há um nacionalismo colonizador, o sionismo, e de outro um nacionalismo anticolonial, o palestino. Para os palestinos, a relação colonial em termos binários como colonizador e colonizado, opressor e oprimido, não tem nada de imaginário: é como a ordenação das populações naquele território foi originalmente produzida pelos imperativos racistas dos colonizadores sionistas e que continua a fundamentar as suas relações materiais. Seja em Israel ou nos territórios ocupados.

Como lembra o intelectual judeu tunisiano Albert Memmi: “Aos olhos dos colonizados, todos os europeus nas colônias são colonizadores de fato, e, queiram ou não, são colonizadores de alguma forma”.

O confinamento dos palestinos na Faixa de Gaza sob o governo do Hamas foi uma decisão imposta, em parte, pela força ocupante. O Hamas foi criado com a ajuda do serviço secreto israelense para enfraquecer os movimentos seculares palestinos e continua a servir de bode expiatório para justificar a sua repressão e divisão. O seu confinamento em Gaza faz parte da tradicional estratégia colonial de dividir e governar, que resultou na fragmentação socioespacial dos palestinos em vários bantustões sob diferentes formas de governo.

Em 2005, em meio à Segunda Intifada, Israel decidiu “evacuar” a Faixa de Gaza por meio da retirada dos assentamentos judeus. O resultado, porém, não foi o fim da ocupação, mas a sua perpetuação por outros meios. Israel ergueu uma cerca em torno do território e continuou a controlar tudo o que entra e sai: pessoas, mercadorias, alimentos, ajuda internacional etc.

Israel ainda domina a fronteira marítima de Gaza, impedindo que pescadores palestinos naveguem até uma certa distância da costa, e também todo o espaço aéreo. O resultado é o isolamento completo de Gaza.

O território possui uma das maiores densidades demográficas do mundo (5.693 pessoas por km2) e carece de recursos vitais, como água potável e eletricidade. O desenvolvimento da economia local colocou mais de 1 milhão de palestinos (57% da população local) abaixo da linha de pobreza em menos de dez anos, tornando Gaza "invivivel".

O retrato é de uma catástrofe propositadamente produzida por Israel. Logo, argumentar que a violência começa com os ataques de foguetes do Hamas é equivocado. Isso descontextualiza toda a história de violências que Israel conduz na Palestina.

O “direito de existir” dos israelenses em nenhum momento é ameaçado pela resistência palestina, mas o contrário é verdadeiro: a existência nativa tem sido diminuída por meio de massacres, como o de Gaza e o de Deir Yassin, ocorrido em 1948, quando mais de cem civis palestinos foram mortos na Nakba; e pela expulsão forçada de famílias palestinas de suas casas, como ocorrido no bairro Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental —o estopim do atual ciclo de violência.

Com ou sem Hamas, toda forma de resistência palestina sempre foi entendida como uma ameaça pelos israelenses e punida com violência. A “democracia” israelense só é possível sobre um regime de apartheid que impede os palestinos de reivindicar justiça sobre as terras e vidas roubadas. O principal obstáculo para a paz não é o Hamas, mas o colonialismo de Israel. “Palestina Livre” sempre significou uma terra livre de opressão e colonização, nada menos e nada mais.

Sobre os autores

Bruno Huberman

Professor do curso de relações internacionais da PUC-SP e vice-coordenador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (Geci/PUC-SP)

Isabela Agostinelli

Doutoranda em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisadora do Geci/PUC-SP

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