14 de julho de 2023

A batalha pela Colômbia

O primeiro ano de governo de Gustavo Petro.

Nick Macwilliam



Tradução / Em Cali, a memória reveste as paredes. A terceira maior cidade da Colômbia é adornada com murais que retratam o estallido social : os imensos protestos que abalaram a Colômbia de abril a junho de 2021, provocados por condições sociais dramáticas e reprimidos com selvageria pelo Estado. Pinturas de cinco metros de jovens mortos pela polícia dominam avenidas congestionadas, sinalizando a recusa dos moradores a esquecer os crimes cometidos durante o regime autoritário de Iván Duque. Este ano, no segundo aniversário do levante, os puntos de resistencia da cidade foram reinventados. Surgiram novas obras de arte de rua, enquanto refeições comunitárias e apresentações musicais reuniram as pessoas afetadas: os pais de ativistas mortos na repressão, os manifestantes cujos ferimentos que mudaram suas vidas. “A polícia não gostava que nos encontrássemos assim antes”, disse um grafiteiro, com uma lata de spray na mão. “Mas desde a eleição, eles tendem a nos deixar em paz.”

Em junho de 2022, a revolta contra Duque culminou na eleição do primeiro governo progressista da Colômbia, chefiado pelo presidente Gustavo Petro e pela vice-presidente Francia Márquez. A última vez que um esquerdista havia disputado a presidência com chances reais fora em 1948, quando a provável vitória de Jorge Eliécer Gaitán foi frustrada por seu assassinato. Desde então, as populações camponesas e indígenas do país foram excluídas de suas instituições políticas – dominadas pelos interesses do agronegócio e do extrativismo, sustentados por Washington com a ajuda de grupos paramilitares de direita.

O PIB colombiano está em torno da média latino-americana, mas os níveis de desigualdade situam-se entre os mais altos da região. Durante décadas, populações camponesas, indígenas e afro-colombianas foram deslocadas à força para facilitar o aumento da concentração de terras. À medida que a economia extrativa espalhou-se, a partir da década de 1980 – junto com a pecuária, a agricultura intensiva e a produção de cocaína –, os paramilitares “limparam” muitas áreas rurais de seus habitantes. Sob a presidência de direita de Álvaro Uribe (2002-10), a oligarquia latifundiária, que representa apenas uma pequena fração do total de proprietários, aumentou sua participação de 47% das terras agrícolas para 68%, enquanto 80% dos camponeses viviam em pobreza. A classe trabalhadora urbana sofria com baixos salários e instabilidade no emprego. Sua capacidade de se organizar por melhores condições foi fatalmente enfraquecida pela violência sistemática contra líderes sindicais e ativistas comunitários. Durante o mandato de Duque, 42% da população empobreceu, devido a uma combinação de políticas hiperneoliberais e má gestão da pandemia.

Essas assimetrias são, em parte, resultado do sistema político viciado da Colômbia. Em 1958, os dois partidos da elite governante, o Liberal e o Conservador, acordaram que o poder seria rotacionado entre eles como parte de um arranjo de Frente Nacional. Este duopólio antidemocrático foi contestado pelos movimentos guerrilheiros surgidos na esteira da Revolução Cubana: as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o Exército de Libertação Nacional (ELN), que pretendiam defender os camponeses contra a violência do Estado e estabelecer um novo arranjo nacional baseado na participação popular e no antiimperialismo. As FARC, em particular, encontraram apoio entre os pobres do campo, pois os guerrilheiros forneceram infraestrutura, serviços e segurança em territórios abandonados pelo Estado. Depois de meio século de luta, em 2016 o grupo acabou assinando um acordo de paz com o governo de Juan Manuel Santos. No entanto, uma série de condutas do Estado fez com que o conflito persistisse em regiões anteriormente sob o controle das FARC. Quando Duque chegou ao poder, dois anos depois, prometeu rasgar os acordos e adotar uma linha dura contra as forças guerrilheiras. Seu governo privou o acordo de recursos, recusando-se a implementar seus mecanismos de segurança ou programas de desenvolvimento rural. Os assassinatos de ativistas sociais e ex-guerrilheiros dispararam. Manifestantes que pediam paz foram massacrados pelo Estado.

O “governo da mudança” do Petro – composto por um amplo espectro de partidos do centro à esquerda, unidos no chamado Pacto Histórico – foi eleito com o compromisso de enfrentar essas crises sociais e políticas endêmicas. Petro conquistou 50% dos votos em 2022, graças a índices de comparecimento às urnas extraordinariamente altas nos regiões negligenciadas do Pacífico, Caribe e Amazônia. Seu oponente populista de direita, Rodolfo Hernández, obteve 47%. O novo presidente prometeu atender às necessidades dos marginalizados: comunidades rurais, minorias étnicas, jovens, trabalhadores de baixa renda. Isso seria alcançado revivendo o processo de paz e estimulando o desenvolvimento econômico: implementando o acordo de 2016 e, ao mesmo tempo, decretando uma transição verde. Do ponto de vista legislativo, o governo tem até agora como alvo três áreas principais – Trabalho, Saúde e Previdência. Ao mesmo tempo, inicia diálogo com os diversos grupos armados do país.

Existem limites claros para o que Petro pode alcançar. Ele está constitucionalmente limitado a um único mandato de quatro anos e enfrenta forte oposição do establishment. A falta de maioria no Congresso comprometeu sua capacidade de aprovar reformas significativas. Uma aliança inicial entre o governo e os partidos da elite tradicional – Liberais, Conservadores e Partido da U (liberal, dominado pelo ex-presidente Juan Manuel dos Santos) – rompeu-se. Já o Centro Democrático (CD), uribista, e a Liga Anticorrupção de Rodolfo Hernández tentaram ao máximo obstruir as políticas sociais. O governo está sob constante ataque da mídia corporativa, liderada pela revista neoconservadora Semana, de propriedade do conglomerado financeiro Gilinski. E Eduardo Zapateiro, ex-general do exército colombiano, denunciou Petro vigorosamente, chegando a rotulá-lo de “criminoso” durante a campanha eleitoral. Embora Zapateiro tenha renunciado logo após as eleições de 2022 e o Petro tenha removido rapidamente quinze generais ligados a violações de direitos humanos, ainda há incerteza sobre a relação entre o exército e o executivo. Dadas essas restrições, como devemos avaliar as tentativas de Petro de remodelar a Colômbia, um ano após sua posse?

Os direitos dos trabalhadores colombianos estão entre os mais frágeis do mundo, após anos de legislação antissindical e os assassinatos de milhares de sindicalistas, desde a década de 1970, pelas forças estatais e seus representantes paramilitares. A nomeação por Petro de uma sindicalista experiente, Gloria Ramírez, como ministra do Trabalho foi um passo importante para corrigir esse histórico manchado de sangue. A principal legislação trabalhista do governo, apresentada ao Congresso no início deste ano, aumentaria os valores pagos por horas extras e trabalho noturno, reprimiria a terceirização e fortaleceria os contratos de trabalho. Também imporia uma estrutura regulatória ao vasto setor informal, que representa pelo menos metade da força de trabalho e é especialmente vulnerável em tempos de crise. Em 20 de junho, essas reformas foram arquivadas por falta de quórum – um resultado comemorado pelo CD uribista e pelo partido de centro-direita Mudança Radical. Os opositores proclamam que a legislação está morta. O ministério do Trabalho insiste que ela pode ser revivida, embora ainda não tenha conseguido reunir os votos necessários.

A reforma da saúde de Petro se saiu um pouco melhor. A reestruturação da oferta de saúde pública era necessária e urgente após a pandemia, pois muitas equipes haviam sido desfalcadas por mortes ou demissões em massa, devido a condições perigosas. O subinvestimento crônico significa que crianças em regiões periféricas como La Guajira e Chocó ainda morrem de desnutrição e doenças evitáveis. Muitos colombianos pobres, principalmente em áreas rurais, lutam para ter acesso até mesmo a cuidados rudimentares.

O novo projeto de lei do governo consagra a saúde como um direito universal, afirmando que a posição de classe não deve determinar as chances de sobrevivência. Além de melhorar a remuneração do pessoal, visa reduzir as disparidades no acesso à saúde entre as populações urbanas e rurais e aumentar os exames preventivos. Os partidos conservadores que fazem parte da aliança parlamentar de Petro foram unânimes em se opor a essa reforma. Em resposta, o presidente desfez a coalizão de governo e removeu os principais ministros que se opuseram aos planos de eliminar o papel dos intermediários privados. Desse modo, ele conseguiu recolocar a legislação em debate. Mas o colapso do acordo no Congresso minou suas tentativas de projetar uma imagem de unidade e pode dificultar a aprovação, pelo Parlamento, de outras leis, mais adiante.

A lei previdenciária de Petro passou em primeira instância no Congresso em 14 de junho, com mais duas votações agendadas, em meio à oposição intransigente do CD e dos conservadores. Sob o sistema atual, o emprego informal e a baixa renda significam que apenas um quarto dos trabalhadores colombianos qualificam-se para receber aposentadoria. Muitos são forçados a passar por dificuldades econômicas ou dependência familiar. As novas propostas garantiriam uma aposentadoria mínima a todos, reduziriam a diferença entre os que ganham menos e os que ganham mais e veriam os fundos de pensão privados transferidos para o Colpensiones, sistema estatal. O governo projeta que tirará três milhões de idosos da pobreza. Os opositores afirmam que as medidas penalizariam os trabalhadores com salários mais altos.

Até agora, a tentativa de Petro de acabar com o conflito armado e reviver o acordo com as FARC – conhecida como a estratégia de “Paz Total” – teve resultados mistos. Consciente de que os acordos de 2016 foram prejudicados pela hostilidade da direita, o presidente tentou enquadrar o processo de paz como um projeto nacional, em vez de uma trégua bilateral. Nomeou oponentes políticos como José Félix Lafaurie, presidente da ultraconservadora associação de fazendeiros Fedegan, para as equipes de negociação. No entanto, como os governos anteriores falharam em implementar o acordo de paz, áreas antes controladas por guerrilheiros viram a proliferação de grupos armados menores competindo para ocupar o vácuo de poder. Como resultado, o conflito continua intenso em Cauca, Nariño e Putumayo, no sudoeste; Antioquia, Córdoba e Chocó no noroeste; e ao longo da fronteira venezuelana em Arauca e Norte de Santander.

O ex-presidente Duque exacerbou esses problemas aumentando a militarização, lançando bombardeios que mataram civis e dando aos soldados carta branca para cometer abusos. Isso não afetou seriamente as capacidades dos grupos visados. Petro, por outro lado, tentou implementar programas de desenvolvimento nessas áreas, mas essa solução de longo prazo ainda não trouxe alívio para as comunidades. Um total de 82 ativistas sociais e 19 ex-guerrilheiros das FARC foram mortos apenas no primeiro semestre de 2023.

As negociações com o ELN, a maior organização guerrilheira remanescente da Colômbia, continuaram de onde pararam no governo de Santos. Mas enquanto este recusou-se de modo categórico a discutir questões macroeconômicas, Petro tentou estabelecer um terreno comum. Em 27 de abril, o governo e o ELN assinaram uma agenda de negociações, batizada de “Acordo do México”, que prometia examinar “o modelo econômico, o sistema político e as doutrinas que impedem a unidade e a reconciliação nacional” e afirmava que a construção da paz requer a “eliminação do atual sistema de exploração e depredação, e a criação de condições de equidade social e econômica”. As negociações não foram fáceis, mas agora uma saída parece ser alcançável. A terceira rodada terminou com um anúncio de cessar-fogo bilateral, com início previsto para agosto e duração inicial de seis meses. Também foram realizadas discussões com dois grupos armados “dissidentes” — a Segunda Marquetalia, que abandonou o processo de paz anterior, e o Estado Maior Central, que nunca o subscreveu. Aqui, um cessar-fogo mostrou-se mais evasivo, e Petro teve que enfrentar a oposição de políticos que o exortavam a abandonar o esforço.

Tendo defendido em campanha a necessidade de acabar com a dependência econômica da Colômbia em relação aos combustíveis fósseis, que têm ampliado o desmatamento e a contaminação dos recursos naturais, o governo impulsionou a legislação anti-fracking. Também proíbiu novas licenças de exploração de petróleo e gás. Em março, anunciou planos de transição para uma economia verde, investindo em energia renovável e modernizando sua infraestrutura. A vice-presidente Francia Márquez, uma ativista ambiental de longa data, tem sido poderosa porta-voz desse programa. Mas como a riqueza mineral da Colômbia continua a fluir do solo para os cofres estrangeiros, não será fácil garantir o nível de cooperação internacional necessário para uma grande transição energética. E se as receitas das exportações de combustíveis fósseis começarem a encolher, o governo precisará de fontes alternativas de financiamento para os projetos redistributivos e de paz. Elas podem ser escassas.

O projeto do Petro foi fortalecido pelo ressurgimento de governos progressistas no Brasil, México, Chile, Peru, Bolívia e outros países. Apesar de suas divisões internas, este bloco de poder regional fez com que a influência norte-americana e europeia diminuísse. A ascensão da China contribuiu para esse reequilíbrio, à medida que os Estados olham cada vez mais para o leste em busca de comércio e investimento. Isso contrasta com o período de 2015-19, quando os governos conservadores da América Latina atuaram como retransmissores voluntários da política externa dos EUA. Enquanto Duque somou-se à tentativa de golpe apoiada pelos Estados Unidos contra o governo de Maduro, Petro reabriu rapidamente as relações diplomáticas com a Venezuela, coordenando uma resposta conjunta à migração em massa e ao aumento da violência nas zonas de fronteira. O consenso regional também se voltou fortemente contra a “guerra às drogas” liderada pelos Estados Unidos, que devastou o continente por mais de cinquenta anos. Mesmo que o antiimperialismo da primeira “maré rosa” não tenha se manifestado tão fortemente na nova onda, um mundo cada vez mais multipolar dá a Petro e seus aliados maior espaço de manobra. As preocupações de que o hegemon global desestabilizaria seu governo ainda não se concretizaram.

No entanto, o governo continua vulnerável em outras frentes. Margarita Cabello, a inspetora-geral (de direita) encarregada de supervisionar a conduta das autoridades eleitas, tem como alvo remover do Congresso membros do Pacto Histórico. Alega que se opuseram à polícia durante os protestos de 2021. E Francisco Barbosa, procurador-geral nomeado por Duque, impediu os processos de paz ao se recusar a retirar mandados de prisão de líderes de grupos armados e impedir sua participação nas negociações. No início de junho, a chefe de gabinete do Petro foi acusada de submeter sua babá a vigilância ilegal. Pouco depois, o próprio Petro foi acusado de se beneficiar de financiamento ilegal de campanha com base em uma gravação de áudio vazada de seu assessor Armando Benedetti. O presidente descreveu esses escândalos forjados como uma tentativa de golpe blando, ligando-os à longa história de luta contra os líderes social-democratas na América Latina.

O Pacto Histórico encerra assim seu primeiro ano de mandato tentando equilibrar as demandas dos movimentos sociais que o levaram ao poder com as de uma classe política que mantém o poder legislativo. O compromisso será essencial, o que pode significar sacrificar alguns elementos centrais da agenda do Petro para que outros possam avançar. Um plano de sucessão também é crucial para o “governo da mudança”, pois seus ganhos poderiam ser revertidos pelo próximo presidente. A eleição de 2022 foi vencida por uma margem estreita que pode ser eliminada pelo mau planejamento da campanha de 2026. Talvez inevitavelmente, em meio ao fluxo constante de publicidade negativa e ao aparentemente intratável pântano legislativo, os índices de aprovação do Petro começaram recentemente a cair. As eleições locais marcadas para outubro funcionarão como um referendo sobre seu mandato. O estallido social sustentará a esquerda colombiana?

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