Isabela Nogueira
Professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Os contrastes são gritantes. De um lado, a transição da União Soviética para a Rússia foi guiada pelo receituário da chamada terapia de choque —rápida desregulamentação de preços, liberalização de capitais e privatização em massa—, levando a uma hecatombe econômica de curto prazo e a uma desindustrialização continuada no longo prazo.
De outro, a China comunista fez sua transição para uma economia de mercado de maneira controlada e gradual, com o Estado se mantendo firme nos setores estratégicos da economia. Os resultados, enfim, ninguém precisa dizer o que a China representa hoje para a economia mundial.
Esse é o pano de fundo da pergunta que a economista alemã Isabella Weber, da Universidade de Massachusetts em Amherst, faz em "Como a China Escapou da Terapia de Choque", uma obra premiada que acaba de ser lançada em português pela Boitempo.
Líderes chineses participam do mais recente Congresso Nacional do Partido Comunista, em Pequim - Nicolas Asfouri - 23.out.17/AFP |
Engana-se quem pensa que este é um livro apenas sobre os anos 1980. Trata-se de uma obra sobre as bases intelectuais em torno da formulação de políticas econômicas na China. E com desdobramentos que tornaram Weber uma das economistas mais importantes no debate atual sobre inflação no mundo.
Ao contrário do mito de que a China seria um Estado monolítico, um ente racional e guiado pelo Partido Comunista de maneira unitária, Weber destrincha os debates ferozes entre formuladores de políticas públicas sobre como conduzir a transição chinesa rumo a uma economia de mercado. É uma rigorosa pesquisa empírica, baseada em 51 entrevistas com fontes chinesas (e algumas internacionais) e fontes primárias não publicadas.
Weber mostra como o pensamento neoliberal penetrou na China ao longo dos anos 1980 e, em dois momentos, quase venceu a luta política dentro do Partido Comunista por reformas tipo "big bang". Essa visão defendia que a liberalização de preços deveria ser rápida, causando uma dor de curto prazo e evitando uma dor de longo prazo, e teria que ser acompanhada de forte ajuste fiscal e aperto monetário para evitar uma espiral inflacionária.
Compunham esse grupo os economistas de inspiração neoclássica, muitos baseados nas teorias de "rent-seeking", que argumentavam que o sistema de controle de preços em vigor seria uma distorção que deveria ser abolida rapidamente. Eles se baseavam no sucesso internacional de Milton Friedman e nos modelos matemáticos em busca de preços de equilíbrio.
O próprio Deng Xiaoping, principal líder no período, teria se transformado em um defensor da terapia de choque durante uma curta fase em 1988. Isso levou a uma disparada inflacionária e as políticas de liberalização foram rapidamente revertidas, mas o embrião para a revolta social que eclodiu em 1989 estava implantado.
Do outro lado da disputa política estava um grupo de burocratas que defendia o que a autora chama de "gradualismo experimental". Em vez de um modelo teoricamente derivado, o novo sistema deveria ser induzido por meio da experimentação e da pesquisa empírica.
Essa é a essência do pragmatismo chinês: no caso da reforma, só poderiam ser liberalizadas as partes da economia que não fossem essenciais para o controle de preços. O objetivo seria ampliar os mercados gradualmente, pelas margens, sem abrir mão do controle pelo Estado de tudo que fosse considerado essencial.
Em resumo, o que esse grupo defendia era que o excesso de demanda agregada não deveria ser resolvido por meio da sua supressão (austeridade fiscal e aperto monetário), mas por meio de um aumento expressivo da oferta. A escassez deveria ser gerida em nível setorial, mantendo a gestão estatal em energia e commodities essenciais. E o foco seria industrializar rapidamente o país.
Qual a base intelectual desse grupo? A resposta, segundo Weber, está na história e no método.
A autora mostra como os debates sobre temas básicos da economia política são parte da civilização chinesa há 2.000 anos. Ela revê textos antigos como o "Guanzi" e argumenta que a responsabilidade do Estado por disciplinar mercados e estabilizar os preços dos grãos para evitar convulsão social é uma preocupação constante dos tempos imperais.
Do ponto de vista do método, em todos esses textos ela encontra a necessidade de estudar relações econômicas de maneira concreta e adaptar as políticas públicas de maneira experimental. O pragmatismo seria, enfim, congruente com uma longa linha de pensamento tradicional.
A autora ressalta que não está buscando uma explicação sinocêntrica baseada exclusivamente na experiência civilizacional. Burocratas dos anos 1980 também se debruçaram sobre vários outros casos, inclusive Brasil e América Latina.
Lições essenciais teriam vindo dos Estados Unidos e das experiências de estabilização de preços em países ocidentais no imediato pós-Segunda Guerra. E da própria experiência de sucesso do Partido Comunista no controle de preços assim que tomaram o poder, em 1949.
Weber entrega uma narrativa institucionalista sobre o sucesso do modelo econômico chinês que não incorre no velho erro de pensar o Estado enquanto um monolito.
Ela explicita a luta política da burocracia, reconstruindo o papel central de figuras como Zhao Ziyang, ex-secretário geral do Partido que morreu em prisão domiciliar após tentativa de evitar o Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. Por conta da censura à história de Zhao, o livro está, ironicamente, tendo dificuldades para ser publicado na China continental.
Daí deriva o principal limite da obra de Weber. O Estado chinês não chega a ser propriamente caracterizado e é retratado como insulado das forças sociais, como no velho institucionalismo. As relações sociais imbricadas com o poder político surgem como sombras difusas na narrativa.
Weber remete a um Estado sem forma social, com uma burocracia que aparece de maneira independente das forças produtivas. Tudo em uma sociedade que está transformando suas relações de produção e de propriedade e criando novos capitalistas na velocidade da luz.
COMO A CHINA ESCAPOU DA TERAPIA DE CHOQUE
Preço R$ 97 (472 págs.) Autoria Isabella M. Weber Editora Boitempo Tradução Diogo Faia Fagundes
Ao contrário do mito de que a China seria um Estado monolítico, um ente racional e guiado pelo Partido Comunista de maneira unitária, Weber destrincha os debates ferozes entre formuladores de políticas públicas sobre como conduzir a transição chinesa rumo a uma economia de mercado. É uma rigorosa pesquisa empírica, baseada em 51 entrevistas com fontes chinesas (e algumas internacionais) e fontes primárias não publicadas.
Weber mostra como o pensamento neoliberal penetrou na China ao longo dos anos 1980 e, em dois momentos, quase venceu a luta política dentro do Partido Comunista por reformas tipo "big bang". Essa visão defendia que a liberalização de preços deveria ser rápida, causando uma dor de curto prazo e evitando uma dor de longo prazo, e teria que ser acompanhada de forte ajuste fiscal e aperto monetário para evitar uma espiral inflacionária.
Compunham esse grupo os economistas de inspiração neoclássica, muitos baseados nas teorias de "rent-seeking", que argumentavam que o sistema de controle de preços em vigor seria uma distorção que deveria ser abolida rapidamente. Eles se baseavam no sucesso internacional de Milton Friedman e nos modelos matemáticos em busca de preços de equilíbrio.
O próprio Deng Xiaoping, principal líder no período, teria se transformado em um defensor da terapia de choque durante uma curta fase em 1988. Isso levou a uma disparada inflacionária e as políticas de liberalização foram rapidamente revertidas, mas o embrião para a revolta social que eclodiu em 1989 estava implantado.
Do outro lado da disputa política estava um grupo de burocratas que defendia o que a autora chama de "gradualismo experimental". Em vez de um modelo teoricamente derivado, o novo sistema deveria ser induzido por meio da experimentação e da pesquisa empírica.
Essa é a essência do pragmatismo chinês: no caso da reforma, só poderiam ser liberalizadas as partes da economia que não fossem essenciais para o controle de preços. O objetivo seria ampliar os mercados gradualmente, pelas margens, sem abrir mão do controle pelo Estado de tudo que fosse considerado essencial.
Em resumo, o que esse grupo defendia era que o excesso de demanda agregada não deveria ser resolvido por meio da sua supressão (austeridade fiscal e aperto monetário), mas por meio de um aumento expressivo da oferta. A escassez deveria ser gerida em nível setorial, mantendo a gestão estatal em energia e commodities essenciais. E o foco seria industrializar rapidamente o país.
Qual a base intelectual desse grupo? A resposta, segundo Weber, está na história e no método.
A autora mostra como os debates sobre temas básicos da economia política são parte da civilização chinesa há 2.000 anos. Ela revê textos antigos como o "Guanzi" e argumenta que a responsabilidade do Estado por disciplinar mercados e estabilizar os preços dos grãos para evitar convulsão social é uma preocupação constante dos tempos imperais.
Do ponto de vista do método, em todos esses textos ela encontra a necessidade de estudar relações econômicas de maneira concreta e adaptar as políticas públicas de maneira experimental. O pragmatismo seria, enfim, congruente com uma longa linha de pensamento tradicional.
A autora ressalta que não está buscando uma explicação sinocêntrica baseada exclusivamente na experiência civilizacional. Burocratas dos anos 1980 também se debruçaram sobre vários outros casos, inclusive Brasil e América Latina.
Lições essenciais teriam vindo dos Estados Unidos e das experiências de estabilização de preços em países ocidentais no imediato pós-Segunda Guerra. E da própria experiência de sucesso do Partido Comunista no controle de preços assim que tomaram o poder, em 1949.
Weber entrega uma narrativa institucionalista sobre o sucesso do modelo econômico chinês que não incorre no velho erro de pensar o Estado enquanto um monolito.
Ela explicita a luta política da burocracia, reconstruindo o papel central de figuras como Zhao Ziyang, ex-secretário geral do Partido que morreu em prisão domiciliar após tentativa de evitar o Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. Por conta da censura à história de Zhao, o livro está, ironicamente, tendo dificuldades para ser publicado na China continental.
Daí deriva o principal limite da obra de Weber. O Estado chinês não chega a ser propriamente caracterizado e é retratado como insulado das forças sociais, como no velho institucionalismo. As relações sociais imbricadas com o poder político surgem como sombras difusas na narrativa.
Weber remete a um Estado sem forma social, com uma burocracia que aparece de maneira independente das forças produtivas. Tudo em uma sociedade que está transformando suas relações de produção e de propriedade e criando novos capitalistas na velocidade da luz.
COMO A CHINA ESCAPOU DA TERAPIA DE CHOQUE
Preço R$ 97 (472 págs.) Autoria Isabella M. Weber Editora Boitempo Tradução Diogo Faia Fagundes
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